
A raça interroga a prática pedagógica: por uma educação antirracista nas aulas de artes cênicas
Andreza Bittencourt Cavalcanti | Raphael Pompeu | Paulo Melgaço da Silva Junior
Florianópolis, v.3, n.56, p.1-25, dez. 2025
engenho. Ao romantizar a miscigenação, se propaga, assim, a ideia de que vivemos
em um país integrado, multicultural e diverso. Era mais um discurso construído
para perpetuar as relações de poder no Brasil. O branco não escraviza mais, agora
ele ajuda a população negra dando casa e comida em troca de trabalho. Não há
mudança na relação. Há apenas mudança no discurso. Está aí a consolidação da
hierarquia racial.
Quando uma patroa branca ajuda sua empregada negra, seja comprando
presentes para seus filhos, doando roupas, seja colaborando financeiramente na
compra de materiais para a construção da sua casa, ou repartindo os restos da
ceia de Natal7, a patroa se considera um ser humano benevolente e caridoso, e a
empregada negra se sente grata e subserviente. O que Ronaldo Salles Jr.(2006) vai
nomear de cordialidade racial. 8
O conceito de democracia racial construiu um tipo de racismo bem específico
que existe aqui. Um racismo sem racistas. Um racismo que ninguém sabe de onde
vem. Um racismo evidente para quem sofre e “invisível” para quem pratica.
O mito da democracia racial pode ser compreendido, então, como uma
corrente ideológica que pretende negar a desigualdade racial entre
brancos e negros no Brasil como fruto do racismo, afirmando que existe
entre estes dois grupos raciais, uma situação de igualdade de
oportunidade e de tratamento. Esse mito pretende, de um lado, negar a
discriminação racial contra os negros no Brasil, e, de outro lado, perpetuar
estereótipos, preconceitos e discriminações construídos sobre esse
grupo racial (Gomes, 2017, p. 57).
Esse sistema é tão perverso que quanto mais ele nega a discriminação racial,
mais ele reforça estereótipos, preconceitos e discriminações sobre a população
negra, pois se existe uma equiparação racial no Brasil, ou seja, negros e brancos
possuem as mesmas oportunidades desde a formação desta nação, as
desigualdades sociais que existem se devem à incapacidade de determinados
7 Referência ao conto “Maria”, de Conceição Evaristo.
8 A cordialidade é uma espécie de tolerância com reservas, associada ao clientelismo e ao patrimonialismo
nas relações sociais, reproduzindo relações de dependência e paternalismo. A associação entre cordialidade,
clientelismo e patrimonialismo parece ser parte da explicação da manutenção de um racismo institucional
não-oficial – relações sociais difusas e informais que se infiltram e “aparelham” as instituições oficiais. A
articulação de cordialidade, clientelismo e patrimonialismo configura o que denominamos de “complexo de
Tia Anastácia”, no qual a pessoa negra aparece “como se fosse da família” ou como sendo “quase da família”.
Essa proximidade social quase nunca transpõe o limite do como se ou do quase (Salles Jr, 2006, p. 230).