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Caos. Cosmos, Território, Arquitetura
Elizabeth Anne Grosz
Tradução: Mateus Scota
Para citar este artigo:
GROSZ, Elizabeth Anne. Caos. Cosmos, Território,
Arquitetura. Tradução: Mateus Scota.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3,
n. 56, dez. 2025.
DOI: 10.5965/1414573103562025e0701
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Caos. Cosmos, Território, Arquitetura
Elizabeth Nane Grosz |Tradução: Mateus Scota
Florianópolis, v.3, n.56, p.1-24, dez. 2025
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Caos. Cosmos, Território, Arquitetura
Elizabeth Anne Grosz1
Tradução: Mateus Scota2
Resumo
O texto a seguir foi extraído do livro
Chaos, Territory, Art: Deleuze and the Framing of the
Earth
(2008) de Elizabeth Grosz. Nele, Grosz concentra-se sobre as condições de
existência da arte no que tange a separação e ordenação de planos de composição sobre
o caos imanente, natural. Suas explorações são orientadas pelos escritos de Gilles
Deleuze, Félix Guattari e Luce Irigaray, que propõem aberturas da natureza e da cultura
para as forças não reconhecidas e indeterminadas, oriundas do caos natural. Grosz
compreende que tais forças são capazes de promulgar novas maneiras de conceituar a
política e as formas pelas quais a arte e a política podem ser conectadas e repensadas.
Palavras-chave
: Arte. Território. Enquadramento. Gesto arquitetônico. Terra.
Chaos. Cosmos, Territory, Architecture
Abstract
The hereafter text is extracted from Elizabeth Grosz's book
Chaos, Territory, Art: Deleuze
and the Framing of the Earth
(2008). In it, Grosz focuses on the conditions of art's
existence as a separation and ordering of compositional planes within chaos imanente
on the natural world. Her explorations are guided by the writings of Gilles Deleuze, Félix
Guattari, and Luce Irigaray, who propose openings of nature and culture to unrecognized
and undetermined forces, emerging from the natural chaos. Grosz understands that
such forces can promulgate new ways of conceptualizing politics and the ways in which
art and politics can be connected and rethought.
Keywords
: Art. Territory. Framing. Architectural gesture. Earth.
Caos. Cosmos, Territorio, Arquitectura
Resumen
El siguiente texto es un extracto del libro de Elizabeth Grosz,
Chaos, Territory, Art:
Deleuze and the Framing of the Earth
(2008). En él, Grosz se centra en las condiciones
de la existencia del arte como separación y ordenación de planos compositivos dentro
de un caos natural inmanente. Sus exploraciones se inspiran en los escritos de Gilles
Deleuze, Félix Guattari y Luce Irigaray, quienes proponen la apertura de la naturaleza y
la cultura a fuerzas desconocidas e indeterminadas, originadas del caos natural. Grosz
entiende que estas fuerzas son capaces de impulsar nuevas formas de conceptualizar
la política y las maneras en que el arte y la política pueden conectarse y repensarse.
Palabras clave
: : Arte. Territorio. Enmarcación. Gesto arquitectónico. Tierra.
1 Filosofa australiana e teórica feminista. Professora Dra. Emérita de Estudos Femininos Jean Fox O’Barr na
Duke University em Durham, Carolina do Norte, EUA.
2 Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Mestrado em Artes
Visuais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Graduação bacharelado em Artes Cênicas pela
UFSM. Prof. Dr. Departamento de Dança da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR).
mateus_scota@yahoo.com.br
http://lattes.cnpq.br/1687567471691538 https://orcid.org/0000-0001-6698-4880
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A arte e nada como a arte! Ela é a grande possibilitadora da
vida, a grande sedutora para a vida, a grande estimulante da
vida. A arte [é a] única força contrária superior, em oposição a
toda vontade de negação da vida.
(
A Vontade de Poder
, Friedrich Nietzsche)
Este pequeno livro é dedicado a questões sobre a ontologia, isto é, as
estruturas material e conceitual da arte. Embora eu não seja treinada nas artes
visuais ou espaciais, existem, no entanto, muitos pontos de sobreposição, regiões
de intersecção, que dizem respeito à arte e à filosofia, e são essas preocupações
compartilhadas que quero explorar aqui. Quero discutir as "origens" da arquitetura,
música, pintura - de fato, as artes em geral -, mas não as origens históricas,
evolutivas ou materiais da arte, passíveis de confirmação por algum tipo de
evidência material ou pesquisa empírica que interessaria a arqueólogos,
antropólogos ou historiadores. Em vez disso, pretendo explorar as condições do
surgimento da arte, o que torna a arte possível, quais
conceitos
a arte implica,
assume e elabora. Essas, é claro, estão ligadas a forças evolucionárias e materiais,
isto é, à elaboração histórica da vida, mas são, no entanto, metafísica ou
ontologicamente separáveis delas.
Arte, de acordo com Gilles Deleuze, não produz conceitos, embora resolva
problemas e provocações. Ela produz sensações, afetos, intensidades como seu
modo de abordar problemas, que as vezes se alinham com e se vinculam a
conceitos, o objeto da produção filosófica, que é como a filosofia lida com ou
encaminha problemas. Portanto, a filosofia pode ter um lugar não tanto na
avaliação da arte (como a estética tentou fazer), mas ao abordar as mesmas
provocações ou incitações à criação que a arte enfrenta através de diferentes
meios e com diferentes efeitos e consequências. A filosofia pode tornar-se a
gêmea ou irmã da arte e suas várias práticas, nem juíza, nem porta-voz da arte,
mas sua irmã igualmente rebelde, trabalhando ao lado da arte sem elucidá-la ou
falar por ela, sendo provocada pela arte e compartilhando as mesmas motivações
para o surgimento de inovação e invenção. Meu objetivo é desenvolver uma
filosofia não-estética da arte, uma filosofia apropriada para as artes que não
substitua a história e a crítica da arte, nem pretenda fornecer uma avaliação do
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valor, qualidade ou significado da arte, mas, em vez disso, lide com as forças e
potências comuns da arte, as regiões de sobreposição entre as várias artes e a
filosofia.
Meus guias nas explorações a seguir serão os escritos de Deleuze e Deleuze
e Guattari juntos e suas críticas à significação e subjetivação, os dois paradigmas
dominantes que orientaram tanto a política feminista quanto a pós-moderna; e os
escritos de Irigaray, com sua insistência na especificidade sexual e na diferença
corporal irredutível como o próprio motor da produção cultural e filosófica. Por
meio de Deleuze, Guattari e Irigaray, e suas aberturas da natureza e da cultura para
forças não reconhecidas e abertas a continuidade, meus objetivos serão
desenvolver novas maneiras de abordar e pensar sobre as artes e as forças que
elas mobilizam e transformam e, portanto, indiretamente, novas maneiras de
conceituar a política e as formas pelas quais arte e política podem ser conectadas
e repensadas.
Em meu trabalho anterior, concentrei-me nas maneiras pelas quais os corpos
e as forças do espaço, tempo e materialidade, isto é, a natureza, possibilitaram,
em vez de inibir, a produção cultural e política3. Neste capítulo, através de Deleuze,
Guattari e Irigaray, gostaria de abordar como essas forças se coadunam para
permitir a explosão produtiva das artes a partir das provocações colocadas pelas
forças da terra (forças cosmológicas que podemos entender como caos,
indeterminação material e orgânica) com as forças dos corpos vivos, de forma
alguma exclusivamente humanos, que exercem sua energia ou força através da
produção do novo e criam, através de seus esforços, redes, campos, territórios
que temporária e provisoriamente abrandam o caos o suficiente para extrair dele
algo que não é tão útil quanto intensificador, uma performance, um refrão*, uma
organização de cor ou movimento que, eventualmente transformado, possibilita e
3 Ver, em particular, Grosz, 2004 e Grosz, 2005.
* NT: Nos escritos de Deleuze e Guattari, a palavra francesa
ritournelle
possui amplo campo semântico,
remetendo tanto ao refrão de uma canção quanto ao sentido erudito do
ritornello
italiano, ligado ao retorno
na estrutura musical. Na tradução para a língua inglesa, desenvolvida por Brian Massumi, o termo foi vertido
como
refrain,
que abarca o refrão com um sentido de repetição. Outras traduções dos textos de Deleuze e
Guattari para a língua portuguesa transpõe
o ritournelle
como
ritornelo
, mantendo a referência ao termo
italiano. Em português,
refrão
mantém esse sentido: parte da canção que se repete e cria uma unidade
rítmica (familiar), territorializando àquilo que é inicialmente desterritorializado. Sendo assim, opto pelo uso
do termo
refrão
nesta tradução, entendendo que ele não produz perdas no valor semântico e aproxima o
entendimento daquilo que o texto de Grosz trata.
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induz a arte.
Deleuze sugere, em oposição às abordagens filosóficas ou fenomenológicas
das artes que analisam sua intencionalidade ou o engajamento mútuo de sujeitos
e objetos nas obras de arte, que as artes produzem e geram intensidade, que
impacta diretamente o sistema nervoso e intensifica a sensação. A arte é mais a
arte do afeto do que da representação, um sistema de forças dinamizadas e
impactantes, em vez de um sistema de imagens singulares que funcionam sob o
regime dos signos4. Nas artes, interessa-me aqui considerar todas as formas de
criatividade ou produção que geram intensidade, sensação ou afeto: música,
pintura, escultura, literatura, arquitetura, design, paisagem, dança, performance e
assim por diante. Não estou interessada em fornecer avaliações qualitativas de
obras de arte, em distinguir arte "boa" de "ruim" ou alta e baixa arte, em estabelecer
algum tipo de hierarquia das várias artes, mas em explorar as relações peculiares
que a arte estabelece entre o corpo vivo, as forças do universo e a criação do
futuro, a mais abstrata das questões, que, se forem abstratas o suficiente, podem
nos fornecer uma nova maneira de compreender o concreto e o vivido.
O que distingue as artes de outras formas de produção cultural são as
maneiras pelas quais a produção artística se funde, intensifica e eterniza ou
monumentaliza a sensação. A produção material a produção de mercadorias
embora possa gerar sensação, é, no entanto, direcionada para a realização de
atividades, tarefas, objetivos ou fins. A produção de mercadorias, mesmo as
"mercadorias artísticas", dirige-se à geração de sensações pré-experienciadas,
sensações conhecidas antecipadamente, que afetam de maneira particularmente
triste ou alegre. É por isso que não está claro se Deleuze entende a música popular
ou a arte produzida em massa, o kitsch, como artístico, embora ele certamente
entenda seus efeitos intensificadores5. A arte permite que a matéria se torne
4 Sensações, afetos e intensidades, embora o sejam facilmente identificáveis, estão clara e intimamente
ligadas às forças, particularmente às forças corporais e suas transformações qualitativas. O que as diferencia
da experiência ou de qualquer enquadramento fenomenológico é o fato de elas vincularem o corpo vivido ou
fenomenológico às forças cosmológicas, forças externas, que o próprio corpo nunca pode experimentar
diretamente. Afetos e intensidades atestam a imersão e participação do corpo na natureza, caos,
materialidade: "
Os afetos o precisamente esses devires não humanos do homem, como os perceptos
entre eles a cidade são as paisagens não humanas da natureza
" (Deleuze e Guattari, 1994, p. 169).
5 Veja Buchanan e Swiboda (2004), e especialmente “Deleuze e a Música Pop”, de Ian Buchanan; O próprio
Deleuze claramente têm preferência por obras que podem ser consideradas de alto modernismo, mas não
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expressiva, não apenas para satisfazer, mas também para intensificar – ressoar e
se tornar mais do que ela mesma. Isso não quer dizer que a arte esteja sem
conceitos; simplesmente que os conceitos são subprodutos ou efeitos, e não o
próprio material da arte. A arte é a regulação e organização de seus materiais
tinta, tela, concreto, aço, mármore, palavras, sons, movimentos corporais e, de
fato,
quaisquer
materiais de acordo com restrições autoimpostas, a criação de
formas através das quais esses materiais geram e intensificam a sensação e,
assim, impactam diretamente corpos vivos, órgãos e sistemas nervosos.
O que a filosofia pode contribuir para uma compreensão da arte além da
estética, ou seja, uma teoria da arte, uma reflexão sobre a arte? Em vez de se
impor sobre a arte, tomando a arte como objeto, como a filosofia pode trabalhar
com a arte ou talvez com e ao lado da arte, um ponto de retransmissão ou
conexão com a arte? Somente buscando o que é compartilhado com a arte, que
origem comum elas compartilham nas forças da terra e do corpo vivo, que
maneiras elas dividem e organizam o caos para criar um plano de coerência, um
campo de consistência, um plano de composição no qual se pensa e se cria6. Em
outras palavras, que dívida comum a arte e a filosofia compartilham com essas
forças, caos, que cada uma a seu modo deve desacelerar, decompor, canalizar e
desenvolver (através da construção do plano de imanência na filosofia e a
constituição do plano de composição nas artes)? Como, em outras palavras, as
artes e a filosofia ("teoria") criam? Com quais recursos? Técnicas? Contraforças? E
o que elas criam quando criam "obras", obras filosóficas e artísticas? 7
está claro que seu entendimento da arte como monumentalização da sensação não seja uma caracterização
mais geral de todas as artes, incluindo as mais cotidianas e as mais populares, os objetos mais prontos ou
encontrados, a mais cotidiana das performances.
6 Se a filosofia não pode ser entendida como a disciplina mestra pela qual as artes podem ser compreendidas,
é igualmente verdade que a arte não pode ser entendida como o ponto culminante ou fruição da filosofia,
como um texto recente afirmou: "Em seus trabalhos posteriores, Deleuze aborda essas questões de
subjetividade, liberdade e criação e ele o faz em grande parte no domínio da estética. Deleuze transforma a
estética em uma espécie de disciplina mestra da filosofia, substituindo a ontologia do sentido e da repetição
desde o início do trabalho" (Due, 2007, p. 164). Isso é tanto confundir a compreensão de Deleuze da arte com
uma estética e a interpretar mal as relações entre filosofia e arte como uma relação de hierarquia ou
"domínio".
7 Peter Hallward argumenta uma posição oposta à de Due: que Deleuze posiciona a filosofia como o
contraponto mais espiritualizado e menos materializado da arte, um passo além e acima da arte naquilo que
ele percebe como o movimento de Deleuze além da materialidade: "Se, então, a filosofia possui algum
privilégio sobre a arte, é simplesmente o de ser capaz de ir ainda mais longe na espiritualização de seu meio.
Ou melhor, a filosofia é precisamente essa forma de pensar que não requer nenhum meio. Enquanto a arte
trabalha através do som, da luz ou da pintura, ou das palavras, a filosofia como Deleuze concebe funciona
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Quero começar com um senso mítico de "o começo". "No começo" é o caos,
o movimento rodopiante e imprevisível de forças, oscilações vibratórias que
constituem o universo. O caos aqui pode ser entendido não como desordem
absoluta, mas como uma infinidade de ordens, formas, vontades forças que não
podem ser distinguidas ou diferenciadas uma da outra, tanto a matéria quanto
suas condições de ser de outra maneira, o real e o virtual de maneira indistinguível.
Em algum lugar deste universo caótico, em uma ocorrência relativamente rara,
através do acaso, a aleatoriedade molecular gera proteínas orgânicas, células,
proto-vida. Tal vida só pode existir e perpetuar-se na medida em que pode extrair
do caos giratório e experiencialmente avassalador que é a natureza, a
materialidade e suas forças imanentes, aqueles elementos, substâncias ou
processos de que necessita, e conseguir, de algum modo, suspender ou lançar à
sombra a profusão de forças que a envolvem e a cercam de modo a poder
incorporar o que precisa. Henri Bergson, uma das principais influências filosóficas
de Deleuze, entende isso como uma esqueletização de objetos: nós percebemos
apenas que nos interessa, se é útil para nós, aquilo com o qual nossos sentidos,
através da evolução, foram sintonizados (Bergson, 1988). Ou seja, a vida, mesmo a
célula orgânica mais simples, carrega seu passado com seu presente como
nenhum objeto material. Essa memória incipiente dota a vida de criatividade, a
capacidade de elaborar uma resposta inovadora e imprevisível aos estímulos, de
reagir ou, antes, de simplesmente agir, envolver a matéria em si mesma,
transformar a matéria e a vida de maneiras imprevisíveis.
Essa vida elementar pode evoluir, tornar-se mais, desenvolver-se e
elaborar-se na medida em que exista algo fundamentalmente instável no meio e
na constituição orgânica. A evolução da vida pode ser vista não apenas na
crescente especialização e bifurcação ou diferenciação das formas de vida uma
da outra, na elaboração e desenvolvimento de morfologias e formas corporais
profundamente variáveis, mas, acima de tudo, em seu tornar-se artístico, em suas
autotransformações, que excedem os requisitos simples da existência. Seleção
sexual, a consequência da diferença sexual ou da bifurcação morfológica - uma
através de nada além de si mesma” (Hallward, 2006, p. 129). A leitura de Hallward implica uma organização
hierárquica no entendimento de Deleuze das relações entre ciência, arte e filosofia que não tem base textual
nos escritos de Deleuze.
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das mais antigas transformações na evolução da vida na Terra e, sem dúvida, a
invenção mais importante que a vida trouxe à tona, o próprio mecanismo para
garantir a geração interminável de variações morfológicas e genéticas, o próprio
mecanismo da diferença biológica é também, por esse fato, a abertura da vida
à indeterminação de gosto, prazer e sensação8. A vida elabora a si mesma fazendo
suas formas corporais e seus territórios arcaicos, agradáveis (ou irritantes),
performativos, ou seja, intensificados por sua integração na forma e seu impacto
nos corpos.
muita "arte" no mundo natural, a partir do momento em que seleção
sexual, a partir do momento em que existem dois sexos que atraem o interesse e
o gosto um do outro por meio de sensações visuais, auditivas, olfativas, táteis e
gustativas. A beleza assombrosa do canto dos pássaros, a performance
provocadora da exibição erótica em primatas, a atração de insetos pelo perfume
das plantas, todas vão além da mera sobrevivência, que Darwin entende em
termos de seleção natural: essas formas de seleção sexual, atração sexual,
afirmam a excessividade do corpo e da ordem natural, sua capacidade de revelar
um ao outro o que surpreende, o que é inútil, mas atrai e apela. Cada um afirma
uma superabundância de recursos além da necessidade de mera sobrevivência,
ou seja, da capacidade da matéria e da vida de trocar entre si, de entrar em devires
que transformam cada um. Eles atestam o impacto artístico da atração sexual, o
devir-outro que a sedução implica. Essa não é uma relação homeostática de
estabilização, o acúmulo e gasto de energias libidinais que Freud como o
fundamento da sexualidade orgástica, mas uma adaptação fundamentalmente
dinâmica, desajeitada e que permite a produção do frívolo, desnecessário e
agradável, o sensorial por si só.
A arte propriamente dita, em outras palavras, surge quando a sensação pode
8 Veja o capítulo 3 de Grosz (2004) para uma discussão sobre os efeitos indeterminados, às vezes até
desestabilizadores, que a seleção sexual exerce sobre as operações implacáveis da seleção natural e seu lugar
na geração de música, linguagem e artes. Usei o entendimento de Irigaray sobre uma diferença sexual
irredutível para elaborar e explicar o relato de Darwin sobre a seleção sexual: sua concepção da capacidade
de atrair parceiros sexuais está fundamentalmente ligada à bifurcação sexual, às diferenças corporais sejam
elas quais forem entre machos e fêmeas e as várias categorias de forma corporal que todos os corpos vivos
aproximam. É essa diferença que atrai, seduz, apela, embora não o faça de maneira previsível ou clara. É a
indeterminação do apelo sexual que garante que os processos de evolução nunca sejam previsíveis com
antecedência. É essa indeterminação que a sociobiologia e outros ramos determinísticos da teoria da evolução
parecem incapazes de abraçar.
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se desprender e ganhar autonomia de seu criador e de quem a percebe, quando
algo do caos do qual é extraído pode respirar e ter vida própria. Deleuze elabora o
conceito de sensação tal como foi desenvolvido em
The Primary World of the
Senses
, de Erwin Straus (1963), onde designa uma relação entre um sujeito e o
mundo precedendo a racionalidade e o conhecimento, a percepção e o intelecto,
nos quais sempre há uma mútua transformação entre eles:
O sujeito sensível não possui sensações, mas, antes, em seu ato de
senciência ele tem primeiro a si mesmo. Na experiência sensorial,
desdobra-se o devir do sujeito e o acontecimento do mundo. Eu me torno
na medida em que algo acontece, e algo acontece (para mim) somente
na medida em que me torno. O Agora do sentir não pertence apenas à
objetividade, nem à subjetividade, mas necessariamente a ambos juntos.
Ao sentir, tanto o eu quanto o mundo se desdobram simultaneamente
para o sujeito sensível; o ser sensível experimenta a si mesmo e ao
mundo, a si mesmo no mundo, a si mesmo com o mundo (Straus, 1963,
p. 351).
Seguindo Straus ao ver a sensação como aquilo que devém, formando um
dos elos entre o sujeito e o mundo, Deleuze considera a sensação como aquilo
que o sujeito e o objeto compartilham, mas não é redutível nem ao sujeito, nem
ao objeto, nem à relação entre eles. Sensação é aquilo que a arte forma a partir
do caos, por meio da extração de qualidades.
A filosofia, como a arte e a ciência, se baseia no e sobre o caos. A
indeterminação caótica do real, seus impulsos à variação incessante, dá origem à
criação de redes, planos, zonas de coesão, que não mapeiam esse caos, mas
extraem vigor, força, material dele para uma ação provisória e uma coesão aberta,
modos temporários de ordenação, desaceleração, filtragem. Se a filosofia, através
do plano de imanência ou consistência, vida a conceitos que vivem
independentemente do filósofo que os criou, mas que, ainda assim participam,
atravessam e atestam o caos do qual são extraídos, assim também a arte, através
do plano da composição que lança sobre o caos, vida à sensação que,
desconectada de suas origens ou de qualquer destino ou recepção, mantém suas
conexões com o infinito que expressa e do qual é extraída. Como jangadas gêmeas
sobre o caos, filosofia e arte, junto com sua irmã mais séria, a ciência, enquadram
o caos, cada uma à sua maneira, a fim de extrair algo consistente, composto,
imanente, que usam para suas próprias ordenações (e, também, perturbamento)
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de recursos9.
As diferentes artes são uma consequência dos vários experimentos de
intensificação que marcaram a vida sexualizada na Terra, condicionados pela
(histórica) construção de um plano de composição, um plano de técnicas,
métodos e recursos compartilhados e diferenciantes, um plano transformado e
reorientado pelas revoltas na produção artística, as revoluções da sensação que a
história da arte, uma história que engloba o que geralmente consideramos
também a pré-história da arte, provocou. A arte é possível na medida em que
esse plano preceda qualquer trabalho em particular; e cada obra de arte em
particular encontra seu lugar, mesmo o lugar de perturbação, dentro desse plano,
sem o qual não poderia funcionar como um ser de sensação, uma variedade
sensorial. O plano de composição, que atravessa e, assim, mergulha, filtra e
aglutina o caos pelo surgimento da sensação, é, portanto, uma imersão no caos,
mas também um modo de perturbar e ordenar o caos através da extração daquilo
que a vida pode buscar por si mesma e suas próprias intensificações a partir dessa
complexidade giratória - sensações, afetos, perceptos, intensidades - de blocos
de devir corporal que sempre coevoluem com blocos de devir da matéria ou de
acontecimentos.
Arte e natureza, arte na natureza, compartilham uma estrutura comum: a da
produção excessiva e inútil produção por si mesma, produção por causa da
profusão e diferenciação. A arte extrai o que precisa o excesso de cores, formas,
materiais da terra para produzir seus próprios excessos, sensações com vida
própria, sensação como "vida não-orgânica". A arte, como a própria natureza, é
sempre um estranho acoplamento, a união de duas ordens, uma caótica, a outra
ordenada, uma dobrada e a outra se desenrolando, uma contração e outra
dilatação, e é porque a arte é a inversão e transformação da profusão da natureza
que ela também deve participar de, e precipitar, outros acoplamentos: "se a
natureza é como a arte, é sempre porque combina esses dois elementos vivos em
todos os sentidos: a Casa e o Universo,
Heimlich e Unheimlich
, território e
9 "A arte luta efetivamente com o caos, mas para fazer surgir nela uma visão que a ilumina por um instante,
uma Sensação [...] A arte não é o caos, mas uma composição de caos que produz a visão ou sensação, de
modo que constitui, como Joyce diz, um caosmos, um caos composto nem previsto, nem preconcebido [...]
A arte luta com o caos, mas o faz para torná-lo sensorial." (Deleuze e Guattari, 1994, p. 204-205).
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desterritorialização, os compostos melódicos finitos e o grande plano de
composição infinito, o pequeno e o grande refrão" (Deleuze e Guattari, 1994, p. 186).
Assim, o primeiro gesto da arte não é, como Nietzsche acreditava, a exteriorização
das próprias forças e energias corporais, a transformação de carne e sangue em
tela e óleo, mas um gesto mais primário que requer a separação prévia de um
corpo da terra, da natureza, do seu mundo. Deleuze entende, e neste ponto está
em excepcional e raro acordo com Derrida, que o primeiro gesto da arte, sua
condição metafísica e expressão universal, é a construção ou fabricação da
moldura10. "A arte leva um pouco de caos à moldura para formar um caos
composto que se torna sensorial, ou do qual extrai uma sensação caóide como
variedade" (Deleuze e Guattari, 1994, p. 206).
A arquitetura e a moldura
O primeiro impulso artístico nessa reconstrução metafísica não é, portanto,
a arte corporal, mas a arte arquitetônica. Para Deleuze, a arte é a extensão do
imperativo arquitetônico para organizar o espaço da terra. A arte, desenvolvida ao
lado dos sistemas território-casa e casa-território, é o que permite o surgimento
de qualidades sensoriais puras, os dados ou materiais da arte. Esta arte não está
enraizada na criatividade da humanidade, mas na superfluidade da natureza, na
capacidade da terra de tornar o sensorial superabundante, no canto e na dança
do pássaro, ou no campo de lírios balançando na brisa sob um céu azul. Enraíza a
arte no natural e no animal, no resíduo evolutivo mais primitivo e sexualizado do
patrimônio animal do homem. A arte é evolutiva, no sentido em que ela coincide-
com e aproveita as realizações evolutivas em vias de expressão que não têm mais
nada a ver com a sobrevivência. A arte sequestra os impulsos de sobrevivência e
os transforma através dos caprichos e intensificações da sexualidade, colocando-
os em uma nova ordem, uma nova prática. A arte é a sexualização da sobrevivência
ou, igualmente, a sexualidade é a artistização, a exploração da excessividade, da
natureza11.
10 Veja Derrida (1987) e, particularmente, a noção de parergonalidade que ele desenvolve ali.
11 “Talvez a arte comece com o animal, ao menos com o animal que recorta um território e faz uma casa
(ambos são correlativos, ou até mesmo se confundam, por vezes, no que é chamado de habitat). O sistema
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A arte não está conectada por alguma relação intrínseca ao próprio corpo,
mas exatamente o oposto: está conectada a esses processos de distanciamento
e à produção de um plano de composição que abstrai a sensação do corpo. O
surgimento da "moldura" é a condição de todas as artes e é a contribuição
particular da arquitetura para domesticar o virtual, a territorialização das forças
incontroláveis da terra. É a moldura que constitui a pintura e o cinema tão
prontamente quanto a arquitetura; é a força arquitetônica do enquadramento que
libera as qualidades de objetos ou acontecimentos que passam a constituir a
substância, a matéria, da obra de arte12. A moldura é o que estabelece o território
a partir do caos que é a terra. A moldura é assim a primeira construção, as bordas,
do plano de composição. Sem moldura ou limite, não pode haver território, e sem
território, pode haver objetos ou coisas, mas não qualidades que podem se tornar
expressivas, que podem intensificar e transformar os corpos vivos. O território,
aqui, pode ser entendido como superfícies de curvatura ou inflexão variável que
lhes incidem sobre singularidades, erupções ou acontecimentos. Território é
aquele que é produzido pela elaborada, embora aparentemente inútil, atividade de
construção, exibição e atração da atenção, que marca a maior parte da seleção
sexual.
Deleuze e Guattari fornecem um exemplo marcadamente arquitetônico para
a discussão da performance do fascínio ou atração sexual:
Todas as manhãs, o
Scenopoetes dentirostris
, uma ave das florestas
tropicais chuvosas da Austrália, apanha folhas, as faz cair no chão e as
vira para que a face interna mais pálida contraste com a terra. Dessa
maneira, constrói um palco para si como um readymade; e diretamente
acima, em uma trepadeira ou galho, enquanto afofa suas penas sob o
bico para revelar suas penugens amarelas, canta um canto complexo
composto de suas próprias notas e das de outros pássaros, que imita nos
intervalos; é um artista completo. Esta não é uma sinestesia da carne,
mas blocos de sensações no território - cores, posturas e sons que
da casa-território transforma várias funções orgânicas sexualidade, procriação, agressividade, alimentação.
Mas essa transformação não explica o aparecimento do território e da casa; seria antes o inverso: o território
implica o surgimento de qualidades sensoriais puras, de sensibilia que deixam de ser meramente funcionais
e se tornam características expressivas, possibilitando uma transformação das funções." (Deleuze e Guattari,
1994, p. 183).
12 Deleuze e Guattari seguem Bernard Cache ao ver a arquitetura como o impulso primordial ou a forma de
todas as artes, seus modos de formar um plano: possível definir arquitetura como a manipulação [...] da
moldura. Arquitetura, a arte da moldura, não se referiria apenas aos objetos específicos que são edifícios, mas
se referiria a qualquer imagem envolvendo qualquer elemento do enquadramento, isto é, a pintura assim
como o cinema [...], e certamente muitas outras coisas.” (Cache, 1995, p. 2).
Caos. Cosmos, Território, Arquitetura
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13
esboçam uma obra de arte total. Esses blocos sonoros são refrões; mas
também refrões de posturas e cores, e posturas e cores estão sempre
sendo introduzidas em refrões: curvando-se, endireitando-se, dançando
em círculo e em uma linha de cores. Todo o refrão é o ser da sensação.
Os monumentos são refrões. A este respeito, a arte é continuamente
assombrada pelo animal (Deleuze e Guattari, 1994, p. 184).
É nesse sentido que a arquitetura, e todas as artes que dela decorrem, estão
ligadas ao canto dos pássaros, à dança olfativa dos insetos, às exibições
performativas dos vertebrados, incluindo os humanos: são cada um a constituição
de um território, um território sexualizado, o espaço que é propriamente seu no
qual é possível promover a sedução sexual, extrair satisfação sexual e intensificar
as forças sexuais. Mas, talvez mais significativamente, a constituição do território
é a fabricação do espaço em que podem surgir as sensações, das quais um ritmo,
um tom, uma coloração, um peso, uma textura podem ser extraídos e movidos
para outro lugar, podem funcionar por si só, podem ressoar apenas por uma
questão de intensidade. E, igualmente, na medida em que seu impulso primordial
é a criação de território em ambos os mundos natural e humano, a arte também
é capaz dessa destruição e deformação que desfaz territórios e lhes permite
retornar para o caos do qual foram temporariamente arrancados. Enquadrar e
desenquadrar tornam-se modos de arte de territorialização e desterritorialização
através da sensação; o enquadramento torna-se o meio pelo qual o plano de
composição compõe, desenquadrando seus modos de agitação e transformação.
Na sua forma mais elementar, a arquitetura, a mais primordial e animal de
todas as artes, faz pouco além de projetar e construir molduras; essas são suas
formas básicas de expressão. Mesmo em suas formas contemporâneas mais
sofisticadas, a arquitetura se constitui de molduras interligadas, molduras que
podem se conectar, conter e ser contidas por outras molduras: arquitetura é a
criação de molduras como cubos, cubos interconectados, cubos preservados ou
distorcidos, cubos abertos, flexionados ou cortados13. A moldura separa. Corta um
13 "Estritamente falando, arquitetos projetam molduras. Isso pode ser facilmente verificado ao consultar os
planos arquitetônicos, que nada mais são do que o entrelaçamento de molduras em todas as dimensões:
planos, seções e elevações. Cubos, nada além de cubos [...] Em um texto chamado Deblaiements d'art”, Henry
Van de Velde apontou para um paralelismo entre a evolução histórica das formas das molduras e a das
formas arquitetônicas. As pinturas finalizariam, por assim dizer, a série de molduras que compõem um edifício.
Através de sucessivos desenquadramentos, passaríamos da tela da pintura para o afresco na parede, para o
mosaico no chão e, finalmente, para o vitral na moldura da janela. Assim, a moldura de uma pintura seria
residual, ou melhor, um rudimento de enquadramento arquitetônico." (Cache, 1995, p. 22).
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meio ou um espaço. Esse corte a vincula à constituição do plano de composição,
à ordenação provisória do caos através do estabelecimento de uma grade ou
ordem que captura fragmentos caóticos, estados caóides, para prendê-los ou
reduzi-los ao espaço e ao tempo, uma estrutura e uma forma em que eles podem
afetar e ser afetados pelos corpos. Esse corte do espaço da terra através da
fabricação da moldura é o próprio gesto que compõe casa e território, dentro e
fora, interior e paisagem de uma vez e como pontos de variação máxima, os
dois lados, do espaço da Terra. As qualidades estão agora soltas no mundo, não
mais ancoradas em seu lugar "natural", mas colocadas no jogo de sensações que
parte da mera sobrevivência para celebrar os meios e excessos.
É por isso que a forma mais elementar da moldura é a divisória, seja parede
ou tela, que, projetada para o chão, gera a lisura de um piso, que "rarefaz" e suaviza
a superfície da terra, criando uma primeira territorialização (humana). O chão,
sempre adquirindo suavidade, flexibilidade e consistência, faz da terra e da
horizontalidade um recurso para desencadear cada vez mais sensações, para
explorar os excessos de gravidade e movimento, as condições para o surgimento
da dança e de práticas atléticas14. A divisória projetada para a frente origem à
parede, que constitui a possibilidade de um interior e um exterior, dividindo o
habitável do natural (o caótico), transformando a própria terra em um espaço
delimitável, um abrigo ou lar. A parede nos separa do mundo, de um lado, e cria
outro mundo, um mundo construído e emoldurado, do outro lado. Embora ela,
primariamente, divida, a parede também possibilita novas conexões, novas
relações, relações sociais e interpessoais, com os do outro lado ("A parede é a
base da nossa coexistência" [Cache, 1995, p. 24]). A parede desestabiliza e inflete
o território criado pelo piso; contudo, dentro e através da parede, outra
reterritorialização da terra é sempre imanente.
Embora sua função mais direta e perceptível seja separar ou dividir, a parede
funciona igualmente para selecionar e trazer para dentro. Nesse caso, a moldura
pode ser convertida na janela, que visualiza seletivamente seu exterior natural,
agora uma "paisagem", não mais além de sua partição, mas dentro do espaço
14 a planicidade do palco que torna a coreografia provável, assim como é a planicidade do estádio que
aumenta a probabilidade da prática de atletismo. O plano terrestre rarefaz a superfície da terra para permitir
que as atividades humanas tomem forma." (Cache, 1995, p. 25).
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emoldurado da sala. Traz seletivamente um exterior agora emoldurado, uma visão
ou vista. A parede escurece, impede a luz e as forças naturais; a janela agora os
re-emoldura seletivamente para devolvê-los ao interior, trazendo iluminação para
dentro. A parede, o piso e as janelas emolduram, ou seja, dividem e selecionam
um ao outro e seu exterior coletivo; e juntos sempre se aproximando da forma
do cubo, mesmo quando acabam por deformar –, eles constituem uma partição
final, um telhado. O teto, como o chão, é mais do que uma parede horizontal, mais
do que uma caixa apresentada em qualquer orientação. Como argumenta Cache,
o teto segue mais uma lógica da forma do que da função: o que explica por que
ele pertence a um registro formal e mesmo geométrico prisma, cúpula, cone ou
pirâmide (1995, p. 26) – cada um com suas próprias linhas, figuras e singularidade,
com seus modos de inflexão e curvatura15.
Dentro da estrutura arquitetônica, em forma miniaturizada, a moldura replica
a si mesma e sua função territorializadora através dos móveis, uma arquitetura no
interior da arquitetura, uma arquitetura da arquitetura: "Embora classificados
como objetos em nossa linguagem cotidiana, os móveis podem ser vistos como
uma replicação interna da arquitetura. O armário é uma caixa na caixa, o espelho
uma janela para o exterior, a mesa outro andar no chão". Não é surpreendente
que, como enfatiza Cache ele próprio fabricante de móveis —, o mobiliário,
sendo aquilo que mais intimamente toca o corpo, esteja vinculado à estrutura
arquitetônica por meio de uma contiguidade direta com o corpo e suas atividades.
A mobília permite que o corpo seja mais diretamente afetado, mas também
protegido, pelo caos de todas as forças externas: "Para nossos esforços mais
íntimos ou abstratos, sejam eles na cama ou em uma cadeira, a mobília fornece o
ambiente físico imediato no qual nossos corpos agem e reagem; para nós, animais
urbanos, móveis são, portanto, nosso território principal. Arquitetura, objeto,
geografia - móveis são a imagem onde as formas se fundem" (1995, p. 30).
O real, o exterior, natureza, matéria, força, cosmos, geografia todos os
termos que podemos entender como expressões mais ou menos estáveis do caos
são aqueles que, vindos de fora, incitam a proliferação produtiva de recursos
15 "A parede delimita e a janela seleciona: é essa a moldura de probabilidade dentro da qual encontramos o
intervalo rarefeito do chão. Pertence ao regime de causas e do intervalo. O teto é de outra ordem: envolve um
acontecimento; é o efeito da singularização." (Cache, 1995, p. 28).
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que revelam ou vislumbram um elemento, fragmento ou seção do caótico na
forma de sensação. Esse real, o externo, caos, demarcado pela constituição de um
território (finito e provisório), possibilita os aspectos mais calculáveis, mensuráveis
e mapeáveis que caracterizam um local, a abertura do local à manipulação e
controle científico e técnico; e a moldura construída, produzida por meio de uma
regulação e particionamento de orientações no local, divide e seleciona o que o
território, agora configurado como paisagem, uma vista, pode delimitar
diretamente, e iluminar, o interior, as divisões e seleções feitas por grupos e
comunidades. E dentro da moldura construída, como uma moldura dentro de uma
moldura dentro de uma moldura, nossos corpos e seus suportes corporais,
mobílias, coexistem para transformar nosso corpo uma abundância de sensações
e ações. Os móveis trazem o exterior para dentro, mas apenas na medida em que
ele próprio é extraído e transformado a partir deste exterior, despojado,
retrabalhado, refinado, em suma, um exterior agora construído, regulado, interno.
Nesse processo de territorialização, desterritorialização e reterritorialização, o
corpo torna-se intimamente conectado e informado pelos movimentos
peristálticos, sístole e diástole, contração e expansão, do próprio universo. Corpo
e universo, entrelaçados em concavidade/convexidade mútua, flutuando/caindo,
dobrando/desdobrando, são diretamente tocados por aquele exterior agora
emoldurado, criando sensação a partir de sua união.
A arte é primeiro arquitetônica porque seus materiais cósmicos requerem
demarcação, enquadramento, contenção para que qualidades como tais se
manifestem, vivam e induzam sensação. A arquitetura é a contenção ou vinculação
mais elementar de forças, as condições sob as quais as qualidades podem viver
sua própria vida através da constituição do território. O território emoldura o caos
provisoriamente e, no processo, produz qualidades extraíveis, que se tornam os
materiais e as estruturas formais da arte. Não uma única arquitetura, um único
enquadramento, nem uma técnica universal de territorialização: cada forma de
vida e cada forma cultural adota seus próprios modos de organização, suas
próprias conexões de corpo e terra, seus próprios modos de gestão ou problemas
intratáveis que se impõem aos seres vivos.
Cache deixa claro que, embora o descrito acima possa ser considerado uma
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espécie de genealogia do plano de composição e dos acontecimentos artísticos
que irrompem em sua superfície, ele não é a única genealogia, nem a única
reconstrução (histórica, cultural) das origens da arte. Se a arquitetura e a arte
ocidentais, seguindo as afirmações de Wöfflin e Worringer, observarem essa
genealogia da construção planar, a construção da ordem a partir da substância,
pode ser que a genealogia da arte não-ocidental siga uma lógica totalmente
diferente:
O primeiro gesto arquitetônico é realizado sobre a terra: é nosso túmulo
ou nossa fundação. Um plano contra uma superfície de curvatura variável,
a primeira moldura é uma escavação. Mas talvez seja apenas a base do
pensamento ocidental. Ao contrário da nossa arquitetura ocidental, cujo
primeiro enquadramento confronta a terra, a arquitetura japonesa eleva
suas telas ao vento, à luz e à chuva. Divisórias e guarda-sóis, em vez de
escavações: as telas enfatizam o vazio (Cache, 1995, p. 64).
A terra pode ser
infinitamente
dividida, territorializada, emoldurada. Mas, a
menos que seja de alguma forma demarcada, a própria natureza é incapaz de
sexualizar a vida, tornando a vida sedutora, elevando a vida acima da mera
sobrevivência. Emoldurar é como o caos se torna território. Emoldurar é o meio
pelo qual os objetos são delimitados, qualidades liberadas/desencadeadas e a arte
tornada possível.
A arte e a terra
O enquadramento arquitetônico produz a própria possibilidade da tela, a tela
funcionando como um plano para projeção virtual, um híbrido de parede, janela e
espelho. A pintura pode ser entendida, como veremos no capítulo 3, como a
passagem transicional da moldura para a tela, um movimento de crescente
desmaterialização, um movimento em que a imagem se torna cada vez menos
dependente de um meio e de um lugar, e é ela própria a complexa e dobrada
constituição de segunda ordem da moldura, desta vez não mais para o propósito
misto de utilidade e prazer, mas para a geração (e nunca a reprodução ou
representação) de sensações. A história da moldura é a evolução de uma
desmaterialização crescente, um devir-território-parede-pintura-janela-espelho-
tela.
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Como a arquitetura, a arte não é apenas o movimento de territorialização, o
movimento de unir o corpo ao caos do próprio universo, de acordo com as
necessidades e interesses do corpo; é também o movimento inverso, o de
desterritorialização, de romper territórios, quebrar sistemas de fechamento e
performance, atravessar territórios para retocar o caos, permitindo que algo louco,
assistemático, algo caótico do lado de fora se reafirme e se restaure através do
corpo, através de obras e acontecimentos que impactam o corpo. Se o
enquadramento cria a própria condição para o plano de composição e, portanto,
de qualquer obra de arte específica, a própria arte é igualmente um projeto que
desfaz, distende e transforma molduras, que se concentra nos intervalos e
conjunções entre molduras. Nesse sentido, a história da pintura e da arte após a
pintura pode ser vista como a ação de deixar a moldura, de ir além e pressionar
contra a moldura, a moldura explodindo através do movimento que não pode mais
conter16. A arte assim captura um elemento, um fragmento, do caos na moldura
e cria ou extrai dela não uma imagem ou representação, mas uma sensação, ou
melhor, um composto, uma multiplicidade de sensações, não a repetição de
sensações experimentadas ou disponíveis além ou fora da obra de arte, mas
essas mesmas sensações geradas e proliferadas apenas pela arte. O
enquadramento é a condição crua sob a qual as sensações são criadas,
metabolizadas, liberadas no mundo, feitas para viver uma vida própria, para
contaminar e transformar outras sensações.
Essa é, precisamente, a tarefa de toda arte e, a partir de cores e sons,
tanto a música quanto a pintura extraem similarmente novas harmonias,
novas paisagens plásticas ou melódicas e novos personagens rítmicos
que as elevam à altura do som da terra e do clamor da humanidade:
aquilo que constitui o tom, a saúde, o devir, um bloco visual e sonoro. Um
monumento não comemora nem celebra algo que aconteceu, mas confia
aos ouvidos do futuro as persistentes sensações que encarnam o
acontecimento (Deleuze e Guattari, 1994, p. 176).
A libertação artística e a propagação da sensação, que, como consideraremos
mais adiante no capítulo seguinte, são sempre um modo de ressonância ou
16 O próprio Deleuze parece consideravelmente desdenhoso da arte pós-moderna, e especialmente da arte
conceitual, e mostra uma clara preferência por obras de alto modernismo, tanto na pintura quanto no cinema
e na música. Um dos desafios que o Deleuzianismo enfrenta é como direcionar uma análise de inspiração
Deleuziana aos textos e movimentos para os quais ele próprio tinha pouco tempo.
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vibração harmoniosa, uma oscilação extraída da estrutura flutuante e
autodiferenciadora do próprio universo usado para marcar o passo, medir e
proporcionar discernimento em um universo no qual nada é autoidêntico, toda
substância é movimento, modos de contração/dilatação ou diferença/repetição, e
gera não apenas percepções, isto é, imagens auditivas e visuais, mas, sobretudo,
ritmo. O ritmo explode auditivamente em e como música e visualmente em e
como pintura e artes visuais. O ritmo é o que conecta as estruturas corporais mais
elementares e primitivas, mesmo dos organismos mais simples, aos movimentos
implacáveis do próprio universo: arte, como música, escultura, pintura, arquitetura,
dança, ressoa ou transmite força através de toda estrutura. Essa força deve ser
considerada não como o produto da humanidade, uma invenção que distingue o
humano do animal, mas, sim, um "poder inabitável" não-humano (Deleuze, 2003,
p. 39) que percorre toda a vida e conecta os vivos em suas várias formas às forças
e qualidades não-orgânicas da própria materialidade.
As artes visuais e sonoras capturam algo da estrutura vibratória da própria
matéria; elas extraem cor, ritmo, movimento do caos, a fim de desacelerar e
delimitar dentro dele um território capaz de sofrer uma reformulação e uma nova
harmonia que lhe dará independência, um plano de estabilização, sobre o qual se
apoiar. O refrão é como o ritmo demarca um território do caos que ressoa e
intensifica o corpo. O território é sempre a junção de coordenadas espaço-
temporais (e, portanto, as possibilidades de medição, localização precisa,
concretude, atualidade) e qualidades (que são incomensuráveis, indeterminadas,
virtuais e em aberto), ou seja, é o acoplamento de um meio e um ritmo. Um refrão
é o movimento pelo qual as qualidades de um território ou habitat específico
ressoam e retornam para formar um espaço delimitado, um espaço contido ou
limitado, mas sempre aberto ao caos do qual ele extrai sua força.
Deleuze e Guattari argumentam que a música e a literatura, muito menos
claramente orientadas espacialmente e mais claramente orientadas ao
movimento temporal, podem, no entanto, ser representadas igualmente segundo
o modelo de territorialização e enquadramento das artes visuais e arquitetônicas.
A música também é emoldurada e envolve a extração de um ritmo vibratório do
caos, que é então inserido na moldura construída para possibilitar o intercâmbio
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entre o harmônico e o melódico. A vibração se torna harmônica; a melodia passa
a regular a união e a construção de uma “casa sonora”, um intercâmbio de
movimentos vibratórios:
A situação da música não parece diferente e talvez incorpore a moldura
ainda mais poderosamente [do que nas artes visuais]. No entanto, diz-se
que o som não tem moldura. Mas os compostos de sensações, blocos
sonoros, possuem igualmente seções ou formas de enquadramento, que
devem, em cada caso, se unir para garantir um certo fechamento. Os
casos mais simples são a ária melódica, que é um refrão monofônico; o
motivo
, que é polifônico, é um elemento da melodia que entra no
desenvolvimento de outra e cria contraponto; e o tema, como objeto de
modificações harmônicas através de linhas melódicas. Essas três formas
elementares constroem a casa sonora e seu território (Deleuze e Guattari,
1994, p. 189).
Um território é estabelecido apenas quando as qualidades/propriedades
adquirem suas próprias ressonâncias, suas próprias formas de repetição e
reconstrução; território é a configuração espaço-temporal que contém esses
ritmos e forças. A territorialização é o "ato do ritmo tornado expressivo, ou dos
componentes de um meio tornados qualitativos." (Deleuze e Guattari, 1987, p. 315):
os ritmos vibratórios tornam-se expressões coloridas, sonoras e táteis; eles
entram em contato e cruzam-se com a terra, um local ou geografia específica, que
enquadra e condiciona suas extrações como qualidades. Ao mesmo tempo, uma
qualidade passa a ser abstraída de seu meio e a geografia passa a ser definida
como propriedade ou habitat: na constituição da moldura o cosmos é direcionado,
através de planos construídos de coesão, a transformações e devires materiais, à
reconstrução do corpo e à intensificação de suas forças, ao mesmo tempo em
que investe seu meio em uma nova configuração de fechamentos e aberturas17. O
caos é antecipado, emoldurado e acolhido por uma dose regulada, tolerável e,
talvez, estimulante e transformadora.
Se a pintura visa fazer com que todos os órgãos funcionem como um olho,
se faz com que as próprias entranhas vejam, e se a música faz com que todos os
órgãos e poros do corpo funcionem como um ouvido sintonizado ao ritmo e a
melodia, se, como Deleuze sugere, a pintura materializa cada vez mais
17 Como Bogue sugere em sua análise esclarecedora dos escritos de Deleuze sobre as artes, "A arte, como
disposição de qualidades expressivas, é o agente ativo na formação do território e no estabelecimento da
identidade proprietária de seu ocupante.” (2003, p. 20)
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profundamente o corpo enquanto a música o espiritualiza, isto é porque, através
das várias artes, o corpo é, pelo menos por um momento, diretamente tocado
pelas forças do caos das quais se protege tão cuidadosamente no hábito, clichê e
doxa, aqueles movimentos de contenção que tornam apenas sensações
previsíveis e pré-produzidas, não sensações que anunciam o futuro18. O que a
pintura, a música e a literatura suscitam não são tantas representações,
percepções, imagens prontamente disponíveis, reconhecíveis, diretamente
interpretáveis, identificáveis, assim como o clichê, a opinião popular, o bom senso
ou o cálculo: elas produzem e geram sensações nunca antes experimentadas,
percepções do que nunca foi percebido antes ou talvez pode não ser percebido
de outra forma. As artes visuais transformam forças invisíveis em forças visíveis;
as artes musicais "tornam sonoras as forças não sonoras" (Deleuze, 2003, p. 48),
em resumo, extraem algo imperceptível do cosmos e o revestem com os materiais
sensíveis que o cosmos fornece para criar sensação, não uma sensação de algo,
mas pura intensidade, um impacto direto nos nervos e órgãos do corpo.
A pintura consiste em tornar o invisível visível e a música em fazer soar o
inaudível, cada uma sendo expressão e exploração do irrepresentável19. A arte não
consiste na ativação das percepções e sensações do corpo vivido a mescla e
indecidibilidade de sujeito e objeto, vidente e visto em uma carne comum como
sugerido por Straus (1963) e posteriormente elaborado por Merleau-Ponty (1968),
mas sobre a transformação do corpo vivido em um poder inabitável, uma força
desencadeada que transforma o corpo junto com o mundo. A resposta de Deleuze
às leituras fenomenológicas que consideram o corpo vivido como local para a
18 "[A música] retira os corpos de sua inércia, da materialidade de sua presença: ela desencarna os corpos [...]
De certo modo, a música começa onde termina a pintura, e é isto o que queremos dizer quando falamos
de uma superioridade da música. Ela está instalada em linhas de fuga que atravessam os corpos, mas que
encontram consistência em outros lugares, enquanto a pintura se instala mais longe, onde o corpo escapa
de si mesmo, mas ao escapar, o corpo descobre a materialidade de que é composto, a presença pura da
qual é feito, o que não descobriria de outra forma. A pintura, em suma, descobre a realidade material dos
corpos com seus sistemas de linhas de cores e seu órgão polivalente, o olho [...] Quando a música configura
seus sistemas sonoros e seu órgão polivalente, o ouvido, dirige-se a algo muito diferente da realidade
material dos corpos. um corpo desencarnado e desmaterializado à mais espiritual das entidades."
(Deleuze, 2003, p. 47)
19 "Os artistas são como filósofos. A pouca saúde que eles possuem é frequentemente muito frágil, não por
causa de suas doenças ou neuroses, mas porque viram algo na vida que é demais para qualquer um, demais
para si mesmos, e isso colocou sobre eles a marca silenciosa da morte. Mas essa também é a fonte ou o
fôlego que os sustenta através das doenças dos vividos (o que Nietzsche chamou de saúde)”. (Deleuze e
Guattari, 1994, p. 172-173)
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produção de arte é altamente crítica, embora seja evidente que ele deva não tanto
a Merleau-Ponty quanto a Uexküll (como veremos em mais detalhes no próximo
capítulo, um fenomenólogo ou semiótico não do sujeito humano consciente, mas
do animal), e sua compreensão da natureza como contraponto padronizado de
ambientes fenomenologicamente selecionados: a aranha carrega em sua teia uma
imagem complexa da presa que deve capturar sua teia é um mapa e um
contraponto da mosca. Não obstante, a crítica de Deleuze à fenomenologia é clara:
a carne é o campo de elaboração das sensações, mas não pode ser confundida
como a própria sensação. A sensação anuncia o devir não-humano da
humanidade, a superação evolutiva do homem:
em resumo, o ser da sensação não é a carne, mas o composto de forças
não-humanas do cosmos, dos devires não-humanos do homem e da
casa ambígua que os troca e ajusta, os faz turbilhonar como os ventos. A
carne é apenas o revelador que desaparece no que revela: o composto
da sensação (Deleuze e Guattari, 1994, p. 183).
Imponderáveis cosmológicos entre os mais óbvios, as forças de
temporalidade, gravidade, magnetismo igualmente os objetos de exploração
científica, filosófica e artística, estão entre as forças invisíveis, não ouvidas e
imperceptíveis da terra, forças além do controle da vida que animam e estendem
a vida além de si mesmas. A arte gera devires, não devaneios imaginativos a
elaboração de imagens e narrativas nas quais um sujeito pode se reconhecer, não
autorrepresentações, narrativas, confissões, testemunhos do que é e já foi –, mas
devires materiais, nos quais essas forças universais imponderáveis são tocadas e
tornam-se envolvidas pela vida, na qual a vida se dobra para abraçar seu contato
com a materialidade, na qual cada um troca alguns elementos ou partículas com
o outro para vir a ser mais e vir a ser outro.
É por essa razão que a arte não é frívola, uma indulgência ou luxo, um enfeite
do que é mais central: é a forma mais vital e direta de impacto sobre e através do
corpo, a geração de ondas vibratórias, ritmos, que atravessam o corpo e fazem
dele um elo com forças sobre as quais, de outra forma, não poderia perceber ou
agir. Isso explica a universalidade e ubiquidade cultural ou humana da arte: é o
modo de cultura mais direto de aprimoramento ou intensificação dos corpos,
modo cultural para elaboração de sensações e, portanto, a dívida mais intensa da
Caos. Cosmos, Território, Arquitetura
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cultura com as forças caóticas que caracteriza como natureza. Embora não exista
arte universal, não exista uma forma de arte, música ou pintura que apele por toda
parte da mesma maneira, também é verdade que não cultura sem suas
próprias artes, sem suas próprias formas de aprimoramento e intensificação
corporal.
A arte é a abertura do universo para o devir-outro, assim como a ciência é a
abertura do universo para a ação prática, para o devir-útil e a filosofia é a abertura
do universo para o devir-pensamento. A arte é a intensificação mais direta da
ressonância e dissonância entre os corpos e o cosmos, entre um meio ou ritmo e
outro. É o que afeta o corpo mais diretamente, o que intensifica e afeta mais
visceralmente. Através do plano de composição que projeta, a arte é a maneira
pela qual o universo intensifica mais diretamente a vida, enerva os órgãos, mobiliza
forças. É a passagem da casa para o universo, do território para a
desterritorialização, "do finito para o infinito" (Deleuze e Guattari, 1994, p. 180), do
corpo do ser vivo para o próprio universo. O que a filosofia pode oferecer à arte
não é uma teoria da arte, uma elaboração de seus conceitos silenciosos ou
subdesenvolvidos, mas o que a filosofia e a arte compartilham em comum – seus
enraizamentos no caos, suas capacidades de surfar as ondas de um universo
vibratório sem direção ou propósito, em suma, suas capacidades de ampliar o
universo, permitindo que seu potencial se realize de outra forma, emoldurado por
conceitos e afetos. Elas estão entre as formas mais vigorosas pelas quais a cultura
gera um pequeno espaço de caos dentro do caos, onde o caos pode ser elaborado,
sentido, pensado.
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Recebido em: 12/09/2025
Aprovado em: 14/10/2025
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