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Acervo como registro e proposição:
processos criativos em dança cênica no Acre
Valeska Alvim
Felipe Barbosa
Para citar este artigo:
ALVIM, Valeska; BARBOSA, Felipe. Acervo como registro e
proposição: processos criativos em dança cênica no Acre.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 2, n. 55, ago. 2025.
DOI: 10.5965/1414573102552025e0117
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Valeska Alvim | Felipe Barbosa
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-24, ago. 2025
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Acervo como registro e proposição1: processos criativos em dança cênica no
Acre2
Valeska Alvim3
Felipe Barbosa4
Resumo
O artigo apresenta a trajetória de criação do Acervo Cartografia da Dança do Acre, ação
continuada de pesquisa e documentação da dança cênica no estado. A partir de experiências
vividas na Amazônia Ocidental e de um mapeamento iniciado durante o doutorado, o estudo
analisa os impactos da ausência de arquivos, as estratégias de registro adotadas e os desafios
enfrentados por artistas locais. O acervo é discutido como dispositivo de memória, formação
e proposição estética, em diálogo com outras iniciativas do país. Conclui-se que as produções
ainda apontam para horizontes distantes, apartadas em boa medida da realidade social e
política que as cerca e distingue.
Palavras-chave:
Acervo em dança. Memória cênica. Cartografia artística.
Archive as Record and Proposition: creative processes in scenic dance in Acre
Abstract
This article presents the creation process of the Cartography of Dance Archive in Acre, a continued
action of research and documentation of scenic dance in the state. Based on experiences in the
Western Amazon and mapping initiated during the author's PhD, the study analyzes the impacts
of the absence of archives, the recording strategies adopted, and the challenges faced by local
artists. The archive is discussed as a device for memory, education, and aesthetic proposition, in
dialogue with other initiatives across the country. It is concluded that the productions still point
to distant horizons, largely separated from the social and political reality that surrounds and
distinguishes them.
Keywords:
Dance archive. Scenic memory. Artistic cartography.
Archivo como registro y proposición: procesos creativos en danza escénica en Acre
Resumen
El artículo presenta la trayectoria de creación del Acervo Cartografía de la Danza de Acre, una
acción continua de investigación y documentación de la danza escénica en el estado. A partir de
experiencias vividas en la Amazonía Occidental y de un mapeo iniciado durante el doctorado, el
estudio analiza los impactos de la ausencia de archivos, las estrategias de registro adoptadas y
los desafíos enfrentados por artistas locales. El acervo se discute como dispositivo de memoria,
formación y proposición estética, en diálogo con otras iniciativas del país. Se concluye que las
producciones aún apuntan a horizontes distantes, apartadas en buena medida de la realidad
social y política que las rodea y distingue.
Palabras clave
: Archivo de danza. Memoria escénica. Cartografía artística.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Edson Leonel de Oliveira. Pós-graduação em Revisão
de Textos (UNIBF). Graduação em Gestão Pública (ULBRA). Revisor da Revista Brasileira de Estudos da Presença, da Revista
Educação & Realidade e da Revista Fineduca.
2 Este artigo resulta em 71% de partes de tese de doutorado de Valeska Ribeiro Alvim denominada:
Dança cênica no Acre:
por uma inserção na cartografia nacional.
Defendida no Programa de pós-graduação em Artes da Universidade de Brasília
(UnB), sob orientação de Soraia Maria Silva em 2018.
3 Doutorado em Artes pela Universidade de Brasília (UnB). Mestrado em Artes da Cena pela Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP). Graduação em Dança pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Professora na Graduação e Pós-
Graduação em Artes Cênicas na Universidade Federal do Acre ((UFAC).
valeska.alvim@ufac.br https://lattes.cnpq.br/7674865477863408 https://orcid.org/0000-0002-5599-9902
4 Mestrado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Acre (UFAC). Graduação em Licenciatura e Bacharelado em
Educação Física na UFAC. barbosafelipedance@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/6045399535767232 https://orcid.org/0000-0002-7807-7951
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Contexto e urgência de um acervo na Amazônia Ocidental
Passei meus últimos 15 anos na Amazônia ocidental atrelando minhas
vivências éticas e estéticas à Universidade Federal do Acre (UFAC), que está situada
na capital do estado, uma terra que, para muitos, até hoje, não existe. Esse lugar
me convidou ao diálogo e fez emergir questões como a necessidade da formação
técnica ou superior em Dança, levando-me a pensar em como contribuir para a
construção de procedimentos formativos na área.
Quando olho para trás, lembro-me de quase tudo, mas principalmente da
dificuldade de aprendizado de uma cultura tão ampla e rica, exercício longuíssimo
e que ainda perpetua, extenso em processo, mas curto por tudo que ainda está
por vir.
O texto que apresento corresponde a um capítulo revisado da tese defendida
em 2018, na Universidade de Brasília, intitulada
Dança cênica no Acre: por uma
inserção na cartografia nacional
, que mapeou a produção da dança cênica no
estado, apresentando não realidade de um lugar de fronteira, mas dando
visibilidade aos dados coletados, assim como às lacunas informativas que o
próprio afastamento geográfico dos grandes eixos revela.
O trabalho não intencionou abranger toda a produção de dança existente no
estado, mas se concentrou na dança cênica, entendida como uma forma de arte
que se realiza em espaços de representação e que se concretiza na relação com
o espectador. Essa concepção se aproxima da visão de Márcia Almeida (2015),
quando denomina a dança como arte coreográfica, pois para ela são diversas as
maneiras de dançar, mas nem todas são objeto artístico. Nesse sentido, além da
multiplicidade, cada dança possui uma função, como as festivas, para encontros,
as danças sagradas de caráter somente religioso, as danças profanas, as
populares, as danças que estão mais próximas ao objeto de entretenimento de
massas, que promovem divertimento fácil sem conduzir à reflexão que a arte
suscita. No caso do estudo empreendido, somente danças que são objeto artístico
entraram na pesquisa.
Como o presente não está desvinculado do passado, julguei importante
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tentar entender como as experiências artísticas anteriores vivenciadas no Acre se
transpunham para as atuais, descartando certos aspectos, na mesma medida em
que expandiam e intensificavam outros. Durante a circulação por todo o estado,
foi necessário examinar quais eram os princípios de suas pesquisas corporais,
como estas vêm se constituindo e quais são suas necessidades e seus interesses.
Para tanto, juntamente com os dados recolhidos, comecei a levantar também
marcas e vestígios daquela história, inicialmente por querer complementar e
elucidar a pesquisa e depois por ter receio de que aquele escasso material se
perdesse, como tantos outros haviam se perdido, nas quatro maiores enchentes
do Acre, ocorridas em 1997, 2012, 2015 e 2024 (Figura 1).
Em todas as situações, o estado ficou isolado e uma verdadeira operação de
guerra era montada com soldados do exército, bombeiros e policiais, além de mais
de dois mil voluntários, a fim de resgatar os desabrigados em canoas.
Figura 1 - Enchentes em Rio Branco, Acre: a) Bairro Gameleira em 1997; b) Bairro Gameleira em 2012;
c) Enchente vista de cima em 2015 e d) Enchente em 20245
Vale reiterar que o Rio Acre passa por onde 70% da população do estado
5 Fonte: Negreiros (2015), Impacto... (2015), Jardim (2012) e Nascimento (2024).
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reside e que os eventos extremos, como os mostrados na Figura 1, causam
impactos sociais alarmantes, que reverberam diretamente na cultura e nas
políticas públicas, que o estado quase anualmente direciona esforços e recursos
para resolver questões básicas como corte de energia, saneamento e
fornecimento de água, sem mencionar abrigo para as famílias atingidas. Além das
enchentes, que são realidade no estado, não é pouco comum o incêndio de órgãos
públicos ou casas de militantes, repetindo a forma de intimidação muito utilizada
no período em que Chico Mendes era vivo (Figura 2).
Um dos maiores prejuízos para o patrimônio cultural do estado aconteceu
quando a tese ainda estava em andamento: um incêndio criminoso que causou
total destruição do Departamento de Patrimônio Histórico de Rio Branco,
ocasionando danos inimagináveis às investigações na área, pois o fogo destruiu,
inclusive, todas as cópias digitalizadas. A necessidade da construção de um acervo
online
, no decorrer da cartografia, fazia-se, assim, cada dia mais urgente. Nesse
sentido, como aponta Rochelle (2018, p. 67), “é preocupante que a dança encontre,
até o momento, pouco espaço dentro de instituições museais”, o que reforça o
papel dos arquivos alternativos na manutenção da memória cultural.
Figura 2 - Incêndios no Acre: a) Incêndio no Departamento de Patrimônio Histórico do Acre em 2016;
b) Incêndio da casa da escritora Florentina Esteves em 2013, uma das casas mais antigas de Rio Branco;
e c) Incêndio da casa de posseiro e militante em Xapuri, ocorrido em 2017.6
6 Fonte: Incêndio... (2016), Carvalho (2017) e Ribeiro (2013).
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A partir dos exercícios de levantamento de material, comecei a refletir a
respeito de como as práticas da dança dialogam e se articulam com esses
acontecimentos, com a sociedade e com as demais linguagens artísticas.
Novamente, o principal obstáculo para o desenvolvimento desta pesquisa foi a
carência de publicações e estudos e a ausência de um arquivo com imagens dos
espetáculos ou de entrevistas com os criadores.
Encontros com outros arquivos: e a tentativa da inserção do Acre na
cartografia nacional
Ao me deparar com as fotos, vídeos e
fôlderes
, pensei em arquivar e catalogar
todo o material, mas, antes, acreditei ser prudente recorrer a uma amiga da área
da Dança, o que fiz durante o período em que passei pela Universidade Federal da
Bahia (UFBA). Essa amiga é pesquisadora e idealizadora do
Acervo RecorDança
7,
projeto que existe desde 2003 com a preocupação de documentar e difundir a
memória da dança, sendo realizado na região metropolitana do Recife.
O grupo que coordena esse projeto, responsável por um dos principais
acervos de dança do país, preparava-se para comemorar, na ocasião do meu
contato, dez anos de existência, com a exposição
RecorDança: construir, sentir e
olhar a dança
, atrelada ao seminário
RecorDança 10 anos: movimentos de
memória
, do qual tive a honra de participar como palestrante, além de
compartilhar experiências com quem sobrevive trabalhando com dança fora dos
grandes eixos.
Além da experiência mais íntima com o acervo RecorDança, também
pesquisei profundamente sobre o acervo Mariposa8 e o grupo Temas de Dança9,
7 O acervo RecorDança (Recife, Pernambuco) é um projeto de pesquisa, documentação e difusão da memória
da dança que se dividiu em várias etapas, mediante os esforços de uma equipe multidisciplinar, envolvendo
bibliotecários, jornalistas, pesquisadores e artistas. A pesquisa serviu de base para a construção de um
acervo até então inédito, tendo em vista que, assim como o acervo do Acre, quando criado o RecorDança,
não existiam, em nenhuma publicação ou instituição do país, informações estruturadas sobre a história da
dança cênica em Pernambuco.
8 “O Acervo Mariposa (São Paulo-SP) define-se como um programa cultural de gestão do acervo de vídeos de
dança. Idealizado em 2007, foi realizado com recursos de lei de incentivo federal (Rouanet 2008-2009,
patrocínio Petrobras), de lei de incentivo estadual e patrocínio VIVO) e com editais de fomento (Iberescena
2011) e ao longo de seis anos efetivou uma concepção de patrimônio coletivo. Como a principal tônica do
Acervo Mariposa, sua finalidade foi de estabelecer a democratização dos materiais de dança, seja para a
comunidade da dança, seja para o público em geral”. Disponível em: http://acervomariposa.com.br/post-3-
1/. Acesso em: 08 mar. 2015.
9 Temas de Dança (Rio de Janeiro). Desde 2012, o grupo de pesquisa dedica-se a elaborar critérios a partir
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que os três discutem a maneira como a dança é afetada pelos seus aparatos de
registros, elaborando seu material imbricado com a produção teórica e
proporcionando uma relação entre arquivo e dança. É preciso mencionar, ainda,
tendo em vista sua importância, outros exemplos pesquisados: em São Paulo, o
acervo da crítica de dança e professora Helena Katz (2006); no Rio de Janeiro, o
acervo de Klauss Vianna; e, em Belo Horizonte, o acervo de Arnaldo Alvarenga.
Também acompanhei, antes mesmo do doutorado, a constante tentativa de
buscar o
rumo
da arte e cultura brasileira realizada pelo programa Rumos Itaú
Cultural. Esse programa foi estruturado, no fim de 1999, com o objetivo de mapear
a dança contemporânea brasileira: a produção artística e o contexto cultural dos
locais onde as obras eram criadas. Em 2000, foram apresentados os resultados
da primeira edição, que contou com edições subsequentes a cada três anos.
Grande parte dos produtos que foram frutos dessa construção de acervo integra
o projeto
Cartografia da Dança
, que consiste em um material informativo de parte
da realidade da Dança na cena contemporânea, aglutinando muitos estudos e
mapeamentos, que foram fundamentais para esta pesquisa.
No entanto, apesar da proposta abrangente e da preocupação em selecionar
pesquisadores de diferentes regiões com conhecimento do contexto local, o Acre
permaneceu à margem desse mapeamento. Essa ausência evidencia as lacunas
ainda persistentes nos projetos de alcance nacional, que, mesmo com intenções
descentralizadoras, acabam por reforçar a exclusão de certos territórios
historicamente invisibilizados. A ausência do Acre nesse processo não é um
detalhe, mas um sintoma da dificuldade recorrente em incluir a Região Norte, uma
questão crucial quando se trata de pensar políticas culturais em um país de
dimensões continentais.
Nasce o acervo Cartografia da Dança do Acre
As trajetórias desses acervos, e a forma como abordam as práticas de criação
de leituras, análise de vídeos, oficinas temáticas, conversas com artistas que auxiliem a pesquisa em
Dança, mais especificamente as relações entre pensamento, história, dança e corpo. Tem como proposta
disponibilizar,
online
, material textual e iconográfico que procure atender às especificidades da dança (a
dança entendida aqui como um campo ampliado da criação artística, no qual as fronteiras que o definem
estão em estado constante de vibração).
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em relação ao ensino, contribuíram para que fossem escolhidos como referências
na construção de um pensamento que articula memória e história da dança.
O Acervo
Cartografia da Dança do Acre
nasceu
como uma ação continuada
de pesquisa e documentação sobre a história da dança, comprometida com a
memória e com os processos atuais da dança no estado, em parceria com a
instituição privada Sesc-Acre e esperada pelas instituições governamentais, que
sofrem com a falta de indicadores no estado.
A proposição consistia em organizar os documentos em pastas temáticas
com registros em vídeos, fotografias e impressos de divulgação dos espetáculos
(cartazes, panfletos, programas e jornais), por meio de um movimento de
formação na prática de organização do acervo, análise de documentos e reflexão
sobre os processos históricos. O projeto não findou com a defesa da tese, e desde
então o acervo proposto vem se baseando no discurso dos próprios artistas e em
sugestões de possíveis doadores de materiais que deem pistas sobre as histórias
da dança cênica produzidas na região, que possivelmente servirão como
ferramentas para que os pesquisadores e interessados na memória da dança
possam conectar os dados e criar um olhar próprio sobre os percursos dessa arte.
Encontra-se disponibilizado na página eletrônica do acervo o material relativo
aos espetáculos de dança cênica ao qual se teve acesso dentro do recorte da
pesquisa, de 1996 a 2017. Após a defesa da tese, em 2018, houve uma tentativa de
continuidade nesse trabalho de alimentação e atualização do acervo com a
mesma intensidade. No entanto, com o retorno às atividades docentes e a
multiplicidade de atribuições assumidas após o fim do período de dedicação
exclusiva à pesquisa, o tempo disponível para esse tipo de levantamento foi
significativamente reduzido. Ainda assim, como referido, mantêm-se os
registros, já sistematizados e atualizados de forma esporádica até o ano de 2022,
constituindo-se como uma base importante de consulta e memória.
Sem distinção ou juízo de valor, foram catalogados, com a devida autorização,
todos os espetáculos aos quais se teve acesso, excluindo-se as coreografias
pontuais criadas exclusivamente para eventos como fóruns e seminários.
Assim, conforme o acervo crescia, também tomou forma o entendimento de
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que o espaço pretendido não era de acúmulo, mas de reflexão, ou seja, de um
acervo
online
que promovesse a produção e a democratização do saber, assim
como a atuação cidadã dos artistas, no que se refere à preservação da história das
artes locais e à implantação de práticas que garantam a organização e
democratização do acesso aos documentos sobre dança.
A proposta consistia em registrar a dança por meio de uma construção
coletiva junto com os fazedores de dança cênica que colaboraram, e ainda estão
colaborando, para fazer esse registro intermitente, participando com suas
doações, não no sentido de arquivamento de imagens passadas, mas, como diria
Hélio Oiticica (2011), de formar um
inventário
de vivências, uma coleção de fluxos
de vida.
Ao pensar na criação do acervo, necessidade que despontou durante o
percurso desta pesquisa, desconhecia completamente o imensurável trabalho que
estava por vir. Na verdade, acredito que ninguém que faça um ou dois cliques e já
acessa uma gama de informações em um acervo tem dimensão das adversidades
vivenciadas para que o material possa ser acessado tão facilmente. Ademais,
todos os acervos
online
que mencionei neste trabalho foram criados e
alimentados por mais de uma pessoa, de forma totalmente diferente do processo
de construção solitária do acervo do Acre. Nesse sentido, a aproximação com
a obra de Gilles Deleuze consegue explicar o paradoxo da solidão povoada:
Quando se trabalha, a solidão é, inevitavelmente, absoluta. Não se pode
fazer escola, nem fazer parte dessa escola. trabalho clandestino.
que é uma solidão extremamente povoada. Não povoada de sonhos,
fantasias ou projetos, mas de encontros. Um encontro é talvez a mesma
coisa que um devir ou núpcias. É do fundo dessa solidão que se pode
fazer qualquer encontro. Encontram-se pessoas (e às vezes sem as
conhecer nem jamais -las visto), mas também movimentos, ideias,
acontecimentos, entidades (Deleuze; Parnet, 1998, p. 14).
Práticas, desafios e negociações na tessitura do acervo
Além das enchentes e do incêndio mencionado anteriormente, em que
muitos materiais foram perdidos, duplicando demasiadamente o trabalho de
busca, visto que não era suficiente entrar em contato com o diretor ou
responsável, mas com os atuais e antigos bailarinos também, o que me fez acessar
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uma rede de possíveis colaboradores e realizar um trabalho de detetive
extremamente fadigoso, enfrentei o desinteresse inicial desses agentes, o que é
muito natural, em relação ao desconhecimento da importância de se ter arquivos
dos seus próprios trabalhos. Percebi, contudo, que as rivalidades de algumas
academias acabaram por auxiliar o profissional que, inicialmente, havia se
recusado a participar e que, ao perceber o
concorrente
com muitos materiais no
acervo, mudou de ideia.
Ao mesmo tempo, quando olho para trás, compreendo que não poderia ser
diferente, uma vez que esse entendimento da importância da memória está sendo
ainda construído pelo movimento de dança. Como artista atuante e pesquisadora,
vivenciei os dois lados da moeda. Valeria Vicente, que é uma das coordenadoras
do acervo RecorDança, e também vivencia esses dois lados, fala da sua
experiência:
Penso que não podemos mensurar o quanto as coisas que valorizamos
podem ser realmente consideradas importantes. Para mim, em algum
momento, cada uma das experiências aqui relatadas foi imprescindível.
Enquanto experiência pessoal fica marcado o quão difícil é ser fonte do
acervo Recordança. O quão duro é interromper o fluxo do cotidiano à
procura dos registros, das datas da informação precisa. Quão difícil é
encontrar palavras e reencontrar pessoas e situações abandonadas pela
urgência do presente. Ser fonte da história é algo que comove, que faz
dançar por dentro. Muitas das vezes senti os olhos marejados e o sorriso
tomando conta do rosto. Agora sou muito mais imensamente agradecida
a cada um que, desde 2003, parou para nos receber e dividiu conosco
sua história (Vicente, 2016, p. 30).
Aos poucos, essa construção foi gerando questionamentos aos grupos e,
paulatinamente, o acervo de dança estava assumindo outras funções. Além de
promover a organização de informações e disseminar o conteúdo de forma
democrática, o acervo começou a assumir o cargo de instigar a definição de
funções (bailarino, diretor, coreógrafo, intérprete-criador, colaborador e
dramaturgo) ao solicitar aos grupos uma ficha técnica discriminada. Assim, os
grupos começaram, por exemplo, a buscar esse entendimento para saber como
se autodenominar e definir seus processos como colaborativos, coletivos e/ou
outros.
Inicialmente, a cada grupo que solicitava ajuda, eu entregava textos de
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autores nacionais, elucidando as diferenças entre as funções, pois acreditava que
somente os atuantes do processo poderiam fazer essa definição, e me colocava à
disposição para conversas futuras. Poucos grupos voltavam para maiores
esclarecimentos ou para diálogos. Questionei, então, meu posicionamento e
comecei a realizar uma leitura conjunta desses textos, quando solicitado auxílio,
na intenção de propor uma maior abertura.
Ao longo da cartografia, constatou-se claramente uma dificuldade dos grupos
e das escolas em afirmar seguramente os nomes dos profissionais envolvidos nos
espetáculos, bem como os incentivos oferecidos pela região e os recebidos pelo
próprio grupo. Isso se deve ao fato de que parte dos fatos mais relevantes da
história da dança no estado ainda está apoiada no registro da memória pessoal.
No entanto, o maior desdobramento provocado pelo acervo está atrelado à
questão da autoria. Depois que a plataforma de distribuição digital de vídeos
YouTube
10 começou a bloquear a grande maioria dos espetáculos, que eram
postados na conta aberta especialmente para a Cartografia de Dança, alegando
que as músicas usadas nos espetáculos estavam violando os direitos autorais,
muitos questionaram esse acontecimento.
Como o quantitativo de espetáculos bloqueados se mostrava maior do que
aqueles que conseguiam permanecer, comecei a questionar a continuidade do
acervo, já que existe uma ferramenta embutida no
YouTube
, chamada
Content ID
,
que escaneia o conteúdo do
site
para detectar automaticamente reivindicação de
direitos autorais. Entretanto, depois de pesquisar sobre o assunto, passei a utilizar
a plataforma
Vimeo
11, que não faz esse tipo de bloqueio e ainda fornece mediante
pagamento – uma quantidade maior de espaço de armazenamento.
Quando pensei o processo de criação do acervo em dança como algo que iria
atuar para a promoção e difusão de saberes e fazeres, via reunião de fotos,
10 O
YouTube
é um
site
que permite que usuários de todos os pontos do planeta, que têm acesso à internet,
possam postar (carregar) e compartilhar deos em formato digital para serem acessados livremente por
todos os navegantes da rede.
11 O
Vimeo
é um
site
de
upload
e compartilhamento de vídeos, com uma quantidade enorme de usuários,
perdendo somente para o gigante YouTube, do Google. Seu acervo de vídeos é considerado de alta qualidade,
mas possui um limite de
upload
de 500 MB por semana ou 26 GB por ano para o usuário comum. Se o
usuário quiser aumentar essa faixa para 260 ou 1000 GB por ano, terá de assinar um plano de US$ 59,95 ou
US$ 199 anuais, respectivamente. O plano pago atualmente para que a Cartografia de Dança no Acre
permaneça no ar é o de 1000 GB.
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cartazes, vídeos e documentos, ou seja, das pequenas pistas que apontam para a
prática da dança que se faz no estado, esperava que questões emergissem ao
longo do tempo, mas não cogitei que isso iria acontecer logo no início da
construção do acervo. Vale ratificar que este problema, envolvendo autoria de
músicas em espetáculos, não ocorre somente nesse estado, de modo que existe
ainda uma questão que deve ser debatida nacionalmente.
No entanto, quando pensamos na história do Acre, explorada por anos a partir
da extração do látex, que organizou o território com base em ciclos de exploração
econômica, provocando profundas desigualdades sociais e marcas duradouras nas
políticas públicas da região,
na falta de formação formal na área da Dança, mesmo
na capital, nas dificuldades geográficas que inviabilizam a participação em
atualizações teórico-práticas para dança, e que envolvem também questões
éticas, no custo amazônico e nas dificuldades econômicas da maioria dos
fazedores de dança do estado, compreendemos que qualquer julgamento
comparativo seria perverso e até ingênuo. Corroborando esse pensamento,
Fabiana Britto (2001, p. 11) afirma que se trata de “[...] um outro modo de lidar com
a coisa mapeada, sem julgá-la pelo que é, mas apenas reconhecendo-a como
exemplo de possibilidades viáveis ao seu contexto”.
Nesse ínterim, oito meses depois da celeuma envolvendo o bloqueio dos
vídeos por questões de autoria, precisamente no dia 22 de abril de 2016, o Governo
do estado do Acre, por meio da Fundação Elias Mansour (FEM), abriu o edital
denominado Jamaxi Cultural com o objetivo de fomentar a circulação de produtos
artísticos prontos. Esse edital, cujo auxílio financeiro foi oriundo do Fundo Nacional
de Cultura, contribuiu para a troca de experiências e o intercâmbio entre artistas
e comunidade em geral, envolvendo as áreas de Teatro, Dança, Música e Artes
Visuais.
O repasse foi um dos maiores que o estado conseguiu para um edital
voltado somente à cultura, envolvendo o valor de R$ 2,2 milhões, com uma
proposta que abarcava circulação de produtos artísticos somente dentro do
estado e instituía um pagamento de oito mil reais para cada apresentação. Esse
edital, diferentemente dos editais passados locais, exigia, juntamente com os
documentos do proponente, um termo de liberação de direitos autorais da obra a
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ser apresentada, fornecido pelos órgãos coletores responsáveis Sociedade
Brasileira de Autores (SBAT), Escritório Central de Arrecadação ou Distribuição
(ECAD) e Associação Brasileira de Música e Artes (ABRAMUS) ou assinado pelo
próprio autor. Apenas um dos grupos redimensionou seus espetáculos depois do
bloqueio do
YouTube
, e muitos outros nem sequer conseguiram pleitear o edital
por conta dessa exigência. Desde então, o acervo começou a ser visto como uma
possível ferramenta para pleitear futuros editais.
Segundo Nirvana Marinho (2011, página eletrônica), gestora cultural, curadora
e responsável pelo acervo Mariposa, em forma
[...] de parceria e de articulação com a comunidade, com patrocinador e
com o público do acervo, o trabalho diário do acervo vem sendo criar
formas de entrelaçamento de uma rede de participantes do acervo:
coreógrafos que doam, professores que emprestam, instituições que
recebem doações, artistas que consultam e recriam, projetos que veem
no acervo um espaço de reflexão sobre a história viva da dança.
Dessa forma, o acervo Cartografia da Dança não deixa de ser um estimulador
à implantação de práticas que garantam organização e democratização do acesso
aos documentos sobre dança, já que, ao garimpar e pedir a colaboração, ocorrem
algumas consultorias para os membros responsáveis do grupo, no intento de que
estes sejam agentes da organização do próprio acervo. No entanto, alguns artistas
alegam dificuldade, falta de tempo ou esquecimento das funções de cada um nos
antigos processos.
O acervo Cartografia de Dança ainda está em construção e permanecerá
caminhando e produzindo, junto com os processos, espaços virtuais que
possibilitem a visibilidade, historicamente restrita a poucos, dos grupos, incluindo
aqueles que não possuem condições econômicas para veicular suas ideias e
produções.
A constituição do acervo foi um processo extremamente desafiador,
caracterizado pela dificuldade de acessar materiais dispersos e de digitalizá-los
com qualidade para exposição na web. Além disso, envolveu a produção de
filmagens de entrevistas em estúdio, o registro meticuloso dos processos de
formação e o uso da ciência da informação para tornar o acervo acessível
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virtualmente. O resultado foi a criação de um acervo online operacional, disponível
no endereço eletrônico http://cartografiadadancadoacre.com.br.
Todos os bailarinos de dança cênica são convidados a doar a qualquer tempo
pistas-rastros dos seus processos. Embora alguns números impressionem pela
abundância (são mais de 1460 fotos de espetáculos, mais de 82 espetáculos,
muitas sinopses e cartazes), o que mais chama atenção no acervo não está
vinculado ao que é possível quantificar, mas à potência dessa ferramenta que se
apresenta. Afinal, consegue-se, por meio dela, dar luz a alguns fenômenos, às
escolhas (que são políticas), ao que foi subvertido, ao que revela das criações, ou
seja, ao que já aconteceu e ao está acontecendo no presente em um dos estados
mais ocidentais do Brasil.
Na primeira década estudada (1996 a 2006), predomina o ambiente da escola
de Dança, da qual, certamente, saiu a maior parte dos artistas que comporiam os
grupos e as novas escolas que seriam fundadas nos onze anos seguintes. Com
exceção, sobretudo de Regina Maciel, que fazia um trabalho de pesquisa
independente e dirigia uma companhia desde os anos 1990, denominada Garatuja,
a qual, em 2001, passou a ser conhecida como Companhia Garatuja de Artes
Cênicas12, somado aos seus trabalhos voltados à linguagem da dança, nesses
primeiros dez anos existia um único espaço denominado
escola
de Dança, a
Dançando no Ritmo
. Essa escola tinha, portanto, o prestígio de ser única e envolvia
um grande quantitativo de alunos, movimentando a cidade com suas
apresentações de fim de ano com produções que ficaram muito conhecidas e
influenciaram a formação de diversos bailarinos. Como era a única no estado, por
diversos anos Lina Márcia e Lilian Pinho, ambas de Fortaleza e responsáveis pela
escola, ofereceram cursos de
jazz
, balé clássico e sapateado também em projetos
sociais financiados com apoio da prefeitura.
Dramaturgias nos espetáculos catalogados
No decurso da década seguinte analisada (2007 a 2017), outras tantas escolas
surgiram e uma flexibilidade começou a ser imposta. Nesse contexto, alguns
12 Informações sobre a referida companhia disponíveis em: https://cartografiadadancadoacre.com.br/?p=139.
Acesso em: 01 jun. 2025.
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bailarinos não aceitaram mais a exigência de exclusividade e, a partir de 2012,
diferentes realidades de produção se enunciaram, com outros formatos de
trabalhos. O estado passou a conhecer tanto companhias independentes de
escolas quanto artistas independentes, com propostas de processos criativos
solos, em dueto ou em grupo.
As formas de organização para produzir artisticamente estão diretamente
ligadas aos modos de pensar o corpo na dança, e esse engendramento está
associado ao que denominamos dramaturgia. A esse respeito, Beatriz Cerbino
(2010, p. 19) afirma que, tão “[...] importante quanto um espetáculo é a discussão
que ele pode gerar, as diferentes maneiras de percebê-lo e de se apropriar das
ideias que ele coloca em movimento”.
Nesse sentido, retomei a pesquisa realizada durante o mestrado na
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), que se destinava justamente a
repensar as metáforas de demarcação da dramaturgia, a partir da expansão dos
limites do termo, para além das já conhecidas demarcações exclusivas da prática
teatral, a fim de discutir as escolhas dramatúrgicas.
Essa expansão dos domínios que o conceito de dramaturgia vem
sofrendo causou várias inquietações e tem transformado a compreensão
do comportamento cênico nas mais diversas tradições. Da mesma forma,
o conceito de dramaturgia vem sendo modificado pelos comportamentos
cênicos (Alvim, 2012, p. 12).
Nesse trabalho, a compreensão de dramaturgia alinha-se a perspectivas que
reconhecem sua expansão para além das estruturas narrativas tradicionais e do
texto dramático. Sandra Parra (2023) entende que a dramaturgia é concebida,
composta e estruturada em um determinado tempo e sociedade, e, mesmo
quando mobiliza referências do passado, estas são atualizadas no presente,
refletindo as condições simbólicas e materiais de sua criação. A autora, ao citar
Ana Pais (2004), aproxima-se da definição de dramaturgia como modo de
estruturação do sentido do espetáculo, enfatizando seu caráter relacional e
processual.
Na mesma direção, Bianchi e Krein (2023) compreendem a dramaturgia como
um modo de operar a cena, em que elementos como corpo, espaço, tempo e
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objetos não atuam isoladamente, mas são articulados em composição.
Tais compreensões fundamentam as análises aqui desenvolvidas, em que as
escolhas dramatúrgicas dos espetáculos observados são entendidas como
construções contextuais, atravessadas pelas condições sociopolíticas locais, pelas
trajetórias dos artistas e pelos modos de produção vigentes.
Ao observarmos as escolhas dramatúrgicas no mapa traçado durante o longo
percurso de tessitura do acervo, é possível concluir que, predominantemente, os
espetáculos, mesmo os mais recentes, contam histórias que são representadas
por meio de danças, muitas vezes com a mímica como forte aliada. Trazem, assim,
ao universo do balé de repertório, não necessariamente elementos específicos
contidos nos clássicos como
Quebra-Nozes
,
O Lago dos Cisnes
e
Giselle
, mas um
entendimento e escolhas que são próximas desses espetáculos.
O tempo parece ainda ser o da produtividade e, muitas vezes, está atrelado
à adequação dos editais, que são fonte de pequenos recursos financeiros para
trabalhos de curta duração. Existe pouco tempo para pesquisa ante a
obrigatoriedade de produtos de fim de ano, o que inviabiliza a maturidade e impõe
o uso do movimento já habitual ou mais fácil de ser acessado.
Certamente, a falta de graduação ou de curso técnico específicos da área da
Dança dificulta desconstruir constituições menos sinópticas, envolvendo a dança
no Brasil, o que reforça uma identidade unívoca, assim como não possibilita uma
discussão em relação ao controle social do corpo, das singularidades e da
variabilidade de formas expressivas em oposição à esterilização de modelos
consagrados. Não é incomum, assim, encontrar mais de uma dezena de
espetáculos inspirados em temas de filmes estadunidenses, como
Mamma Mia!
,
Malévola
e
Moulin Rouge
e certificar que, no Acre, quantitativamente as danças
cênicas ainda apresentam um repertório de movimentos que já lhes é familiar, de
produções bem anteriores ao projeto presente.
Todas as produções artísticas são compostas de saberes e práticas
específicas que se organizam a partir de modos distintos de estruturar o
conhecimento. Com um olhar armado para o acervo, é possível perceber
despontando na totalidade produtos cênicos menos etéreos, com temas mais
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associados à vida dos coreógrafos e intérpretes, que privilegiam o próprio corpo
ou parte dele nos processos de criação.
Alguns processos reforçam a dicotomia entre corpo e mente e ainda ratificam
o desamparo de um povo composto pela universalidade das vontades, como tão
bem coloca Foucault (2002). É sabido que existiu uma preponderância histórica,
principalmente no Ocidente, da visão maniqueísta entre corpo e mente,
perspectiva que deixou o corpo polarizado e, consequentemente, desprivilegiado,
permanecendo dessa forma até o século XX.
Percebe-se que os espetáculos que têm o corpo como eixo central
dramatúrgico, entrando em diálogo de forma isonômica com a tendência global, a
reservar um lugar mais privilegiado ao corpo, depois de um longo esquecimento,
findam acessando alguns editais de circulação com mais facilidade que outros.
Nesse sentido, um discurso legitimador de determinadas produções, que se
distanciam dos repertórios existentes nos primeiros 15 anos analisados, agita os
fazedores e, inevitavelmente, modifica lentamente a produção local.
Para além disso, a circulação de grupos e artistas começa a acontecer de fato
somente depois de 2014, dentro do estado e fora dele. Essa oportunidade contribui
não somente para a formação de plateia, nos vários municípios, quando se trata
de circulação dentro do estado, mas também para a possibilidade de essas novas
formas de pensamento e criação serem conhecidas, o que estimula o interesse e
a formação de novos criadores.
Em linhas gerais, a relação entre dança e política, negada por muitos, existe
em todas as criações, mas é mais facilmente perceptível em alguns trabalhos
artísticos cujas escolhas dramatúrgicas são movidas por crenças e, nesse sentido,
existem como (re)afirmadoras de pensamentos ou dogmas, tornando-se, assim,
um instrumento de divulgação e legitimação. Nesse contexto, cita-se o caso das
igrejas evangélicas, responsáveis no estado por grande parte da iniciação dos
alunos em dança e também por estimulá-los a ingressarem nas escolas de Dança
com o objetivo de melhorar a qualidade técnica dos movimentos.
Diante das fronteiras e interseções que se revelam, percebe-se que entender
a produção da dança cênica nessa região do país requer uma ampla
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conscientização acerca da própria evolução do pensamento e também do
entendimento de como todas as práticas em dança cênicas estão sendo
desenvolvidas e da forma como suas memórias estão sendo preservadas.
A salvaguarda desse patrimônio imaterial ocorre com a democratização do
acesso a informações por meio do compartilhamento virtual. O acervo
online
conta com um menu que inclui os seguintes
links
: Início, Apresentação, Grupos,
Espetáculos, Ações/Formação, Faça parte, Parcerias, Contato e Buscas. O
link
Início
apresenta várias fotos, mostrando a diversidade dos espetáculos
catalogados (Figura 3).
Figura 3 - a) Exemplo da pluralidade dos espetáculos (Espetáculo
Kênes
, Companhia Garatuja de Artes
Cênicas, 2014); b) Exemplo da pluralidade dos espetáculos (
Sansão e Dalila
, Escola de Dança Adorai);
c) Exemplo da pluralidade dos espetáculos (Espetáculo
Flor da pele
, Studio Contemporâneo, 2015);
d) Exemplo da pluralidade dos espetáculos (Espetáculo
Mulheres
, Studio Alimah, 2014).
Ao clicar em um dos grupos escolhidos, a página abre e oferece informações
sobre o grupo, como tempo de permanência, apoios e patrocínios recebidos, além
de mídias (
blogs
, páginas no
Facebook
e
sites
) da companhia ou escola de Dança.
Depois, vem o
link
Espetáculos, que reúne todos os espetáculos que foram
catalogados na pesquisa, informando o nome de cada um e o seu ano de
produção.
Para a seleção dos espetáculos, empregou-se o entendimento de Noel Bollina
(2007, p. 1), segundo o qual:
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Para materializar-se como espetáculo, a dança precisa se apoiar em
princípios de composição. Processo unificado que procura ressaltar todas
as partes da obra coreográfica. O percurso coreográfico deve legitimar
todas as partes a partir de um sistema de relações significativas, diga-se,
comunicadora de sentidos. Entretanto, a uniformidade desde sentido
está longe de constituir uma regra de composição, como sabemos
diante de tantas maneiras distintas de imaginar uma cena coreográfica.
Para ilustrar como as informações são organizadas e disponibilizadas no
site
do acervo, apresento a seguir capturas de tela de páginas dedicadas a dois
espetáculos (Figuras 4 e 5). Cada página reúne elementos como sinopse, ficha
técnica, fotografias de cena, vídeos, peças gráficas e campos destinados a
links
e
material de imprensa, ainda em construção. A estrutura dessas páginas
exemplifica o esforço de sistematização e acessibilidade do acervo, permitindo ao
visitante ter contato com aspectos artísticos, técnicos e visuais de cada obra
registrada.
Figura 4 - Informações específicas de cada espetáculo. Vídeos,
fôlderes
, cartazes e até 27 fotos.
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Figura 5 - Informações específicas de cada espetáculo. Vídeos,
fôlderes
, cartazes e até 27 fotos.
O mesmo se pode dizer da quantidade de registro reavido dos festivais e
fóruns, que são atividades correlacionadas à criação, à formação de público e ao
sistema de dança local. Percebe-se, ao examinar esse material, que muitos desses
festivais e fóruns buscam soluções mais econômicas, o que faz com que
desenvolvam as atividades apesar da ausência da verba pública, criando
alternativas para continuar existindo, o que é excelente do ponto de vista da
continuidade, mas que, ao mesmo tempo, inviabiliza eventos maiores, teórico-
práticos, com produções de fora do estado.
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O acervo como ferramenta de acesso, pesquisa e preservação da memória
artística e cultural
Ainda que o conhecimento em Dança venha alcançando um considerado
espaço nas pesquisas acadêmicas, são poucas as teses que conseguem ser
publicadas sobre tal disciplina. Quando essas publicações acontecem, a
distribuição da editora geralmente não atinge a região do Acre de forma
satisfatória, sem contar os altos valores do frete, que acentuam a distância entre
os bailarinos da região e os livros da área. Nesse sentido, esses arquivos
online
,
com seus levantamentos de dados, documentos, fotos, vídeos, matérias de jornal
e entrevistas, ganham ainda mais importância para regiões afastadas dos grandes
centros, por dar visibilidade aos materiais de pesquisa, geralmente engavetados,
quando não olvidados.
Apesar disso, é raro universidades ou programas de pós-graduação
preocuparem-se em criar ou manter acervos, principalmente na área de Artes
Cênicas, embora estejamos cientes de que é dever da universidade “garantir a
memória das organizações para efeitos científicos da pesquisa histórica ou para
efeitos de transmissão cultural” (Bellotto, 2014, p. 74).)
uma deficiência nas ações e nos recursos para dar continuidade e
visibilidade, para toda a comunidade, às iniciativas que alimentam o fluxo de
informação documental gerada na universidade, ainda que a contemporaneidade
esteja cada vez mais ligada à tecnologia e às maneiras subjetivas de organizar
dados, acontecimentos e memórias nas Artes Cênicas. Precisamos, portanto,
modificar a forma de pensar a história das danças e as formas de comunicação,
porque mudaram as maneiras de dançar, de criar e de compreender conceitos de
corpo, movimento e criação e, principalmente, a relação com o tempo.
Deve-se destacar, também, que o acervo, por seu comprometimento,
recebeu o convite para participar do projeto
Performar Arquivos
, trabalhando
memória e história da Dança, uma ação e concepção do
Vizinhas
, que envolve o
acervo Mariposa (São Paulo), o grupo Temas de Dança (Rio de Janeiro) e o acervo
RecorDança (Pernambuco), junto com o projeto
Olhares pra Dança
, de Goiânia.
O convite proporcionou uma alegria enorme em dividir um tempo com
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acervos tão comprometidos em discutir como a dança é afetada pelos seus
aparatos de registros, produzindo seu material imbricado com a produção teórica
e proporcionando uma relação entre arquivo e a dança.
Nessa oportunidade, oferecida pelo
Performar Arquivos
, desdobrei o olhar
para o mecanismo de seleção e, consequentemente, de descarte, de eliminação
que normalmente acontece na criação de um acervo. Busquei me debruçar sobre
todas as imagens e vivências que não entraram no acervo de dança do Acre, mas
que estão vinculadas à circulação que realizei durante o doutorado nos 22
municípios, parte de uma estrutura importante que fala muito do estado.
Percebemos, com a construção do acervo, que as produções ainda estão,
contudo, mais voltadas para horizontes distantes, que atravessam a Linha do
Equador, do que com as vinculações sociais políticas que nos cercam ou com
aquilo que nos distingue. Vale ressaltar, porém, que essa realidade tem muito mais
vínculo com a falta de formação, com o custo amazônico e as dificuldades em
acessar editais do que propriamente desinteresse em criar outras maneiras de se
fazer e pensar dança.
Evidenciamos, assim, a existência de múltiplas histórias e danças para nos
desvincular de discursos totalizantes. Compreender o cenário em que atuamos é
uma tarefa fundamental para embasar o discurso e a relação das histórias da
Dança. É preciso saber quem somos, o que fazemos, como fazemos e para quem,
aproximando esse Brasil de fronteira dos grandes centros de maneira isonômica e
inventiva.
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UDESC
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PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br