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Diálogos arquetípicos: as deusas como fonte
de inspiração para criações cênicas
Entrevista com Luciana Aires Mesquita
Concedida a Maria Brígida de Miranda | Revisora: Denize Gonzaga
Para citar este artigo:
MESQUITA, Luciana Aires. Diálogos arquetípicos: as deusas
como fonte de inspiração para criações cênicas.
[Entrevista concedida a Maria Brígida de Miranda. Revisora:
Denize Gonzaga].
Urdimento -
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v.2, n.55, ago. 2025.
DOI: 10.5965/1414573102552025e0503
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Diálogos arquetípicos: as deusas como fonte de inspiração para criações cênicas
Entrevista com Luciana Aires Mesquita concedida a Maria Brígida de Miranda | Revisora: Denize Gonzaga
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-24, ago. 2025
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Diálogos arquetípicos: as deusas como fonte de inspiração para criações cênicas1
Entrevista com Luciana Aires Mesquita2
Concedida a Maria Brígida de Miranda3 | Revisora: Denize Gonzaga
Resumo
Em agosto de 2024, a Dra. Luciana Aires Mesquita iniciou o projeto de pós-doutorado, intitulado
“Mitoludens entre Deusas e Sambaquis, como bolsista da FAPESC, sob a supervisão da Dra. Maria
Brígida de Miranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade do Estado de
Santa Catarina (PPGAC/UDESC). Ao longo de um ano, a parceria desdobrou-se em várias atividades
acadêmicas e artísticas, como espetáculos, palestras e produções lmicas disponibilizadas em
plataformas da web. Nesta entrevista realizada por Miranda, Mesquita refletiu sobre o campo da
psicologia arquetípica criada por James Hillman e sobre a experiência de criação cênica a partir do
estudo de deusas e deuses da mitologia grega.
Palavras-chave:
Mitologia. Arquétipos. Feminismo. Deidades. Criação cênica.
Archetypal dialogues: goddesses as a source of inspiration for stage creations
Abstract
In August 2024, Dr. Luciana Aires Mesquita began the postdoctoral project "Mitoludens between
Goddesses and Sambaquis," as a FAPESC Fellow, under the supervision of Dr. Maria Brígida de Miranda
in the Graduate Program in Performing Arts at the State University of Santa Catarina (PPGAC/UDESC).
Over the course of a year, the partnership resulted in several academic and artistic activities, such as
performances, lectures, and film productions made available on web platforms. In this interview with
Miranda, Mesquita reflected on the field of archetypal psychology created by James Hillman and the
experience of creating stage productions based on the study of goddesses and gods from Greek
mythology.
Keywords
: Mythology. Archetypes. Feminism. Deities. Stage creation.
Diálogos arquetípicos: diosas como fuente de inspiración para creaciones escénicas
Resumen
En agosto de 2024, la Dra. Luciana Aires Mesquita inició el proyecto posdoctoral Mitoludens entre
Diosas y Sambaquis”, como becaria de la FAPESC, bajo la supervisión de la Dra. Maria Brígida de Miranda,
en el Programa de Posgrado en Artes Escénicas de la Universidad Estatal de Santa Catarina
(PPGAC/UDESC). A lo largo de un año, la colaboración se tradujo en diversas actividades académicas y
artísticas, como performances, conferencias y producciones cinematográficas disponibles en
plataformas web. En esta entrevista con Miranda, Mesquita reflexionó sobre el campo de la psicología
arquetípica creado por James Hillman y la experiencia de crear producciones escénicas basadas en el
estudio de diosas y dioses de la mitología griega.
Palabras clave
: Mitología. Arquetipos. Feminismo. Deidades. Creación escénica.
1 Esta entrevista é uma produção conjunta do Projeto de Pesquisa “CURARTE - Práticas cênicas para o bem-viver: estudos
de gênero e feminismos nas artes da cena” (CNPq e UDESC), Processo: 407191/2023-2, aprovado na Chamada CNPq/MCTI
10/2023 - Faixa A - Grupos Emergentes; e do Projeto de pós-doutorado da Dra. Luciana Aires Mesquita, intitulado
“Mitoludens entre Deusas e Sambaquis”, agraciado com Bolsa da FAPESC (2024-2025). A coordenação da pesquisa
CURARTE e a supervisão do pós-doutorado da Dra. Mesquita são feitas pela Dra. Maria Brígida de Miranda, na Linha de
Pesquisa “Imagens Políticas” - Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade do Estado de Santa Catarina
(PPGAC/UDESC).
2 Pós-doutorado em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina
(PPGAC/UDESC), com Bolsa da FAPESC no período de 08/2024 a 08/2025. Doutorado em Artes da Cena pela Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP), com Bolsa da CAPES/PDSE Grécia. Mestrado em Estudos Mitológicos, com ênfase em
Psicologia Profunda pela Pacifica Graduate Institute (PGI), Califórnia, EUA, com Bolsa da OEA/OAS). Bacharelado em Artes
Cênicas pela Universidade de Brasília (UnB).
mitoludens@gmail.com http://lattes.cnpq.br/0259823397610928 https://orcid.org/0000-0003-0920-1784
3 Pós-doutorado em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(PPGARTES/UERJ). Doutorado em Teatro pela La Trobe University (LTU), Austrália. Mestrado em Master of Arts pela
University of Exeter (EU), Inglaterra. Graduação em Licenciatura em Educação Artística, Universidade de Brasília (UnB),
Brasil. Professora Titular do Departamento de Artes Cênicas e da Linha de Pesquisa Imagens Políticas no Programa de
Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGAC/UDESC);
maria.miranda@udesc.br http://lattes.cnpq.br/6580699080518678 https://orcid.org/0000-0002-0828-8585
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Apresentação
Maria Brígida de Miranda Luciana Aires Mesquita
Foto: Luís Vieira Miranda. Acervo Pessoal Foto: Richard Alexander. Acervo Pessoal
Conduzi a seguinte entrevista ao final do estágio pós-doutoral de 12 meses
realizado pela Dra. Luciana Aires Mesquita como bolsista da FAPESC no Programa
de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade do Estado de Santa Catarina
(PPGAC/UDESC). Tive o privilégio de supervisionar e acompanhar algumas das suas
inúmeras ações no Centro de Artes, Design e Moda (CEART/UDESC) e ver os
resultados de outras ações artísticas e de pesquisa tanto em Florianópolis como
em Laguna. O propósito desta entrevista é compartilhar um pouco do
conhecimento e das produções da artista e pesquisadora para além dos
documentos institucionais, como relatórios finais que acompanham os deveres de
bolsistas de pós-graduação.
Conheci Luciana quando éramos graduandas no Instituto de Artes da
Universidade de Brasília (UnB), onde eu fiz Licenciatura em Educação Artística com
Habilitação em Artes Cênicas e ela, o Bacharelado em Artes Cênicas. Desde então,
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nos últimos 30 anos, mantivemos alguma forma de contato por carta, e-mails e
breves cafés em alguma visita minha a Brasília. Pude acompanhar seu interesse e
busca por uma formação acadêmica e artística, o que lhe exigiu dedicação e
coragem de viajar por diferentes países na década de 1990, um período analógico
da comunicação e das fotografias. Aliás, me recordo de ver algumas de suas
fotografias em papel fotográfico como pistas de suas viagens de jovem artista-
pesquisadora. Numa das imagens, Luciana estava sentada ao lado do renomado
artista japonês de dança
Butoh,
Kazuo Ohno; em outra, ela estava vestida com um
quimono e era guiada por uma professora japonesa em passos de
Nihon Buyō
,
danças tradicionais do Japão.
A jornada de Luciana estava apenas começando; depois que concluiu a
graduação na UnB, logo em seguida buscou uma formação sólida em Psicologia
Arquetípica nos Estados Unidos da América, aprofundando seus conhecimentos
entre artes da cena e mitologias. Nesta entrevista, ela nos revela passagens e
descobertas deste caminho de estudo e investigação trilhado em diferentes partes
do mundo.
Entrevista
Maria Brígida de Miranda: Luciana, como contribuição ao PPGAC, nós
oferecemos juntas a disciplina “Seminário Temático I: Mitologia através das
lentes arquetípicas proposições para experiências cênicas,” com quatro
créditos, para os cursos de mestrado e doutorado em Artes Cênicas no primeiro
semestre de 2025. Foi a oportunidade de entrelaçarmos os estudos
arquetípicos de deidades da mitologia grega clássica a exercícios e práticas de
criação de dramaturgia e cena com uma perspectiva feminista. Depois de ter
vivenciado tudo isso, gostaria de saber como, para você, os estudos da
psicologia arquetípica dialogam com os estudos feministas.
Luciana Aires Mesquita
: A proposta da psicologia arquetípica é, em síntese, rever
os arquétipos da mitologia grega, que se apresentam em linguagem universal e
metafórica, para um modo de pensamento profundo sobre as grandes questões
nas quais estamos inseridas/os. Nesta abordagem, todos os arquétipos podem e
devem ser revistos. A ideia é que, nesta revisão, desatemos nós que nos
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aprisionam em modos culturais que não nos servem mais e caminhemos para
uma jornada mais fluida, com vistas ao pós-patriarcado. Essa premissa - de fazer
gentis reversões imaginando um mundo
pós-patriarcal
- é, a meu ver, um modo
e método de rever, relacionar, encarar, revolucionar e, por fim, “estar em alma” no
enfrentamento e nos diálogos com todo tipo de questão. Como estamos falando
de deusas e deuses, trata-se de um modo politeísta, pagão e não dogmático, o
que nos toda a liberdade para re-imaginarmos esses arquétipos, trazendo
novos olhares talvez mais amadurecidos, mais inclusivos, preservando a
diversidade e, principalmente, promovendo reflexão sobre valores esquecidos e
cultivando essa imaginação poética. As estórias mitológicas são complexas; não
podemos mudá-las, de outro modo, estaríamos contando outra estória, mas
podemos lançar novos olhares para elas, atualizando-as. Os padrões arquetípicos
são mesmo universais e a Grécia Antiga foi um berço que recebeu influências de
todos os países da Bacia do Mediterrâneo, desde o Egito e países que hoje
compõem a Síria, Iraque, Palestina e Turquia, até todos aqueles povos antigos do
leste da Ásia, com milênios de história. Todos foram muito criativos e valorizaram
as grandes virtudes da Natureza. Atualizá-los de modo também imaginal, com
alma - que tem sua morada no coração -, é um dos maiores desafios dessa
proposta arquetípica.
James Hillman é um pensador pós-junguiano central da psicologia
arquetípica, uma proposta criada em 1970.
Re-visioning Psychology
foi lançado em
1975, nos EUA, e traduzido aqui no Brasil somente em 2010. Hillman retoma
conceitos fundamentais de Jung, como “anima”, “arquétipos”, “alquimia” e os
libertam dos consultórios de psicanálise, fazendo-nos entender que a psicologia
arquetípica se conecta mais com o modo imaginal e com a cultura do que com a
clínica médica.
Quanto aos estudos de gênero, o autor tem o cuidado de não cair nas
categorizações de pares de opostos; de acordo com ele, a personalidade se
compõe com muitos outros traços além da origem sexual. Procura pelas
estruturas de consciência. Para Hillman, a alma é feminina, tanto nos homens
quanto nas mulheres. Preconceitos sociais, questões econômicas e violência
devem ser tratados, claro. No entanto, não se deixa confundir com as estruturas
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de consciência nem tampouco com os estereótipos do feminino ou masculino.
Além de ser um grande pensador, ele trabalha com os sonhos, com as imagens
que se apresentam no sonho, que são mais fenômenos do que categorias
organizadas pela psicologia social. Em suas aulas, repetia sempre:
fiquem com a
imagem
! A imagem é anterior à palavra e ao julgamento. De acordo com
Giambattista Vico, filósofo iluminista (1668-1744), a imaginação é a primeira
estrutura da psique; ela guarda uma linguagem metafórica, poética, luminosa, que
cria sentido, paixão e fábulas, uma linguagem da alma.
A psicologia arquetípica dialoga com várias áreas por estar re-imaginando o
mundo em seus vários desdobramentos e desafios atuais. O ecofeminismo é um
ramo afinado com a psicologia arquetípica e, por consequência, com a
ecopsicologia, por entender que não como excluir a ecologia de absolutamente
nada. Somos Natureza. Quando sonhamos com o mar, somos o mar, somos a
pedra, somos a flor, o cavalo, a baleia, o vento, enfim. Ao se pensar as deusas e os
deuses em suas múltiplas funções, saímos da “monocultura da mente”, como nos
coloca a física, ativista ambiental e ecofeminista indiana Vandana Shiva. Saímos
do monoteísmo para um diálogo profundo de inclusão e diversidade que nos
acolhe com todas as diferenças que somos. Dentre seus vários compromissos,
Shiva também é professora no Pacifica Graduate Institute, escola de pós-
graduação pós-junguiana na Califórnia. Por sua vez, Lori Pye, presidenta da Viridis
Graduate Institute, é uma grande personalidade que revoluciona o modo de pensar
reconfigurando narrativas prejudiciais que sustentam comportamentos e práticas
destrutivas para o meio ambiente e para os outros. O prefácio do livro editado por
Theodore Roszak,
Ecopsychology: restoring the heart, healing the mind
(1995), é
escrito por James Hillman e Lester Brown.
Ao longo do curso no PPGAC, você apresentou algumas autoras cujos aportes
teóricos sobre mitos femininos pareciam trazer um olhar feminista.
Sim, há várias pensadoras na psicologia arquetípica que são fundamentais para o
meu entender feminista, destacando-se Christine Downing, Ginette Paris e Marion
Woodman. As três foram minhas professoras no Pacifica Graduate Institute e me
ajudaram muito nas reflexões sobre o patriarcado e no imaginar um mundo
pós-
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patriarcal
. Downing foi a primeira mulher presidenta da Academia Americana de
Religião e autora de vários livros que advogam o feminino, infelizmente nenhum
traduzido para o português. Entre eles, destacam-se
The Goddess: Mythological
Images of the Feminine
(1981);
Journey through Menopause: A Personal Rite of
Passage
(1987);
Myths and Mysteries of Same-Sex Love
(1989);
Women’s Mysteries:
Toward a Poetics of Gender
(1992). Além destes, o livro
Gods in Our Midst
(1993) é
bem especial porque traz seu olhar enquanto mulher sobre os deuses; o subtítulo
é
Mythological Images of the Masculine: A Woman’s View
. É também bem
importante a edição de
The Long Journey Home: Re-visioning the Myth of Demeter
and Persephone for Our Time
(2001). Neste livro, a autora reúne pelo menos dez
pensadoras para discutirem as várias faces e interpretações que este mito nos
apresenta. Ginette Paris tem uma obra em português, e devo dizer que amo
seu olhar sobre as deusas do panteão grego Héstia, Afrodite e Ártemis em
Meditações Pagãs
(1991). Seus outros livros, inclusive a obra
Pagan Grace
(1990),
que faz uma leitura arquetípica de Dioniso e Hermes e da titânida Mnemósine, não
foram traduzidos para o português. Paris tem um olhar bem afinado e crítico, o
que nos faz ver para além de estereótipos, alcançando raízes profundas dessas
deusas e deuses no contexto cultural atual. Seu livro,
O Sacramento do Aborto
(1992), traduzido para o português em 2000, foi adotado em todas as clínicas
americanas de aborto, com o propósito de oferecer novas visões às mulheres,
buscando libertá-las de dogmas e da noção de pecado, presentes na psique com
o sentimento de culpa. Com o estudo da deusa Ártemis, Paris demonstra que o
aborto também é um ato sagrado. a autora Marion Woodman, que esteve no
Brasil oferecendo workshops com o método por ela desenvolvido e intitulado
Body
& Soul
, propõe-se a trabalhar com a imaginação ativa para trazer o inconsciente
para a consciência, conectando-se ao sagrado feminino. Ela faleceu em 2018, mas
suas parceiras Ann Skinner e Mary Hamilton mantêm a Marion Woodman
Foundation, além de um grupo de mulheres bem engajadas que oferecem
workshops no mundo todo. No Brasil, o projeto dessa fundação é coordenado por
Márcia Bittencourt e tem como colaboradoras Maria Zelia de Alvarenga, Laís Dias,
Andrea Capezzuto e Patrícia Pernambuco.
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Figura 1: Christine Downing ministrando palestra no curso “Myth & Dream”, Grécia, 2004.
Foto: Luciana Aires Mesquita, 2004. Acervo pessoal.
Figuras como Deméter e Perséfone na tradição mítica grega, sua filha e do
grande deus Zeus são duas deusas que parecem ser abertas para uma
discussão ecofeminista e você apontou possibilidades.
Não elas, mas todas as deusas e deuses estão abertos para uma revisão
arquetípica e para um diálogo ecofeminista, uma vez que todas/os são
personificações da Grande Natureza, filhas/os de Gaia. Talvez Deméter e Perséfone
sejam mais discutidas entre feministas e ecofeministas, por pertencerem à
tradição das deusas Mãe-Terra, trazendo o alimento e a fertilidade, sustentando
os ciclos da vida. Seu foco está na Terra, e não no Olimpo, morada dos deuses.
Perséfone é raptada para o mundo dos mortos, o que acomete Deméter de uma
depressão. Diante disso, ela cria sua própria alquimia, através da dor, do humor e
da raiva, negocia com Zeus para que sua filha volte ao mundo dos vivos, fazendo-
nos refletir também sobre morte e renascimento. Toda a estória é bem complexa,
com diferentes pontos de vista. As feministas mais radicais consideram a
participação de Hades e Zeus neste mito como intrusões do masculino em um
mundo intrinsicamente feminino. Análises da autora Patricia Berry (escritos entre
1972-1982) enfocam a depressão vivida por Deméter. Outras autoras trazem os
abusos sofridos por Perséfone, e as ecofeministas, incluo Downing, enfatizam o
ciclo da vida com as estações do ano e as perspectivas de Gaia e Réia com a
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fertilidade e renovação da Terra. O que faz uma boa estória são essas
complexidades e seus diferentes olhares para nos fazer refletir e nos colocar
dentro da estória também como participantes ativas. As estórias mitológicas não
contam tudo; deixam-nos espaços para nos incluirmos e nos conectarmos com
questões maiores de nossa casa, o planeta Terra, o sagrado feminino, os ciclos da
vida. Assim, essas estórias se mantêm atuais e trazem engajamento.
Figura 2 - Placa votiva de terracota representando elementos dos Mistérios de Elêusis,
descoberta no Sítio Arqueológico de Elêusis, meados séc. IV a. C. Fonte: Museu Arqueológico
Nacional de Atenas. Foto: Luciana Aires Mesquita, 2019.
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Quais são as possibilidades e os limites para tais aproximações?
Penso que o grande presente que o olhar da psicologia arquetípica nos oferece é
a possibilidade de sairmos dos estereótipos para alcançarmos a essência ou
aspectos mais profundos que cada arquétipo nos apresenta com suas metáforas.
Os arquétipos, além de conversar com nossa intimidade, trazem um olhar amplo
para questões globais. Ficar apenas no estereótipo é um atalho fácil, um caminho
percorrido e extenuado. É mais do mesmo que não queremos. Afrodite é poluída
de estereótipos, passando a ser nome de motéis e
sex shops
, é retratada com
todo tipo de banalidade; Héstia pode ficar confinada para sempre em uma cozinha;
Atena, deusa da sabedoria, talvez nunca reconheça que tem uma mãe; Ártemis
passa a ser inapropriada e imatura nas batalhas, em vez de protetora das águas
doces e de seu reino sagrado de animais com ancestralidades que a conectam
com a Grande Deusa Natureza do Egeu na Idade do Bronze. O que fizemos com
elas? Ou o que o patriarcado fez com essas deusas que eram sagradas? O desafio
é conseguir ver através dos jargões e trazer dimensões que nos conectam conosco
de forma mais ampla e libertadora, conectando-se com o que a psicologia
arquetípica chama de
anima mundi
, a alma do mundo; nessa perspectiva o mundo
tem uma alma. Conseguir fazer esses entrecruzamentos e trazer essas dimensões
é o que me encanta.
Mas você me perguntou sobre os limites. Não podemos mudar o padrão que cada
arquétipo nos traz. Por exemplo, Perséfone foi raptada. Não posso mudar isso,
senão estaria contando outra estória. Mas posso imaginar como foi este rapto para
Perséfone; esta parte do mito não é contada. O que aconteceu no mundo dos
mortos entre Hades e Perséfone? O que faz Perséfone ser a rainha da Morada dos
Mortos, por exemplo? O que Perséfone tem a dizer sobre isso? Partes das estórias
que não são contadas podem ser imaginadas. Abre-se, portanto, espaço para
incluir o interlocutor, o outro, as dores e delícias do mundo, enfim, como você
quiser imaginar com a profundidade que conseguir abarcar. Como estamos
falando de deusas e deuses, de cosmovisões, as perspectivas são infinitas, e isso
vai te pedir sensibilidade, profundidade e formação sócio-cultural-política bem
afinadas e amplas para compreender onde estão as amarras que nos prendem e
cegam. Em contrapartida, para perceber que tudo é sagrado, experiencio que o
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conectar-se com a Natureza, com nossos sentidos corpo, respiração, silêncio,
intuição... e muito depois com a razão, conduzem a profunda reverência ao
sagrado. Por isso o trabalho com o corpo e com a voz, em texturas sonoras, me
encanta; são anteriores à palavra, são instintivos. O trabalho com a imagem nesse
sentido é engajador.
Trabalhamos juntas neste entrelaçamento entre deidades femininas da
mitologia grega na disciplina “Introdução ao Teatro Feminista”, em 2/2024, no
PPGAC/UDESC, quando você conduziu improvisações sobre vários mitos e
estados alquímicos. Esse material gerou uma performance ao final do curso e
posteriormente você continuou o processo com Fabrício Theiss e Kauana
Machado, culminando no espetáculo de teatro-dança
Alquimias de Perséfone
.
Naquele momento, você também conduziu os exercícios cênicos. Quais foram
as bases cênicas para tais exercícios?
Obrigada pela pergunta. Estou gostando muito de trabalhar
Alquimias de
Perséfone
. Acho que a primeira base é cultivar o engajamento com a estória
mitológica em si, colocando-se no lugar do outro. Trago interrogações que não
necessariamente têm uma resposta imediata, mas que geram reflexões mais
profundas e imaginários diversos. Imediatamente, dançamos ou cantamos essas
interrogações através da improvisação, com boas músicas e pausas para o silêncio,
desenhos e anotações. Visualizamos, ouvimos e desenhamos os sonhos – Jung e
Nise da Silveira, presentes! Venho com a proposta de laboratórios, imersões
profundas e alquímicas. Deixar o corpo soltar as contradições, se alegrar com a
própria dança, suar - não de cansaço, mas de êxtase por estar dançando e fazer
transmutações. O “porquê” não interessa muito, é maior do que podemos
responder, mas perguntas como “o que”, “onde”, “como”, “quando”, enquanto estão
improvisando, trazem mais detalhamento e foco: “o que você/personagem está
fazendo?”; “onde você está?”; “quando isso acontece - dia ou noite, luz, chuva, sol,
lua?”; “em qual atmosfera?” - ampliam a imagem na qual os atores-dançarinos
estão inseridos, e isso traz engajamento com a imaginação, que está em
comunicação direta com o corpo em movimento e vice-versa, numa via de mão
dupla. Esse engajamento com o imaginário é muito criativo e focado; potencializa
e já direciona a ação da/o intérprete. E, na medida em que emergem movimentos
espontâneos e recorrentes, entro com os direcionamentos e as técnicas corporais.
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A técnica corporal vem depois ou concomitantemente com a jornada criativa -
não antes. Preciso conhecer os limites daqueles corpos para expandi-los.
Repetimos determinados movimentos, até que se sintam seguros com seus
corpos em desdobramentos e até que a mágica aconteça. Em geral, fico muito
curiosa para ver como aquela estória alimenta a imaginação, produz movimentos
e linguagens diversas. Cada estória mitológica é uma fonte muito rica que pode
desdobrar-se na mitopoética que desejar: seja no teatro, dança, pintura, escultura,
música, desenho animado, história em quadrinhos, fotografia, poesia, literatura,
cinema, enfim. Kauana Machado e Fabrício Theiss fizeram um excelente trabalho
de viagem de ida e volta ao reino subterrâneo, através do teatro-dança.
Figura 3: Fabrício Theiss e Kauana Machado,
Alquimias de Perséfone
, maio 2025.
Crédito: Anna Luísa Pacheco, maio 2025. Acervo pessoal.
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É preciso ter bases firmes, seja em movimentos de devaneios, extáticos, lentos,
velozes, suaves ou bruscos. As técnicas são várias: aprendizados adquiridos no
Japão (
Butoh, Buyo, Noh
), na Índia (
Kathakali
), na Indonésia (
Baris
); na graduação
com as técnicas do “teatro antropológico” do
Odin Teatret
; nas residências
artísticas com Enrique Pardo e Linda Wise no Chateâu de Malérargues, no sul da
França, oferecidas pelo
Panthéâtre
; além de workshops que também me são
referenciais, como os de Maurice Durozier, Paul Heritage, Meredith Monk,
5Rhythms
de Gabrielle Roth,
Do-Ho
de Toshi Tanaka e Ciça Ohno,
Vox Mundi
Yoga da Voz, de Silvia Nakkach, com o canto hindu e a caixinha de música,
Shruti
Box
, que oferece um excelente suporte à voz; cursos de sonhos com Corintha
Maciel, Moacir Rodrigues, Stephen Aizenstat e diversos encontros junguianos. Meu
encontro com a
Pedra Filosofal,
esculpida por Jung em seu jardim na casa de
Bollingen, foi marcante. Preciso sonhar antes de realizar qualquer coisa. Minha
prática pessoal diária de treinamento psicofísico é
Iyengar Yoga
e meditação, o que
também influencia meus trabalhos.
Alquimias de Perséfone
vai iniciar agora
experimentos vocais, com algumas inspirações de Yoga da Voz e de Meredith
Monk, que tem a voz como uma linguagem em si mesma, sem ser um texto
propriamente escrito. Penso que modos evocativos, assim como os mitos, o corpo
que dança e a voz, levam-nos a descobrir modos instintivos, intuitivos, pré-lógicos
e são muito criativos. Na verdade, todas essas técnicas vão se ajustando conforme
o momento e as necessidades, mas sempre parto da improvisação com o corpo.
Começo as aulas com meditação, trazendo o silêncio e a sacralidade para o
espaço.
Alquimias de Perséfone
foi dividida em cinco atos. Assim foi possível
trabalhar por etapas e em profundidade, relacionando-as aos estudos alquímicos
de Hillman, que traz um trabalho primoroso com as cores alquímicas. Gabriela Luz
Rocco, da licenciatura em Artes Cênicas, com apoio do LUZ laboratório cênico, fez
a iluminação inspirada também nas cores alquímicas. Ou seja, meu trabalho tem
alguma afinação com os escritos de Artaud em Teatro Alquímico e propostas
laboratoriais de Grotowski e, claro, com Jung e pesquisadores arquetípicos. Em se
tratando do mito de Deméter, a pesquisa advém do doutorado que realizei no
PPGADC da UNICAMP. Na época, obtive uma Bolsa CAPES/PDSE e realizei a
pesquisa de campo e bibliográfica na Grécia e no Egito, onde tive a oportunidade
de estudar os mistérios eleusinos, o sítio arqueológico de Elêusis onde eram
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realizados os Grandes Mistérios de Deméter e as Tumbas Tebanas de
Deir el-
Medina
do Antigo Egito (Idade do Bronze).
Figura 4 - Luciana Aires Mesquita no
Telesterion
, Sítio Arqueológico de Elêusis, Elefsina,
Grécia. Crédito: Christina Mitsopoulou, 2019. Acervo pessoal.
Figura 5: Luciana Aires Mesquita em Tumba de
Anherkha
TT 359, 20º. Dinastia,
Deir el-
Medina
, Antigo Egito. Crédito: Ahmed Mohamed, 2019. Acervo pessoal.
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O que você acha mais desafiador no seu trabalho?
Aqui vale uma reflexão sobre o contexto cultural brasileiro atual e que me alegra
muito: estamos em um processo fértil e muito lindo de valorização da cultura
originária do país com os povos indígenas. Os autores indígenas fazem parte de
meus estudos. Busco diálogos entre mitologias todo o tempo sem compará-las;
evidencio, antes, a riqueza dos temas.
Figura 6 - Ngreimoron Kayapó, Luciana Aires Mesquita e Pãnhkarã Kayapó. Crédito: Izaltino
Guimarães, 2007. Acervo pessoal.
A filha da chuva na mitologia Kayapó, por exemplo, foi raptada e traz a abundância
dos alimentos. Nos mitos
Kura-Bakairi
, os alimentos são herança dos
antepassados. Em contrapartida, as tristes e inaceitáveis cenas de crianças com
fome desesperadas por farinha na Palestina remontam tragicamente ao mito de
Deméter, a deusa dos pães. Este mito pode muito bem conversar com todas essas
facetas e tragicidades, uma vez que ela, a mãe dolorosa, cessa de conceder
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alimentos à humanidade e passa por várias transmutações de humor até
conseguir novamente resgatar sua fertilidade e doar alimentos. Ao mesmo tempo,
dançavam no inverno, celebravam a primavera, faziam chover, saudavam o sol e
ritualizavam os primeiros frutos. Encontro muita riqueza nesses diálogos
multiculturais, especialmente se não perdem a profundidade que cada cultura
apresenta. Estamos assistindo à morte da “civilização ocidental”, tragicamente, e
vivemos tempos muito obscuros, de total barbárie. Ao mesmo tempo, vivemos
uma renascença de culturas ancestrais na América Latina, desde a descoberta de
sítios arqueológicos na Amazônia até vozes indígenas fortalecidas. Há uma beleza
em ver pessoas no mundo inteiro se unindo contra barbáries, ouvir as vozes de
lideranças indígenas, de mulheres e afrodescendentes se fortalecendo.
A dificuldade, ao meu ver, é o preconceito. O preconceito com os povos
originários no Brasil é histórico. E também a tendência em destruir (e não
desconstruir no sentido de Derrida), tudo que aparece como rótulo “cultura
ocidental”, mesmo sendo referência às mitologias pagãs que carregam tantas
memórias da humanidade, anteriores à tradição judaico-cristã. Enfrento muito
preconceito em aulas e cursos que ofereço de mitologia, alquimia e psicologia
arquetípica. Vou tentando esclarecer que, em se tratando de Grécia Antiga, por
exemplo, nos esquecemos que o mundo politeísta era bem globalizado com todo
tipo de trocas culturais entre a Anatólia, Mesopotâmia, o Levante, Chipre, norte da
África, e que essas civilizações construíram suas tradições religiosas desde pelo
menos a Idade do Bronze. Todos esses povos e culturas tiveram suas tradições e
ritos proibidos sob pena de morte ao final do séc. IV d.C. pelo imperador romano
Teodósio I. Todos os templos gregos e de nações vizinhas tiveram seus portões
encerrados, seus templos destruídos a marretadas e queimados. A Grécia passou
a ser província de Roma. Seria mais correto dizer “cultura romana”, que se separou
da cultura oriental e impôs a religião judaico-cristã como a única permitida. Preciso
frisar isso em todas as minhas aulas. A Grécia hoje também está repensando e se
reestruturando decolonialmente. Nesse sentido, preciso agradecer ao palestino-
estadunidense Edward Said (1935-2023), professor do campo dos estudos
literários e um dos fundadores dos estudos pós-coloniais, por
evidenciar/denunciar a visão colonizadora “ocidental” do mundo oriental. Ainda
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mais próximo, Boaventura de Sousa Santos, meus imensos agradecimentos. Estou
atenta a tudo isso. De qualquer modo, não podemos nos tornar ufanistas; todo
povo tem suas mitologias e todas guardam qualidades imensuráveis. Fazer
alianças míticas é uma proposta do reconhecido autor, pensador e ativista indígena
Ailton Krenak, de quem gosto muito. A linguagem universal das mitologias guarda
qualidades que, apesar de estarem presentes no nosso cotidiano, se tornaram
invisíveis e esquecidas, se não apagadas — quase não sabemos sobre as deusas-
mãe Hator, Inanna, Ishtar, Shapesh, Asherah, Asasara, que alimentaram essas
culturas antigas. O fundamentalismo continua destruindo a marretadas e bombas
qualquer referência ao mundo pagão. Roberto Gambini nos adverte que tampouco
sabemos sobre nossa “mãe indígena”, totalmente ignorada. Estamos, finalmente,
através das perpétuas lutas dos povos indígenas, assumindo e valorizando a raiz
ancestral indígena brasileira.
Em tempos de crise, voltar aos saberes antigos é um oásis! Nesse aspecto,
faz-se urgente retomarmos valores primordiais, de
todas
as culturas. E ainda,
todos os arquétipos trazem suas sombras, não são pensados idealmente, o que é
fascinante, porque nos inclui com nossos aspectos menos dignos; também podem
vir carregados de clausuras que perduram ainda hoje ou são manipulados de
acordo com as amarras políticas de uma dada época. Por isso devem ser revistos.
A mitologia também nos ensina a sair da pseudoinocência. Sofremos um processo
brutal de doutrinação religiosa, de ditaduras, de guerras, de modos patriarcais.
Rever e atualizar os arquétipos é trabalho árduo. James Hillman diz que podemos
nos tornar budistas, zen-budistas, vedantas, etc., que, ainda assim, não
conseguimos nos livrar do peso do pecado, tamanha foi a doutrinação judaico-
cristã que sofremos. Faz-se necessário rever os modos fundantes de toda cultura;
do contrário, não trazemos consciência. E sem consciência caímos em ciclos
viciosos, violentos, barbáricos, asfixiantes, claustrofóbicos, genocidas. O grande
propósito dos estudos mitológicos é trazer consciência.
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Figura 7 - Mulheres egípcias fazendo pães, Gourna, Egito.
Crédito: Luciana Aires Mesquita, 2019. Acervo pessoal.
Luciana Aires Mesquita
:
Mas para você, Brígida, especialmente feminista, como
o olhar da psicologia arquetípica te toca?
Maria Brígida de Miranda
: Eu aprendi muito ouvindo suas palestras sobre esse
campo de estudos e descobrindo mais sobre sua trajetória dedicada aos estudos
teóricos e ao enriquecimento de ações cênicas por meio do acesso ao imaginário
mítico. É estimulante observar como você desenvolve projetos nos mais variados
formatos, desde filmes, performances, cursos e residências artísticas, propondo
alianças entre áreas de conhecimento e entre culturas diversas.
Nos últimos anos, tenho me interessado em saber mais sobre o ecofeminismo,
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por meio de obras e entrevistas de ativistas e pesquisadoras como a citada
Vandana Shiva e a pesquisadora brasileira e religiosa Ivone Gebara. Em publicação
recente, intitulada Esperança Feminista (2022), uma parceria com outra
importante feminista brasileira, Debora Diniz, elas explicam como o projeto do livro
surgiu durante a pandemia de Covid-19. Mesmo sem se conhecerem, buscaram
entre elas apoio e esperança, a despeito das diferenças de formação uma
fundada na religião católica e outra no espaço laico da academia. Tudo isso para
lutar contra o desamparo daquele momento de luto e de uma orquestrada
necropolítica do regime de extrema-direita que ocupou o governo executivo
federal de 2018 a 2022, e que infelizmente continua ocupando a maior parte das
cadeiras do Congresso Nacional. Em encontros online às sextas-feiras, as autoras
e os participantes das transmissões remotas conjugaram 12 verbos feministas,
quais sejam: “ouvir”, “imaginar”, “aproximar”, “acalentar”, “lembrar”, “recriar”,
“celebrar”, “compartilhar”, “perguntar”, “falar”, “desobedecer”. De acordo com elas,
Era preciso estranhar a conjugação patriarcal naturalizada em nós. O
normal das regras jamais foi justo com as mulheres e outras gentes
oprimidas pelas regras do corpo, da raça, da sexualidade ou do gênero. O
normal tem nome e predicados é o patriarcado racista e suas tramas
perversas que discriminam corpos. [...] Tristemente, é um regime de
poder, hierarquizante e excludente, que, com diferentes intensidades,
todos nós reproduzimos (Gebara; Diniz, 2022, p. 08).
Eu acredito que, na disciplina que ministramos no PPGAC, exercitamos vários
desses verbos que Gebara e Diniz discutem em sua obra. E penso que, ao
estudarmos os mitos com enfoque nas deusas, nos deslocamos de um arcabouço
judaico-cristão onde a figura da deidade feminina foi destituída e destruída. Isso
se faz importante porque o imaginário sobre tudo que é considerado e construído
como feminino foi paulatinamente relegado a lugares subalternos, subservientes
e, nos processos coloniais, orquestrado por países do continente europeu
destinados a ser explorados. Considero que lembrar que existiram culturas onde
as deusas tinham seus lugares e poderes em uma visão politeísta seja o primeiro
passo para instaurar um imaginário diferente nas artes da cena. Recordo-me de
ver o entusiasmo do nosso pequeno grupo de discentes de pós-graduação à
medida que a cada aula você descrevia a estrutura arquetípica de algumas das
deusas na disciplina “Seminário Temático I: Mitologia através das lentes
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arquetípicas proposições para experiências cênicas”. O mito das deusas Deméter
e Perséfone parece ter tocado profundamente todas as participantes. Tanto, que
sobre elas duas das criações cênicas se debruçaram. Foi o que nós chamamos de
sementes de performances e espetáculos. A doutoranda Patrícia Creti começou a
germinar um texto cênico que dialoga com a realidade contemporânea e que
problematiza a falta de contato com a terra; a musicista Natacha Kamila iniciou
um processo de criação cênica sobre a relação de mãe e filha ancorada no mito
de Deméter e Perséfone; a doutoranda Lorena Lopes criou um solo cômico
inspirado no mito de Afrodite. Aliás, foi curioso ver como o solo está se
transformando em um espetáculo de palhaçaria feminista com a participação da
mestranda e palhaça profissional Bia Alvarez e interessante observar como cada
uma dessas mulheres pesquisadoras ouviram suas palestras, imaginaram e
recriaram as figuras das deusas a partir de suas experiências pessoais. Nos últimos
dias de aula, nos dedicamos um pouco mais a experiências cênicas, e me parece
que houve tanto um compartilhamento de experiências como uma celebração de
estarmos juntas nesse processo que é ao mesmo tempo pesquisa acadêmica,
experiência no campo da criação cênica e partilha de experiências pessoais.
Maria Brígida de Miranda:
Para encerrar, eu gostaria de perguntar como foi
produzir o curta-metragem
Sonho Sambaqui
. Você discorre em suas aulas
sobre a importância dos sonhos e é interessante ver a sua busca por pesquisas
no campo da arqueologia sobre os sambaquis da região de Santa Catarina.
Como esse mundo dos mortos, dos povos antigos alimenta seus sonhos?
Luciana Aires Mesquita:
A arqueologia me fascina. Vejo os arqueólogos como
mineradores de beleza e memória que tecem história com arte. São áreas de
estudo que muitas vezes não se comunicam bem. A arqueologia tende a não
reconhecer os estudos arquetípicos, por não se basear em fatos, mas no imaginal.
E a psicologia arquetípica também tende a não reconhecer a arqueologia, devido
ao seu cientificismo que descarta o imaginal. Eu gosto de fazer as duas áreas se
comunicarem. Para mim, é enriquecedor trazer os dados históricos para o mundo
imaginal que objetiva, traz foco e torna as questões ainda mais complexas. Gaston
Bachelard (1988) usou o termo “imaginação objetiva” ao poetizar sobre o devaneio.
Como estamos em busca de nossas raízes brasileiras e como estou em Santa
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Catarina, os sambaquis são a origem mais antiga daqui, com segurança, pelo
menos 4.550 a.C. Vejo muita poesia em corpos enterrados com conchas. Que
delicadeza! Rituais com banquetes eram oferecidos aos mortos, com incensos e
tantos cuidados. São nossos antepassados, os cuidados e carinhos aos quais a
humanidade era atenta. As estruturas sambaquianas foram construídas
intencionalmente e a arqueologia encontrou presença de manifestações
ritualísticas com alimentos, sementes e incensos aos mortos, além de belíssimos
zoólitos eram artistas! Rituais aos mortos com alimentos são realizados por
povos de tradição aqui, no México, Equador, Guatemala, Gana, Índia, Indonésia,
China, Japão... tantos lugares valorizam suas raízes ancestrais e sacralizam a vida
pós-morte. Que metáfora potente é a semente que atravessa milênios de história
assim, quando enterrada, renasce trazendo alimento. Na verdade, aprendi em
uma visita ao MST que não são covas que abrimos para as sementes, mas berços!
Não é um milagre que enterramos uma semente e nasce uma laranja, uma
melancia, um abacate? É a celebração da vida. Depois, nós todas/os devolvemos
nossos corpos à terra.
Em
Sonho Sambaqui
, imaginei uma mulher sambaquiana que passeia por essas
terras ancestrais. Quis dar ênfase à paisagem poética por onde andaram os
antepassados da humanidade, como em um sonho. O povo antigo sabia muito
bem onde enterrar seus mortos, construir seus templos, altares e oferecer seus
ritos; eram profundamente conectados com a Natureza. São paisagens poéticas
belíssimas e que, de algum modo, não sofreram grandes transformações. Para
mim, são espaços sagrados referenciais para a humanidade que devem ser
valorizados e preservados. Fazer deles fábrica de cal, pasto para gado e pista de
motocross é um escândalo. Revelar a beleza e delicadeza desses espaços com
pouquíssima interferência da atriz, mas com a visão de como as imagens se
revelam em um sonho, foi minha intenção e, assim, com a expertise do cineasta
e montador Armando Bulcão, conseguimos captar e registrar o sonho de uma
mulher sambaquiana! Sonhos se esvaem como borboletas... Foi uma ousadia
nossa. Estamos nos candidatando a festivais internacionais de curta-metragem. A
captação das imagens foi feita com câmera 360º. Outro presente foi a participação
de Matheus Werner, da licenciatura em Artes Cênicas na UDESC, e de Liege Rosa,
bióloga, que nos guiaram na região de Laguna/SC. Matheus foi um iniciado não
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na arte da gravação, mas também no aprofundamento do reconhecimento das
origens ancestrais. Nossos agradecimentos! Agradecemos também ao
PPGAC/UDESC e à FAPESC. Foi um ano intenso e frutífero.
Figura 8 - Cineasta Armando Bulcão e Matheus Werner durante filmagem de
Sonho
Sambaqui
no Sítio Arqueológico de Garopaba do Sul/SC, 2025.
Crédito: Luciana Aires Mesquita, 2025.
Figura 9 - Imagem da atriz Luciana Aires Mesquita no filme
Sonho Sambaqui
, 2025.
Crédito: fotograma do curta-metragem Sonho Sambaqui, 2025
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
PPGAC
Centro de Arte, Design e ModaCEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br