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Semente Crioula
Lia Cancilier Ferronato
Para citar este artigo:
Ferronato, Lia Cancilier. Semente Crioula.
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 3, n. 56, dez. 2025.
DOI: 10.5965/1414573103562025e601
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Resumo
Semente Crioula
foi uma dramaturgia desenvolvida a partir de um diário de
viagem do Estágio Interdisciplinar de Vivência com os Movimentos Sociais da
Via Campesina, no oeste de Santa Catarina, em 2025. Influenciada por
Água
Viva
de Clarice Lispector, articulou experiências íntimas e questões políticas
e sociais envolvendo o conflito pela terra. A narrativa de Doralice, híbrida entre
humano e animal, evidenciou conflitos territoriais e reflexões sobre corpo,
natureza e apropriação de si.
Palavras-chave
: Conflito pela terra. Memória. Dramaturgia sensível.
Semente Crioula
Abstract
Semente Crioula
is a dramaturgy developed from a travel journal written
during the Interdisciplinary Experience Internship (Estágio Interdisciplinar de
Vivência) with Via Campesina in western Santa Catarina, in 2025. Influenced
by Clarice Lispector’s
Água Viva
, the work weaves together intimate
experiences and political and social issues related to land conflict. The
narrative of Doralice, a hybrid figure between human and animal, highlights
territorial disputes and reflections on the body, nature, and self-appropriation.
Keywords
: Land conflict. Memory. Sensitive dramaturgy.
Semente Crioula
Resumen
Semente Crioula
es una dramaturgia desarrollada a partir de un diario de viaje
escrito durante el Estágio Interdisciplinar de Vivência con los Movimientos
Sociales de la Via Campesina, en el oeste de Santa Catarina, en 2025.
Influenciada por
Agua Viva
de Clarice Lispector, la obra articula experiencias
íntimas con cuestiones políticas y sociales relacionadas con el conflicto por
la tierra. La narrativa de Doralice, figura híbrida entre humana y animal,
evidencia disputas territoriales y reflexiones sobre el cuerpo, la naturaleza y
la apropiación de sí.
Palabras clave
: Conflicto por la tierra. Memoria. Dramaturgia sensible.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Vanessa Santos Gonçalves. Graduação
em Letras pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
2 Graduanda em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
liacferronato@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0851501965873839 https://orcid.org/0009-0000-8463-645X
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Palavras introdutórias a quem lê,
Insisto em buscar alguma
proximidade
com as pessoas pelas palavras.
Por isso escrevo.
Como no teatro as palavras estão no corpo, registro que a versão que aqui se
seguirá ainda não foi encenada, mas está ganhando materialidade cênica por um
generoso grupo de dezesseis pessoas, com as quais me encontro semanalmente
em sala de ensaio nas segundas-feiras à noite. Vieram pelos cartazes de chamada
pública colados no Campus I da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)
ou por convites. São pessoas com diferentes aproximações à prática de
encenação, de dentro e de fora da universidade, trabalhadoras, professoras e
professores, militantes de movimentos sociais, colegas de curso e de cursos
vizinhos do Centro das Artes (CEART), do Centro de Ciências Humanas e Educação
(FAED) e da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Assim, seguimos
pesquisando nos procedimentos práticos das disciplinas de Direção Teatral I e II,
com estreia prevista para o final de novembro de 2025. A dramaturgia também faz
parte central da pesquisa em andamento do Trabalho de Conclusão de Curso, com
orientação do professor Stephan Baumgartel.
Semente Crioula
é uma dramaturgia sensivelmente enredada em torno de
uma questão central da realidade brasileira: o conflito pela terra. Ela se originou a
partir de um diário de viagem escrito durante o Estágio Interdisciplinar de Vivência
(E.I.V.) realizado com os Movimentos Sociais da Liga Campesina no oeste de Santa
Catarina, em 2025. Segundo Pigozzi et al. (2024), o EIV é uma experiência político-
formativa que reúne jovens trabalhadores e estudantes universitários para
vivenciarem, na prática, a realidade de famílias camponesas organizadas nos
movimentos sociais da Via Campesina. O objetivo é fortalecer os vínculos entre
campo e cidade, promovendo o intercâmbio de saberes e a formação humana.
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Durante a parte prática do estágio, estive em Itapiranga/SC. É perceptível na
paisagem as marcas do agronegócio, causando recortes entre as casas de alguns
camponeses que resistem contra essa lógica produtiva imposta, ilhados por
plantações de milho e soja transgênicos. Foi nesse contexto que passei alguns dias
na casa de Luyan, militante que faz parte do Movimento das Mulheres
Camponesas (MMC3). Ele é um camponês artista, professor de língua inglesa e
guardião de sementes crioulas. Ele me ensinou sobre o valor de resistência dessas
sementes, passadas de geração em geração por guardiões e guardiãs - indígenas,
quilombolas e camponeses.
Sementes crioulas engarrafadas em politereftalato de etileno me apareceram
como uma síntese simbólica do conflito, mas também da coexistência dessas
forças opostas. A partir dessa viagem, passei a participar da Regional do MMC de
Florianópolis.
A escrita foi alimentada pelo livro
Água Viva
de Clarice Lispector, uma obra
literária experimental e intensa, sem estrutura narrativa tradicional, caracterizada
por ser um monólogo em uma busca atravessada pelo it4. As palavras escolhidas
para Doralice partem de uma presença tátil e intuitiva que está entre o campo e
a cidade. Assim, sob a influência fragmentada de
Água Viva
, a dramaturgia de
Semente Crioula
é tecida em retalhos que mesclam questões da vida íntima a
questões sociais estruturais. Semente Crioula foi primeiro um diário de viagem que
tentava registar um it em Itapiranga.
3 Movimento nacional e autônomo que surgiu formalmente nos anos 1980. Inicialmente, a partir da organização
de mulheres em sindicatos e pastorais, a luta se fortaleceu com a criação da Articulação Nacional de
Mulheres Trabalhadoras Rurais (1995). Um movimento social feminista e popular que intersecciona as lutas
de classe, gênero e raça.
4 Um artigo intitulado "As duas versões de Água Viva", de 1989, foi publicado pela editora Remate de Males,
escrito por Alexandre E. Severino. Interessa como o pesquisador define esse termo como uma tentativa de
chegar em um ponto inefável, para além do raciocínio e da imaginação, e isso se elucida na obra de Clarice
Lispector, com ajuda de seres elementais (plantas, animais) próximos da intuição e do inconsciente. Surge
uma questão: “Como escrever uma dramaturgia que evoca o
it
?
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Posteriormente, o texto ganhou novos trechos a partir dos exercícios e
provocações do Laboratório Contínuo de Escritas Teatrais5. Também destaco as
contribuições de Amanda dos Anjos (pelos versos e indicações sobre o nono
retalho), Felipe Valente (pelo solilóquio publicitário) e Linaia Palácio (pela canção
Ode ao Coronel
e contribuições do oitavo retalho). E as composições musicais
tecidas pelo núcleo de compositores musicais: Carlos Roberto, Jade Dejá e Simon
Aftalion. Os fragmentos, costurados entre relatos pessoais, ficção e crítica social,
fazem emergir a figura de Doralice, quem sabe uma quimera de Medeia e Macabéa,
uma força mundana, híbrida entre humano e animal. Ela se assemelha mais a uma
galinha do que com uma heroína dramática.
A escolha por submeter esta dramaturgia ao dossiê temático
Artes Vivas
e o
Antropoceno/Capitaloceno
se justifica pela maneira como o texto propõe uma
escritura cênica viva, enraizada em processos colaborativos, não-lineares e que
são costurados entre ficção, memória, política e paisagem. Semente Crioula trata
do conflito pela terra, das marcas do agronegócio sobre os corpos e territórios, e
da potência de resistência das sementes crioulas, símbolos de continuidade
ancestral, biodiversidade e insurgência frente à lógica produtivista e à
mercantilização da vida. A peça propõe expor essa mercantilização e a
transformação do campo-corpo-animal em produto.
As estruturas de poder e opressão estão também por dentro das cabeças,
por isso esse texto dramatúrgico é sobre a memória. E por isso também é
profundo e sensível o lugar que as palavras que a seguir poderão ser lidas se
lançam artisticamente. Profundo porque percebo como a lógica patriarcal, talvez
uma das que mais me afete, contra a qual quero lutar, é um monstro invisível que
se dispõe entre as pessoas, e as interseccionalidades das identidades sociais
marcam opressões distintas. E me refiro às estruturas que apertam e esmagam,
a incapacidade nesse sistema de vivermos com mais dignidade, praticar alteridade,
viver as contradições, estar em algum tempo que seja nosso, na possibilidade de
5 Vinculado ao projeto de extensão “Encontro com Dramaturgo”, coordenado pelo professor Stephan
Baumgartel.
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nos apoiarmos e nos amarmos enquanto humanos, tudo isso pesa.
Se vou longe é porque aqui há paixão que me mobiliza.
Por fim, queria que essa dramaturgia fosse justamente os retalhos de uma
história a serem amarrados por leitores/público. Queria que leitores/público
juntassem os quadrados velhos e coloridos e tecessem com seu olhar alguma
reflexão sobre a maneira como nos relacionamos com os territórios da cidade e
do campo, e também com os corpos das pessoas e animais. O trabalho. As
relações. E como tudo está passível de se tornar mercadoria - a terra, os animais
e as sementes.
Boa leitura!
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SEMENTE CRIOULA
É uma dramaturgia de retalhos para muitas pessoas.
Doralice, durante toda a encenação, carrega as sementes engarrafadas e evoca
seus mundos imaginários da memória sobre o mundo real que se recria em cena.
Serão os quadrados coloridos, velhos e gastos, costurados em um manto de
proteger os sonhos para o agora.
Aos curiosos, listo as vozes falantes dos retalhos
:
Coro dos que guardam a memória de vagalumes
Doralice(s) é Mamífera. Herbívora. Quatro patas. Estômago dividido em quatro
compartimentos distintos. Pelos escuros pendurados na cabeça e nas vergonhas.
Sétima filha, sendo a mais nova entre os irmãos. Abandonou a família sem se dar
por gente e nem por bicho. Sente medo, mas tem dias que acorda mais danada.
Estrutura pequena porque comeu pouco. Fala tanto porque comeu menos.
Rumina o próprio passado. Presa e predador. Arcaica e idílica? Herbalíssima! Não
consegue olhar para a realidade sem dispor de um sentimentalismo que é
pulsante e ansioso. Planta primária de lavoura. Terra. Bicho do mato que teme a
cidade de capital disfuncional. Originalmente mundana.
Tio Alceu, parece com um pai.
Novo marido, logo será nomeado.
Latifundiário, ou Coronel, daria no mesmo.
Mãe de Doralice
Parentaiada
Fotografias de família
Feed de aplicativo
Publicitário. Um monstro que aparece de noite, às vezes no íntimo da cama.
Motorista. Apenas um caronte, mas não se pode bobear.
Recortes da paisagem
Rádio
Coro dos que não se recordam da memória de vagalumes (mas que
possivelmente adorariam recordar)
Um transeunte apressado
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Um comprador de ouro (que paga bem)
Os retalhos a seguir poderão ser costurados da forma que se imaginar.
PRIMEIRO RETALHO ou
Coro dos que Guardam a Memória de Vagalumes
CORO DOS QUE GUARDAM A MEMÓRIA DE VAGALUMES
Há gerações estamos aqui
quando o sol já trabalhou no dia
e se resguarda ao justo descanso
Então se elevam nossas luas
fartas ou vazias
a envolver toda terra em mistério
E assim, curiosos e encantados que somos,
fitamos também as tuas irmãs celestiais
a guiar peregrinos que por aqui se perdem
E há explodir talvez desse mesmo fogo,
dessa mesma luminescência dourada
do teu ventre iluminado porque é mínimo
Desce o véu de um sono digno
Nós guardamos a memória de vagalumes
Por esse pequeno fogo contido
Uma chama quase extinta
Contraída em nós, que trabalhamos sim,
E paramos quando cai a noite,
E então somos reconhecidos
Ao menos vistos pelo mato
Por vezes capturados
Porque nos tornaram
Raros que somos
Aqueles que negam o veneno
Mas sim, trabalhamos sim, ao raiar do dia
Por detrás e para cima dessas pragas que não criamos
As pequenas pragas invisíveis que sequer imaginaríamos
Mas que para toda terra trazem estragos
Nós, que criamos grandes bichos soltos e bem visíveis
Mas que das pestes seremos então os maus vizinhos
E por ser assim mal-vistos
desvanecidos do brilho
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preguiçosos
vadios
improdutivos
é que sempre há de cair para nós a noite
para descansarmos bem, pois trabalhamos duro junto ao sol,
e gostamos de brincar na água depois de cuidar da terra
e se por ora escondidos ficamos em nossas tocas,
hoje estaremos aqui
Vagando
Vagando
Vagando
Na brevidade do teu fino bater das asinhas
Piscar de olhos, num toque de cílios muito sensível desse teu olhar
Naquele quintal com formigas
Sempre atentos brilham os teus olhos
De cão vigilante de sono dos donos da terra
Ecoará a tua voz que nem tu mesma ouviste
Que desamarrada tu ficaste sem teu dono!
Tua língua será bem solta agora
E então embrenhará naquela mata secreta da palavra não dita
A rezar bem baixinho estavas
para Deus do Céu e para todos os santos que te ensinaram o nome
pedindo que te levassem embora dali
Mas caiu a noite, ficaste sem deus e nem santos
Rasgou triunfante dragão de ferro o céu
Quando se fazia noite liberta de nuvem e ponteada de estrela
DORALICE - [Na cama] - Troço tão pesado desses como pode flutuar?
Primeiríssima vez que tu viste um dragão daquela espécie
E então imaginou que tipo de gente diferente
Habitaria de passagem aquelas entranhas metálicas
Acorda agora, e nos conta, pois é preciso ouvir, que foi mesmo aquilo que tu
pediste?
[Passa um avião]
DORALICE - [Na cama] - Cai, cai, cai
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SEGUNDO RETALHO ou
Uma cena introdutória de dicotomias fantasiosas a serem
esmiuçadas
[As pessoas no campo, as que guardam a memória de vagalumes, tocam
instrumentos acústicos, trocam sementes, fertilizam a terra, trabalham. O campo,
nesse momento, é roça, é lavoura, é ainda mais floresta. O trabalho é a agricultura,
é parte integral da vida. Há troca de sementes entre as pessoas. É celebrada uma
colheita. Estado de paz com a terra.]
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[A cidade é construída com sintetizadores e instrumentos elétricos, por pessoas
que talvez não gostem de luzes de letreiros e prédios tão altos. Quem constrói a
cidade e para quem? A mando de quem? As pessoas da cidade, que raramente
veem vagalumes, também trabalham. O trabalho é instrumentalizado e detém
grande parte da vida. As pessoas que transitam a pé pela cidade usam uniformes,
que as diferenciam das pessoas que não usam tanto os pés para caminhar, mas
também as assemelham com formigas.]
TERCEIRO RETALHO ou Doralices
Eu estaria buscando chegar aqui, neste agora. E eu tenho medo.
Estranho lugar este é de metade fantasia e de metade realidade.
Se houvesse uma terceira fatia eu diria que ela é toda de delírios e de delícias.
Assim, pertenceria a mim, porque os acontecimentos da vida em beleza e
crueldade me oferecerão uma única saída – a de repartir.
Refaço-me todo dia. Durmo como uma, acordo outra e é só no meio da tarde que
me encontro.
É de uma alegria tão profunda e de uma paz imensa este momento, pela primeira
vez me reconhecendo só, vasta que sou como campo aberto e também tão
pequena e gramínea.
E eu tenho medo.
É que futuramente descobrirei: a semente guarda a árvore e a árvore dará a
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semente.
Sigo sendo essa estranha continuidade de mim, e o passado que já não me cabe,
me afeta só em lembrança.
Foi aqui que nasci e me cresci.
Nunca havia ido para além daqueles morros verdes.
Mas a minha tragédia, não será a de te esquecer.
Como sabem, ou melhor, como agora saberão, eu comi pouco nessa vida de
realidade dura, porque havia ali sete irmãos e irmãs e sendo a mais nova era eu
leitãozinho que pouco mama nas tetas gordas de mamãe e está sempre a viver
nesse entre vida e morte, vida e morte, vida e morte, vida e morte e perde a disputa
pro irmão maior que te sobe em cima e puxa pelos cabelos mas quando ele está
a dormir… ah! então você vai lá, no silêncio total da ponta das suas quatro patinhas,
e aquela mamadinha rápida e desesperada, para ressuscitar de leve, e assim
como que um milagre divino e num suspiro desesperado e cheio de pouquíssimo
ar sobrevive até o domingo de ser carneda.
TIO ALCEU [invadindo a memória] - Fica quieta, Doralice, que peixe nenhum morde
a isca com os teus falatórios.
Tio Alceu, que descobri que não era meu pai pelos dezesseis anos, diz que
não comer o suficiente fez com que eu falasse mais, porque precisava encontrar
algo para fazer com a boca antes de me casar.
Morreu cedo o pai, eu era filhote ainda, ele morreu diz que foi de dívida ou de
doença, podem escolher.
O Tio Alceu me cuidou como se fosse filha até que minhas patas se alongassem
o suficiente para que me tirassem fora daquele ninho.
NOVO MARIDO [Invadindo a memória olha diretamente para Doralice]
E eis essa tua figura, novo-velho-homem que fingi que amei, tão feio e tão bonito,
meu bem e meu mal, meu protetor e meu assaltante.
Tantos anos, querido, era ter falado comigo que eu não entenderia. Ouviria e
veria as saídas e bandeiras dessa guerra ao teu lado, mesmo que a gente estivesse
em estado rival, subiria o pano branco para ti, se ao menos te escutasse.
Teu silêncio é o anúncio da nossa ruína. Só agora distante é que te reconheço. Só
agora distante é que me reconheço.
Tu simplesmente aconteceste na minha vida e eu na tua, não lembro de ter
escolhido. Na verdade, no papel contava que era para ser cômodo e confortável.
E quanto mais conforto, mais difícil é sair da velha casa.
Enquanto tu eras quem trabalhava, eu seria quem cuidava. Eu cuidaria da casa,
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da horta, dos filhos, da sua comida, da minha comida, da comida de todos, do
barro das tuas botas tão sujas e do seu casaco grosso que te esconde das friagens,
da tua mãe velha, da minha mãe velha, dos gatos selvagens que vinham beber do
soro de leite e dos coelhos que domesticamos porque víamos beleza em tê-los
mais perto.
E também cuidaria da figueira que seu pai plantou antes de partir. Eu colheria
figos, faria conserva ou chimia. Partilharia com alegria para nós e para nossas
vizinhas. E eu aceitaria acreditar que tudo aquilo era cuidado e não trabalho. Eu
acreditaria aceitando que o amor ali existe, naquele lugar tão isolado.
É que eu tenho medo da cidade. Seria fácil se assim não me fosse tão difícil.
Mas agora que cesse meu ser para o mundo e passe assim a ser só para mim!
Meu ato de egoísmo é redentor.
Santa rebeldia, me respinga as doses dessa liberdade que não sei muito o que
fazer com ela, ainda, a não ser viver para ver onde ela me leva. Certa de que estou
melhor com ela do que sem ela.
Pela primeira vez nos últimos dias, eu não tive algo que fosse dúvida. E eu tenho
medo.
Fico melhor com minha liberdade do meu lado do que deixando ela ser levada.
Do que sendo eu a levada e sem liberdade e antes de me dar por gente, antes de
me dar por bicho, me vi no altar da nossa capelinha apenas seguindo marchando
de antolho rumo a eternidade!
E o Tio Alceu quase que comete esse ato inédito do que seria um homem
chorando pela primeira vez na vida, a meia idade, ao ver essa jovem criatura se
dar a um novo homem desconhecido e pronto casamos. Como se estivesse
piscando os olhos. Casei.
Que neste momento minha liberdade não me transfira muito longe, pois agora sei
que quero estar bem aqui. Com vocês, que testemunharão o que me acontecerá.
Não são peixes, e quem sabe por isso morderão a minha isca.
Aqui é um espaço frágil, mas que me parece fértil e que logo será já, logo será o
já lá fora daqui.
Quando estamos vivendo nossas vidas, fazendo nossas tarefas, e trabalhando.
Pagando por aproximação, andando no mercado e tentando tomar alguma decisão
sobre péssimas mercadorias de ingerir, andando de ônibus sem fone de ouvido e
tendo que ouvir o próprio pensamento e não a playlist de música que fizemos
juntos, rolando o dedo num pequeno pedaço de ferro e vidro que acende luz e
vibra em imagens e palavras de mil mundos artificialmente reais (?)
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Também fazendo coisas danadas escondidas dos outros, fazendo coisas danadas
esperando que os outros nos percebam, trabalhando e dormindo...
E eu tenho medo e ainda assim celebrarei o engano compartilhado em alta voz
como celebro com o ouvido o curso do riacho que passa perto daquela casa antiga,
constantemente produzindo esse rumor que me acalma e me alegra.
E celebro com olhos de alegria as filas das formigas.
Até me sinto pela primeiríssima vez mais firme que palanque em banhadão.
LATIFUNDIÁRIO [Invadindo a memória olha diretamente para Doralice] - Ô, êê,
mansinha…
Ninguém me prende mais.
Estou aqui com os dois pés bem firmes nessa terra, que agora digo que também
sou eu.
Não é muita terra, porque também meço um metro e tantos do dedão ao fio de
cabelo mais branco e espetado.
É que essa minha terra não haverá de cercar, quero fazer dela um reduto com
cerca viva-vegetal.
Podem vir e espiar.
Tu um bicho do mato. Simples e bruto.
Também sou humana e preciso de carinho.
Em verdade, eu sou também bicho, animal mamífero.
Desejo calor de outro corpo na friagem.
Tenho medo, mas tenho um instinto que é pela vida.
Todo carinho do mundo humano às vezes parece tão pouco.
Parece cada vez mais pouco.
Escuta a história que quero partilhar.
Isso também será um ato de carinho.
[UMA DORALICE NOIVA SE EMBRULHA PARA DORMIR NA COLCHA DE RETALHOS]
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QUARTO RETALHO ou
Dia da partida
DORALICE (Sussurra) - Do tanto que me recordo dessa história ouvida e
reinventada, foi assim que teria sido:
MÃE [Invadindo a memória] - Acorda, acorda! Se aligere que estão todos
esperando na capelinha. Veio parente de tão longe. Umas parentaiada que nem
sabemos direito o nome. Os doze filhos de Justina vieram todos, cada um com
suas esposas e seus punhados de filhos. É que quando se tem comida e música,
quem é vivo sempre aparece. Querem te conhecer pra poder se despedir de ti.
Apure Lice!
[SAI UMA OUTRA ATRIZ-DORALICE, AGORA NOIVA, DA MESMA CAMA. GANHA UMA
BOLSA DA MÃE.]
[UM BAILE DE CASAMENTO]
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[Diálogo de pós-altar. Doralice olha o Novo Marido, que olha para longe]
DORALICE - Oi
NOVO MARIDO [Invadindo a memória] - (…)
DORALICE - Minha mãe me disse que tu tens um cavalo zaino, mas ela disse que
não sabia se tinha nome.
NOVO MARIDO [Invadindo a memória] - Meu pai me disse que tu és a mais nova
entre sete irmãos.
DORALICE - Sou a que nasceu por último, sim. Meu nome era Doralice Maria de
Graças. Ao que me parece, a partir de hoje me tornarei Doralice Maria de Graças
Figueiredo. Minha mãe me disse que dará o enxoval rendado que foi o dela e do
meu falecido pai. Foi pouco usado. Eu não sei muito sobre ele, o pai, sei o nome,
mas nem me lembro mais... Até meus 15 anos achava que meu pai era o Tio
Alceu. Depois de crescida que fiquei sabendo que ele era irmão da mãe e não
o marido dela. Mas do meu pai de verdade só sei o nome mesmo, é que agora não
está prestando a minha cabeça para lembrar. Morreu cedo ele, eu não me recordo
nem das feições dele, nem da voz, nem nada, do pouco que não é muito, me
contaram antes de eu vir aqui me casar contigo. [Tira da bolsa um celular] Tem
uma foto dele que de ver o rosto, mas é muito borrado. Sei que ele fazia
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alambique. E que ele tinha um cavalo tordilho chamado Faísca.
NOVO MARIDO - [Invadindo a memória] Meu pai me disse que tu vais se mudar
para nossa terra. Que vai sair da tua linha depois da festa de hoje.
DORALICE - É que minha mãe achou que era melhor que me debandasse do
ninho e nem fazia sentido depois de hoje retornar aquela velha casa. Nunca saí da
linha. Para o Tio Alceu ia ser melhor também que eu logo saísse, as outras irmãs
já tão tudo encaminhada nesta vida e eu quase que fiquei sobrando, se não fosse
a sua generosidade de marido e essa estranha necessidade que me repassaram,
pois dentro de mim um ventre funcional que precisam que seja usado. Imagina,
eu com meus dezessete anos e ainda lá? Mas não te preocupes que só levo esse
vestido e algumas coisas que cabem dentro da sacolinha. Não tenho muitas
posses, tenho um relógio feio que ganhei hoje, quer ver? [Mexe na bolsa para
procurar, mas é interrompida por um olhar do novo marido]
NOVO MARIDO - [Invadindo a memória] Meu pai me disse que você, por ser a mais
nova, comeu menos. Por isso saiu assim, meio faladeira, e acabou sobrando em
casa. não vai me dar trabalho. O que eu mais gosto na vida é o silêncio. E do
calor do fogo de chão. E do rasgar que os dentes fazem na carne.
DORALICE - Ai! Eu não darei trabalhos. Sei que tu tem muita coisarada para
tratar por lá.
NOVO MARIDO - [Invadindo a memória] Desculpa que sou bruto. É que sou assim
mesmo. Tenho um jeito simples.
DORALICE - Eu também sou como tu e tenho origem simples. Por enquanto, não
sei fazer nada que não seja estar aqui, com vocês. Também sou bicho do mato,
nem quero e aposto que não conseguiria ficar distante desse verde. As formigas
me encantam andando em filas e carregando folhas maiores e mais pesadas que
elas. Qual a tua graça?
NOVO MARIDO - [Invadindo a memória] Odair Figueiredo.
QUINTO RETALHO ou
Família?
[RETRATOS DA VIDA EM FAMÍLIA]
Se passaram 20 anos que moravam juntos. Havia ali entre quatro e cinco filhos,
para a suposta satisfação de Odair e para a imposta glória de Doralice, a maioria
eram homens de mãos grandes.
Os filhos e filhas cresceram. Vamos imaginar que a maior parte desses deixou o
campo para trabalhar na cidade mais próxima ou então ir estudar numa cidade
bem distante. Outra opção poderia ser o casamento, tal qual a mãe, e recomeçar
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em terras outras. Um filho, provavelmente o que saiu com as maiores mãos,
permaneceu para ficar junto ao pai.
Ainda que no fundo Doralice até que gostasse do nariz avantajado do seu marido,
quando ele se colocava de lado e que muito raramente tocava em seu pescoço,
igualmente fino, comprido e gelado, quando iam se deitar ao final dos dias. Ela não
sentia nenhum outro gosto por Odair, senão este.
Odair tinha essa dificuldade de olhar para ela, então nunca olhava por muitos
segundos e diretamente, estava sempre a olhar para fora, para a janela, para a
estrada que passava no alto, para os milharais ao sol aonde ia quase que
diariamente, para o reflexo do sol no pequeno açude que fizera, para o cavalo sem
nome que pastava perto da figueira do seu falecido pai, para os sempre novos
filhotes de coelhos.
E também olhava com certa frequência para essa nova comadre que vinha para
trocar sementes, trazer boas cucas e pêssegos para trocar pelos figos, torcer o
pescoço das galinhas e fuxicar aos domingos, de uma maneira comedida.
Geralmente, em seu modo usual, Odair olhava para outros humanos da sua
espécie por tempo suficiente, para saber se precisava falar uma ordem,
concordar com a ordem de outro, ou manter o silêncio. Mas, agora, Odair, no auge
dos 47 anos de idade, descobre uma nova utilidade para os olhos: o encantamento.
Doralice conhecia essa utilidade desde que era uma filhote, vendo as formigas
enfileiradas do quintal da antiga casa.
DORALICE - Fui vendida para um homem que tinha muitas terras. Pecuarista que
era, tinha tantos bichos, muitos porcos, por isso estava sempre a matá-los e assim
tinha também muitos baldes de banha. E tinha também muitos cavalos, sem
nenhum nome, mas de várias raças, mais de um exemplar de cada uma delas.
Assim, como não tinha nenhum exemplar de Doralice, julgou por ser um bom
negócio.
Odair precisava de dinheiro para pagar um novo casamento e as finanças eram
escassas naquela vida isolada, que de uma maneira simples se autossustentava.
Ao menos, até aquele momento se autossustentava. Mas não é a história de Odair
que vamos nos ater aqui. Talvez porque ali nunca houvesse carinho, esse
acontecimento parecia só mais um momento de piscar de olhos para Doralice.
[A cidade, nesse momento, consome triunfalmente.]
[O campo, nesse momento, se industrializa. O trabalho é instrumentalizado. Reina
a monocultura; a ordem é a mecanização e o uso de agrotóxico]
Semente Crioula
Lia Cancilier Ferronatoo
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SEXTO RETALHO
ou
Um monstro que vive lá embaixo pula para cima
[Doralice está na cama, rolando um
feed
. Muitos sons de conteúdo digital.]
PUBLICITÁRIO [Invadindo a memória] - Eu sou um empreendedor, mas também
sou mãe/pai. Então, alimentação saudável sempre foi o mais importante em
casa. Você parou para pensar como a agricultura faz parte de nossas vidas?
Aproximadamente 8% da população mundial - cerca de 673 milhões de pessoas
estão enfrentando a fome enquanto você me escuta de casa. O Brasil possui
taxas alarmantes de insegurança alimentar e a maioria de nossa população não
tem acesso a maior parte dos nutrientes necessários para uma alimentação
saudável. E se houvesse uma forma de não aumentar a produção alimentícia
ao mesmo tempo em que a demanda por alimentação diminui? Quando pensamos
em um povo brasileiro, percebemos que atualmente ele não possui o valor
intrínseco que outrora possuía, cujos cruzamentos sucessivos e sem qualquer rigor
têm gradualmente modificado seu valor moral. Este espécime acaba sendo um
produto diferente dos grandes intelectuais de nossa época. Toda característica
humana provém de uma safra mais ou menos satisfatória e diante do problema
alimentício poderíamos ter a solução se aqueles moralmente primitivos pudessem
ceder seus nutrientes e calorias para o bem maior da espécie. É claro que, por
possuirmos um grau elevado de cultura, jamais cometeríamos tamanha
atrocidade! Por isso nossos cientistas, em uma parceria histórica com a indústria
verde Holandesa produziram um elixir nunca antes visto. O sonho da pedra
filosofal dos grandes alquimistas europeus do século XVI torna-se realidade, com
apenas alguns goles de mililitros de nosso componente, a parcela humana
degenerada oriunda dos restos do atraso, metamorfoseará em algo muito mais
interessante. O ser bípede transformado em quadrúpede terá, além das quatro
patas, uma grande extensão de músculo e couro resistentes de grande serventia
para o trabalho na lavoura, mas o mais louvável, o mais satisfatório dos resultados!
Terá uma carne macia e nutritiva que alimentará com abundância nossas famintas
crianças. E você acha que é isso? Não! Não é isso. Nossas estimativas
apresentam uma redução da emissão de dióxido de carbono em 50 gigatoneladas,
atrasando o aumento da temperatura total da terra em 5 anos. Tempo suficiente
para que nossos cientistas pensem em mais soluções.
[Há árvores em volta da cama. Doralice dorme. Um reduto vegetal.]
SÉTIMO RETALHO ou
Recortes da paisagem
MOTORISTA [Invadindo a memória] - Doralice?
[As árvores são cortadas, uma a uma. Motorista acorda Doralice, que se
desempacota. A cama de Doralice agora é um carro. Doralice olha pela janela.]
Semente Crioula
Lia Cancilier Ferronatoo
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RECORTES DA PAISAGEM - Mar de soja. Mar de milho. Mar de soja. Mar de milho.
Mar de soja. Mar de milho. As geladeiras de vacas leiteiras que comem soja e milho.
A tecnologia em prol da produtividade em larga escala para monocultivos. Mar de
soja. Mar de milho. Mar de soja. Mar de milho. Mar de soja. Mar de fábrica de ração.
Um grande rio com uma balsa na terra fronteiriça. A casa de cultivar porcos que
comem soja e milho. A eminente tensão de um alagamento mais de 40 anos.
Água em prol da produtividade em larga escala de energia para a geladeira de
vacas e a casa de cultivar porcos. Os humanos que comem bem mais porcos do
que soja e milho. Mar de soja. Mar de milho. Mar de soja. Mar de milho. Longe do
mar e perto de pedras cristalinas de um rio chamado macaco. um homem que
fabrica vassouras com uma engenhoca-bicicleta de fabricar vassouras que ele
também fabricou. Dito preguiçoso, num dia, produz dez. Mar de soja. Mar de
milho. Mar de soja. Mar de
DORALICE - Serás tu meu novo nariz?
MOTORISTA [Invadindo a memória] - Sou apenas o teu caronte.
DORALICE - Tu te sentiste um fiapo de qualquer saco velho? Que se desfez e
está cada vez mais longe da linha original? Desse ninho que te tiraram, te davam
de comer na boca e agora tu precisas pular para fora, ou ser atirado por outro,
mesmo sem saber voar? Não tem que nos ensinar a voar e ainda assim esse
estranho desejo pelo desconhecido, não cessa nunca.
MOTORISTA [Invadindo a memória] - É por isso que nós humanos temos as pernas,
e não as asas. Para andar pela terra acreditando que ela nos pertence e sermos
nós também credores. A gente tem o dom de modificar, construir e aprimorar. O
dom de ficar mexendo no que existe. Criamos aviões de papel e depois os de
ferro. E foguetes, porque não é suficiente a estratosfera. Ainda não para
cimentar as nuvens, mas se desse, tu já viu o que estariam aprontando por lá…
DORALICE - Eu direi que concordo contigo, não porque concordo contigo, mas
porque eu sou uma criatura e perceba: agora vou me camaleando toda! O mais
além que posso estar agora é no labirinto do ouvido de quem me escuta. Mas sim,
é verdade, um absurdo isso. Pela minha segurança, eu certamente serei conivente.
Não queria te ver como ameaça e sinto que no fundo não és. Mas tão difícil deixar
a guarda baixa, não posso bobear livremente nem por um segundo que sou mal
interpretada, dita confusa! Que diacho!
MOTORISTA [Invadindo a memória] - Nossa, desculpa se tu estás constrangida
com o que tu sentiu das minhas palavras. Na verdade, nem precisávamos mais
conversar nesse tipo de interação humana.
DORALICE - Naquela situação foi que pensei: haverá algo que nos atravesse?
RÁDIO [Invadindo a memória] - (Vinheta de Rádio: Rádio Cidade - a maior!)
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Alô alô amigos, alô gente que a gente gosta,
Num patrocínio das empresas amigas,
Aqui quem vos fala é o apresentador preferido do trabalhador, mais que bem
querido!
Skip ad in 30s.
“Bom dia Tio Adelino”
“Bom dia!”
“Bom dia pra todos os ouvintes do Brasil e do Mundo!”
“Valeu queridinha.. e na sonoplastia o Mestre Barbosa”
“Bom dia”
O Adelino vai falar, vai apresentar, está nos telefones agora a gatona Cidinha.
A DM está aberta para direct.
Hoje vou falar dela… A soja está aí, alimentando a vaquinha que nos dará aquele
churrasco bem suculento e o leite cremoso de um delicioso café. E por falar nele,
ele é a estrela do nosso país. Mas bom jogador não joga em casa não, hein! O
nosso país é o maior produtor e exportador de café do mundo. Laranja, cana-de-
açúcar, milho, açaí, guaraná, jabuticaba, arroz e
MOTORISTA/VOZ [Invadindo a memória] - Aqui diz que chegamos. Sabe onde é
que vais saltar?
DORALICE - Pode me deixar em qualquer canto que eu me acho.
VOZ [Invadindo a memória] - Lembre o passageiro de levar todos os seus
pertences ao sair do carro.
[DORALICE RECORDA DAS SEMENTES]
OITAVO RETALHO ou
Carinho de adestrar
RÁDIO [Invadindo a memória] - Ah, como é bom ser brasileiro! E por falar em
orgulho nacional... fique agora com mais músicas para animar o seu dia.
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UM SAMBA DE “ODE” AO CORONEL
G E7 Não quer ser vingado
Não há sapato lustrado E7
Am É justiça primeiro
Que oculte a lama da roça
D7 REFRÃO
E nem cartola ou gravata G G7 C
G D7 O Coronel não é quem atira
Que cubra o odor do chiqueiro Só manda atirar
Am
C C# Não mata
O título de Coronel D7
G7 E7 Só manda matar
Não doura o seu desespero G
Am D7
Não manda
Sua sorte é que o povo cansado G
F7 Só finge mandar
[A cidade, nesse momento, sente fome. Pessoas que dançam com instrumentos,
com outros pares de pessoas, com sobras de objetos de consumo]
[O campo prepara a mesa, a cama de Doralice, servida de alimentos podres.
também muito gado.]
DORALICE(S) - Serás tu meu novo nariz?
LATIFUNDIÁRIO [Invadindo a memória] - Eu não posso ser de ninguém, quero
extrair dos outros e sempre ter mais, sempre mais e sempre para fora. O mais
longe possível.
DORALICE - Então serei eu agora teu novo pescoço, igualmente fino gelado e
comprido?
LATIFUNDIÁRIO [Invadindo a memória] - Eu tenho o poder sobre o pescoço de
muitos animais de muitas espécies. E também sobre as pequenas e grandes
bocas, pois também é meu o poder sobre o que colocam para dentro delas. É
preciso que seja barata a ração, porque o importante é o produto final. Bons são
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os meus fornecedores, que estão pelo mundo todo. Tenho uma fascinação por
seguir os modelos encadeados. Mas pescoço como esse teu, eu nunca vi. Parece
um pescocinho de uma franguinha difícil de torcer. Antes de te olhar pela primeira
vez, estava com desejo de te possuir. Não porque gosto de ter variedade, mas
gosto da exclusividade do produto.
DORALICE - O que tenho em comum com a galinha é que tenho medo. Mas um
instinto, que é pela vida. Desejo voar e minhas asas são pequenas, por isso tenho
quatro patas despidas que vagam pela terra, acariciando ela. Desejo arriscar em
muitos modos de ser.
LATIFUNDIÁRIO [Invadindo a memória] - Eu tenho ambição sobre a vida e já perdi
contato com os meus instintos. Mas insisto sempre pelo fim de tudo. Por isso está
aqui, Doralice. Eu crio animais e tenho uma oferta para você, de fazer algo
importante para salvar tanta gente da miséria e da fome.
DORALICE - Tu estarias me dando opções? Para que eu escolha?
[O Latifundiário serve a taça de Doralice. Que sempre chega próxima a boca dela.
Mas quando está quase a beber, Doralice cacareja um pouco mais]
LATIFUNDIÁRIO [Invadindo a memória] - Sim, Doralice. Aqui pode ser teu eterno
ninho, basta uma condição, um sim que eu tenho. Quero testar uma novidade
em você.
DORALICE - Eu desgosto das inovações, mas gosto de coisas que se tornam
obsoletas. Queria mesmo é morar no início das coisas. A primeira vez que vi as
formigas. A primeira vez que um nariz tocou em meu pescoço. Guardo miudezas
comigo e ainda assim sempre um carinho que nunca vem, um carinho que
nunca tem. [Doralice assume uma postura de estranheza, como se estivesse
formulando ideias sobre a situação em que se encontra] Começo a perceber que
não quero estar aqui, mesmo que me dês a possibilidade da escolha pela primeira
vez na minha vida ficcionada. Não será isso uma ilusão?
LATIFUNDIÁRIO [Invadindo a memória] - Ê, ê, ê, calma. Mansinha, ê, ê. Escuta, tu
vais gostar: recentemente desenvolvemos uma nova solução inovadora para o
mercado de animais. Trouxemos da Holanda e queremos implementar no Brasil,
para depois vender para a Holanda, para a China, para os Estados Unidos, para a
Europa inteira. Muito me custou o frete para trazer produto especialmente para ti,
mas é meu presente... Bastará um gole e te transformarás no que desejas ser.
DORALICE - Pássaro e não pluma?
LATIFUNDIÁRIO [Invadindo a memória] - Avançamos muito nos últimos anos e
consideramos que podemos transformar também algumas pragas mundanas em
produtos [olhar que indica Doralice como praga mundana]. É que tanta fertilidade
solta prejuízo. Será indolor e humanitário o processo de transformação,
pelas pesquisas que vieram da Holanda, eu te asseguro. Aqui terás um abrigo com
muitas amigas, com cercas e cortinas para proteção climática, comedouros,
bebedouros, ninhos e poleiros, além de um piso adequado com serragem para as
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tuas patinhas descalças ficarem confortáveis a ciscar. Um tipo de conforto que
nunca sonhaste!
DORALICE - Esse ninho que me propões não será sequer um galinheiro, será uma
granja inteira!
LATIFUNDIÁRIO [Invadindo a memória] - As cortinas climáticas são maravilhosas.
De um azul tom de céu encantador. Aposto que vais gostar de dormir lá.
DORALICE - Tu perduras tanto a morte, mas a morte não tem partes, ela é toda
inteira. Eu tenho esse instinto pela vida, que é o de repartir.
LATIFUNDIÁRIO [Invadindo a memória] - Mas é justamente essa a proposta. Que
tua carne seja mecanicamente separada para que possas alimentar os
esfomeados. Teu brinco será o de número um! Hoje será a grande noite da tua
transmutação.
DORALICE - Mas eu meço apenas um metro e tantos!
LATIFUNDIÁRIO [Invadindo a memória] - Tu és a primeira. Depois virá uma legião
toda. É preciso que alguém dê o primeiro passo para transformarmos algo.
DORALICE - É por que gostas das cadeias de produção que não faz um caminho
mais direto?
LATIFUNDIÁRIO [Invadindo a memória] - Seria por isso se não fosse também pela
incapacidade de esconder totalmente as nossas ruindades. Colocamos elas dentro
das nossas casas e das casas dos outros, por detrás das cortinas e para baixo dos
tapetes. Mas sempre tem quem espie ou venha querer mudar os modelos que
solidificamos.
DORALICE - Tenho curiosidade de saber se amargo ou doce. O que tu achas?
provaste? O que imaginas?
LATIFUNDIÁRIO [Invadindo a memória] - Ignoro o fato que meu próprio veneno
também me afeta. Mas aposto que é bem docinho.
[Doralice resolve pousar a taça sobre um móvel para iniciar seu plano de escape.
Ao olhar para os lados, começa a elogiar a grandeza dos projetos do latifundiário.]
DORALICE - Nossa, como estou realmente faceira de estar aqui, depois de andar
por tantos pastos artificialmente verdes e cruzar os sete salões da entrada. Nunca
estive em um lugar tão encantador! As mil milhões de raças de cavalos, cães e
gados são dignas de um sultão comparável apenas aos moços das radionovelas.
Um projeto como este mudará todas as vidas da humanidade inteira. Vamos servir
montes de bifes de carne nos pratos de todos os senhores famintos de terra e
insaciáveis por sangue!
[O latifundiário vai inflando seu ego, seu peito cheio de orgulho, convencido de que
Doralice está mesmo deslumbrada].
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DORALICE - Escute, eu nasci sem posses, terra ou canto pra ficar, por isso vim
parar aqui. A única coisa que me restou de pequena herança foi um relógio
dourado, presente de um tataravô por ter salvado a vida do touro reprodutor do
seu coronel patrão. O Tio Alceu bem que queria para ele, mas eu escondi bem no
fundo da sacola.
[Doralice tira um relógio da bolsa e o coloca no pulso do latifundiário. Hipnotizado
com o brilho, o latifundiário passos em direção ao público mostrando sua
conquista, enquanto Doralice puxa uma corrente saída do relógio e a prende numa
estrutura do cenário, revelando um grilhão. O latifundiário está preso e Doralice
pode fugir tranquilamente].
DORALICE - Tu me querias uma vaca leiteira ou gala transgênica, mas sou eu um
auroque mesmo, a vaca selvática, uma gala véia!
[DORALICE(S) CORREM]
DORALICE - E foi naquele momento voraz que fui tomada por uma impertinente
saudade de Odair. Não apenas do toque do seu nariz, mas dele inteiro em silêncio.
[Modifica-se a estrutura de cena. Propõe uma nova geometria. Doralice, fugida,
chega à cidade.]
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NONO RETALHO ou
A fuga para a cidade de capital disfuncional
[Calçada da via principal do centro da capital. O tempo é de pico. O pico é o
primeiro momento do retorno às casas, depois do trabalho. Últimos minutos dos
últimos comércios fechando. Escolas fecharam. Crianças foram todas
encaminhadas. Ônibus prestes a lotar. Celulares e sacolas nas mãos. Mil faces
cansadas jovens ou velhas.]
CORO DOS QUE NÃO SE RECORDAM DA MEMÓRIA DE VAGALUMES
[MAS QUE POSSIVELMENTE ADORARIAM RECORDAR]
Acordar. Sair. Andando por motivos de forças maiores. Entrar no transportador de
gente. Trabalhar. Intervalo. 3600 segundos passam num piscar de olhos. Pagar.
Pegar. Lembrar de tomar água. Aquele ali esqueceu de respirar logo vai cair.
Reiterar o gesto de sorrir aos outros que acredito que me querem bem. Subir
escadas. Correr para onde? Você confortável ou quer que eu um pouquinho
mais para o lado? Engolir um sanduíche rápido que hoje tava sem tempo. Tava
bom? Não, azedo. Acordar. Sair. Acordar. Sair. Até um dia subir, subir de vida. Outro
ali caiu, é que o ar está ficando cada vez mais pesado. Acordar. Sair. Ou então
sumir e passar no crédito. Descer escadas. Empacotar. Desempacotar. Acordar.
Sair. Tu vai para onde? Não que eu me importe. E que te vimos passando.
UM TRANSEUNTE APRESSADO [Invadindo a memória] - Parou por quê?
DORALICE - Que lindinha, mas que tadinha.
UM TRANSEUNTE APRESSADO [Invadindo a memória] - Não precisa fazer
cerimônia.
COMPRADOR DE OURO - Compro Ouro. Pago Bem!
UM TRANSEUNTE APRESSADO [Invadindo a memória] - Elas vivem assim,
sufocadas, mas vivem.
DORALICE - Penso se não é melhor levar comigo, sabe? Como recordação da
primeira vez que estive aqui.
UM TRANSEUNTE APRESSADO [Invadindo a memória] - Arranca logo, leva contigo.
Pega pela raiz.
COMPRADOR DE OURO [Invadindo a memória] - Compro Ouro e pago bem!
DORALICE - Só vi uma dessas aqui.
UM TRANSEUNTE APRESSADO [Invadindo a memória] - Elas nascem
espontaneamente em lugares indesejados.
DORALICE - Por isso quem olha de fora não entende, e logo vai dizer que causam
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pequenos danos.
COMPRADOR DE OURO - Não vai fazer falta aqui, já que ninguém notou antes de
você, pode pegar. Põe atrás da orelha, vai combinar com tua roupa.
UM TRANSEUNTE APRESSADO - Depois passa um cachorro e mija em cima, então
guarda num livro. para alguém de quem sente saudade. não fica parada aí,
pega mal você abaixada tão perto do chão passando os dedos nela.
COMPRADOR DE OURO - Compro Ouro. Pago Bem!
[Na cidade, Doralice descobre a delícia em ter o próprio nariz, ao meio de tantos
delírios]
Referências
LISPECTOR, Clarice.
Água Viva
. Rio de Janeiro: Rocco, 2019.
SEVERINO, Alexandrino E. As duas versões de Água Viva. in: VASQUEZ, Pedro Karp
(org.).
Água Viva
. Rio de Janeiro: Rocco, 2019.
PIGOZZI, Luiza; GOES, Celina Ferreira; SEFERIN, Rodrigo Timm; GAIA, Marilia Carla de
Mello. A experiência prática da juventude no Estágio Interdisciplinar de Vivência de
Santa Catarina (EIV/SC 2023). In: CONGRESSO BRASILEIRO DE AGROECOLOGIA, 12.,
2023, Rio de Janeiro.
Anais
[...]. Rio de Janeiro: ABA, 2023.
Recebido em: 20/09/2025
Aprovado em: 11/11/2025
Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC
Programa de Pós-Graduação em Artes CênicasPPGAC
Centro de Artes, Design e ModaCEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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