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Lebres, coiotes, carvalhos e
pombos à luz da crise antropocêntrica
Andrea Tedesco Canales Rocha
Para citar este artigo:
ROCHA, Andrea Tedesco Canales. Lebres, coiotes,
carvalhos e pombos à luz da crise antropocêntrica.
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v.3, n.56, dez. 2025.
DOI: 10.5965/1414573103562025e0108
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Lebres, coiotes, carvalhos e pombos à luz da crise antropocêntrica1
Andrea Tedesco Canales Rocha2
Resumo3
O artigo propôs pensarmos sobre três obras de Joseph Beuys e uma performance
recente da Coletiva Animalia, tendo como foco de análise a presença de viventes
não humanos na cena. Para tanto, colocou em diálogo pensadores dos estudos
animais e pensadores das artes cênicas, ressaltando a necessidade de uma
transformação daquilo que entendemos por cenas multiespécies em cenas
cosmopoliticamente engajadas, como uma nova forma de coabitar com outras
espécies frente à crise antropocêntrica.
Palavras-chave: Antropoceno. Performance. Joseph Beuys. Relações interespécies.
Hares, coyotes, oak trees, and pigeons in light of the anthropocentric crisis
Abstract
This article proposes a reflection on three works by Joseph Beuys and a recent
performance by Coletiva Animalia, focusing on the presence of non-human beings
on stage. To this end, it brought together thinkers from animal studies and the
performing arts, emphasizing the need to transform what we understand as
multispecies scenes into cosmopolitically engaged scenes, as a new way of
coexisting with other species in the face of the anthropocentric crisis.
Keywords: Anthropocene. Performance. Joseph Beuys. Interspecies relationships.
Liebres, coyotes, robles y palomas a la luz de la crisis antropocéntrica
Resumen
Este artículo propone una reflexión sobre tres obras de Joseph Beuys y un
performance reciente de la Colectiva Animalia, centrándose en el análisis de la
presencia de seres vivos no humanos en la escena. Para ello, establece un diálogo
entre pensadores de los estudios animales y pensadores de las artes escénicas,
destacando la necesidad de transformar lo que entendemos por escenas
multiespecie en escenas cosmopolíticas, como una nueva forma de cohabitación
con otras especies frente a la crisis antropocéntrica.
Palabras clave: Antropoceno. Performance. Joseph Beuys. Relaciones interespecies.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Carla Moreira Kinzo. Doutora em Letras
pelo Programa de Estudos Comparados de Literaturas de nguas Portuguesa da Universidade de
São Paulo (USP).
2 Mestrado em Artes Cênicas na Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (UNESP). Graduação em
Relações Públicas pela Universidade de São Paulo (USP). Atriz, pesquisadora, diretora e dramaturga.
tedesco.andrea04@gmail.com
https://lattes.cnpq.br/3166402045550438 https://orcid.org/0009-0003-9882-7865
3 Este artigo é parte do capítulo Performance e Animalidade da dissertação de mestrado Por que olhar para
os animais na cena contemporânea? Ensaios sobre as relações interespécies nas Artes Cênicas. Defendida
no programa de pós-graduação do Instituto de Artes da Unesp, sob orientação de Vinicius Torres Machado,
em 2025.
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Vivemos tempos estranhos. Tempos de fim de mundo. Eventos climáticos
extremos têm assolado até mesmo o aparentemente controlado espaço urbano.
A partir desses eventos, começamos então a falar em fim de mundo como se o
mundo fosse um, fosse o “nosso” mundo. Mas até chegarmos a este ponto, de
vivenciarmos consequências das nossas ações enquanto espécie em grandes
cidades como São Paulo, foram muitos mundos que acabaram. Como alerta Ailton
Krenak (2020), o nosso é apenas mais um mundo.
Donna Haraway (2023), no livro Ficar com o Problema, nos adverte que, nesse
momento que atravessamos, nada pode ser pior do que: um, a em uma
tecnologia miraculosa que irá nos salvar; ou dois, acreditar que o jogo está
acabado, que é tarde demais e que nenhuma ação será capaz de reverter a
situação. Ambas as alternativas são perigosas, pois não conduzem à ação. Porém,
assim como Elizabeth Costello, personagem e alter ego de J. M. Coetzee (2002)
em A Vida dos Animais, acredito que a inação não é uma opção, e do mesmo modo
como a personagem se indaga sobre o que pode a literatura diante da questão
dos animais, me pergunto: o que podem as artes da cena? O que podemos nós,
artistas? E pegando carona com Costello, pergunto-me: por qual motivo temos
nos esquivado de olhar para os animais dentro das artes da cena? Talvez esse seja
um bom começo. Começar a ver os viventes não humanos que têm habitado a
cena conosco.
Penso no campo das artes da cena como um potente mediador para as
transformações necessárias, mas penso também na necessidade de olhar para o
quanto nós, artistas, fomos forjados pela mesma lógica da modernidade. Difícil
escapar. Penso a partir das artes da cena, pois esse é meu campo de atuação e
pesquisa.
Talvez essa escrita seja o exercício de gerar perguntas diferentes daquelas
que temos feito até aqui. Perguntas que possibilitem desconfiar, suspender e
desacelerar, como propõem-nos Stengers (2023) e Despret (2021). Olhar para as
relações interespécies exige que façamos perguntas mais corajosas que aquelas
que temos feito até aqui, as quais, muitas vezes, têm reafirmado a
excepcionalidade humana. Perguntas que coloquem em xeque a relação que
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temos estabelecido com o mundo que nos abriga, do qual acreditamos ser o
centro. Perguntas que tornem os animais mais complexos e interessantes.
Perguntas que nos coloquem em posição de dúvida e vulnerabilidade
compartilhada com outros viventes.
Para essa jornada, de tentar ver o que não é visto ou de exercitar conduzir o
pensamento por caminhos diferentes, sugiro utilizarmos como definição de ética
aquela usada por Deleuze em uma aula sobre Spinoza:
eu me pergunto qual é o primeiro sentido mais imediato da palavra ética,
no qual ela seja outra coisa que a moral? E, bem, eu diria que a ética nos
é mais conhecida hoje sob outro nome, a palavra é etologia. Quando se
fala de uma etologia humana, do que se trata? A etologia no sentido mais
rudimentar é uma ciência prática de quê? Uma ciência prática de
maneiras de ser. Então eu diria: a maneira de ser é precisamente o
estatuto dos seres, dos existentes, do ponto de vista de uma ontologia
pura (Deleuze 1980, apud Fausto, 2020, p.80).
Podemos depreender, a partir da pesquisa da filósofa Vinciane Despret (2023),
que a definição de ética deleuziana dialoga com a abordagem ecológica do mundo,
que considera as condições de existência dos seres. A ciência tradicional
preocupa-se em demonstrar ou provar que algo existe, ou seja, demonstrar que
aquilo, essencialmente, “é”. Já na área da ecologia, a questão é sempre relacional,
“na medida em que questiona as condições de existência daqueles que estuda”
(Despret, 2023, p.19). E continua: “a questão ecológica está ligada às necessidades
que devem ser honradas na criação contínua de relacionamentos” (Despret, 2023,
p.20). Ou, como propõe Haraway (2022), as capacidades que desenvolvemos
“com”.
Ou ainda, partindo dessa ideia de estatuto dos seres, poderíamos ir além e
pensar o teatro como uma arena na qual mundos diversos são colocados em
diálogo? Nesse sentido, poderíamos extrapolar até mesmo a dimensão ética e
adentrar na esfera da política no caso de mundos multiespécies, na esfera da
cosmopolítica? Seria possível pensar as artes da cena a partir da forma que
Despret, Haraway e Stengers pensam ciência? Um teatro no qual a presença de
animais na cena, performando ao lado de performers ou atores, seja mais do que
um efeito? Isso exige outro tipo de relacionamento multiespécie, no qual todos os
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pontos de vista são entendidos como parte do jogo. Uma arena aberta para nos
surpreendermos com aquilo de que somos capazes juntos. Haraway (2023) fala
em alteridades significativas ou espécies companheiras que engajem
responshabilidade, ou seja, “um tipo de responsabilidade que se conjuga com uma
capacidade de responder e reagir de maneira consequente aos acontecimentos”
(Haraway, 2023, p.10). Uma postura que leve em conta outras subjetividades, outras
agências e outros pontos de vista além dos pontos de vista dos humanos, exige
que estejamos em devir-com.
Quando Despret, por sua vez, fala em devir-com, ela quer dizer com isso
que pelo menos dois “deste mundo” envolvidos: um etólogo e um
ganso, uma senhora e um cão, um criador e uma vaca, que devém um
com o outro o etólogo ou a senhora não se tornam ganso ou cão, mas
se tornam com, isto é, conjuntamente e à medida em que o ganso ou cão
tornam-se com eles. A senhora torna-se com-cão-com-senhora, o cão,
com-senhora-com-cão, e assim sucessivamente. Trata-se, além disso,
de quaisquer dois, sem a necessidade da excepcionalidade. Haraway, a
quem este conceito é caro, fala no processo de devir-com como de
mundificação;4 isto é, não se trata de um termo tornar-se o outro, mas
de ambos, juntos, criarem mundos (Fausto, 2020, p.255).
Desta forma, pensar a relação entre animais humanos e não humanos na
cena como sendo da esfera da cosmopolítica, abre possibilidades estéticas ainda
por descobrir, e artistas empenhados em devir-com outras espécies.
Jacques Derrida, durante um colóquio em sua homenagem, leu o texto que
mais tarde daria origem ao livro O Animal Que Logo Sou. Segundo Fábio Landa
(2002), no prefácio do livro, Derrida estabeleceu um verdadeiro “teatro” ao realizar
a “ação” de abrir sua pasta em silêncio diante de todos, e retirar, lentamente, as
páginas que iria ler a seguir. Derrida apostou na força do momento presente,
apostou na sua presença performaticamente.
Entendo esse episódio como sendo da ordem da performance. Gosto de
imaginar que esse importante pensador da questão animal se valeu da
performance para expressar-se com contundência. Interessa-me, enquanto
artista, a simplicidade com a qual fez isso. Interessa-me a ideia de explorar a
4 Mundificação, assim como respons-habilidade são termos que fazem parte do léxico de Donna Haraway. No
livro Ficar Com o Problema: Fazer Parentes no Chuthluceno, uma nota da tradutora indica que o termo
mundificação (worlding) refere-se às práticas contínuas de configuração e conhecimentos e à invenção
responsiva entre os seres da Terra.” (Haraway, 2023, nota da tradutora, p.19)
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potência performática de ações simples, por vezes cotidianas, para agir no mundo.
Para Eleonora Fabião, a força da performance está em:
turbinar a relação do cidadão com a polis; do agente histórico com seu
contexto; do vivente com o tempo, o espaço, o corpo, o outro, o consigo.
Esta é a potência da performance: des-habituar, des-mecanizar, escovar
a contrapelo. Trata-se de buscar maneiras alternativas de lidar com o
estabelecido, de experimentar estados psicofísicos alterados, de criar
situações que disseminam dissonâncias (Fabião, 2008, p. 4).
A Performance Art surge nos EUA e Europa a partir da segunda metade do
século XX. No Brasil, temos como marco a década de 70. A Performance Art surge
como resposta a um mundo fraturado, influenciada pelas vanguardas
modernistas. Uma manifestação artística híbrida que mescla diferentes
linguagens artísticas, sendo de difícil classificação, a princípio –, e que borra as
barreiras entre vida e arte, saindo das galerias e ocupando as ruas. Com o passar
dos anos, as artes da performance invadiram as artes da cena. Surge o teatro de
cunho performativo, com peças que se encaixam mais na ideia de ação que de
representação. Com as artes performativas, os animais ganham novamente a
cena5, seja ela na rua, em uma galeria ou no palco.
Cassiano Quilici (2013) recorre a Walter Benjamin para falar sobre a
experiência da performance. Benjamin usa o exemplo dos soldados que, ao
retornarem da guerra, não encontravam palavras para expressar o trauma. Quilici
afirma que a performance surge para dar conta desse tipo de situação, na qual
somente o corpo e a presença podem dar conta das experiências, onde a palavra
deixa de ter potência e de fazer sentido. A performance é da ordem da experiência,
do corpo em relação com o mundo real que o cerca.
O surgimento da performance faz surgir também um novo tipo de artista,
que, segundo Eleonora Fabião (2008), cultiva um Corpo Sem Órgãos, um corpo
que está sempre por se fazer, sempre em devir durante a ação. Esse novo artista,
ao rejeitar a ficção, é um artista situado no tempo. Cassiano Quilici (2013), ao falar
sobre esse artista, escreve:
A performance não quer ser entretenimento, arte, militância política, ou
religião, pelo menos nos sentidos convencionais desses termos. Ela
5 Antes disso, os animais figuravam como oferendas sacrificiais no teatro pré-trágico.
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aspira convocar as próprias potências criativas do humano, antes mesmo
da sua configuração em formas e gêneros, comprometida que está com
a reinvenção da cultura e dos modos de vida.
Mas, por vezes, o que move os performers é uma espécie de ambição
desmesurada, uma hybris, que parece responder às expectativas de uma
cultura que tende a idealizar o poder humano de invenção, refletindo
pouco sobre as fragilidades da nossa condição de criaturas. Quando não
há o cultivo da interrogação em profundidade sobre a própria época e os
papeis sociais que nela se representam, o artista corre o risco de
mimetizar traços marcantes da nossa sociedade, como o culto da
tecnologia e da capacidade “fáustica” do homem em reprogramar
completamente a si mesmo e a natureza. Nesses casos, a performance,
que se quer ação criadora de novas realidades, pode tornar-se mera
expressão sintomática de nosso tempo (Quilici, 2013, p.39-40).
Apesar de toda a desconstrução que a performance operou no campo das
artes no sentido de desmistificar concepções tradicionais de talento e
virtuosismo, de retirar as obras de circuitos fechados e elitistas, além de ser uma
forma de arte acessível para todos que queiram expressar-se através dela
apesar disso tudo, de todas essas contribuições importantíssimas que foram e são
tão determinantes para o rumo que a arte tomou no ocidente, é também inegável
que a performance e as artes da cena precisam questionar-se profundamente
sobre o próprio antropocentrismo. Ninguém deixa de ser antropocêntrico por
desejo, essa não é uma questão ética, é uma questão ontológica (Cimatti, 2021),
mas ainda assim: como posso, então, me colocar em uma relação de fragilidade
compartilhada? Como posso estabelecer alianças interespécies menos desiguais?
É possível uma arte interespécie que não seja apenas utilitarista? É possível fazer
diferente do que tem sido feito? Correríamos o risco de produzir uma arte moral,
sem contradições? Isso ainda seria arte? O que significa, hoje, buscar maneiras
alternativas para lidar com o estabelecido, conforme afirma Fabião (2008)? Eu
sempre trago comigo essas perguntas. Elas me instigam a parar, a pensar. Elas
também me instigam a produzir, pois acredito que a performance e o teatro,
nesses nossos tempos de fins de mundos, possam nos ajudar a estabelecer
alianças mais interessantes para que possamos “aprender a viver e morrer bem
uns com os outros em um presente espesso”6 (Haraway, 2023, p.9).
6 Haraway (2023) fala sobre “presente espesso” ao referir-se às estratégias para ficarmos com o problema.
Isso “requer aprender a estar verdadeiramente presente; não como um eixo que desvanece entre passados
terríveis ou edênicos e entre futuros apocalípticos ou salvadores mas como bichos mortais entrelaçados
em uma miríade de configurações inacabadas de lugares, tempos, matérias, significados.”
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Talvez seja impossível buscar por respostas generalizantes. Talvez cada
relação interespécie, cada mundo colocado em contato com outro mundo, enfim,
cada obra tenha suas particularidades e indique saídas e possibilidades diferentes
de coabitar. Fausto (2020), ao abordar a questão da luta pelos direitos universais
dos animais e os impactos que tal mudança implicaria na sociedade capitalista,
com os animais saindo da condição de res (coisas) e passando à categoria de
sujeitos de direito, levanta que a ideia de direitos universais acabaria por evidenciar
a insuficiência da categoria animal (essa generalização, esse animot7), “como se a
ideia desses direitos implicasse o colapso da ideia de animalidade em oposição à
humanidade” (Fausto, 2020, p.161). A filósofa, então, questiona o quão universais
seriam esses direitos e quão mais próximos estariam da jurisprudência. E cita
Deleuze (1992), um apaixonado pela jurisprudência como sendo a parte filosófica
do direito, “aquela que procede por singularidades, por prolongamentos de
singularidades” (Deleuze, 1992, p.191). Talvez aqui, nesta pesquisa, seja importante
pensarmos caso a caso.
Nesse contexto, pode ser interessante abordarmos o trabalho de Joseph
Beuys, não somente pela contribuição que ele trouxe para o campo das artes e a
influência que tem até hoje sobre o trabalho de diversos artistas relevantes, mas
também pela complexidade do seu discurso em torno de suas obras mais
famosas, as quais são interespécies.
Beuys foi uma voz importante a questionar um dos pilares da lógica
antropocêntrica, através da qual a razão é entendida como sendo superior aos
sentidos e à intuição. Suas ações performáticas, principalmente através da
materialidade da cena, tinham a intenção de provocar essas outras formas de
apreensão da vida e da arte. Também questionava o status de excepcionalidade
do artista e da obra, ainda que, contraditoriamente, investisse na construção de
uma aura mítica em torno da sua personalidade. Beuys chegou a ser um dos
fundadores do Partido Estudantil Alemão e seu discurso tinha um forte apelo
7 É Jacques Derrida (2002) quem, a partir da constatação de que a palavra “animal” é uma enorme
generalização que enquadra seres das mais distintas espécies, deixando de fora somente o homem, cunha
o termo Animot numa tentativa de trazer a pluralidade para a palavra, já que a pronúncia de Animot é
semelhante à pronuncia de animaux (animais em francês). Cimatti (2021) também utiliza o termo para
referir-se a essa ideia de animal descrito pela linguagem.
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ecológico. Era um idealista. Foi demitido da Academia de Düsseldorf em que era
professor por permitir que quase 150 alunos participassem da sua aula livremente.
Dizia que sua melhor obra eram as aulas. Após a demissão, concentrou seus
esforços em montar a FIU Universidade Livre Internacional, uma faculdade
pública alternativa às estruturas clássicas e tradicionais de educação.
Sua ideia de “escultura social”, que consistia em longas discussões com
grandes grupos de pessoas em contextos variados, era basicamente um
meio de ampliar a definição de arte, fazendo-a extrapolar a característica
de atividade especializada. Realizada por artistas, a “escultura social”
mobilizaria, em cada indivíduo, sua criatividade latente, e terminaria por
moldar a sociedade do futuro (Goldberg, 2006, p.141).
Ainda sobre a função da arte e as “esculturas sociais”, Beuys escreveu:
Formas de pensar como moldamos nossos pensamentos ou
Formas de falar como damos forma aos nossos pensamentos ou
ESCULTURA SOCIAL: como moldamos e damos forma
ao mundo em que vivemos:
Escultura como um processo evolutivo;
Todo mundo artista. (Harlan 2004, apud Cypriano, 2021, p. 84).
Estou interessada em olhar para a obra de Joseph Beuys em perspectiva,
através de três obras: Como Explicar Quadros Para Uma Lebre Morta (1965); Eu
Gosto da América e a América Gosta de Mim (1974); e 7.000 Carvalhos (1982). Pode
ser interessante pensar essas obras numa linha do tempo que vai de 1965 a 1982
(4 anos antes da morte do artista e com uma distância de quase 10 entre elas),
pois intuo que Beuys, com o passar dos anos, foi desenvolvendo seus processos
de modo cada vez mais pertinente em direção aos temas que lhe eram caros, a
partir de uma perspectiva que enfoca a relação do artista com outras espécies
dentro de suas obras.
Começo, então, a partir de Como Explicar Quadros Para Uma Lebre Morta.
Mais especificamente, começo a partir de uma entrevista8 concedida por Beuys ao
programa Club 2, na qual ele fala sobre a obra. No link disponível é possível ver
trechos da performance mesclados com trechos da entrevista. Apesar da obra ser
bastante conhecida, sinto necessidade de descrevê-la, ainda que rapidamente.
8 Como explicar imagens para uma lebre morta - parte ½. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=t0Rz8EcAeg8 Acesso em: 25 mar. 25.
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Beuys usou como elementos para compor a performance: mel, folhas de ouro, um
abeto morto no chão, uma placa de metal sob um dos pés e uma lebre morta em
seus braços. O público ficava observando o artista de fora da galeria, através de
um vidro que funcionava como uma vitrine. Dentro, o artista manuseava a lebre
com cuidado, falava aos seus ouvidos, e fazia movimentos manipulando as patas
e a cabeça do animal, como se a lebre pudesse ver algo ou pudesse andar. Enfim,
como se fosse uma marionete.
Beuys, desde criança, tinha fascínio pelos animais. Ele brincava de ser pastor
de um rebanho imaginário. Depois de adulto, os animais passaram a estar
presentes em suas obras, nas quais ele buscava retratar o caráter existencial
desses animais. A lebre, para o artista, possuía uma simbologia complexa ligada
às suas qualidades de ocultar-se na terra e de fugir ultrapassando limites. Para
Beuys, a lebre tinha uma relação com o nascimento, com a encarnação.
Surpreende-me, no começo da entrevista, a abordagem do entrevistador, que
está absolutamente consternado pela lebre morta. Ele explica que o modo como
Beuys manipula a lebre desperta nele um pensamento. Ele pensa na palavra
carinho. Faz com que ele fique pensando sobre a lebre e sobre o título da obra. O
entrevistador escapa de uma análise metafórica sobre a presença da lebre, investe
na concretude do animal morto. O que mexeu mesmo com o entrevistador,
conforme ele afirma, foi o fato de alguém explicar algo a um animal morto: “a lebre
está morta e alguém está triste por isso”. A partir dessa colocação, Beuys fala
sobre seu processo artístico, sobre o que ele acredita ser arte: uma arte
antropológica “que não é baseada na inovação, mas que coloca o ser humano
no centro, como ser criativo em si”. Uma arte que possa ser vista de dentro, não
intelectualmente, mas de modo sensorial e sensível. Fala também sobre
ecologia.
Esta performance acontece em um tempo no qual os humanos
causaram danos ecológicos. Isto significa que eles mataram as lebres.
Mas também matam solos, destroem florestas, devido ao estilo de
produção, eles destroem a natureza e a vida em geral este é um
problema ecológico, não é? [...] então eu entendi que a lebre e junto com
ela toda a natureza são órgãos dos seres humanos sem os quais não
podemos viver. [...] É possível, portanto, enxergar a lebre como um órgão
externo do ser humano. [...] Todos nós sabemos que a evolução humana
foi auxiliada por esses seres que hoje estão sendo mortos por nós, já não
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mais estabelecemos nenhuma relação afetuosa com eles (Beuys, 1983,
entrevista Club 2, 6min 12s).
Ainda que entendamos que as relações de uso interespécies, envolvendo
humanos, sejam sempre desiguais (Haraway, 2022), até hoje é bastante comum
que alguns discursos ecológicos assumam um caráter utilitarista, principalmente
aqueles ligados a um verniz de sustentabilidade mercadológica. A própria ideia de
recurso natural deriva desse tipo de pensamento. A lebre ser um “órgão externo
do ser humano”, se por um lado afeta uma ideia de comunhão, de
interdependência, por outro lhe confere também esse caráter de utilidade. O
filósofo Felice Cimatti (2021) afirma que apenas um “Eu” pode TER um corpo e não
SER um corpo. Apenas um sujeito que diz “Eu” pode separar-se do mundo e
estabelecer essa relação de posse, não somente com o mundo que o cerca, mas
com o próprio corpo. Ter a lebre como um órgão externo (do corpo) do ser humano
vai nessa mesma direção de posse e separação.
Cimatti (2021) levanta que durante o processo de nominação, ou seja, quando
nós humanos estabelecemos uma relação intermediada pela linguagem com o
mundo, uma flor, por exemplo, deixou de ser uma flor para ser um exemplar de
uma flor.
Pero ver una flor significa verla como representación de una clase de
entidad, la de las flores, justamente. En esencia, significa que de la flor
que tenemos aquí, delante de los ojos, vemos en realidad su
ejemplaridad, pero lo que hace ejemplar a una flor, capaz de valer para
todas las flores, nos impide ver cómo está hecha esta flor, justo ahora,
justo aquí (Cimatti, 2021, p.166).
Voltando à entrevista, ainda que o entrevistador, ao comentar sobre a obra,
tenha se colocado de modo a fugir das metáforas, ressaltando a concretude da
ação performática, Beuys não se furta a usá-las. A lebre representaria toda a
natureza. A lebre seria uma espécie de órgão externo do ser humano. E ainda que
a lebre fosse apenas uma lebre, aquela lebre, ela ainda é considerada a parte que
representa o todo. Um exemplar de todas as lebres que eles, os seres humanos,
têm matado. Isso, talvez, impeça que vejamos aquela lebre morta. A potência
relacional que o corpo da lebre poderia suscitar é encoberto pelo forte caráter
metafórico e, portanto, representacional. A metáfora parece ser um resíduo da
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relação entre a humanidade e os animais.
Não faz sentido levantar hipóteses sobre quando e como foi a morte da lebre.
Não vou entrar em argumentos que convoquem o direito à vida, e que questionem
se os animais podem ou não sofrer. Se sofrem. Não que isso seja irrelevante para
mim. Mas a tentativa é de trilhar outros caminhos, outras reflexões. Enquanto o
filósofo Jeremy Bentham9 (1974) nos pergunta: os animais podem sofrer? Derrida
nos pergunta: os animais podem não poder? Minha pergunta seria: e o artista, hoje,
poderia não poder? Essa pergunta suscitaria muitas outras. Em nome do quê? Da
arte enquanto exceção que se recusa a reproduzir aquilo que denuncia? Como
recusa às metáforas como sendo da ordem da representação – visto que se trata
de uma performance que se insere radicalmente na urgência do real e do
presente? Como recusa ao próprio antropocentrismo? Isso seria o bastante para
a arte? Para o artista? E o público, o que espera de nós, artistas? Ou ainda,
pensando numa ética de modos de ser, eu ainda poderia perguntar: o que podem,
juntos, lebre e artista? Ou, o que pode a lebre? Mas como ela está morta seu poder
de agência enquanto vivente foi aniquilado. Resta-me perguntar, o que pode um
corpo morto?
Beuys propõe um enquadramento para a performance. Um enquadramento
que borra as distinções tradicionais entre teatro e performance. É uma obra que
faz esse trânsito, borra as fronteiras. A relação com o público é uma relação de
palco/plateia. Um vidro corta o espaço, reafirmando essa divisão. Conferindo um
caráter mais que teatral, televisivo. Um híbrido entre uma vitrine e uma tela de TV.
Beuys desloca lógicas e funções, reconfigura o espaço. A vitrine que abriga o
inanimado, agora abriga uma ação. Protegido por esse enquadramento, o real é
potencializado pela presença da lebre morta, um corpo que surge sem mediação.
O corpo carrega a grandeza da vida da lebre em toda a sua potência e a violência
de sua morte. Beuys profana a divisão entre homens e animais ao estabelecer uma
espécie de velório interespécie, um ritual de passagem para a lebre, para o artista
e para a arte. Sentado, fala ao seu ouvido e a carrega em seus braços. Nesse
momento apenas, o público é convidado a entrar na galeria. Evidente que um
9 Jeremy Bentham (1748 1832) foi jurista e filósofo, difusor do utilitarismo. Postulava que os animais não
humanos mereciam consideração moral.
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Florianópolis, v.3, n.56, p.1-27 dez. 2025
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corpo morto tem agência. Ele te convoca a fazer algo. Enquanto as ações de Beuys,
ainda que incomuns, afetam algo da ordem daquilo que entendemos por velar um
corpo, elas têm uma potência existencial e profanadora. Mas ainda assim, vemos
a lebre morta? Ou a morte? Um morto? Ou a ideia da perda? O animal, esse
animot, essa animagem10 está sempre a representar algo para além dele mesmo.
Beuys não se torna com-lebre-com-Beuys. Tampouco a lebre morta poderia
tornar-se com-Beuys-com-lebre. O artista manipula o corpo da lebre como
manipularia uma marionete. Uma marionete que poderia ter um formato de lebre
ou de gato ou de qualquer outro quadrúpede daquele porte. Ele faz a lebre “andar”,
“olhar” para um lado e para o outro de uma forma que esses movimentos
apequenam o animal em movimentos que mais parecem pertencer a uma fábula
contada numa peça de fantoches. Uma peça mórbida. Como diz o apresentador
da entrevista citada, “a obra não traz redenção”. Independente da fruição que se
tenha ou da leitura crítica que se faça, o resultado é realmente desolador. Apesar
disso, Beuys termina a entrevista dizendo que quando ele está conversando com
animais (referindo-se à lebre durante a realização da performance), ele está
dizendo que aquilo (conversar com animais) é possível. O problema é que o animal
em questão está morto e isso aplaca qualquer possibilidade de redenção. A
possibilidade de conversar com os animais impõe-se, na experiência da
performance, como uma impossibilidade.
O próprio Beuys, na entrevista, fala sobre a importância de entender
retrospectivamente o motivo pelo qual todas as mudanças (referindo-se à arte
moderna, citando Picasso, Mondrian, o Surrealismo e o Simbolismo) foram
necessárias para termos a oportunidade de compreender o ser humano como um
ser criativo por si. Da mesma forma como é importante o trabalho dele para
pensarmos uma arte multiespécies a partir daqui, desse fim de mundos
compartilhado. As obras de Beuys habitam o nosso presente espesso, por isso a
importância de percorrer essas três obras em perspectiva. Sigamos.
Em Eu Gosto da América e a América Gosta de Mim, de 1974 (9 anos após
Como Explicar Quadros Para Uma Lebre Morta), Beuys dá um passo em direção à
10 Cimatti (2021) cunha o termo animagem como um paralelo de animot, referindo-se às representações
visuais dos animais.
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relação interespécie. Dessa vez, ele tem como parceiro de performance um coiote
vivo. Em torno da obra paira um ar enigmático. Beuys havia recusado vários
convites para ir aos Estados Unidos. Agora, no entanto, apesar de ele ter aceitado
o convite, diz-se que ele não pisou em solo americano e nem mesmo viu a
América. Somente teria pisado na Galeria René Block (Nova York). Beuys teria
chegado de avião e de olhos fechados teria sido envolto em um cobertor de feltro
e colocado em uma maca para ser transportado, de ambulância, até a galeria.
Beuys teria, então, passado uma semana inteira (dia e noite) confinado em uma
sala com um coiote selvagem. registros que falam em três dias com o coiote.
Outros falam em três dias, sendo oito horas por dia. Sempre há controvérsias em
torno da vida e obra de Beuys. Na dissertação de Rosenthal (2002), a pesquisadora
fala apenas num convívio por 7 dias, de modo geral, sem especificar interrupções
e períodos de convívio de fato. O vídeo11 disponível nas redes possui muitos cortes,
e por esse motivo não vou me apegar à duração da ação, mas sim à ação em si.
O coiote teria sido capturado para participar da ação, e segundo Rosenthal
(2002), o coiote, às vezes, reagia de modo agressivo e outras vezes de modo dócil.
Embora essa seja a única informação sobre o coiote, assistindo ao vídeo não me
parece que era um coiote selvagem, recém-capturado. Parece bem acostumado
à presença humana, parece saber o que esperar de nós, humanos, em cativeiro.
Na primeira imagem do vídeo, temos Beuys alimentando o coiote, jogando, de
dentro da jaula, pedaços de carne para ele. O coiote, como um cão doméstico,
pula de um lado para o outro pegando os pedaços de carne no ar, e espera que
Beuys jogue mais. Por isso, minha aposta é de que ele tenha sido emprestado por
algum zoológico, algo que tornaria a ação menos interessante em termos da mítica
gerada em torno dela. Ainda assim, por mais que tenha havido muito cálculo e
controle sobre como habitar junto com um coiote uma jaula, o imprevisível sempre
poderia acontecer. Apesar do risco ser menor, ele, de fato, existia. Para a realização
da ação foi realmente necessário que uma relação fosse estabelecida entre
ambos, artista e coiote.
Uma grade dividia o espaço da galeria em dois. Em um deles, acontecia a
interação entre o artista e o coiote. No outro (do lado de fora da grade), o público
11 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IjI3_w9ZbX0 Acesso em: 30 ago. 25.
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observava, como em um zoológico. No chão, havia exemplares do jornal Wall
Street, os quais chegavam todos os dias, e que eram usados pelo coiote que
urinava e defecava sobre eles. Havia também feltro e feno sobre o chão. Beuys
trazia consigo uma bengala, um triângulo, luvas e seu chapéu de feltro. Além do
som do triângulo, o som mecânico de uma turbina de avião era acionado de
tempos em tempos e, ao interferir no espaço, marcava o recomeço ou a mudança
de uma ação. Em Eu gosto da América e a América Gosta de Mim,
A ação representa o ser humano trazendo objetos e elementos de seu
mundo para ocupar o espaço dos índios. Através de representações
silenciosas de poder, Beuys introduz seus objetos ao coiote. O animal
respondeu aos seus gestos de posse ora com agressividade, ora com
submissão (Tisdall 1998 apud Rosenthal, 2002, p. 111).
Beuys expandiu os significados de seus elementos materiais para a
dimensão de crítica histórica e social: para o artista, a soma de elementos
materiais com acontecimentos históricos causaria uma removimentação
destes acontecimentos através do pensamento das pessoas” (Rosenthal,
2002, p. 109).
A ação teria, assim, um caráter de cura de uma ferida histórica. O coiote tinha
uma importância mítica de transformação e transmutação para algumas culturas
indígenas norte-americanas. para os brancos, era considerado uma ameaça,
um símbolo de trapaça. Para Rosenthal, Beuys utilizou o animal como forma de
explorar diversas possibilidades de comunicação para além da expressão verbal.
E a relação entre o animal e o artista seria “uma metáfora da dominação do
homem branco sobre os indígenas” (Rosenthal, 2002, p. 111).
Para além de tudo que foi dito sobre Eu Gosto da América e a América
Gosta de Mim, gostaria de lançar um olhar mais interessado sobre a relação efetiva
entre Beuys e o coiote. Como dito anteriormente, não me parece que o coiote
tenha sido capturado para a ação. Parece um coiote que vivia em cativeiro. Ainda
assim, pode ter sido capturado. Difícil sabermos. Beuys alimenta o coiote e propõe
outros dispositivos relacionais. Enrola-se no cobertor de feltro deixando parte da
bengala para fora, transformando-a numa espécie de cajado e transformando-se
numa espécie de pastor, compondo uma imagem que também faz lembrar a
imagem da morte. O coiote fica instigado e começa a morder o feltro parecendo
querer tirar o disfarce do artista. Querendo revelá-lo. Em alguns momentos estão
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juntos, próximos à janela, noutros descansam distantes. Até que o som de turbina
é acionado e ambos novamente precisam recomeçar a dinâmica relacional que
jogam naquele espaço. É evidente que Beuys lança mão de um expediente de
dominação e opressão para denunciar a dominação e a opressão, na medida em
que reproduz, no micro, com o coiote, aquilo que foi feito com os indígenas, coiotes
e outros tantos viventes durante a invasão das Américas. Mas para além disso,
parece que durante o tempo que permaneceram juntos, até por uma questão de
preservação da sua integridade física, Beuys precisava se comunicar com o coiote,
chegar a um termo de convivência. Precisava estar interessado em saber o que o
coiote queria dele, e precisava estar disposto a dar. Naqueles dias, aquela obra foi
construída através da coabitação de mundos diversos que se atravessaram
naquela jaula. Beuys era com-coiote-com-Beuys. O coiote era com-Beuys-com-
coiote. Mas era também flagrante o desequilíbrio de forças existente entre aquelas
subjetividades entrelaçadas para além do jogo jogado, naquele momento. Alguém
podia sair e voltar. Alguém podia ir embora para nunca mais. Alguém podia decidir
o fim da ação e o destino do coiote. Alguém podia ir embora tendo mudado o
curso da arte humana. A relação interessante, borrada, dentro da jaula, entre
sujeito e objeto, não podia ser sustentada para além do efeito momentâneo da
ação, para além das grades. Beuys sabia o que queria do coiote. Mas tinha interesse
em saber, para além da performance, o que o coiote queria dele? Muito se falou
sobre o artista, sobre a obra e até sobre a metáfora coiote, mas e sobre o coiote,
aquele coiote, o que foi dito? O que sabemos sobre seu destino depois de ter
mudado o rumo da arte humana? Ele tinha interesse em revolucionar a arte
humana? E a lebre, estava disposta a dar a vida por esse mesmo objetivo? Que
mundos estavam em jogo naquela galeria? A imagem mais forte da performance,
a que fica para mim, é o momento de despedida dos dois, no qual Beuys, com
respeito e gratidão, toca o coiote, tenta um abraço. O coiote depois de titubear, se
afasta, mas não reage de modo agressivo. Novamente, apesar de todo um discurso
em torno da obra, o resultado é desolador. Porque apesar de todos os esforços
para provar ser possível a cura, a comunicação entre natureza e cultura, entre
animais humanos e não humanos, o que se tem como resultado, novamente, é a
impossibilidade.
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Muito da importância incontestável e da contribuição que Beuys e suas obras
trouxeram para as artes se deve às relações, ainda que questionáveis,
multiespécies. E é a partir desse legado que surgem novas perguntas. Seria
possível permitir que outras agências operem, de forma mais horizontal sobre uma
obra? Ou para além da obra? Até que ponto? Como isso impactaria o processo? O
resultado? E se Beuys tivesse ido ao encontro dos coiotes em seu habitat natural,
como fez a antropóloga, de Escute as Feras, Nastassja Martin (2021), indo ao
encontro do seu devir-urso na Sibéria?
Interessa-me pensar a criação artística a partir da ideia da instauração de
problemas. Para uma obra existir é necessário que um problema seja instaurado,
um complicador. Esse primeiro problema ao ser instaurado vai conduzir a
determinada escolha que vai gerar um novo problema a ser instaurado e assim
por diante. Pensar a arte a partir de outras agências, além da agência do artista, e
da instauração de problemas com os quais desejamos ficar, não me parece um
modo de limitar a arte e o poder do artista, mas de ampliar a sua capacidade de
responsabilidade, de ampliar a sua habilidade de responder, conforme nos propõe
Haraway (2023). Quem sabe a arte possa nos ensinar, em um mundo que sempre
vai implicar a morte de alguém, a morrer ao invés de matar. E aqui, chegamos
a 7.000 Carvalhos, a terceira e última obra de Beuys que eu gostaria de abordar.
Beuys instaura 7.000 Carvalhos a partir de 1982. Ele morre durante o período
de instalação da obra, que demora 5 anos para ser terminada. A última árvore (e
a última rocha) foram plantadas na presença de sua mulher e de seu filho, na
praça Friedrichsplalz, um ano após a sua morte. 7.000 Carvalhos parece uma
espécie de síntese da sua busca como artista. A obra consistiu na plantação de
7.000 árvores em Kassel, cidade que havia perdido metade de suas árvores
durante a Segunda Guerra Mundial. Juntamente com as árvores, foram plantadas
7.000 rochas de basalto. Nesse sentido, as rochas foram fundamentais para que a
obra não ficasse presa apenas a uma dimensão ecológica. 7.000 Carvalhos adentra
fortemente o campo político, primeiramente ao interferir na pólis mobilizando
os cidadãos na plantação das árvores e rochas, alterando, dessa forma, o espaço
urbano e escapando dos espaços fechados convencionais. Em segundo lugar,
adentra ao campo político também ao recuperar símbolos nacionais antigos, que
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haviam sido apropriados pelos nazistas. Os carvalhos que simbolizam força física
e espiritual, resistência e conexão com a natureza –, haviam sido usados pelo III
Reich em seu brasão. as rochas, quando colocadas junto aos carvalhos,
funcionavam como uma espécie de cicatriz, uma marca do trauma da guerra.
Finalmente, 7.000 Carvalhos expressa a convicção de Beuys de que os
seres humanos eram capazes de aprender a encontrar um novo caminho
para viver melhor e aponta para a arte como uma direção possível e
concreta. Não a arte apenas interna a museus, galerias ou circuitos
artísticos fechados em geral, mas sim a arte vista pelo conceito ampliado
de arte: aberta para ser aplicada em todas as direções que contribuam
para a formação de uma sociedade mais criativa. Todas as suas teorias
buscaram construir uma base prática e teórica para se alcançar este
caminho; criando estímulos para a conscientização do potencial interno
de cada indivíduo como um criador responsável pelo mundo em que
deseja viver (Rosenthal, 2002, p.119).
Talvez 7.000 Carvalhos seja a obra de Beuys mais potente (sob o aspecto da
relação interespécie), para a qual todo o discurso do artista converge. Relendo e
revendo suas entrevistas, pensando sobre sua busca e suas inquietações, parece-
me que é em 7.000 Carvalhos que Beuys realiza plenamente sua ideia de escultura
social. Ou poderíamos chamá-la de uma obra cosmopolítica? Com 7.000
Carvalhos, Beuys instaura mais que uma obra de arte. Ele possibilita a coabitação
de seres de diferentes estatutos. Instaura mortos, fantasmas e memórias. Árvores
e viventes de todos os reinos. Dentro e sobre as copas, sob suas sombras, por
entre suas raízes. Sob e sobre as rochas de basalto, mas também dentro delas.
Fluxo multiespécie. Presente espesso, a um só tempo, passado e futuro. Herança
de histórias já contadas e fabulação de outras tantas por vir.
Não causa espanto que seja uma obra menos conhecida do público, ao
menos fora da Alemanha, pois que, apesar de ser algo monumental, sem sombra
de dúvida, é de menor apelo midiático que Como explicar arte para uma lebre
morta e Eu gosto da América e a América gosta de mim, talvez pelo caráter
transgressor mais evidente de ambas. Mas o que seria transgressão, hoje? Arrisco
– nesses nossos tempos de fim de mundos, nos quais o planeta se empobrece a
cada espécie extinta e se apequena a cada ponto de vista que deixa de existir;
tempos nos quais a máquina da guerra e do capital aprimoram-se na exploração
interespécie e no genocídio de grupos e povos minorizados –, que 7.000 Carvalhos
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talvez seja a obra mais transgressora de Beuys. Além disso, que se ressaltar
que o espaço urbano está sempre em oposição à natureza dentro da lógica binária
hierárquica antropocêntrica e capitalista. Conforme Lepecki, “o urbano, como
espaço construído por tangíveis imóveis de acordo com a estrutura incorporal da
lei, seria o suporte material necessário para conter a efemeridade, a precariedade,
o deslimite e a imprevisibilidade ontológica da política, ou seja, do agir que tem
como produto apenas o agir” (Lepecki, 2013, p. 48).
Com o surgimento das grandes cidades e com a expansão dos processos de
urbanização, surge também uma crescente implementação de políticas
higienistas. Além do desmatamento, do assoreamento de rios, muitos animais,
durante esse processo, foram apartados do convívio humano e, muitas vezes,
exterminados. No ambiente urbano, os animais não humanos que, no campo,
partilhavam a vida conosco, passaram a ser entendidos como ameaça à saúde e
ao bem-estar da espécie humana. A famosa e temida “carrocinha” é prova de que
até mesmo cães e gatos eram sacrificados em nome de um espaço urbano
asséptico que nunca existiu de fato.
Atualmente, os pombos estão entre os viventes mais indesejados dentro das
cidades. O motivo é a “doença do pombo”. Nome tanto genérico quanto
assustador. A criptococose, seu verdadeiro nome, é causada por um fungo
encontrado em ambientes com matéria orgânica. No solo, em árvores, em frutas
secas e... nas fezes dos pombos. A contaminação acontece através da aspiração
dos esporos do fungo. Ou seja, o fungo é encontrado em diversos ambientes
naturais, mas o estigma da doença recaiu sobre os pombos.
Segundo Juliana Fausto (2021), no ensaio “Uma pomba pode visitar o lixo
voar com asas ferais”, “a cidade é, histórica e ontologicamente, um ato de
emancipação da humanidade em relação ao mundo natural” (Fausto, 2021, p.40).
Símbolo de dominação, do progresso e da ordem. A autora faz, a partir desse
binômio hierarquizado cidade/natureza, a distinção entre poluição e sujeira,
ficando a poluição vinculada à ideia de ordem, de efeito colateral “normal” do
mundo dos negócios e do progresso. a sujeira estaria ligada ao conceito de
natureza e, portanto, vinculada a algo desviante da norma com potencial
disruptivo.
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Podemos fazer uma analogia, dentro do campo das artes, entre o
pensamento de Fausto (2021) e as definições de coreografia de André Lepecki
(2013), para quem “movimento e arquitetura são os dois fatores fundamentais na
autorrepresentação da pólis como fantasia político-cinética da
contemporaneidade” (Lepecki, 2013, p.48). Dessa forma, concreto e edifícios
constituem um lugar “neutro” no qual circular é imperativo.
Os pombos atrapalham essa ordem, escancaram a impossibilidade de uma
coreo-polícia (Lepecki, 2013) conter as rachaduras no asfalto, conter o chão que
emerge, a natureza. Já a “coreo-política é a revelação teórica e prática do espaço
consensual e liso de circulação como máxima fantasia policial, pois não chão
sem acidentes, rachaduras, cicatrizes de historicidade” (Lepecki, 2013. p.56). Não
bastasse a presença indesejada dos pombos, eles ainda provocam atos de
guerrilha de pessoas que se propõem a alimentá-los contra a lei vigente, segundo
o filósofo Fahim Amir. As vovanarquistas(Amir, 2020 apud Fausto, 2021, p.40)
segundo ele. Mas essa prática não se restringe apenas a essas senhoras. Idosos
de todos os gêneros, pessoas de classes sociais menos favorecidas, adictos em
situação de rua, pessoas com deficiência, ativistas e artistas estão entre os aliados
desse povo12.
Antes de serem espécies sinantrópicas13, séculos os pombos selvagens
(dos quais descendem os pombos urbanos) foram domesticados pelos humanos.
Foram utilizados por nós como aves ornamentais, como alimento, como
instrumento de navegação e como técnica de comunicação, inclusive nos períodos
das duas grandes guerras, sendo uma das espécies mais condecoradas da história.
12 Juliana Fausto (2020), ao comentar a respeito do conto “Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos”,
afirma que Deleuze apresentava a literatura de Kafka como “a enunciação coletiva de um povo menor, de
todos os povos menores que encontram expressão no escritor e através dele” Deleuze (1993 apud Fausto,
2020, p.204). E continua, “E, de fato, quem canta o povo dos ratos? [...] Josefina pôde transformar seu
assobio em canto do povo através de Kafka, a quem, por meio de uma aliança contra a natureza, coube
cantar os ratos; por sua vez, ela e os ratos, de volta, deram a ele uma voz, a escrita tornada guincho, a
possibilidade da literatura: tornar-se, com os bichos e diante deles, escritor.” (Fausto, 2020, p. 204)
13 Designa-se sinantrópico o comensalismo de espécies animais e vegetais que se instalam em áreas urbanas,
beneficiando-se das condições criadas pela atividade humana e adaptando-se a ecossistemas antropizados,
independentemente da vontade humana.
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A Coletiva Animalia (coletivo de pesquisadores e artistas multilinguagem do
qual faço parte) dedica-se ao estudo, pesquisa e criação artística no campo das
relações multiespécies. A performance Operação CGE é uma ação realizada pela
Coletiva, a qual deriva de outra ação do grupo que também tem como foco a
relação entre humanos e pombos urbanos14.
A Operação CGE foi pensada como uma ação de hackeamento a partir da
ideia de Terrorismo Poético de Hakim Bey (2003). Para o pesquisador, os terroristas
poéticos comportam-se como trapaceiros, cujo objetivo não é o dinheiro, mas a
transformação.
A performance foi realizada por nós pela primeira vez em julho de 2025, em
São Paulo, e contou com três performers usando uniformes (colete e boné azuis
com a logomarca da CGE estampada em cinza e amarelo) e luvas. Abaixo da
logomarca era possível ler: Controladoria Geral de Excrementos. Os materiais
usados durante a ação foram: prancheta e formulário; espátulas; potes para coleta
de fezes; trena e lupas; panfleto informativo. Dentro do bolso das performers:
alimento para pombos. A ação: alimentar os pombos.
Ao chegar na Avenida Paulista (local da ação), num domingo de sol, não havia
pombos andando pelo chão. Uma olhada para o topo dos arranha-céus e
estavam eles, atentos. Uma vez colocada a mão dentro do bolso do colete e jogado
um punhado de sementes no chão, em segundos dezenas de aves estavam à
nossa volta. A ação englobava ainda: contagem dos pombos; contagem de quantos
estavam machucados; medição do perímetro que ocupam; análises, através da
lupa, de penas e excrementos; anotações, recolhimento de amostras. Tudo dentro
do “protocolo técnico” da “CGE”.
O interessante da ação é que ela explora elementos que são símbolos da
ordem, da regulamentação e controle para realizar uma ação ilegal. O uniforme
confere um caráter institucional e legitimidade à ação e ao discurso (nas ocasiões
em que os performers foram abordados). Para os policiais: somos artistas. É uma
ação artística. Para o público: somos da Controladoria Geral de Excrementos. O
14 A ação pode ser encontrada no vídeo artigo: A Procura Por Uma Pomba. Revista IEPA. v. 2, out, 2024.
Disponível em: https://revista-iepa.com/editions/ed-2/ Acesso em: 14 ago. 2025.
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que fazemos? Controlam os excrementos. A controladoria presentifica aquele que
controla e que coreografa o espaço urbano, mas contraditoriamente dança o
deslimite, o devir-com. Uma dança improvisada entre pombos e humanos, com
espaço para o imprevisto e com potencial disruptivo. Uma dança improvável que
chama a atenção. Crianças, cães, idosas e bêbados em situação de rua sentem-
se convidados a participar, a dar um depoimento, a confessar sua secreta simpatia
pelos pombos. Interessante notar que as pessoas que se aproximavam para nos
falar sobre a importância do nosso papel no controle da “doença do pombo”,
mesmo sendo pessoas mais encaixadas dentro da norma, eram facilmente
convencidas da marginalização injustificável dos pombos nas grandes cidades. Não
posso precisar se eram convencidas pelos argumentos (embasados em estudos
científicos) ou pelos uniformes que parecem ter blindado a ação de tal forma que
nem o nome da controladoria expresso no colete, descaradamente debochado,
causava ruído. O resultado dessa ação pode ser uma pista sobre como a nossa
relação com a alteridade é também, em boa medida, mediada pela nossa relação
com a autoridade, ou seja, com quem performa a norma vigente.
Mas se são tempos de fins de mundo, e muitos mundos acabaram antes
que o nosso acabe, também foram muitos mundos que se reinventaram. Cada
campo do conhecimento, nesse momento, necessita questionamento e
reinvenção. Ninguém está acima ou fora dessa necessidade. A arte, nesse
contexto, assume papel fundamental na criação de novas alianças multiespécies.
As ciências, ou ao menos parte delas, buscam nas artes outros modos de pensar
e de se organizar. Buscam se reinventar. Como Beuys reinventou uma cidade e
com isso permitiu que mundos fossem instaurados nela. Como os pombos que
agora habitam os arranha-céus (antes eram montanhas) e que insistem em ser
presença a nos lembrar que algo sempre escapa ao controle humano. Aves
participantes de uma coreo-política interespécie (com artistas e outros enjeitados
pelo sistema) que habita as rachaduras da fantasia da autoridade policial com toda
a sua “potência para o dissenso, que é um exercício também fundamentalmente
estético” (Lepecki, 2013, p.56).
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Como conclusão, podemos depreender que uma cena multiespécie não é
necessariamente uma arena cosmopolítica. A crise antropocêntrica exige que
tenhamos habilidade em responder a esses outros viventes que dividem a cena
conosco, em outros termos. Considerando-os como subjetividades que fazem
parte do jogo cênico. A crise exige que não nos contentemos com o que está dado,
com uma ideia de animalidade pobre e a serviço da espécie humana. Que toda
cena multiespécie seja, em breve, uma arena de possibilidades, perigos e
maravilhamentos cosmopolíticos.
Figura 1 - Operação CGE. Curitiba, setembro de 2025. Foto: Gustavo Weber. Performer:
Roberto Dalmo. Acervo da Coletiva Animalia.
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Figura 2 - Operação CGE. Curitiba, setembro de 2025. Foto: Gustavo Weber. Performer:
Roberto Dalmo. Acervo da Coletiva Animalia.
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Figura 3 - Operação CGE. São Paulo, agosto de 2025. Foto: Carolina Simon. Performer: Carla
Santana Bulcão. Acervo da Coletiva Animalia.
Referências
BEY, Hakim. Caos. Terrorismo Poético e Outros Crimes. São Paulo: Editora Conrad,
2003.
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26
BENTHAM, Jeremy; MILL, John Stuart. Uma introdução aos princípios da moral e
da legislação; Sistema de lógica dedutiva e indutiva. 1. ed. São Paulo: Abril S. A.
Cultural e Industrial, 1974. (Os Pensadores, XXXIV).
BEUYS, Joseph. Como explicar imagens para uma lebre morta entrevista no
programa Club 2 (parte 1/2). [Vídeo]. Exibido em: 27 jan. 1983. Publicado em:
YouTube, s.d. Duração: 1 vídeo (~14 min). Disponível em:
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br