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Encarnar é reparar: arriando metodologias
contracoloniais desde o currículo superior em dança
Rita de Cássia Souza da Rosa
Para citar este artigo:
ROSA, Rita de Cássia Souza da. Encarnar é reparar: arriando
metodologias contracoloniais desde o currículo superior em
dança.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v.3, n.56, dez. 2025.
DOI: 10.5965/1414573103562025e0118
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Rita de Cássia Souza da Rosa
Florianópolis, v.3, n.56, p.1-22, dez. 2025
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Encarnar é reparar1: arriando metodologias contracoloniais desde o currículo superior em
dança2
Rita de Cássia Souza da Rosa3
Resumo
Este artigo apresenta metodologias decoloniais para criação em dança e
performance, centradas nas urgências de corpos racializados desde o ensino
superior. Frente à marginalização de epistemologias negras nos currículos, propõe
três eixos prático-teóricos Corpo Peça, Utopias de Si e Corpo Báskula
construídos na experiência da autora como artista-docente negra e em diálogo com
pensadores como Nêgo Bispo, Inaicyra Falcão, Leda Maria Martins, Audre Lorde e
Patrícia Hill Collins.
Palavras-chave
: Artes cênicas. Educação decolonial. Relações étnico-raciais.
Poéticas da criação.
To embody is to repair: lowering countercolonial methodologies from the higher education
curriculum in dance
Abstract
This article presents decolonial methodologies for creation in dance and
performance, centered on the urgent needs of racialized bodies from a higher
education perspective. In response to the marginalization of Black epistemologies in
curricula, it proposes three practical-theoretical axesCorpo Peça, Utopias de Si,
and Corpo Báskuladeveloped from the author's experience as a Black artist-
teacher and in dialogue with thinkers such as Nêgo Bispo, Inaicyra Falcão, Leda Maria
Martins, Audre Lorde, and Patricia Hill Collins.
Keywords:
Performing arts. Decolonial Education. Ethnic-racial relations. Poetics of
creation.
Encarnar es reparar: rebajando las metodologías contracoloniales del currículo de
educación superior en danza
Resumen
La reciente traducción del libro
Queer Ancient Ways, a decolonial exploration
de
Zairong Xiang nos activó prácticas docentes y curatoriales basadas en lo que él
mismo denomina cosmopolitismo. Reuniendo una compleja diversidad cultural
desde fuentes diversas; lo que nos posibilitó detectar la traducción como dispositivo
colonial de mundos y cuerpos, un síntoma persistente del extractivismo de
subjetividades promovido por las diversas formas de colonizar y encarnar las
relaciones de poder.
Palabras clave
: Artes escénicas. Educación decolonial. Relaciones étnico-raciales.
Poética de la creación.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Isabelle Maria Pattussi Moises. Graduação
em Letras pela Universidade do Vale do Taquari (Univates). isabelle.moises@universo.univates.br
2 Pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
3 Doutoranda, bolsista Capes, e Mestrado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Graduação em Dança pela UFRGS. fluxcontinue@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/7517841084686971 https://orcid.org/0000-0003-0744-9030
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Ebós para pertencer: arriando metodologias decoloniais para
criação em dança e performance
Ensinar, no campo das artes cênicas, não é apenas transmitir técnicas ou
repertórios estabelecidos, mas sobretudo arriar na encruzilhada gesto que
convoca a ancestralidade, a coletividade e o sagrado como caminhos de
reinvenção pedagógica, abrindo possibilidades de perceber o potencial das
metodologias negras nas poéticas da criação como forma de reparação histórica.
No universo das tradições afro-brasileiras, o
ebó
carrega o sentido de oferenda, de
abertura de caminhos, de reorganização das forças que atravessam a vida. Assim,
pensar a docência em dança e performance sob uma perspectiva decolonial é
compreender que ensinar também é oferecer ebós para pertencer, isto é, criar
condições para que corpos historicamente subalternizados se reconheçam como
produtores legítimos de conhecimento e de poética.
Ao propor o deslocamento da docência de um lugar exclusivamente técnico
para o território ritualístico da encruzilhada, abrem-se brechas epistemológicas. A
encruzilhada, como lembra Exu em sua potência filosófica, não é um espaço de
indecisão, mas de multiplicidade de caminhos. No ensino de artes cênicas, esse
princípio se materializa, neste artigo, em práticas que descolonizam o saber/fazer,
revisitando as matrizes de dança e performance não como apêndices do cânone,
mas como fundamento para a criação. Tal perspectiva exige o enfrentamento e
esfacelamento do carrego colonial (Rufino, 2019), que impôs ao corpo negro
séculos de controle, silenciamento e subalternização no contexto brasileiro.
Ao trazer a questão: como pensarmos práticas em dança e performance
protagonizadas a partir da docência negra, conduzidas por artistas/professores
negros(as), para uma diversidade de corpos que compõem a massa social? Coloco
em evidência a urgência de se constituírem metodologias próprias, gestadas na
vivência de quem sofre a opressão racial na pele e, portanto, mobiliza uma
pedagogia do corpo atravessada por memória, dor, resistência e invenção.
O ensino em artes cênicas deve ser entendido como um espaço de
cruzamento de saberes, onde a descolonização não é apenas um adendo, mas um
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compromisso com a reparação histórica e epistemológica. Ensinar é, nesse
sentido, arriar no cruzo de Exu (Rufino, 2021) questões que impulsionem sentidos
intersecção entre tradição, memória e criação —, permitindo que práticas em
dança e performance se desloquem do legado colonial e se tornem experiências
negro-orientadas e reparadoras.
Nesse horizonte, em 2024, realizou-se um giro decolonial (Torres, 2020) no
âmbito da pesquisa de campo do Doutorado, direcionado às poéticas da criação.
Esse giro não foi apenas um deslocamento metodológico, mas também ético e
existencial: implicou colocar o próprio corpo como território de disputa
epistemológica, reconhecendo que as teorias se escrevem não em livros, mas
também na carne, na memória e na composição criativa. O resultado desse
processo foi a sistematização de três metodologias/conceitos que emergiram da
prática e do diálogo com artistas e estudantes: Corpo Peça, Utopias de Si e Corpo
Báskula.
Corpo Peça
propõe o resgate de corpos histórica e cotidianamente mutilados,
tomando como inspiração e denúncia as perspectivas de Antônio Bispo dos Santos
(2015), cuja obra transforma restos e fragmentos em memória e potência criativa.
O conceito evoca a condição do corpo negro como peça, mercadoria, objeto, e o
desloca para outro campo semântico: peça também como obra, como
singularidade que se inscreve no mundo. Ao reconfigurar o termo, abre-se espaço
para reelaborar o trauma da desumanização e reconstituir o corpo como sujeito
estético e político.
Utopias de Si
articula-se a partir de noções como Corpo e Ancestralidade
(Santos, 2006) e Corpo-Tela (Martins, 2021), enfrentando as marcas do carrego
colonial (Rufino, 2019). Essa metodologia propõe pensar o corpo como campo de
projeção de futuros possíveis, um espaço de imaginação radical que se ancora na
memória ancestral para desenhar horizontes de liberdade. Utopizar a si mesma,
nesse sentido, não é recusar a materialidade da opressão, mas reexistir a partir da
criação de brechas poéticas e políticas onde antes havia apenas silêncio e controle.
Corpo Báskula
, por sua vez, ancora-se na movência do quadril e no erótico
como ferramenta de poder, em diálogo direto com Audre Lorde (2020). O erótico,
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entendido não em sua dimensão restrita ao desejo sexual, mas como força vital e
energia criadora, transforma o corpo em lugar de insubmissão.
A ênfase na movência do quadril, tantas vezes criminalizada ou
hipersexualizada pelo olhar colonial, opera como gesto de retomada do poder
criativo. O Báskula é, assim, uma prática que reivindica a dança como território de
soberania corporal, em que o prazer, o jogo e a potência sensível tornam-se armas
de resistência.
Esse giro decolonial não se deu de maneira abstrata, mas em diálogo com
práticas concretas. O campo empírico inclui artistas da Cia. Sansacroma4 (SP)
coletivo reconhecido por tensionar questões raciais e sociais por meio da dança
contemporânea e estudantes de graduação e pós-graduação em dança da
Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade de Brasília (UnB) e Instituto
Federal de Brasília (IFB). O contato com esses contextos evidenciou que práticas
negro-orientadas não podem ser reduzidas a apropriações superficiais. Elas
precisam ser protagonizadas por aqueles e aquelas que vivenciam a opressão
racial, pois somente a experiência encarnada é capaz de produzir metodologias
decoloniais consistentes.
Nesse sentido, retomo Frantz Fanon (2008), que em
Pele negra
, máscaras
brancas denunciava como o colonialismo inscreve no corpo negro não apenas
marcas materiais, mas também feridas psíquicas profundas. O enfrentamento
dessa condição, como lembra Sueli Carneiro (2005), passa pela reparação
histórica, mas também pela criação de epistemologias próprias que desfaçam a
lógica do epistemicídio. Assim, metodologias como Corpo Peça, Utopias de Si e
Corpo Báskula não são apenas práticas artísticas, mas estratégias políticas que
desafiam os alicerces coloniais ainda presentes na academia e no campo artístico.
Por fim, inscreve-se neste trabalho a convicção de que ebós para pertencer
não são apenas metáforas, mas atos pedagógicos que arriam caminhos coletivos,
4 Cia Sansacroma, grupo de dança contemporânea da cidade de São Paulo, criado em 2002 pela atriz,
dançarina e coreógrafa Gal Martins, desenvolve trabalhos utilizando, além da dança contemporânea,
elementos de poesia e teatro. A companhia tem como foco de seus trabalhos temas sociais polêmicos. Atua
na região do extremo sul da cidade de São Paulo, propondo descentralizar e difundir a dança contemporânea
na cidade. Sua sede, o Ninho Sansacroma, oferece para a região uma programação de espetáculos de
diversas companhias, buscando um elo entre a produção central e a local.
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operando como tecnologias de pertencimento para além da superfície da inclusão.
Oferecer metodologias decoloniais no ensino da dança e da performance é
também oferendar à encruzilhada da história, convocando a ancestralidade para
que o futuro possa ser menos marcado pelo silenciamento e mais fecundado pela
potência dos corpos que dançam, e para além da resistência se disponibilizam a
criar narrativas possíveis.
Descolonizar o currículo em dança: uma tarefa radical ante as novas
práticas de regulação do corpo negro
Descolonizar o currículo de artes cênicas no ensino superior não se trata
apenas de uma escolha estética ou didática; trata-se de uma urgência histórica e
epistemológica. Séculos de silenciamento sistemático das vozes negras nos
espaços formais de ensino produziram estruturas que ainda marginalizam o
conhecimento gerado por corpos racializados. A persistência de um domínio
epistemológico branco nos currículos, mesmo diante de avanços legais e discursos
progressistas, evidencia que o ensino das artes continua a tratar a presença negra
como exceção ou símbolo passageiro.
Este texto emerge da experiência de uma mulher negra, artista e
pesquisadora; é um gesto de enfrentamento a esse apagamento, propondo uma
reflexão sobre a centralidade do corpo negro na produção de conhecimento em
dança e performance. Tal abordagem sustenta-se na premissa de que o saber não
é neutro e que os currículos, mesmo quando pretendem ser inclusivos, muitas
vezes reproduzem a lógica colonial que desvaloriza epistemologias negro-
orientadas.
Nos últimos anos, tem-se observado uma modificação ainda tímida nos
currículos de cursos superiores de artes cênicas no Brasil, marcada pela inserção
de referenciais não brancos. Essa inclusão envolve produções de conhecimento
ancoradas em metodologias, técnicas e cosmovisões afro-brasileiras e indígenas
(OyěwùmÍ, 2018), especialmente no campo das poéticas da criação em teatro,
dança e performance. No entanto, tal transformação é insuficiente frente à
extensão dos danos provocados pelo colonialismo, e práticas como a negrofilia
evidenciam que a inclusão muitas vezes é superficial ou simbólica (Santos, 2019).
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Durante séculos, a população negra foi sistematicamente impedida de acessar a
educação formal mesmo após a abolição legal da escravidão —, criando um
abismo estrutural cujas consequências ainda afetam o presente. A exclusão da
intelectualidade negra dos espaços de formação e produção de conhecimento
acadêmico é um mecanismo persistente de epistemicídio, silenciando
perspectivas que poderiam tensionar o cânone e transformar práticas artísticas e
pedagógicas.
É notório que, em pleno século XXI, a presença de docentes negros no
protagonismo do ensino em artes cênicas continua ínfima. Mesmo quando a arte
contemporânea brasileira se apresenta como crítica das lacunas sociais, a
estrutura acadêmica ainda evidencia o pacto narcísico da branquitude (Bento,
2022), na medida em que mantém privilégios e hierarquias coloniais, invisibilizando
corpos e saberes negros.
A inserção recente de intelectualidades negras nos currículos, embora
positiva, ainda não garante centralidade epistemológica. Contribuições artístico-
intelectuais negras são frequentemente tratadas como complementares ou
eventuais, e não como fundamento de conhecimento. Boas intenções de docentes
brancos comprometidos com práticas antirracistas muitas vezes não
correspondem à urgência histórica: a presença encarnada da raça no processo
formativo é indispensável. Onde estão os professores negros e indígenas no
protagonismo docente superior? Ainda são poucos, especialmente em contextos
onde a maioria da população é negra.
Porém, para além do tokenismo temos ainda o complemento da negrofilia,
como aponta Wellington Oliveira dos Santos em seu
texto Branquitude e negrofilia
(2019). O autor enfatiza que a “negrofilia é o consumo intencional da história,
cultura e corpo do negro usando o discurso politicamente correto, realizada por
brancos, sem abrir mão dos privilégios” (Santos, 2019, p.15), evidenciando com isso
a diferença entre consumir a cultura negra e aceitar o povo negro, considerando-
se as politicas de ações afirmativas.
o tokenismo é um falso mecanismo democrático de inclusão e
participação simbólica e superficial de/com grupos minoritários, visando eliminar
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as evidências de um espaço racista e segregado, mantendo suas estruturas de
poder e suas hierarquias existentes (Fernandes, Oliveira, Coimbra e Silva, 2023),
alinhadas ao pacto narcísico da Branquitude (Bento, 2022). Tais práticas
reproduzem estruturas coloniais, simulam diversidade e reforçam hierarquias
existentes.
A professora e pesquisadora Amélia Conrado (2017) enfatiza a necessidade
de reconhecimento da contribuição das artes negras no diálogo com outras áreas
científicas, apontando que políticas de ação afirmativa devem ser fortalecidas para
reduzir o fosso entre o que a ciência privilegia e a realidade social. A urgência de
se enegrecer o currículo não é apenas simbólica: é uma ação necessária para a
reparação histórica e a construção de metodologias legítimas e negro-orientadas,
afirma:
É chegado o momento de a universidade brasileira reconhecer os valores
das artes negras e imprimir diálogos com as diversas áreas científicas,
como a Educação, Antropologia, Filosofia e outras que envolvem o
referido campo. A intensificação da política de ação afirmativa nesse
espaço de formação torna-se urgente para nossa realidade, na direção
de melhorar nossas práticas, convivências e diminuição do fosso
existente entre o que os bens os quais a ciência privilegia, distantes da
realidade social (Conrado, 2017, p. 82).
Nilma Lino Gomes (2020) reforça que descolonizar o currículo exige
reconhecer negras e negros como sujeitos produtores de conhecimento, capazes
de tensionar o cânone e propor interpretações que questionem a lógica colonial.
é possível descolonizar os currículos e o conhecimento se
descolonizarmos o olhar sobre os sujeitos, suas experiências, seus
conhecimentos e a forma como os produzem. Portanto, a compreensão
de que existe uma perspectiva negra decolonial brasileira significa
reconhecer negras e negros como sujeitos e seus movimentos por
emancipação como produtores de conhecimentos válidos que não
somente podem tensionar o cânone, mas também o indagam e trazem
outras perspectivas e interpretações (Gomes, 2020, p.235)
Assim, a descolonização curricular não é uma tarefa neutra, mas radical,
exigindo compromisso ético, político e estético de toda a comunidade acadêmica.
No campo da dança e performance, a questão central permanece: como criar
práticas artísticas e pedagógicas que sejam protagonizadas por docentes e artistas
negros, mas que dialoguem com uma diversidade de corpos e experiências? A
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resposta envolve metodologias que valorizem a memória corporal, a
ancestralidade e o potencial criativo do erótico como ferramenta política. A
experiência prática do rolê decolonial (Rufino, 2019) realizado em 2024 mostra que
a implementação de três metodologias Corpo Peça, Utopias de Si e Corpo
Báskula — é capaz de criar caminhos concretos para essa transformação.
Prever a permanência e continuidade de epistemologias negro-orientadas é
essencial para que conceitos legítimos sejam cunhados por quem vive o corpo
racializado no dia a dia. Somente assim é possível construir um currículo que não
apenas reconheça a diversidade, mas a centralize como fonte de produção de
conhecimento, resistência e criação artística.
Ebós para pertencer: arriando metodologias decoloniais para criação em
dança e performance
O ensino em artes cênicas deve ser entendido como um espaço de
cruzamento de saberes, onde a descolonização não é apenas um adendo, mas um
compromisso com a reparação histórica e epistemológica. Ensinar é, nesse
sentido, arriar na encruzilhada (Martins, 2003) ponto de intersecção entre
tradição, memória e criação —, permitindo que práticas em dança e performance
se desloquem do legado colonial e se tornem experiências negro-orientadas e
reparadoras.
Em 2024, realizei um giro decolonial (Torres, 2020) como parte da pesquisa
de campo do doutorado, envolvendo artistas da CIA Sansacroma (SP) e alunos de
graduação e pós-graduação em dança na UFBA, UNB e IF-Brasília. O objetivo era
compreender como corpos racializados experienciam a criação e a reconstrução
de epistemologias que dialoguem com as demandas contemporâneas de raça,
gênero e sexualidade, criando espaços de pertencimento e decolonização do fazer
artístico.
A pesquisa de campo resultou na formulação de três metodologias, que agora
apresento detalhadamente:
1. Corpo Peça:
Esta metodologia resgata corpos histórica e cotidianamente
mutilados, propondo práticas que ampliem a percepção sobre os efeitos da
colonialidade. O Corpo Peça compreende o corpo como arte e arquivo vivo, onde
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movimentos, gestos e memórias corporais se tornam veículos de reencantamento,
resistência e reparação histórica. Por meio de exercícios práticos e performativos,
artistas e estudantes são convidados a revisitar suas experiências corporais,
tensionando padrões estéticos e culturais impostos pelo cânone branco. Inspirada
na obra Colonização Quilombos de Antônio Bispo dos Santos (2015), conhecido
popularmente dentro e fora do ambiente acadêmico como
Nêgo Bispo
, foi um
filósofo, poeta, escritor, professor, líder quilombola e ativista político brasileiro,
desde as comunidades rurais, os demais povos tradicionais e também em paralelo
ao movimento negro. Considerado um dos maiores intelectuais do Brasil, refletiu
sobre problemas contemporâneos, a partir das experiências quilombolas,
combatendo fortemente as pertenças lógicas do colonialismo, ante os entraves
do elitismo capitalismo que suplantam e barram o avanço de saberes não
hegemônicos, evidenciando que a diversidade humana é um convite a boa
convivência num mundo repleto de desumanidade. Sobretudo a disparidade da
lógica hegemônica e eurocentrada ante os pensamentos de povos originários,
tradicionais e ou não brancos na atualidade:
Condena veementemente esse modelo de sociedade imposto aos negros
e aos indígenas pelos portugueses como enfatiza as revoltas, as rebeliões
e as lutas anti-racistas contra as classes e grupos raciais dominantes
levadas a cabo pelos povos tradicionais nas suas tentativas de viver
segundo outras bases civilizatórias (Santos, 2015, p.11).
Santos (2015) ainda sugere uma revisão crítica ao genocídio cultural
estabelecido pelo brancocentrismo/branquidade/eurocentrismo, na perspectiva
da lógica cristã, que regula, congela, e por fim, ceifa e apaga saberes não brancos,
especialmente na lógica dos saberes civilizatórios.
Nesse horizonte, pensar o corpo não apenas como colaborador social e
político, mas como entidade que, a partir de si, estabelece relações e produz
sentidos, torna-se fundamental. É esse corpo que tece possibilidades de
permanecer vivo e íntegro, para possibilitar a criação de paisagens paralelas como
antídoto e antítese ao carrego colonial, contratado pelos opressores e seus algozes
— mesmo ciente dos flecheiros e capitães do mato, aliados ao chorume colonial.
Ao resgatar partes que foram sequestradas, como contrato assinado pelo
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capitalismo e o neoliberalismo, utilizando os olhos e/ou o imaginário como ponto
que risca, firma, desfaz e eboniza possibilidades prósperas para que o corpo
conviva em sociedade com suas partes conscientes e íntegras do que tece essa
sociedade.
Luciane Ramos como é conhecida no meio artístico e acadêmico —,
antropóloga, artista da dança e professora universitária da Unicamp, é exemplo
notável de que as áreas de conhecimento podem fornecer suporte mútuo, gerando
sentido para o pensamento crítico em dança. Em sua tese de Doutorado,
Corpo
em Diáspora: Colonialidade, pedagogia de dança e técnica Germaine Acogny
(Silva,
2018), a autora fomenta, estabelece e abre caminhos para pensar uma pedagogia
em dança negro-referenciada.
Nossa atuação no campo pedagógico questiona os modelos de
pensamento totalizadores e suas representações, cientes de que são
práticas que não se desvinculam de seus contextos sociopolíticos.
Nossos questionamentos nasceram da observação de realidades em uma
abordagem transdisciplinar, primando por uma metodologia que parte
prioritariamente da experiência do corpo-pensamento associada à
pesquisa bibliográfica. A perspectiva que transcende os espaços de
produção de pensamento legitimados de poder intenta reconhecer a
historicidade e agência de sujeitos situados no campo dos estudos
críticos sobre corpo e cultura e os estudos de dança com perspectivas
africanas e afro-diaspóricas (Silva, 2018, p.16).
Corpo Peça
se enquanto método pedagógico e criativo enquanto
disparador de tensões, traumas, conexões e relações diretas, fazendo a pessoa
perceber como é lida em sociedade e/ou como gostaria de ser lida através de sua
proposição artística.
2. Utopias de Si:
tal metodologia se fundamenta a partir do pensamento das
professoras e intelectuais da dança, Inaicyra Falcão dos Santos (2006) e Leda Maria
Martins (2021). É inerente a cada pessoa, possuir um corpo e uma ancestralidade,
uma história de sua linhagem familiar e espiritual, uma ancestralidade para além
de “daquilo que vem antes”. Confluir corpo e ancestralidade é primordial para
compreender a sensibilidade existente em nossas escolhas, pois tais escolhas,
afetam o nosso futuro, assim como a escolha de alguém afetou o nosso presente.
As escolhas dos seres humanos afetaram tudo o que sabemos sobre a
história da humanidade até o momento, pois é a mão do ser humano que toca na
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transformação do mundo e influencia nossos horizontes, sejam eles quais forem.
O que quero dizer com isso é que as escolhas de todas as pessoas ao nosso redor
tecem a trama complexa em que vivemos, tecem as violências, assim como tecem
também a brandura, a dualidade entre o bem e o mal e nos encorajam a negociar
diariamente nossas ações, pois são elas que irão marcar o futuro, o passado e o
presente, as escolhas tecem nossas utopias, e nós tramamos utopias entre nós
mesmos, utopias de si para seguir, viver e o distensionar dos ossos à musculatura
de nossa face.
Um corpo pendular que avança, capacitando a si mesmo para não sucumbir,
é “um corpo arriado”. O racismo, a misoginia, o capacitismo, a transfobia, a
gordofobia, o sexismo, o etarismo, o classismo e o elitismo são falsas estratégias
de dominação de um grupo dito dominante, por outro não dominante. Porém digo,
mesmo que soe como uma “batalha de narrativas”: o racismo ainda é a mais
perversa arma de domínio de um povo sobre o outro.
Essa metodologia propõe pensar o corpo como campo de projeção de futuros
possíveis, um espaço que possibilita a imaginação radical que se ancora na
memória ancestral desenhando horizontes de liberdade.
Utopizar
a si mesmo,
nesse sentido, não se propõe a recusar a materialidade da opressão, mas reexistir
a partir da criação de brechas poéticas e políticas onde antes havia apenas o
silêncio na toxina do controle.
É na encruzilhada que o corpo negro transcende a noção de espaço
tempo ligando-se à sua história diaspórica por viés da ancestralidade e
recriando-a como forma de manutenção e resistência de sua identidade
na contemporaneidade, rompendo, dessa forma, com as estruturas
coloniais (Petronílio e Pronsato, 2019, p.25).
É nessa perspectiva que Utopias de Si se propõe a pensar com um corpo
inteiro corpo que decide, que renuncia, que aceita e avança rumo às suas
escolhas, possibilitando existir e continuar na busca por um equilíbrio interno.
3. Corpo Báskula
: Ancorada no pensamento de Audre Lorde (2020), esta
prática explora movimentos do quadril e o erótico como ferramenta de poder e
criação. Corpo Báskula entende o corpo negro como agente político e artístico,
capaz de mobilizar resistência através da performatividade e do prazer não sexual.
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A metodologia trabalha com exercícios de consciência corporal
perspectivadas a danças de matriz africana balizadas na movimentação do baixo
ventre.
Tendo em vista que esta metodologia não busca romantizar a prática como
um subterfúgio de cura, e sim buscar trazer consciência de movimento e
desprendimento ante a suposição de vícios cunhados pela indústria pornográfica
ou sexualizada de redes sociais como
Instagram e Tik Tok
que influenciam a auto
banalização e a padronização de corpos principalmente latinos na
perspectiva do consumo de massa das mídias digitais, o que gera uma complexa
noção de performatividade social e sexual sem consciência, apenas uma
reprodução viralizada de gestos e movimentos nanoexpandidos através de vídeos
curtos. Soma-se a isso a atuação da indústria pornográfica, que, sendo um dos
maiores mercados audiovisuais do planeta, exerce influências catastróficas na
formação desses repertórios corporais.
Paul Preciado (2018) analisa a relação entre a indústria pornográfica, o
capitalismo e a farmacologia, cunhando o conceito de "era farmacopornográfica".
Segundo o autor, a pornografia, em conjunto com a indústria farmacêutica, molda
desejos e comportamentos, transformando o sexo em mercadoria e controlando
os corpos. Ele também descreve como essa dinâmica afeta o trabalho e a
produção de identidades, propondo um uso subversivo das tecnologias que
controlam o corpo.
Com isso, Corpo Báskula é importante não por repensar a sexualidade,
porém a descolonização da visão da sexualidade desde o quadril no movimento
em dança, até ao pensar a prática em dança em perspectiva antirracista enquanto
pedagogia negro-orientada perspectivada nas danças de matriz africana. Pensar
nesta proposta e seu ciclo dentro da universidade, especialmente, é perceber para
além da radicalidade envolta na proposta. É pensar em uma oportunidade para
refletir sobre o quanto trabalhos como similares ajudariam diversas pessoas a
revisitar um lugar conservador e ainda tabu que envolve não apenas falar
sobre sexualidade, mas explorar o movimento através de uma região do corpo
pouco trabalhada, como a do quadril por em questão.
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Rita de Cássia Souza da Rosa
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O giro contemplou diferentes contextos de prática, e essa diversidade de
ambientes possibilitou observar como as metodologias se adaptam e dialogam
com múltiplos corpos e experiências, reafirmando que práticas negro-orientadas
devem ser protagonizadas por quem vivencia a opressão racial, funcionando como
estratégia de reparação histórica.
A experiência mostrou que, embora o tokenismo e a negrofilia ainda sejam
recorrentes nos espaços acadêmicos e artísticos, a presença ativa de docentes e
artistas negros transforma o espaço de aprendizagem e criação, promovendo
pertencimento, legitimidade epistemológica e empoderamento. Ao conduzir essas
práticas, percebi que a arte cênica deixa de ser apenas técnica ou disciplina
acadêmica, tornando-se instrumento de reconstrução histórica, política e cultural
de modo radical.
Essas metodologias não buscam romantizar nem criar exotismos em torno
da cultura negra, pelo contrário, posicionam o corpo negro como núcleo de
produção de conhecimento, fortalecendo epistemologias legítimas e
proporcionando um ambiente de ensino e criação onde as vozes negras são
centrais, e não periféricas.
A pesquisa também revelou que o processo de formação artístico-acadêmica
deve incluir reflexões sobre raça, gênero e poder, articulando teoria e prática em
diálogo constante. As metodologias Corpo Peça, Utopias de Si e Corpo Báskula
demonstram que o corpo, enquanto arquivo vivo, é também ferramenta de
resistência e reparação, capaz de tensionar o cânone, expandir o repertório da
dança contemporânea e promover mudanças estruturais no currículo.
Portanto, a implementação dessas metodologias evidencia que a
descolonização do currículo não é um ato simbólico ou superficial, mas uma
prática contínua de transformação institucional, pedagógica e estética. Ao
reconhecer a centralidade do corpo negro, não apenas se resgatam saberes
marginalizados, mas também se constrói um espaço de pertencimento radical,
capaz de produzir artistas, professores e pesquisadores comprometidos com a
justiça histórica, social e cultural.
O ensino superior em dança precisa assumir um compromisso ético e político
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com a reparação histórica, considerando a presença negra como núcleo formativo
e epistemológico. Somente assim é possível superar práticas de tokenismo e
negrofilia, legitimando epistemologias negro-orientadas e promovendo a
verdadeira pluralidade de corpos, saberes e poéticas.
Em suma, o giro decolonial e suas metodologias reforçam que a criação em
dança e performance não pode ser dissociada da luta anticolonial e antirracista.
Corpo Peça, Utopias de Si e Corpo Báskula são, portanto, mais do que
metodologias: são ebós para pertencer, oferendas simbólicas e práticas que
afirmam a centralidade da experiência negra na produção de conhecimento
artístico e acadêmico.
Conclusão: trajetórias, implicações e continuidade da descolonização do
currículo em dança
A experiência do giro decolonial e a formulação das metodologias
Corpo Peça,
Utopias de Si e Corpo Báskula
evidenciam que a descolonização do currículo em
artes cênicas não é apenas uma reformulação teórica ou didática, mas um
processo político, ético e estético. O enfrentamento das estruturas coloniais exige
protagonismo negro, reconhecendo a experiência vivida como matriz legítima de
produção de conhecimento. A presença negra não deve ser complementar ou
simbólica, ela é essencial e formativa, capaz de redefinir paradigmas e ampliar o
entendimento sobre criação, performance e educação artística.
O percurso realizado nos diferentes contextos de pesquisa da CIA
Sansacroma (SP) à UFBA, UnB e IF-Brasília revelou a complexidade das relações
entre corpo, memória e epistemologia. Observou-se que a implementação de
práticas negro-orientadas permite aos estudantes e artistas ressignificar suas
experiências corporais, incorporando ancestralidade, erótico-político e fabulação
como ferramentas de resistência e criação. Tais práticas demonstram que o corpo
negro, historicamente marginalizado, pode se tornar agente de transformação
estética e pedagógica, tensionando o cânone e propondo novos repertórios de
conhecimento.
A centralidade do protagonismo negro nas metodologias estudadas evidencia
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que qualquer tentativa de inclusão superficial tokenismo ou de consumo
cultural sem compromisso negrofilia falha em promover transformação real.
A pesquisa reforça que a legitimidade do saber produzido por corpos racializados
depende de que estes corpos sejam ativos na produção e condução das práticas
acadêmicas e artísticas. As metodologias apresentadas não visam apenas
treinamento técnico ou performance estética: são exercícios de empoderamento
epistemológico, propondo que o corpo negro seja reconhecido como sujeito
produtor de conhecimento, portador de memórias históricas e criador de futuros
possíveis.
A metodologia Corpo Peça evidencia que resgatar corpos mutilados
historicamente é também resgatar saberes esquecidos, tornando a memória
corporal um recurso pedagógico e performativo. Utopias de Si, por sua vez, enfatiza
que a relação com ancestralidade e fabulação é essencial para que o corpo negro
possa reescrever narrativas e superar o carrego colonial, permitindo a criação de
poéticas autorais e plurais. Corpo Báskula demonstra que o erótico e o
movimento podem ser ferramentas de poder e resistência, transformando a
experiência estética em instrumento político e pedagógico. O conjunto dessas
metodologias indica que a descolonização curricular não é apenas uma questão
de inclusão, mas de transformação estrutural do ensino superior. O protagonismo
negro no currículo, aliado à presença física e encarnada nos espaços de
aprendizagem, tensiona a branquitude estrutural e questiona práticas acadêmicas
historicamente excludentes. A pesquisa evidencia que não neutralidade na
educação artística: ou mantém-se o status quo, reproduzindo epistemicídios, ou
se promove a centralidade de sujeitos historicamente marginalizados, abrindo
caminhos para uma pedagogia verdadeiramente decolonial.
Outro ponto relevante é a continuidade e permanência das epistemologias
negro-orientadas, que garantem que o conhecimento produzido não se limite a
experiências pontuais ou simbólicas. A consolidação de metodologias como Corpo
Peça, Utopias de Si e Corpo Báskula no currículo evidencia que é possível criar
práticas que respeitam o protagonismo negro, articulam tradição e inovação e
fortalecem redes de aprendizagem emancipatória. Além disso, a pesquisa mostra
que a arte e a pesquisa em dança podem se tornar ferramentas de reparação
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histórica, capazes de confrontar mecanismos coloniais de apagamento e criar
espaços de pertencimento e legitimação epistemológica.
São estas três lentes que movimentam e fundamentam a flecha para a
criação em dança e performance arriadas neste texto, nota se que a percepção
que tais práticas provocaram podem contribuir para as poéticas do sensível
compreensões descoloniais sobre a construção da autoimagem do corpo, visando
desmistificar o controle da colonialidade em suas regulações cotidianas. Nesse
sentido, ao pensar a decolonialidade no âmbito da criação artística, torna-se
possível compreender que tais movimentos não operam apenas no plano estético,
mas também ético, político e epistemológico.
A criação artística decolonial busca manter o corpo e a mente abertos,
bem como o sentido aguçado de maneira que melhor possam responder
criticamente a algo que objetiva produzir separação ontológica...A
performance estética decolonial é, entre outras coisas, um ritual que
busca manter o corpo aberto, como uma fonte contínua de questões. Ao
mesmo tempo, esse corpo aberto é um corpo preparado para agir
(Torres, 2020, p. 48).
Partindo da premissa de que a criação cênica realizada por e a partir de
corpos racializados/hipersexualizados sejam eles cis ou transgêneros
geralmente portam em suas obras de forma notável, um cunho crítico e
questionador quando se propõem a expor as violências, traumas e legados nocivos
da “colonialidade do poder” (Quijano, 2005). Ainda em Torres (2020) em
complemento à noção de criação na perspectiva decolonial no que tange o
questionamento crítico através do corpo:
O corpo aberto é questionador, bem como criativo. Criações artísticas são
modos de crítica, autorreflexão e proposição de diferentes maneiras de
conceber e viver o tempo, o espaço, a subjetividade e a comunidade,
entre outras áreas. A decolonialidade requer não somente a emergência
de uma mente crítica, mas também de sentidos reavivados que
objetivem afirmar conexão em um mundo definido por separação. A
criação artística decolonial busca manter o corpo e a mente abertos, bem
como o sentido aguçado de maneira que melhor possam responder
criticamente a algo que objetiva produzir separação ontológica (Torres,
2020, p.48)
O impacto dessas práticas não se restringe ao espaço acadêmico. Ao inserir
metodologias negro-orientadas em cursos livres, extensão e projetos culturais,
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promove-se um diálogo ampliado entre educação formal e produção artística
independente, tornando o ensino mais próximo das realidades socioculturais e das
demandas contemporâneas de diversidade, equidade e justiça social. Isso reforça
que a descolonização curricular deve ser inclusiva, plural e adaptável, conectando
teoria, prática e experiência vivida de maneira orgânica.
Em termos de perspectiva futura, a pesquisa indica que a descolonização do
currículo em dança deve ser contínua e evolutiva, envolvendo avaliação crítica das
práticas pedagógicas, revisão constante de conteúdos, inclusão efetiva de
docentes negros e indígenas e articulação com políticas de ação afirmativa.
Somente assim é possível garantir que os currículos não reproduzam
epistemicídios e, ao contrário, fortaleçam a pluralidade de corpos, saberes e
linguagens artísticas.
Conclui-se que descolonizar é um ato radical e necessário: exige coragem,
compromisso ético e sensibilidade política, além de práticas metodológicas que
respeitem, incorporem e elevem experiências e saberes negros. O giro decolonial
e as metodologias aqui apresentadas demonstram que a educação artística pode
ser uma via de emancipação, reparação histórica e inovação epistemológica,
tornando o ensino e a criação em dança espaços de pertencimento, resistência e
criação coletiva.
Em síntese, o processo de descolonização do currículo não é uma meta
isolada: é um percurso que articula memória, corpo, ancestralidade e criação,
colocando o negro no centro do conhecimento que se ensina, aprende e recria.
Corpo Peça, Utopias de Si e Corpo Báskula
são, portanto, ebós decoloniais,
oferendas simbólicas e metodológicas que afirmam a centralidade da experiência
negra na produção artística e acadêmica.
A legitimidade do conhecimento produzido por corpos racializados e a
continuidade dessas práticas garantem que o ensino superior em dança seja um
espaço de transformação social, cultural e epistemológica, rompendo com lógicas
coloniais e abrindo caminhos para futuros plurais, inclusivos e justos, nos quais a
arte cênica e a pesquisa não apenas refletem o mundo, mas o transformam de
dentro para fora.
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Figura 1 Campo Cia Sansacroma janeiro de 2024. Foto: Rita de Cássia Souza da Rosa5
Figura 2 - Ciclos Utopias de Sí e Corpo Báskula. Graduação em Dança pela Universidade Federal
da Bahia (UFBA) - Dança e Saberes Indígenas. Novembro de 20246
5 Campo CIA SANSACROMA/SP - 01/2024 No centro da imagem, uma dançarina negra de pele escura, seu nome é Alma,
está com a cabeça careca, veste roupas em tons claros - calça e blusa - e um shorts colorido por cima da calça em tons
predominantemente azuis, lilás, roxo, verde e rosa neon. Está com os pés descalços em cima de um piso laminado de
madeira. Ao fundo, a sua direita, uma mulher gorda, negra de pele não escura, está sentada ao do palco, seu corpo
está levemente inclinado para frente olhando fixamente a dançarina. Ela veste roupas em tons lilás, uma par de meias
brancas pequenas. Seu cabelo crespo e volumoso está solto e possui mechas loiras. Lateralmente, a esquerda de Alma,
está uma figura masculina. Ele é negro de pele um pouco mais escura do que a da moça no fundo da foto. Ele está em
pé parado, seu tronco ereto e sua cabeça está levemente inclinada para o fundo o direito olhando fixamente para a ação
da bailarina. O rapaz está vestindo uma regata longa cinza claro e uma bermuda alongada amarelo mostarda.
6 Ao centro Prof. Dra. Amélia Vitória Conrado, uma mulher negra indígena, veste roupas brancas e dança com os braços
abertos dentro de uma roda de pessoas que aparecem ao fundo batendo palmas enquanto apreciam sua dança.
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Figura 3 - Pesquisa de Campo ciclo: Corpo Peça. Pós-graduação em Artes Cênicas
da Universidade de Brasília (UnB), e Curso de Dança da Universidade Federal de Brasília.
Novembro de 2024. Fonte: registros da autora7
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7 #Alunos/pesquisadores da s Graduação em Artes Cênicas da UNB e Instituto Federal de Brasília: ao centro
da imagem um corpo inclinado em direção a câmera com os rostos cobertos por um tecido escuro com
figuras geométricas e irregulares. Ao entorno, pessoas realizam movimentos no plano médio e baixo.
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
PPGAC
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Revista de Estudos em Artes Cênicas
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