Dossiê: Rompendo fronteiras: da história comparada à história transnacional

Submissões até 15 de novembro de 2021

O transnacionalismo tem despertado um crescente interesse nas Ciências Sociais e Humanas e, sobretudo a partir da década de 1990, também na História onde é possível detectar a multiplicação de livros, artigos académicos, conferências e cursos que versam sobre o tema. Apesar do conservadorismo que usualmente caracteriza a prática historiográfica, o conceito de transnacional circula rápida e amplamente influenciando determinantemente a actual investigação historiográfica.

Designado por alguns autores como a “viragem transnacional” (Saunier, 2008;Weinstein, 2013) e observado como uma “revolução historiográfica” (Akira, 2013), o fenómeno parece ter sido impulsionado pela academia norte-americana, ainda que seja difícil determinar com precisão a sua origem. Dois marcos importantes neste domínio são sucessivamente evocados. O primeiro é o debate entre Ian Tyrrell e Michael McGerr, no âmbito de um fórum promovido em 1991 pela American Historical Review, sobre as possibilidades de uma aproximação à história norte-americana através do estudo de fenómenos que transcendia as fronteiras domésticas, tendo o primeiro enfatizado as “possibilidades de uma história transnacional” (Tyrrell , 1991). Depois, a publicação do livro Conceptualizing Global History, coordenador por Bruce Mazlish e Ralph Buultjens (1993), tido como um dos primeiros estudos que explorou o género. Segundo Mazlish & Buultjens, o foco da nova história global seriam fenómenos transnacionais como a globalização económica, questões ambientais, direitos humanos. A história transnacional resultaria, assim, da progressiva afirmação da história global sobre a história nacional, e constituiria, nesta perspectiva, uma subcategoria historiográfica ou uma nova abordagem para o estudo da história.

A ideia de que a História Transnacional mudou a maneira de compreender, ensinar e escrever a História reúne um amplo consenso. Da mesma forma, são muitos os historiadores que exaltam as suas vantagens nomeadamente no que diz respeito à recuperação da ideia de História como um processo ou, ainda, devido ao facto de colocar em evidência a fluidez das fronteiras e a ampla circulação de pessoas e ideias entre elas. Mais difícil, no entanto, é encontrar uma definição do conceito que seja largamente aceite e, sobretudo, clarificar os pontos de contacto e as diferenças entre o conceito de História Transnacional, História Internacional, “História Cruzada” e, sobretudo, História Comparada e História Global.

Ainda que, por vezes, a abordagem transnacional se associe ao método comparativo, tratam-se de realidades diferentes. Terá sido, aliás, o declínio do comparativismo, isto é, dos estudos que analisam e comparam dois ou mais casos geralmente definidos por nacionalidade, que ditou o sucesso do transnacionalismo (cf. Seigel, 2005). S. Conrad insiste na ideia de que a História Comparada não consegue escapar da lógica das histórias nacionais, domínio em que a história transnacional apresentaria múltiplas vantagens. No entanto, Jürgen Osterhammel (2009) chama a nossa atenção para o facto de a História Comparada e a História Transnacional não serem realidades incompatíveis mas, pelo contrário, se complementarem.

Da mesma forma, a distinção entre história global e história transnacional foi inicialmente muito ténue e, ainda hoje, “continua a sê-lo” frequentemente (Iriye, 2013, p. 11). Propondo uma definição de História Transnacional como “o estudo de movimentos e forças que transpõem as fronteiras nacionais” Iriye (2013) destaca duas características que esta abordagem partilha com a história global: (1) ambas olham para além das fronteiras nacionais e procuram explorar interconexões através das fronteiras; (2) ambas se preocupam com questões e fenómenos que são relevantes para toda a humanidade, e não apenas para um pequeno número de países ou para uma região do mundo. No entanto, o conceito de globalização supõe um declínio da nação, enquanto os estudos transnacionais geralmente reconhecem a persistência da nação como uma esfera fundamental de análise de processos, redes e fenómenos “de todo o tipo que atravessam as fronteiras da nação sem implicar a sua homogeneização” (Weinstein, 2013, p. 23). O transnacionalismo possibilita ainda superar a mera identificação de particularidades ou especificidades num contexto nacional, alargando assim a perspectiva de análise.

O termo História Transnacional foi, num primeiro momento, popularizado por historiadores norte-americanos como David Thelen, Daneil Rodgers ou Thomas Bender que, identificando o “excepcionalismo americano” com um dos principais entraves ao aprofundamento da história norte-americana, postularam a necessidade de descentrar o estado-nação como o locus primordial do interesse dos historiadores (Saunier, 2008, p. 6). Esta perspectiva de análise rapidamente conquistou muitos adeptos e ganhou novos contornos.

De acordo com a definição de D. Thelen ou T. Bender, o transnacionalismo diz respeito ao movimento de pessoais, ideias, tecnologias e instituições através das fronteiras nacionais. M. Seigel, por seu lado, destaca o facto de a História Transnacional examinar “units that spill over and seep through national borders, units both greater and smaller than the nation-state” (SIEGEL, 2005, p.63).  Partilhando desta visão, Isabel Hofmeyr explica que “The key claim of any transnational approach is its central concern with movements, flows, and circulation, not simply as a theme or motif but as an analytic set of methods which defines the endeavor itself. Put another way, a concern with transnationalism would direct one's attention to the “space of the flows,” to borrow a term from Appadurai, whose work from the late 1980s has been so central to the rise of transnational approaches” (AHR Conversation, 2006, p. 1444). Em suma, conclui S. Purdy, “História transnacional, pela própria etimologia da palavra, sugere conexões e interações, não simplesmente comparações” (2012, p. 67).

Apesar do consenso sobre o foco no estudo de conexões e interacções, o facto de o conceito de História Transnacional ser passível de diferentes definições, metodologias e escalas, faz com que muitos historiadores usem o termo “transnacional” com pouca precisão. Como observa Matthew Connelly este é um domínio “subdesenvolvido”, apesar do crescente interesse e amplo investimento na História Transnacional e de, em seu entender, a Historia Transnacional se ter tornado uma marca e um termo invocado mesmo por muitos que praticam uma história convencional (AHR Conversation, 2006, p. 1447). Ainda assim, é possível afirmar que a História Transnacional tem muitos futuros e vários caminhos se abrem ao seu desenvolvimento.

O presente dossier propõe-se contribuir para o desenvolvimento da historiografia, colocando em diálogo diferentes trabalhos que integrem a perspectiva transnacional. É nosso objectivo apresentar diferentes maneiras de fazer história transnacional, abrindo novas perspectivas teórico-metodológicas, detectado problemas e limites desta abordagem. O desafio reveste-se de particular interesse para os historiadores da América Latina mas também para os que estudam o espaço lusófono, num sentido mais amplo. Em nosso entender, os casos concretos apresentados permitirão reflectir sobre a própria História Transnacional e analisar as possibilidades que a perspectiva oferece.

 

Organizadores

Maria Inácia Rezola (Escola Superior de Comunicação Social e Instituto de História Contemporânea - Portugal)

Leandro Pereira Gonçalves (Universidade Federal de Juiz de Fora)