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Mojuba ara!
Convocando os saberes
corporais e ancestrais da diáspora africana
Laís Salgueiro Garcez
Para citar este artigo:
SALGUEIRO GARCEZ, Laís. Mojuba ara! Convocando os
saberes corporais e ancestrais da diáspora africana.
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v.3, n.56, dez. 2025.
DOI: 10.5965/1414573103562025e0111
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Mojuba ara!
Convocando os saberes corporais e ancestrais da diáspora africana1
Laís Salgueiro Garcez2
Resumo
Partindo de uma “operação imaginativa” (Tavares, 2020), a mojuba ara surge como um
exercício decolonial de convocação dos saberes corporais que constituem a
afrodiáspora. Foram trazidos argumentos que demonstram como a colonização e o
pensamento moderno ocidental fundaram discursos racistas sobre os corpos e saberes
negros. Além de alguns exemplos do campo das danças afrodiaspóricas demonstrando
como elas são atravessadas por valores como a ancestralidade e a musicalidade,
expressando concepções singulares de corpo e dança e justificando a necessidade de
revisarmos as histórias e os currículos das artes cênicas em todos os níveis da educação
brasileira, à luz de nossas próprias experiências.
Palavras-chave: Mojuba. Danças afrodiaspóricas. Ancestralidade. Decolonialidade na
dança.
Mojuba ara!
Summoning the embodied and ancestral knowledge of the africandiáspora
Abstract
Based on an "imaginative operation" (Tavares, 2020), mojuba ara emerges as a decolonial
exercise in summoning the embodied knowledges that constitute the afrodiaspora.
Arguments were presented that demonstrate how colonization and modern western
thought founded racist discourses about black bodies and knowledge. Finally, some
examples from the field of Afrodiasporic dances demonstrated how they are permeated
by values such as ancestry and musicality, expressing unique conceptions of body and
dance and justifying the need to revise the histories and curricula of the performing arts
at all levels of Brazilian education, in light of our own experiences.
Keywords: Mojuba. Afrodiasporic dances. Ancestry. Decoloniality in dance.
¡Mojuba ara!
Invocando el conocimiento corporal y ancestral de la diáspora africana
Resumen
Basada en una "operación imaginativa" (Tavares, 2020), mojuba ara surge como un
ejercicio decolonial que invoca los saberes corporales que constituyen la afrodiáspora.
Se presentaron argumentos que demuestran cómo la colonización y el pensamiento
occidental moderno fundamentaron discursos racistas sobre los cuerpos y los saberes
negros. Finalmente, algunos ejemplos del campo de las danzas afrodiaspóricas
demostraron cómo estas están impregnadas de valores como la ancestralidad y la
musicalidad, expresando concepciones únicas del cuerpo y la danza y justificando la
necesidad de revisar las historias y los currículos de las artes escénicas en todos los
niveles de la educación brasileña, a la luz de nuestras propias experiencias.
Palabras clave: Mojuba. Danzas afrodiaspóricas. Ancestralidad. Decolonialidad en la
danza.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Lúcia Beatriz da Silva Alves. Graduação
em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
2 Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestrado em
Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Especialização em Preparação Corporal nas Artes
Cênicas pela Faculdade Angel Vianna (FAV). Graduação em Dança pela FAV. Prof.ª Faculdade Angel Vianna.
laissalgueiro@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0713091390359554 https:orcid.org/0009-0000-9276-1285
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Mojuba à Orunmilá! Mojuba aos meus ancestrais! Mojuba aos
meus orixás! Mojuba aos que dançaram e dançam nesse chão!
Mojuba aos artistas e pesquisadores da afrodiáspora que
sustentam esse caminho! Mojuba aos mestres e mestras que
me conduziram e conduzem pelos caminhos da dança!
Introdução3
Mojuba é a palavra em iorubá que significa “Eu tenho uma homenagem a
alguém importante”. Etimologicamente, “mosignifica eu, jubavem de joru”, que
é homenagem, e obaé rei/divindade/cargo de importância. Nas religiões afro-
-cubanas é costume iniciar os ritos com uma saudação à própria linhagem
espiritual e sanguínea, na Regla de Osha-Ifá4, essa saudação é chamada de Mojuba.
Portanto, a mojuba é um ato que reverencia e convoca os ancestrais com o
objetivo de estabelecer a comunicação entre mundos, pedir licença e bênção, sem
esquecer os que vieram antes e, consequentemente, suas sabedorias transmitidas
oralmente e através do corpo, de geração em geração. Assim, enquanto ato
performativo5, a mojuba sacraliza o espaço e tempo através da voz, do canto e da
presença, configurando uma forma de construir sentidos no e do mundo.
Essa definição, especificamente presente na Regla de Osha-Ifá, nos leva a
um dos valores civilizatórios6 fundantes das cosmologias africanas e
afrodiaspóricas: a ancestralidade. O sociólogo Fábio Leite (2008), em seu livro A
questão ancestral África Negra, pesquisa sobre a concretude ancestral nas
práticas históricas africanas, com isso busca demonstrar o alcance da
3 Este artigo foi desenvolvido a partir da comunicação O ato de ‘mojubar’ como decolonialidade na dança no
colóquio Arte na linha de frente, como parte da programação do Seminário Currículo, Decolonialidade e
Formação Docente nas Artes Cênicas, realizado em dezembro de 2024, na UNIRIO.
4 De acordo com o etnomusicólogo Ferran Tamarit (2023), entende-se que as religiosidades de matriz africana
em Cuba podem ser agrupadas em no mínimo quatro segmentos, ao mesmo tempo interdependentes
e autônomos. Um deles seria o culto à osha (Orixás) e o outro o culto a Ifá (culto a Orunmila), ambos de
linhagem iorubá. É consenso agrupar esses dois cultos dentro de uma mesma Regla ou Lei, a Regla de
Osha-Ifá, uma vez que ambos estão intimamente relacionados.
5 Para Leda Maria Martins (2003), os gestos e a oralidade nas culturas da diáspora africana não são apenas
narrativos ou representativos, eles instauram a performance como um ato performativo que torna o corpo,
tal como a voz, um lugar de inscrição de conhecimento.
6 As pesquisadoras e educadoras Azoilda Trindade e Ana Paula Brandão (2010) no projeto A cor da cultura nos
apresentam dez valores civilizatórios afro-brasileiros. São eles: circularidade, religiosidade, corporeidade,
musicalidade, memória, ancestralidade, cooperativismo, oralidade, energia vital e ludicidade.
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ancestralidade e, portanto, dos ancestrais na estruturação e dinâmica de
processos sociais em distintas sociedades da África (Leite, 2008). Assim, para ele,
a ancestralidade vai além das práticas espirituais e passa a ser compositora da
realidade cotidiana e dos valores sociais da afrodiáspora. A escritora e dramaturga
Leda Maria Martins (2022), em diálogo com o professor e panafricanista Honorat
Aguessy, argumenta que:
A ancestralidade tanto pode ser concebida como um princípio filosófico
do pensamento civilizador africano quanto pode ser vislumbrada como
um canal, um meio pelo qual se esparge, por todo o cosmos, a força vital,
dínamo e repositório da energia movente, a cinesia originária sagrada,
constantemente em processo de expansão e de catalisação. Para muitos
pensadores, entre eles Thompson e Fu-Kiau, a ideia de uma força vital
institui a sophya Banto e, como reitera Aguessy, em África, diversos “níveis
de existência e diferentes seres encontram-se unidos pela ‘força vital’”.
Esses seres são “o Ser supremo e os seres sobrenaturais, os ancestrais,
o universo material, que inclui os homens vivos, os vegetais, os minerais
e os animais; e o universo mágico” (Martins, 2022, p. 60).
Assim, a ancestralidade se expressa tanto nas relações e instituições sociais
como nos movimentos das danças da afrodiáspora, organizando a vida, seus
diversos níveis de existência e seus valores civilizatórios. Trago a definição da
mojuba na Regla de Ifá-Osha para exemplificar os modos como as cosmologias
afrodiaspóricas, em seu dia-a-dia e nas práticas rituais, fundam-se na reverência
e comunicação com os ancestrais. De uma mirada decolonial, penso que o ato de
mojubar realiza-se como um princípio filosófico e movente de nossas vidas, uma
ação que, ao manter viva em nossos corpos a “cinesia originária” e memória de
nossos ancestrais, mantém presente uma forma outra de humanidade: entre seres
visíveis e invisíveis que se encontram no corpo, na reza, na dança, na música.
a palavra ara, no idioma iorubá, é corpo. O corpo nas cosmologias
afrodiaspóricas tem uma centralidade importante, é templo, é local de inscrição
de saberes. Ao contrário da lógica cartesiana ocidental que delega ao corpo o lugar
da emoção como algo primitivo em oposição à razão da mente como algo elevado,
em nossas perspectivas, o corpo é um todo integrado onde o pensamento se faz
em movimento e o movimento é pensamento. Nada acontece de modo
desintegrado da natureza: o corpo e suas partes são sempre reverenciados para
que a nossa trajetória na Terra aconteça (Jagun, 2015). O corpo grafa o
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conhecimento e é “dispositivo e condutor, portal e teia de memória e de idiomas
performáticos, emoldurados por uma engenhosa sintaxe de composições”
(Martins, 2022, p. 79). O caráter epistêmico e ontológico do corpo nas cosmologias
afrodiaspóricas nos revelam, portanto, como o conhecimento é elaborado. Para o
antropólogo Julio Tavares o “saber corporal” é:
[...] uma enunciação em prática discursiva, que se serve dos movimentos
e ações corporais para a estruturação de seu repertório. Este repertório
é a resultante das articulações dos signos que são elaborados nas
vivências cotidianas ou nelas intercambiadas (Tavares, 1984, p. 76).
Assim, a proposta de uma mojuba ara, num pedido de licença poética, seria,
o ato de reforçar essas enunciações e seus repertórios organizados nas ações
corporais. O ato de rememoriar, saudar e se comunicar com os saberes
encarnados em nossas danças, cantos, tambores e histórias. E, através do corpo
em movimento, relembrar as memórias que carregamos cotidianamente enquanto
“síntese dos que foram brutalmente aprisionados” (Tavares, 2020, p. 20).
Peço licença aos nossos ancestrais para mojubar os nossos corpos em ação
hoje e trazer para o campo da dança esta mojuba ara com o objetivo de rodopiar7
as perspectivas dominantes que constituem as bases dos currículos institucionais
em artes cênicas. Assim, mojubar o corpo, aqui, é uma construção narrativa e
imaginativa que nos permite revisar as dicotomias ocidentais que determinam o
que é e o que não é dança. Na diáspora africana, a produção de expressividades
flui através de um processo de “operações imaginativas”, enquanto “uma poética
em permanentes fluxos de múltiplas formas e sotaques corporais, a partir da
coletividade dessas experiências” (Tavares, 2020, p.21). A mojuba ara proposta para
este artigo, portanto, é um exercício decolonial e criativo que pretende revisar as
narrativas sobre nossos corpos e saberes, compreendendo a imaginação como
ferramenta de sobrevivência e campo fértil para trazer para o centro do debate as
nossas perspectivas e experiências. Como nos diz a escritora e artista Grada
Kilomba (2010, p.34), “a escrita pessoal [...] é um debate sobre a impossibilidade de
se escapar do corpo e das suas construções racistas dentro da máquina de
7 Enquanto ação decolonial, Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino (2018) definem o rodopio como a ação de girar
o eixo epistêmico dominante, em suas palavras, “formular uma crítica aos conceitos alicerçados em bases
que não aceitam o outro como possibilidade” (Simas; Rufino, 2018, p.35).
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ensino”8.
Ao trazer o ato poético e político de mojubar aos corpos da afrodiáspora,
pretendo oferecer provocações e estimular a imaginação para construirmos
narrativas afirmativas sobre nossos corpos e práticas em diversos campos do
conhecimento, especificamente o das artes da cena e do seu ensino. Para isso,
apresentarei argumentos que demonstram como a colonização e a construção do
pensamento moderno ocidental fundaram perspectivas hegemônicas e discursos
racistas sobre os corpos e saberes negros. E trarei exemplos do campo das danças
afrodiaspóricas, que partem das minhas experiências enquanto abíyan9, apetebí
de Orunmilá10 no culto a Ifá e artista-pesquisadora das danças negras. Com isso,
pretendo demonstrar como nossas danças são atravessadas por valores como a
ancestralidade e a musicalidade, para justificarmos a necessidade de revisarmos
as histórias, as concepções e os currículos de dança instituídos nas esferas
formais e não formais de ensino das artes cênicas.
A ilusão de uma humanidade universal
Questionaram a nossa humanidade! Que ousadia! Quem teria o poder de
traçar uma linha classificatória de quem é humano ou não? E humanos, quem
seriam? Um povo com um Deus, sábio e único, dotado pela moral cristã do século
XVI que tornava pecado tudo o que viesse do corpo. Os sub-humanos eram os
“outros”: o povo da carne, que dançavam, que não tinham Deus e que exibiam
seus corpos como vieram ao mundo assustando os desbravadores do “novo
continente”.
É no contexto das “grandes navegações” portuguesas e espanholas, que um
dilema (branco) surge: como tratar indígenas e negros nesse comércio que se
mostrava tão lucrativo? Num emaranhado de disputas por territórios, decisões em
8 “personal writings are a ‘persistent (de)construtive critique of theory’ (Spivak, 1993, p.3), a debate about the
impossibility of escaping the body and its racist constructions inside the ‘teaching machine’”. (Tradução
nossa)
9 No iorubá abíyán se refere ao cargo “ocupado por aqueles que frequentam a Casa [de Candomblé], mas que
ainda não foram iniciados [...] é aquele que está conhecendo a religião, os rituais e conceitos” (Jagun, 2015,
p. 540).
10 Apetebí de Orunmila (ou apetebí ni Orunmila) é o cargo dado às mulheres iniciadas no culto de Ifá.
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altos concílios religiosos enquanto corpos negros eram escravizados e atirados
ao mar – um embate epistêmico estava sendo colocado: o que é conhecimento?
Este é ilustrado por muitos pesquisadores pelo que ficou conhecido como
“Controvérsia de Vallavoid” de 1550. Ela foi antecedida e seguida por diversas bulas
papais que autorizavam invadir e conquistar os “inimigos de Cristo” e se tornou
um dos marcos históricos do racismo moderno. Aparentemente de visões opostas,
Frei Bartolomeu de Las Casas ficou conhecido por defender os indígenas e o
teólogo Juan Ginés de Sepúlveda por defender abertamente a supremacia branca
e a escravização. No entanto, o que estava em jogo era como catequizar aqueles
seres ou mesmo julgar se eles seriam merecedores de receber tão grande bênção
que era conhecer o Deus cristão – e com ele a escravização permanente de suas
vidas!
Relato resumidamente esse fato histórico para pensarmos na impressionante
soberba desses homens em definirem quem podia ou não, e como, fazer parte da
nova humanidade que se inaugurava com a modernidade. Assim, ao longo dos
séculos, contornos racializados foram sendo desenhados na relação com os
“outros” e dilemas políticos e filosóficos foram sendo postos. Achile Mbembe
(2022) nos explica
Em primeiro lugar, devemos ter em mente que, de modo geral, a
experiência do Outro, ou ainda o problema do eu de outrem e dos seres
humanos que percebemos como estrangeiros, quase sempre colocou
dificuldades insuperáveis para a tradição política e filosófica ocidental.
Quer se trate do continente africano ou de outros “mundos não
europeus”, essa tradição negou por muito tempo a existência de todo “si
mesmo” que não fosse o seu. Toda vez que se trata de povos de raça, de
língua e de cultura diferentes, a ideia de que nós temos, concreta e
tipicamente, a mesma carne [...] torna-se problemática. O
reconhecimento teórico e prático do corpo e da carne do “estrangeiro”
enquanto carne e corpo semelhante ao meu (em suma, “a ideia de uma
natureza humana comum, de uma humanidade com os outros”) causou
e continua a causar problemas para a consciência ocidental (Mbembe,
2022, p.158).
O processo de colonização inaugura essa tensa e problemática relação com
os corpos tidos como estrangeiros, em que o Ocidente toma a África como
território de experimentação para desenvolver fórmulas diversas todas elas
perversas para definirem, desde uma torre de marfim inalcançável, o quão
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nossos corpos e saberes seriam legítimos e até mesmo compreensíveis nos
marcos políticos e filosóficos dominantes. Assim, entendidos ora como animais,
ora como inocentes ou mesmo como um receptáculo vazio, os corpos dos negros
africanos escravizados foram também esvaziados de direitos e ignoradas as suas
filosofias e conhecimentos ancestrais. Diante da dificuldade, ou mesmo
impossibilidade, de lidar com o eu de outrem, era inaugurado o racismo em sua
esfera epistêmica (epistemicídio) e ontológica: alguns podiam existir e outros não.
O babalorixá, artista da cena e professor Gustavo Melo Cerqueira (2023), em
seu artigo Brevíssimas considerações sobre sofrimento e teatro negro, argumenta
como a objetificação dos corpos negros funda a modernidade e entrelaça o debate
entre humanidade, sofrimento e política, considerando que a própria dor era
negada aos corpos escravizados, por serem eles mesmos esvaziados de
humanidade e consequentemente de racionalidade e civilidade. Com isso, esta
humanidade iluminista e tida como universal, que se inaugurava nos marcos da
modernidade ocidental, reforça e é reforçada pelo sistema capitalista que surgia,
colocando em jogo o controle da massa de mão de obra que sustentaria seu
“progresso” desenfreado. Decorre disso que o grau de humanidade e objetificação
do seu corpo definiriam a potência deste ser escravizado ou não.
Foi o filósofo francês René Descartes, no século das “luzes” (XVII) quem deu
um empurrãozinho e abriu mais ainda o abismo no mundo entre os que seriam ou
não dotados de humanidade. Ele dizia que a mente era uma substância diferente
do corpo e equivalente ao Deus cristão, de modo que sua universalidade é a
universalidade de Deus, cuja verdade não pode ser abalada por nenhuma
existência particular. Ainda que a Igreja Católica não fosse mais o topo da
pirâmide do poder, a moral cristã, travestida pelo humanismo e iluminismo, seguia
sendo a base filosófica do capitalismo moderno. As dicotomias cartesianas
estavam estabelecidas e justificavam a nova organização mundial, fosse nas
esferas políticas, nas ações de ensino, nas fábricas, ou mesmo no campo das
artes: corpo x mente, natureza x sociedade, emoção x razão, animalidade x
humanidade. Enfim, as consequências foram gravíssimas para essa tal
humanidade: primitivos para um lado, civilizados para o outro.
Hoje, desde outro lugar da espiral do tempo e do espaço, apontamos a
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necessidade de se repensar essa noção de humanidade à luz das realidades afro-
-indígenas. O líder indígena, escritor e filósofo Ailton Krenak (2019) denuncia a
ilusão de uma humanidade que não está disponível para todos e que ela precisa
ser repensada à luz das realidades periféricas e dos estados-nações que surgiram
após as independências das colônias, com um nacionalismo que também precisa
ser revisado. Essa provocação vem ao encontro do silenciamento histórico
imposto pela colonialidade também nos currículos de artes cênicas e no campo
das artes em geral. Se o Ocidente duvidou de nós, para nós nunca restaram
dúvidas de que os que eram impedidos de serem humanos detinham, sempre,
seus saberes: a corporeidade de matriz africana e suas fundamentações
epistêmicas estavam pautadas em princípios filosóficos e ontológicos diferentes
dos ocidentais.
Corpo como templo de saberes: do orí ao okan e das concepções de dança
na afrodiáspora
Nesse contexto, o “corpo negro em movimento” (Tavares, 2020, p. 21) constrói
um conjunto de experiências que expressam gramáticas multifacetadas, e
manifestam formas de pensar e configuram comunicações não verbais. Longe de
ser um poço de pecados, como pregavam os “verdadeiros” humanos que
fundamentaram a escravização, o corpo era templo que se tentou destruir, mas
que se refez. E é através das práticas corporais que podemos percorrer lugares da
diáspora africana e acessar seus “conhecimentos incorporados”, ou seja, o “intenso
depósito de intuição, emoção, fellings, sentimentos e pensamentos ordenados por
meio das práticas corporais” (Tavares, 2020, p. 53).
No que tange o campo da dança, a capoeirista, coreógrafa e professora
Amélia Conrado (2015), ao refletir sobre as criações cênicas da afrodiáspora,
reitera:
A importância, na contemporaneidade, de oferecer estudos e pesquisas
sobre matrizes estéticas negro-africanas, negro-brasileiras e educação,
permite reunir diferentes contribuições acerca de uma temática que
necessita ser investida e devolvida, como um conhecimento de
relevância, a comunidades, artistas e universidade (Conrado, 2015, p. 215).
Localizando-me nessa empreitada é que materializo nesse texto a proposta
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da mojuba ara como uma ação provocadora das hegemonias epistêmicas, como
uma ação que quer dar eco a tantas vozes/corpos e experiências que, no campo
da dança, vem abrindo os caminhos para pensarmos novas histórias das danças,
formas outras de compreender o corpo e, enfim, de combater o racismo ainda
presente. Para seguir Mojubando, trago algumas das minhas experiências e
reflexões nas e das danças afrodiaspóricas.
Em ocasião do doutorado em Artes Cênicas na UNIRIO, debrucei-me em
compreender alguns gestos da dança da avamunha11que, em sua execução,
sinaliza distintas partes do corpo. Observá-los, enquanto uma linguagem não
verbal, apontou para “gramáticas das corporeidades da afrodiáspora” (Tavares,
2020), que nos fazem perceber que os movimentos carregam suas epistemologias,
deixam suas pegadas12 por toda a diáspora e nos ajudam a refletir sobre a estética
das danças negras. Para esse debate, tomo como exemplos, os gestos da dança
da avamunha em que as mãos tocam a cabeça e depois o coração13. Se numa
perspectiva moderna ocidental, a cabeça faz referência à razão contrária à emoção
de domínio do corpo (e também do coração), o que vemos nas cosmologias
afrodiaspóricas é que essas duas partes integram um todo, onde razão e emoção
não são opostas, onde cabeça e coração dançam em diálogo com o toque dos
tambores e se integram com o ambiente através das relações sociais e práticas
corporais que sustentam um coletivo.
Assim, em termos filosóficos afro-orientados, tal como exemplifica a dança
da avamunha, cabeça e coração são constantemente reverenciados como áreas
11 A avamunha é um toque e dança ritual originalmente dos Candomblés Jejê representando a viagem de Iroko
pelo mundo e que foi incorporada nas casas de Candomblé Keto abarcando alguns sentidos para os adeptos
da religião e ocorrendo em momentos cerimoniais importantes, como a suspensão de um ogan ou ekedi e
no final dos xirês guiados pelo pai ou mãe de santo. Um dos sentidos da avamunha faz referência às viagens
nos navios negreiros e às interdições sofridas pelos negros africanos no período da colonização. A dança é
caracterizada por uma sequência de gestos, que variam de terreiro para terreiro, e que acontecem no diálogo
intrínseco com as variações do rum tambor grave da orquestra de atabaques do terreiro de Candomblé.
12 De acordo com o martinicano Edouard Glissant (2006), “A pegada é para o caminho o mesmo que a rebelião
à intimação, que a alegria a uma paulada. Esses africanos escravizados que foram às Américas, levaram
com eles, para além das Águas Imensas, a pegada de seus deuses, de seus hábitos, de suas línguas.
Confrontando a desordem implacável do colonizador, tiveram tal condição, trançada com os sofrimentos
que padeceram, que souberam fecundar essas pegadas, criando mais do que uma ntese resultados
que nos deixam surpreendidos. (Glissant, 2006, p. 22-23)
13 Por exemplo, na sequência da avamunha dançada pelo Babá egbé Leandro Encarnação da Mata do Ilê Axé
Oxumarê, o toque das mãos na cabeça representa o impedimento de pensar que foi imposto pelos
colonizadores. E o toque das mãos no coração representa impedimento de amar. Ver vídeo Disponível em:
https://bit.ly/3YNBaVA. Acesso em: 19 set 2025.
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de comunicação entre o mundo material e espiritual e como partes constituintes
de saberes ancestrais em constante diálogo com o cotidiano e suas musicalidades.
O historiador da arte Robert Farris Thompson (1974), em seu extenso trabalho
African art in motion (1974), a cabeça o Orí em iorubá aparece como esculturas
importantes para a estética negra, ela está sempre adornada, maior que o corpo
e em muitas danças também é apontada com os dedos ou tocada com as mãos.
O babalorixá e professor Márcio de Jagun (2015), em seu livro Orí: a cabeça
como divindade história, cultura, filosofia e religiosidade africana, nos explica,
que o Orí é sensível às energias e que essas ganham relevância através das mãos
que o tocam (Jagun, 2015, p. 77).
Por toda a significância que a cabeça possui, por toda a capacidade de
criar, de realizar, de perceber, e também por ter a cabeça a capacidade
de sobreviver à morte, os iorubás compreenderam nesta parte do corpo
humano um componente muito especial, fabuloso, divino. A cabeça,
então, tornou-se divinizada e passou a ser elemento de culto (Jagun,
2015, p.31).
Por isso, nos ritos do Candomblé, a cabeça precisa ser cuidada, alimentada,
reverenciada mas não nos termos de uma moral cristã-judaica, que localiza nela
a racionalidade inversa às emoções. Aqui Orí e o ser humano estão ligados no
“âmbito espiritual, mas também e, sobretudo, no aspecto físico/ fisiológico” (Jagun,
2015, p. 32), de modo que cada um tem o seu que Àjàlà, divindade que constrói
as cabeças humanas, nunca cria uma cabeça igual à outra, como nos conta as
mitologias iorubás.
No que tange ao coração, okan, a antropóloga Bárbara (2002) nos diz que, ao
lado da cabeça e dos pés, ele também é um lugar do sentir14 (Bárbara, 2002). Isso
nos leva a compreender que razão e emoção estão interligadas por um circuito
espiralar que não dicotomiza cabeça e coração. Mas é o alinhamento e a
sintonização entre as partes do corpo que nos permite conectarmos com nosso
axé, com nossa energia vital e com nossa ancestralidade. Esse alinhamento e
não a dicotomização entre Orí e okàn contraria as formas ocidentais de ver o
14 A antropóloga Bárbara (2002) nos conta que uma mãe de santo (que não foi identificada na fonte pesquisada)
a explica: "Como poderia andar numa direção sem os meus pés e minha cabeça? Tudo deve estar em ordem
cabeça, pés, coração. Senão, como seguraria a barra todos os dias, minha filha?" (Bárbara, 2002, p. 69).
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mundo e, dentre tantos outros fatores, tornou a compreensão da relação vida-
morte na diáspora africana inalcançável para os humanos, tidos como supremos
e universais, que construíram, em nome da ordem e da ciência, a modernidade
capitalista.
Nesse sentindo, a dança da avamunha nos ajuda a compreender que o que
está em jogo é uma concepção singular de corpo e dança. Esta pode ser
compreendida no acesso a suas “memórias musculares”15 (Daniel, 2005) e
enquanto ato performativo, onde a dança e música formam pensamentos em
movimento, epistemologias encarnadas. O corpo torna-se “corpo-arquivo”
(Tavares, 2020) e, ao longo da história, matéria quase única para a (re)existência a
partir do capítulo de terror iniciado com a colonização no século XVI.
No entrelaçamento entre música (toques dos tambores e cantigas), dança e
rito, o coração é citado pela etnomusicóloga Angela Luhning (1990).
Metaforicamente, ela diz que a música se torna o coração do candomblé, tanto
nas festas públicas, onde não Orixá sem dança (e não dança sem música),
quanto na vida cotidiana das filhas-de-santo onde a música especialmente as
cantigas de fundamento e as rezas expressa e alivia as emoções mais fortes
(Luhning, 1990, p. 124). Em ocasião do desenvolvimento da minha dissertação em
Antropologia na UFF, esta relação metafórica entre o corpo que dança/toca com
o coração é acionada por Mestre Maurício Soares do Maracatu Nação Estrela
Brilhante de Recife16 ao compartilhar sua perspectiva sobre dança. Para ele,
A dança do Maracatu é um dos órgãos que precisa tá sempre junto. Se o
batuque é a força, é o coração, o impulso, então a dança é um dos órgãos
que também ajuda o coração a bater, a movimentar. Se o Maracatu não
15 Para Ivone Daniel (2005) Muitos africanos nas Américas e seus descendentes não esqueceram inteiramente
suas múltiplas heranças africanas... Eles resistiram à educação convencional e à deseducação por meio de
formas distintas de dança, percussão e canto, que aludiam a interesses, propensões e valores característicos
reforçados de suas heranças africanas... Os fiéis na dança repetiam o movimento muscular especializado, o
comportamento motor repetida e repetidas vezes como uma "memória muscular" em cerimônias de dança
e música sagradas, bem como em outros eventos de dança e música não-rituais. [...] Sua memória muscular
e herança cultural, verdadeiramente sua cultura profunda, sustentou uma crença contínua nas
consequências espirituais e galácticas da intensidade rítmica e dinâmica, especialmente dentro do corpo da
dança. (Daniel, 2005, p. 92)
16 Mestre Maurício Soares faz o personagem de ”baiana rica” desde os anos 2000. Ele se tornou referência
para a dança do Maracatu por todo o Brasil, sendo um grande amigo e mestre ao longo da minha trajetória
na dança. E o Maracatu de Baque Virado ou Maracatu Nação é uma performance afro-indígena de
Pernambuco que envolve o cantar, o dançar e o tocar, que acontece na forma de cortejo com a presença
de uma corte negra (com rei, rainha, príncipes, princesas...) principalmente no período do carnaval e que
está atrelada ao culto às Calungas (bonecas negras de madeira que representam ancestrais).
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tiver dança, e o grupo não tiver dança então não é um Maracatu, porque
todo ritmo precisa de dança.17
Sua perspectiva está localizada nas suas experiências de um corpo negro, de
periferia, que vive as práticas dos terreiros de Candomblé e Jurema desde a
infância e assim constitui seus saberes corporificados18. A relação entre a dança e
toque dos tambores tem sido discutida como um dos princípios das performances
afrodiaspóricas. A antropóloga afro-americana Yvonne Daniel (2005) ressalta o
caráter multivocal das dance-music performances”, em que a dança e a música
são comunicadas e acessadas através de múltiplos canais sensoriais formando
um “sistema estético”. Assim, seja na avamunha, ou em outras performances do
Candomblé, ou no Maracatu, a dança é entendida como organizadora de um
embodied knowledge(saber corporificado) que atravessa diversas arenas da vida
social. É nesse saber integrado do e com o mundo que a dança e a música se
relacionam de forma poderosa nos rituais e no cotidiano da vida na afrodiáspora,
acionando as ancestralidades.
A mojuba ara está acontecendo enquanto ação que saúda o corpo e seus
saberes do orí ao okan onde a dança é órgão fundamental para, junto do
batuque-coração, as performances afrodiaspóricas acontecerem dentro dos seus
critérios estéticos, questionando a definição ocidental de dança.
Ainda no campo das danças de terreiros de Candomblé, o babalorixá Dofono
d’Omolu19 explica o que é a sua técnica demonstrando no corpo elementos
fundamentais, como a circularidade dos ombros e as flexões de coluna, joelhos e
braços. Anatomicamente, no plano sagital, o plano das flexões, Ivaldo Bertazzo
(2002) diz que são os músculos flexores os que “levam o corpo a experimentar
sensações motoras mais profundas, mais intensas, construindo e refinando o
universo de referências interiores” (Bertazzo, 2002, p. 121-122).
17 Entrevista concedida em ocasião de realização do trabalho de campo em Recife para o mestrado em
Antropologia na Universidade Federal Fluminense (UFF - 2012).
18 Com o termo saber corporificado reitero o conceito de saber corporal (Tavares, 1984) como forma de
reafirmar o caráter do embodiment, em que corpo e mente não se separam, como nas filosofias da diáspora
africana, e evitando cair no binômio cartesiano corpo/mente.
19 Dofono d’Omolu é o babalorixá do Ilê Axé Omolu Omyn Layó, onde fui abíyan por mais de cinco anos
consecutivos. A referência sobre a técnica da dança do Candomblé é comentada por ele em entrevista
concedida no ano de 2018.
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A técnica aqui é, portanto, um conjunto de saberes sobre corpo e dança que
tem como objetivo refinar nossas referências interiores e expressar elementos
estéticos contidos nas “memórias musculares” (Daniel, 2005) constituintes e
constituidoras das “gramáticas das corporeidades afrodiaspóricas” (Tavares, 2020).
Reconhecer os modos outros de conceituar a dança, desde suas perspectivas
sobre técnica, corpo, ancestralidade e musicalidade, nos permite reconhecer
histórias e conceituações plurais que devem constituir o campo das artes cênicas
e fomentar currículos decoloniais e críticos às narrativas hegemônicas.
Fazendo eco a esses exemplos, apresento a reflexão de Luciane Silva (2018),
que nos fala da importância de fomentarmos as danças afrodiaspóricas a partir
da noção de “liberdade com consciência”. Ou seja, da “liberdade da descoberta e
a possibilidade de entendimento do corpo de maneira renovada” (Silva, 2018, p.
166). No entanto, como ela explica, essa liberdade não se trata de um estado
desenfreado de entusiasmo, ou mesmo de uma perspectiva hegemônica de corpo
que as “danças afro-orientadas como “livres” e próximas de algum estado de
natureza” (Silva, 2018, p.166). Esta representação de nossas danças reproduzem a
dicotomia cartesiana de razão x emoção, relegando-as ao estatuto de algo
primitivo e sem técnica, pejorativamente “livre”.
Nesse sentido, trazer para o centro do debate as nossas perspectivas é
fundamental para desconstruir as imagens sobre os corpos, danças e saberes
negros, engendrando olhares e pesquisas que investiguem as conceituações
singulares, e também transversais, que compõem nosso campo de atuação
artística e pedagógica. A mojuba ara é essa investigação, um processo imaginativo
que visa, através dos argumentos e exemplos deste artigo, saudar e convocar
nosso corpo, através das nossas próprias experiências, como forma de materializar
alguns dos valores que nos fundam, como a ancestralidade e a musicalidade.
Considerações finais
Para desenvolver esse sucinto texto, trouxe as minhas próprias experiências
nas danças afrodiaspóricas com o objetivo de pensar brevemente sobre a
multiplicidade de concepções de dança e seus atravessamentos. Com os
exemplos apresentados, descobrimos modos outros de conceber a dança e o
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corpo sem recairmos numa linguagem hegemônica, racista e esteriotipante dos
corpos negros e seus descendentes. Nesse caso, o corpo que dança expressa
saberes corporificados e torna o nosso mover um ato de (re)inscrição de
conhecimentos ancestrais. Reiteramos que
Corpo negro, aqui, é entendido como fenômeno que transcende
dualidades, por isso mesmo plástico, dinâmico, autopoético, resiliente,
adaptável e atravessado pelas mais distintas formas de ‘dobras’ e
‘quebras’ localizadas na pós-travessia atlântica. Corpo é, sobretudo,
plural, síntese dos corpos que foram aprisionados, embarcados e trazidos
para a voraz máquina econômica do antigo sistema colonial. Corpo-
síntese dos corpos mercadorias que, por séculos, foram banalizados,
percebidos e visualizados como ausentes de alma pelos raptores,
detratores e algozes coloniais (Tavares, 2020, p. 20).
Num exercício decolonial, através de uma “operação imaginativa”, a mojuba
ara convoca, ao longo do texto, este corpo negro autopóetico e plural, que se refaz
e nega a sua objetificação, desde os tempos das “grandes descobertas”,
denunciando cotidianamente a banalização dos seus saberes. Assim, a mojuba ara
reverencia e saúda as corporeidades negras como constituidoras de saberes
ancestrais e as convoca a estarem presentes no campo da dança e das artes em
geral, denunciando a colonialidade e o epistemicídio que ainda se fazem presentes
nos currículos educacionais em todos os níveis da educação brasileira.
Como nos atenta Kilomba (2010), imaginar é preciso para que novas perguntas
e narrativas surjam. Em suas palavras: “a margem é a localização que nutre nossa
capacidade de resistir à opressão, de transformar e de imaginar novos mundos
alternativos e novos discursos”20 (Kilomba, 2010, p. 37). As vozes e concepções que
atravessam as experiências que compartilhei aqui são oriundas de uma localidade
simbólica e epistemicamente periférica e, portanto, tornam-se adubo para um
campo fértil e crítico. Elas apontaram a insuficiência dos conceitos hegemônicos
de dança, reafirmaram nossa ancestralidade como perspectiva e funcionamento
do mundo e abrem caminhos para desenvolvermos os debates que nos
interessam travar acerca da presença das danças afrodiaspóricas no campo
artístico e pedagógico das artes cênicas. Assim, a mojuba ara saúda os nossos
20 In this sense, the margin is a location that nourishes our capacity to resist oppression, to transform, and to
imagine alternative new world and new discourses. (Tradução nossa)
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corpos e convoca os saberes de quem veio antes saberes ancestrais e
corporificados que constroem as histórias de nossas danças, nossos valores e
nossa própria humanidade.
Referências
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Recebido em: 19/09/2025
Aprovado em: 07/11/2025
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
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