1
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada:
subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola
Fernando Augusto do Nascimento
Para citar esta Resenha:
NASCIMENTO, Fernando Augusto do. Dramas e dilemas
do professor bixa-afeminada: subversões de gênero, raça
e ancestralidade na escola.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 55, ago.
2025.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102552025e0104
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada : subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola
Fernando Augusto do Nascimento
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-21, ago. 2025
2
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada1: subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola2
Fernando Augusto do Nascimento3
Resumo
Diante do avanço de governos conservadores e de seus impactos sobre corpos LGBTI+, especialmente
no contexto escolar, esta pesquisa investigou como as estratégias “professor(a)-personagem” e
“estímulo composto” contribuíram para a discussão de questões interseccionais (gênero, sexualidade
e relações étnico-raciais) em um processo de Drama com crianças do 5º ano do Ensino Fundamental
SC. Utilizou-se a metodologia de pesquisa-formação, com registros e análises baseadas no diário de
campo, nas materialidades criadas pelas crianças e nas memórias docentes. O estudo foi
fundamentado em teorias de gênero, Queer, entre outras, no âmbito das Pedagogias do Teatro e das
Artes Cênicas na escola.
Palavras-chaves
: Drama. Pedagogias das Artes nicas. Teatro na escola. Perseguição a docentes.
Infâncias dissidentes.
Dramas and dilemmas of the effeminate queer teacher: Subversions of gender, race, and ancestrality in
the school
Abstract
Amid the rise of conservative governments and their impacts on LGBT+ bodies, particularly within
educational context, this study explored how the strategies of “teacher character” and “composite
stimulus” contributed to addressing intersectional issues (gender, sexuality and ethno-racial relations)
through a Drama-based process with fifth-grade children in a public school SC. The research adopted
a research-training methodology, drawing on field diary entries, material artifacts created by the
children and teacher reflections. Grounded in gender theory, queer, among others, the study is situated
within the pedagogical practices of Theatre and Performing Arts in schools.
Keywords
: Drama. Performing Arts Pedagogies. Theatre in schools. Persecution of teachers. Dissident
childhoods.
Dramas y dilemas del profesor marica-afeminado: Subversiones de género, raza y ancestralidad en la
escuela
Resumen
Frente al avance de gobiernos conservadores y sus impactos sobre los cuerpos LGBTI+, especialmente
en el contexto de la escuela, esta investigación examinó cómo las estrategias del “professor(a)-
personaje” y del “estímulo compuesto” contribuyeron a la discusión de cuestiones interseccionales
(género, sexualidad y relaciones étnico-raciales) en un proceso de Drama con niños(as) del quinto grado
de la Educación Primaria SC. Se utilizó la metodología de investigación-formación, con registros y
análisis basados en el diario de campo, en las materialidades creadas por las infancias y en las
memorias docentes. El estudio se fundamentó en teorías de género, Queer, entre otras, en el ámbito
de las Pedagogías del Teatro y de las Artes Escénicas en la escuela.
Palabras clave
: Drama. Pedagogías de las Artes Escénicas. Teatro en la escuela. Persecución a
docentes. Infancias disidentes.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Luiza Faé Mantovani. Graduação em Letras pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
2 Este artigo é um recorte de um subcapítulo da tese intitulada “Hoje não vão nos matar calar!: desafios e possibilidades
artístico-pedagógicas interseccionais da docência em Teatro na escola pela Universidade do Estado de Santa Catarina
(UDESC). A pesquisa foi financiada pelo Programa de Bolsas Universitárias de Santa Catarina (UNIEDU) e Fundo de Apoio
à Manutenção e ao Desenvolvimento da Educação Superior Catarinense (FUMDESC).
3 Doutorado e Mestrado em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade do Estado
de Santa Catarina (UDESC). Graduação em Teatro pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Professor de Arte no
Ensino Fundamental na Rede Pública Municipal em Santa Catarina. nandonascimento2023@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/6141279996342533 https://orcid.org/0000-0003-1830-0194
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada : subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola
Fernando Augusto do Nascimento
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-21, ago. 2025
3
Quem amaldiçoou o mundo encantado?: O contexto real, ficcional e o
pré-texto
Esse processo de Drama4 (Cabral, 2006; Pereira, 2021) foi mediado com uma
turma de ano no município de Itaguaçu5 (nome fictício), localizado na região
intitulada Grande Florianópolis - SC, no formato de aula-faixa (duas aulas
seguidas). O processo foi realizado em uma turma de ano matutino, com 32
estudantes, durante os e bimestres em 2024, em aula-faixa. Foi com este
formato que mais me identifiquei para mediar processos de Drama, pois ele
permite um tempo mais dilatado para que as crianças experimentem as
propostas, sem a pressão de um horário de 45 minutos, haja vista que leciono em
mais turmas no mesmo turno.
Utilizei como pré-texto6 a série
Once upon a time
, cuja narrativa trata de
personagens que, sob uma maldição, ficam presas em uma cidade sem memória;
uma história que se passava entre o mundo real (a cidade) e o mundo encantado
(os contos de fadas). Essa premissa me instigou a usá-la, pois abria possibilidades
para explorar diferentes personagens conhecidas pela turma e permitiu ainda que
as crianças criassem personagens. Além disso, diagnostiquei que aquela turma
estudava os gêneros literários com a professora regente (pedagoga), o que
contribuiu para entrelaçar o contexto real e o interesse das crianças. Identifiquei
ainda, em conversa com a turma, que algumas crianças gostavam de personagens
literários como, por exemplo: Harry Potter, Gregory Heffley, da série de livros
Diário
de um banana
, algumas princesas da
Disney
e mangás japoneses como
Naruto
,
One Piece
e
Dragon Ball
. Sendo assim, o objetivo também foi ampliar o repertório
4 Método inglês difundido no Brasil, inicialmente, pela professora e pesquisadora Beatriz Cabral através do
livro
Drama como método de ensino
(2006). Para a autora “[...] o drama como método de ensino, eixo
curricular e/ou tema gerador constitui-se atualmente numa subárea do fazer teatral e está baseado num
processo contínuo de exploração de formas e conteúdos relacionados com um determinado foco de
investigação (selecionado pelo professor ou negociado entre professor e aluno). Como processo, o drama
articula uma série de episódios, os quais são construídos e definidos com base em convenções teatrais
criadas para possibilitar seu sequenciamento e aprofundamento”. (Cabral, 2006, p. 12)
5 Considerando a constante perseguição a docentes democráticos/progressistas (Fernandes, 2021), em Santa
Catarina, optei por não mencionar o nome da cidade na qual leciono e realizei esta investigação. Portanto,
denominei o município com o nome fictício de “Itaguaçu”, em uma tentativa de preservar a origem indígena
da designação original e em referência à lenda catarinense das Bruxas de Itaguaçu de Florianópolis.
6 “Trata-se de uma referência (textual, histórica, visual, musical, fílmica, entre outras) que serve de apoio para
o desenvolvimento do processo; uma fonte a qual se pode retirar ideias e sugestões para novas situações
e papéis a serem propostos aos(às) participantes”. (Pereira, 2021, p. 67)
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada : subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola
Fernando Augusto do Nascimento
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-21, ago. 2025
4
ficcional dos(as) alunos(as).
Portanto, neste artigo centro minhas análises nos desafios e nos dilemas
enfrentados pelo professor bixa-afeminada7, na mediação artístico-pedagógica
com crianças através da estratégia “professor(a)8-personagem” (Vidor, 2010), no
contexto educacional conservador/bolsonarista9 de Itaguaçu SC e nas
possibilidades para trazer à tona as discussões étnico-raciais, sobretudo acerca
da afro-ancestralidade catarinense a partir da estratégia “estímulo composto”
(Somers, 2011).
Assim, utilizei os pressupostos teórico-metodológicos da Pesquisa-formação
(Passeggi, 2016) baseada nas narrativas, na experiência pessoal e profissional do(a)
professor(a) como fundamentos para compreender os processos formativos, da
formação inicial à continuada, a partir da reflexão sobre sua práxis em sala de aula
(Passeggi, 2016). Os dispositivos metodológicos utilizados foram: as minhas
memórias da prática docente e do cotidiano escolar materializadas como “cenas-
problema”; os registros no diário de campo (planejamentos, fotografias, vídeos e
registros no grupo de
WhatsApp
da pesquisa) sobre os processos artístico-
pedagógicos; e as materialidades (textos escritos, desenhos, vídeos, áudios e
cenas) criadas pelas crianças em sala de aula10.
7 Ao me referir às minhas bixices, utilizarei o feminino, tal como nós, bixas afeminadas, fazemos quando
estamos em nosso
metiê
, entre viada(gen)s. Empregarei ainda o binômio “bixa-afeminada”, com hífen, para
enfatizar esses dois marcadores identitários de desigualdades: “bixa e afeminada”. Estes atravessam minhas
experiências docentes na escola e os ressignifico como lugar de resistência e empoderamento. Essas
apropriações estão em diálogo com um “arcabouço teórico de bixas e afeminadas” como Paco Vidarte (2019),
entre outros(as), que constam na tese de doutorado anteriormente citada.
8 Opto por utilizar a flexão “professores(as)” para me referir às pessoas mencionadas ao longo deste artigo.
9 O conceito de conservadorismo “à brasileira”, “se refere às camadas reacionárias e com teor nacionalista,
onde o conservadorismo de costumes ultrapassa o ideal político e econômico, sendo no contexto brasileiro
caracterizado por uma ideologia muitas vezes discriminatória [...]” (Costa, 2023, p. 1). O bolsonarismo germina
no Brasil entre 2017-2018 no período eleitoral, como um movimento populista como referência ao ex-
presidente Jair Bolsonaro, “apoiado no slogan Deus, Pátria e Família e estruturado a partir de ideais da
extrema direita” (Probst; Mueller; Holzapfel; Busarello, 2023, p. 137). Atualmente, se consolidou como um
movimento político-ideológico de viés conservador atrelado à extrema direita. (Probst; Mueller; Holzapfel;
Busarello, 2023)
10 A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética para Pesquisa com Seres Humanos/UDESC (número do
Certificado de Apresentação de Apreciação Ética - CAAE 72861723.3.0000.0118 - Plataforma Brasil). Todas as
imagens neste artigo foram autorizadas pelos(as) familiares, com assinaturas dos termos do Comitê de
Ética. Além disso, as crianças foram informadas (e as pessoas responsáveis por elas) que as fotografias e
falas seriam publicadas em uma pesquisa. Ainda assim, para manter a integridade das crianças em uma
pesquisa que aborda temas que são censurados e perseguidos, também opto em não identificar
explicitamente os rostos dos(as) estudantes.
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada : subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola
Fernando Augusto do Nascimento
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-21, ago. 2025
5
Para isso, minhas reflexões estão pautadas nos estudos de gênero,
Queer
e
das relações étnico-raciais com base nos seguintes autores(as): Renata Pimenta11,
Joana Passos e Carlos Silva (2022); Bárbara Carine Pinheiro (2023); e Judith Butler
(2024). Além disso, proponho discussões com base nos estudos sobre infâncias
dissidentes, com recorte no método do Drama, bem como acerca da censura na
escola em diálogo com os(as) seguintes autores(as): Beatriz Cabral (2006); Mateus
Fazzioni (2023); Diego Pereira (2021; 2024); e Valmor Nini Beltrame (2020).
O professor bixa pode se montar em sala de aula?: A estratégia
“professor(a)-personagem” entra em cena
Nesse processo de Drama, interessava-me investigar as possibilidades
artístico-pedagógicas no contexto ficcional do encontro do meu corpo bixa com
outros corpos e narrativas dissidentes de raça e gênero, na mediação com as
crianças em sala de aula. Para isso, experimentei as estratégias12 do método do
Drama intituladas “estímulo composto13 (Somers, 2011) e “professor(a)-
personagem”14 (Vidor, 2010), que emergiram em tensionamentos de gênero e
discussões sobre raça na perspectiva da ancestralidade afro-catarinense. No
entanto, essas possibilidades se efetivaram a partir da experimentação e
construção da narrativa pelas crianças, permitindo-me encontrar, nas lacunas do
processo, de forma coerente com a história que estava sendo criada, os possíveis
percursos artístico-pedagógicos (considerando que não sabia se esses meus
objetivos se concretizariam ou como poderiam adentrar a prática).
11 Neste artigo, opto por citar os nomes completos dos(as) autores(as), com o objetivo de dar visibilidade às
escritoras e teóricas.
12 Para o autor Diego Pereira (2021, p. 81), as “estratégias oferecem uma variedade de meios para enriquecer,
delinear e aprofundar a experiência dramática. Elas delimitam as ões que serão realizadas pelos(as)
participantes em cada episódio do processo”. Para mais informações sobre as estratégias utilizadas neste
processo, indico as seguintes leituras: “professor(a)-personagem” (Vidor, 2010); “estímulo composto”
(Somers, 2011); “cenas congeladas”, “assembleia de personagens”, “ambientação cênica”, “manto do perito”,
“ritual” e “cadeira quente”. (Pereira, 2021)
13 Por meio dessa estratégia pode-se investigar diferentes materialidades com o objetivo de construir uma
narrativa. Para o autor John Somers (2011, p. 179), ao organizar “diferentes artefatos objetos, fotografias,
cartas e outros documentos, incluídos em um container apropriado” pode-se criar hipóteses com o objetivo
de construir uma história coletiva.
14 Para a autora Heloise Vidor (2010), essa estratégia permite ao(a) professor(a) vivenciar papéis ficcionais na
mediação do processo, ampliando as possibilidades artísticas na ficção “[...] como dramaturgista, como
diretor, como cenógrafo, figurinista e ator, colocando-se também como um artista, um criador”. (Vidor, 2010,
p. 14).
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada : subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola
Fernando Augusto do Nascimento
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-21, ago. 2025
6
O processo foi criado com os seguintes episódios em cada aula-faixa:
Primeira aula:
episódio
houve a inserção do contexto ficcional15 através
da estratégia professor-personagem Tempo16, que contextualizou a história
e convocou as crianças a ajudarem as personagens literárias a retornarem
para os livros. As crianças desenharam duas personagens (um/a favorito/a
e outra criada por elas) para responder à hipótese “quais eram essas
personagens que estavam presas na cidade sem memórias?”;
Segundo aula:
episódio
os(as) estudantes criaram cenas congeladas
para responderem às seguintes questões/hipóteses: “quem lançou o
feitiço e por que amaldiçoou o mundo encantado?”;
Terceira aula:
episódio
sugeri à turma uma votação para definir o
nome da cidade na qual as personagens estavam presas. As crianças
criaram alguns nomes fictícios e escreveram na lousa. Em seguida, a
maioria decidiu que a cidade se chamaria Toca do Sinto e o mundo
encantado se chamaria Reino Mágico. Depois, improvisaram cenas das
personagens em diversas profissões na cidade Toca do Já Sinto;
Quarta aula:
episódio
organizamos uma assembleia de personagens
para julgar (estratégia cadeira quente) Pinóquio e o Grilo Falante, que,
segundo informações, estavam espalhando “mentiras verdadeiras” de que
15 “Escolhido o tema, proveniente do contexto real das crianças, partimos para a delimitação da situação
imaginária na qual ocorreriam as explorações teatrais. Em quais tempo e espaço a situação dramática será
experimentada? [...] Encontrar alguém desaparecido? Desvendar um mistério? [...] o Drama propõe que se
crie uma situação imaginária que tenha ressonância em seu contexto real [...]. Todas as atividades
desenvolvidas nesse tempo e espaço criados serão realizadas “como se” os(as) participantes pertencessem
a esse contexto ficcional” (Pereira, 2021, p. 65).
16 Tempo: (abrindo a caixinha, da qual sai uma luz e ilumina o seu rosto, cantando) Tic-tac, tic-tac, tic-tac...
(Retira da caixinha um papel e começa a leitura em tom de mistério) Em um reino muito, muito distante,
uma maldição foi lançada em todas as personagens da literatura... Em todas as personagens literárias que
nós conhecemos - e nas personagens que nós não conhecemos ainda também - que foram presas em
uma cidade sem lembrarem quem elas realmente eram. Essa maldição fez com que essas personagens
dos livros perdessem a memória de quem eram de verdade e, desde então, elas vivem lá, presas, vivendo
outras vidas, sem lembrarem do seu passado... Mas um dia, algo aconteceu... Na biblioteca da cidade, uma
criança encontrou um livro mágico, onde os moradores da cidade eram iguais as personagens do livro, mas
algumas páginas estavam rasgadas. A criança tentou contar essa história para alguns moradores, mas
infelizmente, ninguém acreditou nela, pois essa criança era conhecida por inventar muitas histórias, por isso,
seu nariz já estava crescendo - diziam os que ouviram a criança contar essa história do livro mágico. Assim,
essa criança queria entender: quem fez essa maldição? Por que alguém teria lançado esse feitiço? O que
teria escrito nas páginas do livro que foram rasgadas? Será que outras crianças um dia conhecerão essas
personagens ou elas ficarão presas para sempre nessa cidade? Como poderia salvar o mundo encantado e
as personagens literárias? Quem poderia ajudar? (O narrador olha para as crianças e pergunta) vocês querem
ajudar a desvendar esse mistério e salvar o mundo encantado?
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada : subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola
Fernando Augusto do Nascimento
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-21, ago. 2025
7
os(as) moradores(as) de cidade seriam personagens literárias. Nesse
episódio, entrei em cena como Regina, a prefeita da cidade, utilizando
novamente a estratégia professor-personagem;
Quinta aula:
5º episódio
– a partir das hipóteses criadas pelas crianças na
assembleia de personagens entre elas, a sugestão de um aluno de que
os livros estariam em uma passagem secreta na biblioteca -, propus que
criassem livretos com as histórias dessas personagens (as que já existiam
e as que elas criaram no início do processo);
Sexta aula:
episódio
– por meio das estratégias de ambientação cênica
e manto do perito, criei uma atmosfera para que os(as) estudantes
investigassem essa passagem secreta sugerida pelo aluno no episódio,
localizada na Biblioteca Municipal Toca do Sinto. Em seguida, lemos
alguns livros em voz alta. As crianças leram as histórias e eu li o livro A
mais bela de todas: a história da rainha má, da autora Serena Valentino17,
na versão da história sobre a Rainha na cidade, representada pela
prefeita Regina;
Sétima aula:
episódio
momento em que a turma recebeu um cesto
indígena com diferentes objetos (estímulo composto) e uma carta pedindo
ajuda. Nesta etapa, a carta foi enviada pela artista afro-catarinense
Thuanny Paes, como personagem da cidade, direcionada à turma, pedindo
ajuda para relembrar seu passado;
Oitava aula:
episódio
finalizamos o processo com os(as) estudantes
confeccionando as silhuetas de suas personagens e realizando um ritual
(estratégia ritual) de retorno das personagens para os livros;
Última aula: recapitulamos o processo através das materialidades criadas
e imagens do processo exibidas na TV, a fim de discutirmos sobre a
experiência cênica. Além disso, propus às crianças que criassem desenhos
17 “Ela é a primeira vilã da Disney. Apesar da beleza exuberante, é invejosa e extremamente má. Capaz até de
pedir a um caçador o coração da doce e ingênua princesa do reino, ela chega a envenenar uma maçã para
conseguir se livrar de sua rival. Mas toda história tem dois lados, não é verdade? Será que você conhece
realmente a origem da Rainha Má? Este livro vai te contar uma história desconhecida até então. Ela é sobre
amor e perda, com uma pitada de magia.” Disponível em:
https://www.amazon.com.br/Mais-Bela-Todas-Hist%C3%B3ria-Rainha. Acesso em: 16 janeiro de 2025.
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada : subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola
Fernando Augusto do Nascimento
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-21, ago. 2025
8
dos episódios que mais acharam interessantes (como os desenhos da
personagem Regina, utilizados neste artigo).
Figura 1 síntese dos episódios, fotomontagem elaborada pelo autor, 2025.
Na fotomontagem acima, que ilustra uma síntese do processo, estão
representadas as seguintes cenas: o momento da assembleia de personagens (nas
primeiras imagens); minha interpretação como professor-personagem Tempo,
improvisação das crianças no Mundo Mágico e personagem de papel retornando
para o livro (imagens centralizadas); improvisação de cenas na quadra da escola,
momento em que um aluno relembra o primeiro episódio para colegas que não
estavam presentes na primeira aula e improvisação das personagens na cidade
Toca do Já Sinto (últimas imagens).
Para analisar a prática, retomo duas “cenas-problema” que emergiram do
processo nos e episódios: os dilemas envolvendo minha interpretação da
personagem Regina em sala de aula diante dessa conjuntura conservadora, que
associa a prática teatral na escola à “doutrinação gay”; e a (in)visibilidade das
questões raciais ao relacionar o contexto real e ficcional, para discutir a noção de
ancestralidade afro-catarinense, com base na biografia da professora de
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada : subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola
Fernando Augusto do Nascimento
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-21, ago. 2025
9
Arte/Teatro Thuanny Paes e nas hipóteses das crianças.
Antes de iniciar as análises, relembro um momento inicial do processo que
demonstra a imersão das crianças no contexto ficcional, ainda no primeiro
episódio. Após minha narração através da estratégia professor-personagem como
Tempo, alguns(as) estudantes começaram a levantar reflexões sobre as situações
ficcionais. Duas crianças suscitaram discussões acerca da história. Pedi a elas para
gravar em áudio aquelas contribuições e expliquei que usaria posteriormente em
um dos episódios e na pesquisa:
Aluno: como o Pinóquio não sabia quem era ele, sendo que quando ele
mentia, o nariz dele crescia e todo mundo sabia que ele mentia? E
também ele era um menino, que o nariz crescia todo o tempo. Então,
como ele não sabia?
Prof. Nando: alguém quer responder alguma coisa? (Uma aluna levanta a
mão) Vai lá, Maria.
Aluna: Porque eles apagaram a memória de todos os personagens e, de
certo, tiraram os livros de todas as histórias.
Prof. Nando: Olha! É uma informação importante que deram aqui. Mais
alguém quer falar alguma coisa? (fabulações em sala de aula, 2025).
Esse momento ilustra como as crianças foram participando de cada episódio,
levantando apontamentos, tentando encontrar possíveis respostas entre elas para
suas inquietações artísticas no contexto ficcional e propondo desfechos que me
provocavam, enquanto professor-artista mediador, a exercitar minha escuta
atenta, de modo que as sugestões delas fossem se materializando ao longo do
processo. Para o autor Diego Pereira (2021), “o Drama se caracteriza como uma
proposta dialógica de construção de saberes”, sendo assim “ao trabalhar um tema
de forma permeável às contribuições das crianças, a intenção do Drama é que
elas possam ampliar as percepções acerca das questões colocadas” (Pereira, 2021,
p. 56).
No episódio, uma “cena problema” foi instaurada antes mesmo do “aqui
agora” da ficção em sala de aula, enquanto eu preparava o meu figurino e texto
para vivenciar Regina. Esse momento permitiu indagar-me: Eu, professor bixa-
afeminada, posso me montar em sala de aula para crianças? Essa pergunta
dialogava com todos os acontecimentos nos últimos anos de perseguição contra
corpos dissidentes de gênero e de sexualidade no Brasil, bem como os docentes
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada : subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola
Fernando Augusto do Nascimento
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-21, ago. 2025
10
dissidentes que lecionam na escola e a como o gênero se tornou uma disputa de
narrativa e principal alvo da extrema direita (Fernandes, 2021; Butler, 2024).
No início do ano letivo de 2025, a professora trans Emy Mateus Santos, que
leciona Teatro e Dança nos anos iniciais do Ensino Fundamental na rede pública
municipal de Campo Grande – MS, sofreu ataques de parlamentares e internautas
de extrema direita nas redes sociais. O motivo foi a viralização de um vídeo na
internet, no qual a docente usava um figurino da personagem do filme Barbie para
recepcionar seus alunos(as) no primeiro dia de aula. Em entrevista18 à reportagem,
a professora explicou que a prática de vestir figurinos de personagens é uma ação
pedagógica e afetiva na escola, para recepcionar as crianças no início do ano letivo.
Destacou ainda que a proposta foi acordada no dia de planejamento, a pedido da
coordenadora pedagógica. Apesar das notas oficiais da escola e da Secretaria de
Educação, o que prevaleceu foram deputados de extrema direita incitando o ódio
de sua base de seguidores(as):
O
vereador André Salineiro (PL)
publicou um vídeo em suas redes sociais
afirmando que aguarda resposta e providências da secretaria municipal
de educação.
A escola é um local para a criança aprender aquilo que
é importante para o seu desenvolvimento, e não para virar palco para
os que insistem em chamar de ‘arte
’, escreveu. Em outra publicação,
feita pelo também
vereador Rafael Tavares (PL)
, o parlamentar escreve
que é preciso ‘proteger as crianças’. O assunto também
pautou
discussões na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul.
O
deputado
João Henrique Catan (PL)
se referiu à professora trans no
masculino, afirmando que ela estaria
fantasiado de travesti
(reportagem do G1, 2025 grifos nossos).
Esse caso, que dialoga com as tensões entre as questões de gênero e o
ensino do teatro na escola (ainda que a prática não estivesse atrelada exatamente
à aula em si), desvela as tentativas da extrema direita de vigiar as práticas artísticas
mediadas em sala de aula, sob o pretexto de “proteção das crianças”, associando
18 Professora trans denuncia transfobia após usar fantasia em escola de MS: 'minha identidade não interfere
no meu trabalho'. “Ser professora é uma conquista muito grande, retificar o meu nome foi um passo
importante para ter respeito como profissional e o estudo foi essencial no meu processo de
amadurecimento enquanto uma travesti negra. A minha identidade de gênero não interfere na qualidade do
meu trabalho, estamos falando como se a minha identidade interferisse no meu trabalho. Foi crime de
transfobia, a minha documentação está toda certa. A escola respeita o meu gênero como mulher trans”,
conclui. Disponível em:
https://g1.globo.com/ms/mato-grosso-do-sul/noticia/2025/02/15/professora-trans-denuncia-transfobia-
apos-usar-fantasia-em-escola-de-ms-minha-identidade-nao-interfere-na-qualidade-do-meu-
trabalho.ghtml. Acesso em: 26 de fev. 2025.
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada : subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola
Fernando Augusto do Nascimento
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-21, ago. 2025
11
nossos corpos LGBTI+ à promiscuidade e à aberração, reafirmando
constantemente, segundo essa visão, que a escola é um lugar onde não
deveríamos estar presentes. Diante do exposto, questiono: todas as demais
professoras cis pedagogas e de outros componentes curriculares, também usaram
figurinos e fantasias para recepcionar seus alunos(as). No entanto, por que
somente a professora trans sofreu perseguição direta?
A questão central é: professores(as) LGBTI+ não podem vivenciar papéis
ficcionais em sala de aula para crianças, pois isso seria interpretado como
“doutrinação gay”, “ideologização infantil” e “ideologia de gênero”? Reitero, então,
como camadas na docência bixa-afeminada/trans quando lecionamos para
crianças em contextos educacionais conservadores. No livro
Quem tem medo de
gênero?
(2024), a filósofa Judith Butler contextualiza como, desde a segunda
metade do século XX, em diferentes países, as discussões em torno do gênero se
tornaram a principal pauta de debates nos âmbitos social, político, educacional,
cultural entre outros. Judith Butler (2024) também descreve como a extrema
direita se apropria dessa pauta como seu alvo preferido para incitar ódio, medo e
pânico moral:
Colocar o fantasma do “gênero” em circulação também é uma forma
encontrada pelos poderes existentes Estados, igrejas, movimentos
políticos para até atemorizar as pessoas
, de modo que elas retornem
a suas fileiras, aceitem a censura e externalizem seu medo e ódio contra
comunidades vulneráveis. [...] O cenário fantasmático [com o gênero] não
é o mesmo que uma fantasia que você ou eu temos em um momento
de distração. É, antes,
uma forma de organizar o mundo forjado pelo
medo de uma destruição pela qual o gênero é considerado
responsável. [...] O medo de que as crianças sejam prejudicadas, o
medo de que a instituição familiar, ou a própria família,
seja destruída,
de que o “homem” seja derrubado, incluindo os homens e o homem que
alguns de nós somos, de que o novo totalitarismo esteja se impondo a
nós,
são todos medos sentidos profundamente pelas pessoas que se
comprometeram com a erradicação do gênero da palavra, do
conceito, do campo acadêmico e dos vários movimentos sociais que
ele passou a representar
. Esses medos são, como surgiram aqui,
agrupados em uma sintaxe inflamada. [...]
Consideremos a alegação de
que o “gênero” seja ele ou que for coloca em risco a vida de
crianças. Essa acusação é poderosa. Para algumas pessoas, assim que
essa acusação é feita, ela se realiza, e as crianças não estão
ameaçadas de um mal
, e sim ativamente atingidas pelo mal. Quando se
chega a essa conclusão repentina, há apenas uma opção, impedir o mal!
Acabar com o gênero
! (Butler, 2024, p. 12 e 17 grifos nossos).
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada : subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola
Fernando Augusto do Nascimento
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-21, ago. 2025
12
No decorrer do livro, a autora descreve como a escola e as crianças estão em
um “círculo de proteção” contra esse mal intitulado gênero representado aqui
pela presença dos nossos corpos LGBTI+ lecionando para crianças. Nesse sentido,
minha presença de bixa-afeminada na escola, performando feminilidades e
desestabilizando as normas binárias ou interpretando Regina diante das crianças,
seria a personificação do “mal”. O medo que aflige os conservadores(as) é de que
esse mal – que sou eu – contamine os(as) alunos(as) em sala de aula. O pânico é
o de que elas sejam corrompidas pelo mal deve-se “acabar com o gênero!”
(Butler, 2024, p. 17). Isso implica em extinguir o meu corpo de bixa-afeminada da
escola e da sociedade. Minha presença bixa, portanto, não poderia habitar aquele
espaço escolar e, por isso, o fantasma do gênero, que também sou eu, me
assombrava enquanto eu me preparava em meio aos planejamentos para aquele
episódio. Ainda que meu corpo bixa fosse “acolhido” naquela turma, eu não sabia
qual seria a reação dos(as) estudantes e quais poderiam ser as consequências
posteriores à minha montação.
Como forma de me inspirar para seguir a narrativa a partir da criação dos
episódios anteriores, criados pelas crianças, decidi retomar o pré-texto e, a partir
disso, lembrei da personagem Regina, a prefeita da cidade, que era uma peça-
chave para a trama. Enquanto preparava meu figurino, decidi que usaria uma
peruca e me “montaria” em frente às crianças. No entanto, até o último momento,
em frente a elas, hesitei se colocaria aquela peruca. Um medo atravessava meu
corpo de bixa-afeminada. Qual seria a reação delas ao verem a transição da figura
do professor para a “personagem montada”?
Conforme a fotomontagem acima, sob o olhar das crianças, os desenhos
demonstram como Regina adentrava a sala de aula para instaurar uma situação
ficcional e desestabilizar as normas de gênero. Inicialmente, como persona,
olhando para os(as) alunos(as), antes de revelar-me como a prefeita da cidade,
percebi um “estranhamento” por parte de alguns deles, um impacto provocado
por aquela presença montada. Posteriormente, no contexto do jogo, Regina foi
sendo recepcionada, inclusive no jogo cênico com outras personagens/crianças.
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada : subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola
Fernando Augusto do Nascimento
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-21, ago. 2025
13
Figura 2 Regina sob o olhar das crianças, fotomontagem elaborada pelo autor, 2025.
Nos episódios seguintes, Regina permeava o imaginário das crianças e era
sempre lembrada, inclusive com perguntas se ela voltaria em outro momento. A
essa altura, o medo não era exatamente o de me montar diante dos(as)
estudantes, visto que aquela prática permanecia no âmbito do segredo em sala
de aula, a questão era o ambiente externo à sala. Isto é, os olhares vigilantes
dos(as) demais profissionais da escola e familiares, considerando que uma bixa-
afeminada montada em sala de aula sempre terá sua prática artístico-pedagógica
questionada (e perseguida!).
Uma Bruxa misteriosa19: vestígios de uma ancestralidade afro-catarinense
a partir da estratégia “estímulo composto”
À medida que os(as) alunos(as) começaram a desenvolver a narrativa, percebi
que trazer a estratégia “estímulo composto” poderia ser um caminho para envolver
19 Com base nas hipóteses criadas pelas crianças e na biografia da artista Thuanny Paes, criei o livro Merili: a
bruxa misteriosa (nome criado pelas crianças) no qual faço uma síntese do processo criativo de forma
literária. O livro consta como apêndice da tese, citada na introdução deste artigo.
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada : subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola
Fernando Augusto do Nascimento
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-21, ago. 2025
14
a turma nessas discussões interseccionais coerente com o que estávamos criando
em sala de aula. No episódio, trazer as questões afro-catarinenses para uma
turma na qual dos(as) 32 estudantes, 30 eram crianças brancas, consistia em uma
oportunidade de discutir essa (in)visibilidade dentro do contexto ficcional do
Drama (as únicas duas crianças negras ingressaram na turma na metade do
processo, transferidas de outras escolas no final do 3º bimestre).
Por isso, ao perceber o rumo que a narrativa construída pelos(as) aluno(as)
estava tomando, identifiquei que a “estratégia estímulo composto” poderia ser um
caminho para envolver todos(as) nas discussões étnico-raciais, de maneira
coerente com o que estávamos criando em sala de aula. Para isso, convidei a atriz
e professora de Teatro, Thuanny Paes, como possibilidade de oportunizar às
crianças uma escuta sobre as questões afro-catarinenses. Ao explicar a ela o que
os(as) estudantes haviam criado e como poderíamos dar continuidade à
narrativa, definimos juntos os objetos que faziam parte da vida e da memória
afetiva da artista (quadro 1). Além disso, conheci sua história a fim de entrelaçar
realidade e ficção no processo.
O quadro abaixo ilustra como os objetos investigados para o estímulo
composto adentraram à narrativa a partir das hipóteses das crianças, demonstra
as materialidades de Thuanny Paes, o porquê da escolha de cada objeto, bem
como de que forma as crianças criaram as hipóteses no contexto ficcional para
construir a narrativa. Quando reencontrei a professora de Arte/Teatro, Thuanny
Paes, em 2024, no projeto Viadoplata20, no qual fui convidado para mediar um
processo de Drama, nos reconectamos e decidimos fazer trocas sobre o método
do Drama. Assim, quando estava mediando este processo, considerei que seria
uma oportunidade de partilha e a convidei para contribuir. Conversamos por
WhatsApp
, alinhamos os detalhes, a escolha das materialidades e conheci a
história da artista, que me relatou que parte da sua ancestralidade paterna afro-
catarinense era silenciada em sua família; ela conhecia apenas a história da sua
ancestralidade materna, branca e italiana, nativa de Laguna - SC.
20 Projeto financiado pela Funarte para corpos dissidentes, idealizado e coordenado pelo colega professor e
ator Saile Moura, em Florianópolis. Fui convidado pelo pesquisador Saile Moura para ministrar um processo
de Drama.
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada : subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola
Fernando Augusto do Nascimento
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-21, ago. 2025
15
Quadro 1 – Imbricações entre a realidade e a ficção.
Materialidades
Memórias afetivas de Thuanny
Paes
Inserção no contexto
ficcional
(Hipóteses das crianças)
1) Um cestinho indígena.
Ancestralidade indígena-
catarinense.
Caldeirão da professora de
bruxaria Merili.
2) Dois braceletes
(africanos).
Ancestralidade africana.
Acessórios do passado.
3) Uma foto de Thuanny
Paes criança (identidade
sem o nome).
Memória estudantil.
Foto da infância na escola de
bruxaria.
4) Duas fotos 3×4 das avós
de Thuanny Paes.
Memória da ancestralidade
italiana-catarinense materna.
Foto mãe e da tia malvada.
5) Uma foto 3×4 do pai de
Thuanny Paes.
Memória da ancestralidade afro-
catarinense paterna (única
imagem do pai, que não o
conheceu).
Foto do pai.
6) Um búzio.
Referência à religião afro-
brasileira umbanda.
Ingrediente para tirar
memória.
7) Quatro folhas de árvore.
Conexão subjetiva com a
natureza.
Ingrediente para tirar
memória.
8) Uma carta (com
envelope e selo postal).
Entrelaçamentos da realidade e
da ficção.
Pedido de ajuda com
fragmentos do passado e
presente.
9) Uma receita antiga
Memória materna.
Receita de bruxaria para tirar
memória das personagens.
10) Um frasco com areia.
Conexão subjetiva com a
natureza.
Pó mágico.
11) Uma flauta indígena e
uma miniatura de onça
feita de madeira (arte
indígena).
Arte indígena do povo Kaingang21
catarinense.
Sugestão minha a partir da
história da artista.
Flauta para jogar o mágico
e onça de estimação, antes
de perder a memória, como
ligação com a floresta
encantada.
Fonte: Elaborada pelo autor a partir dos dados do processo criativo, 2025.
O artigo intitulado
Pedagogia da ancestralidade no ensino de linguagem a
partir da educação das relações étnico-raciais
(2022), de autoria de Renata
Pimenta, Joana Passos e Carlos Silva, propõe a Pedagogia da Ancestralidade na
21 Segundo o Site Povos indígenas no Brasil descreve a historiografia do povo Kaingang do processo de
colonização à contemporaneidade: “Os Kaingang vivem em mais de 30 Terras Indígenas que representam
uma pequena parcela de seus territórios tradicionais. Por estarem distribuídas em quatro estados, a situação
das comunidades apresenta as mais variadas condições. No que se refere ao recorte de Santa Catarina: “[...]
Segundo membros de um grupo kaingang que abandonou a T.I. Xapecó, e vive oito anos na periferia de
Florianópolis, as perseguições e privações impostas aos opositores da Liderança Política, levam ao abandono
da terra. É o caso também das famílias que saíram da T.I. Nonoai e construíram um emã (aldeia) no centro
da cidade de Chapecó-SC em 1998, e posteriormente, em 2000 foram transferidas para a zona rural do
município. Como vemos, as expulsões e transferências o um recurso bastante utilizado. Os exemplos
poderiam multiplicar-se.” Para mais informações sobre a história desse povo indígena acessar o site Povos
indígenas no Brasil. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kaingang. Acesso em: 13 de mar.
2025.
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada : subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola
Fernando Augusto do Nascimento
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-21, ago. 2025
16
educação catarinense como possibilidade de resgatar a memória ancestral, em
um estado marcado pelo apagamento das raízes afrocentradas. Para os(as)
autores(as), essa perspectiva teórica “[...] encontra-se na encruzilhada do fazer
educacional contemporâneo, dialogando com práticas pedagógicas a partir da
epistemologia negra-africana, com a filosofia latino-americana de libertação e com
o pensamento social negro do Brasil” (Pimenta; Passos; Silva, 2022, p. 162).
Tendo em vista que tal perspectiva é centrada em uma cosmovisão, em
saberes e práticas afro-brasileiras, os(as) autores(as) reiteram a importância do
resgate das contribuições da população negra na formação da identidade
catarinense.
Dessa forma, utilizando a “perda de memória” no contexto ficcional como
ponto de partida para o resgate da ancestralidade afro-catarinense de Thuanny
Paes, propus às crianças fabular possibilidades para essa personagem que pedia
ajuda para relembrar seu passado.
Durante o processo, as materialidades possibilitaram trazer à tona a noção
de ancestralidade, entrelaçando as memórias afetivas da artista Thuanny Paes
com as fabulações das crianças, para construir uma nova história, na qual a
presença afro-catarinense aparecesse como potência e não como apagamento.
Aos poucos, elas desvendaram o estímulo composto, e pedi que dois alunos(as)
mostrassem cada objeto, enquanto outros dois estudantes escrevessem na lousa
as hipóteses levantadas pela turma sobre aquelas materialidades (figura 3).
No contexto ficcional, nem todas as materialidades foram diretamente
relacionadas às questões étnico-raciais, considerando o caráter plural que o
estímulo composto abria para as crianças criarem as possibilidades, em diálogo
com que havíamos criado nos episódios anteriores e com o desenrolar do que
ainda poderia surgir. Contudo, após o término da prática, ao retomarmos o
processo, compartilhei com a turma quem era Thuanny Paes, o significado de cada
objeto relacionado à vida da artista e o resgate da sua ancestralidade afro-
catarinense. Além disso, destaquei que essa foi uma oportunidade de visibilizar a
presença de uma personagem negra, representada por uma atriz negra-
catarinense, exercitando a escuta afro-catarinense em uma turma com
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada : subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola
Fernando Augusto do Nascimento
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-21, ago. 2025
17
predominância de crianças brancas.
Figura 3 investigação do estímulo composto e criação de hipóteses,
fotomontagem elaborada pelo autor, 2025.
As hipóteses das crianças, entrelaçadas com a biografia de Thuanny Paes, a
partir das materialidades, foram inspirações para que eu organizasse as ideias no
livro Merili: a bruxa misteriosa. Na carta escrita para a turma do ano, a atriz e
professora trouxe elementos associados à Bruxa, com o intuito de propor olhares
problematizadores para essa personagem; um arquétipo feminista de subversão,
socialmente lido como marginal e frequentemente alvo de censura quando
trabalhado em contextos educacionais conservadores.
A personagem Bruxa é uma das mais renegadas em contextos educacionais
conservadores, pois sua imagem representa o “arquétipo do mal”, que as crianças
devem se distanciar. No artigo
Censura no teatro em Santa Catarina: relatos do
passado e desafios do presente
(2020), o autor Valmor Nini Beltrame partilha um
caso de censura atrelado à personagem Bruxa, em um espetáculo apresentado na
cidade de Itaguaçu. De acordo com o autor (2020), em entrevista com a atriz
Amália Leal, o caso ocorreu logo após o contrato do espetáculo para apresentação
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada : subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola
Fernando Augusto do Nascimento
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-21, ago. 2025
18
em uma escola particular de Educação Infantil:
Em outubro de 2018 fomos contratadas (Emeli Barossi e eu) para
apresentar em uma escola particular em [...]/SC, para uma turma de
educação infantil
. Uma semana antes da apresentação fomos chamadas
pela escola que nos explicava a delicada situação que vinham
enfrentando:
pais e mães das crianças, ao serem informados do nome
do espetáculo, criaram um grupo no WhatsApp para cancelar o evento
alegando que não queriam que seus filhos ouvissem histórias com a
temática sobre bruxas. Uma das mães recolheu um vídeo no Youtube,
com imagens aterrorizantes, assustadoras de bruxas e enviou ao grupo
dizendo se tratar do nosso espetáculo. A coordenação da escola, ao
saber do movimento dos pais, tomou posição mostrando as imagens
verdadeiras do nosso trabalho
. Explicou que o espetáculo era
apropriado, lúdico e não amedrontaria seus filhos. A maioria dos pais
compreendeu, no entanto, uma das mães buscou o vídeo completo de A
bruxa no armário de limpeza no Youtube.
Nele um curto verso que
diz: “Bruxa imunda, cuide bem da sua bunda”, aliás, momento do
espetáculo em que as crianças sempre dão risadas. Essa mãe,
novamente, mobilizou os pais no grupo de WhatsApp para cancelar a
apresentação.
A Coordenação da escola chamou os pais para uma nova
reunião e expôs que não havia nada demais no verso, que era divertido e
apenas falava de uma parte do corpo, mas boa parte dos pais não aceitou.
Solicitaram que mudássemos a palavra “bunda”. A princípio pensamos
em dizer não. Depois de refletir acabamos mudando para nariz
demonstrando que assim como bunda, é algo que todo mundo tem.
A
apresentação daquele dia terminou com “Bruxa infeliz, cuide bem do
seu nariz”. Os pais foram convidados a assistir, mas apenas dois
compareceram
(Beltrame, 2020, p. 30 grifos nossos).
Com base nesse caso, destaco duas questões que refletem os desafios
enfrentados por artistas e professores(as) em cidades pequenas de Santa Catarina,
predominantemente conservadoras, religiosas e bolsonaristas: a prática artística
na escola quando propõe romper estereótipos de gênero relacionados a
personagens como princesa e bruxa, essa última historicamente marginalizada e
associada a demonização, apesar de a capital, Florianópolis, ser considerada a ilha
da magia e ter bruxas como as principais representantes da cultura local, como
investigou Franklin Cascaes22; e a interferência direta de representantes religiosos,
22 Franklin Cascaes “As Bruxas”. A Ilha de Santa Catarina é o único mundo aceitável, segundo Cascaes foi
reservada pelo Arquiteto do Universo para que fosse habitada pelos seres sobrenaturais, logo, deuses
também. São elementais aéreos como os boitatás, o vampiro e até as bruxas, às vezes voam quando
querem. Os elementais terrestres, lobisomens, saci, curupira, caipora e as bruxas que vagam pelos caminhos
ermos da Ilha de Santa Catarina. Os elementais aquáticos como as sereias, a boiguaçu que sendo uma cobra
também é terrestre e aquática. Neste Universo dominam seres inusitados, convivendo numa harmonia de
extrema serenidade. Disponível em:
https://museuvictormeirelles.museus.gov.br/exposicoes/temporarias/arquivo/1995-2/franklin-cascaes-as-
bruxas/. Acesso em: 19 de out. 2024.
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada : subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola
Fernando Augusto do Nascimento
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-21, ago. 2025
19
que ocupam cargos de poder em instituições públicas como escolas, secretarias
de cultura, conselhos municipais de crianças e adolescentes ou centros de
referências de assistência social CRAS, em projetos culturais, espetáculos e
montagens realizadas ou apresentadas em escolas públicas municipais (Beltrame,
2020).
O autor Valmor Nini Beltrame (2020) recorda que a denúncia, que cancelou o
espetáculo em Campos Novos, partiu da mobilização de um representante
religioso que também é presidente do Conselho Municipal da Criança e
Adolescente CMDCA: o “[...] pastor Gesiel Ribeiro [...] que mesmo desconhecendo
o livro e a peça, mas certamente intrigado com o nome do espetáculo, passou a
fazer comentários depreciativos e caluniosos nas redes sociais" (Beltrame, 2020,
p.44).
Resistir para criar na escola (ou fabular um ensino de teatro sem medo)
A presença de docentes dissidentes, como o professor bixa-afeminada, no
espaço escolar constitui uma potência subversiva capaz de desestabilizar normas
consolidadas pela cisheteronormatividade. Neste artigo, compartilhei os desafios
enfrentados por mim, enquanto professor bixa-afeminada, ao mediar um processo
de Drama no contexto educacional conservador e bolsonarista, no município de
Itaguaçu – SC.
Apesar das resistências encontradas, evidenciei as possibilidades de
tensionamento das normas de gênero por meio da estratégia “professor(a)-
personagem” no âmbito ficcional do Drama, nos anos iniciais do Ensino
Fundamental. Essa estratégia contribuiu para a mediação artístico-pedagógica, ao
oportunizar a aproximação, bem como a fruição estética das crianças do ano
“01” com experiências ficcionais, permitindo ao(à) professor(a) assumir papéis que
subvertem as chamadas “vigilâncias de gênero” que incidem sobre as práticas
teatrais na escola.
Além disso, a prática evidenciou o potencial do “estímulo composto” como
possibilidade para abordar a (in)visibilidade das relações étnico-raciais no contexto
educacional local. Como ressalta a autora Bárbara Carine Pinheiro (2023), é
importante que a branquitude compreenda seu papel na luta antirracista: atuando
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada : subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola
Fernando Augusto do Nascimento
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-21, ago. 2025
20
efetivamente em seu contexto escolar para desconstruir estereótipos racistas na
escola.
Portanto, ao entrelaçar realidade e ficção, as materialidades cênicas
proporcionaram aos(às) estudantes uma aproximação com a ancestralidade afro-
catarinense. Ademais, o “estímulo composto” contribuiu para a escuta das
infâncias na construção de narrativas coletivas no ambiente escolar, desvelando o
potencial do Drama como lugar de escuta-fala das infâncias em sala de aula nos
anos iniciais do Ensino Fundamental.
Referências
BUTLER, Judith.
Quem tem medo de gênero?
Trad. Heci Regina Candiani. 1. ed. São
Paulo: Boitempo, 2024.
BELTRAME, Valmor Nini. Censura no teatro em Santa Catarina: relatos do passado
e desafios do presente.
Móin-Móin -
Revista de Estudos sobre Teatro de Formas
Animadas, Florianópolis, v. 1, n. 22, p. 028–054, 2020. DOI:
10.5965/2595034702222020028.
CABRAL, Beatriz Ângela Vieira.
Drama como método de ensino
. São Paulo: Hucitec:
Mandacaru, 2006.
COSTA, Lucas da. Conservadorismo na cultura política de Santa Catarina:
reverberações da Era Vargas no tempo presente. 2023.
Revista Santa Catarina em
História
. Florianópolis – UFSC/Brasil, v.17, 2023. Acesso em: 23 mar. 2024.
FERNANDES, Robson Ferreira.
Entre resistência democrática e ofensiva
conservadora:
fontes e subjetividades do projeto “gênero e diversidade na escola”
(2015-2016). Dissertação (Mestrado em Ensino de História) - Universidade Federal
de Santa Catarina, 2021.
FAZZIONI, Mateus Junior.
Deixem as crianças brincar!: o ensino do teatro na
visibilização e acolhimento das crianças em dissidência
. Tese (Doutorado em Artes
Cênicas) - Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2023.
PEREIRA, Diego de Medeiros.
Que Drama é esse?!?: práticas teatrais na Educação
Infantil
. 1. ed. São Paulo: Hucitec, 2021.
PEREIRA, Diego de Medeiros. As crianças como criadoras de cultura: contribuições
da sociologia da infância para a pedagogia do teatro.
Pitágoras 500
, Campinas - SP,
v. 14, 2024. Acesso em 10 mai. 2025.
Dramas e dilemas do professor bixa-afeminada : subversões de gênero, raça e ancestralidade na escola
Fernando Augusto do Nascimento
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-21, ago. 2025
21
PIMENTA, Renata Waleska de Sousa; PASSOS, Joana Célia dos; SILVA, Carlos
Alberto Silva da. A Pedagogia da Ancestralidade no ensino de linguagem a partir
da Educação das Relações Étnico-Raciais.
ACENO - Revista de Antropologia do
Centro-Oeste
. v. 9 n. 21, 2022.
PINHEIRO, Bárbara Carine Soares.
Como ser um educador antirracista.
1. ed. São
Paulo: Planeta do Brasil, 2023.
PROBST, Amanda; MUELLER, Gabriela; HOLZAPFEL, Paola; BUSARELLO, Flávia.
O
cotidiano de famílias bolsonaristas:
tramas afetivas em frente ao quartel de
Blumenau/SC. In: SAFATLE, Vladimir; MENDES, Mariana (org.). Afeto e
autoritarismo: expressões psicossociais da política brasileira. São Paulo: Autêntica,
2023. p. 137.
SOMERS, John. Narrativa, drama e estímulo composto.
Urdimento
-
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 17, 2011. P. 175-185. Acesso em: 11
abr. 2024. DOI: https://doi.org/10.5965/1414573102172011175.
PASSEGGI, Maria da Conceição. Narrativas da experiência na pesquisa-formação:
do sujeito epistêmico ao sujeito biográfico.
Roteiro
. UNOESC [online]. 2016, vol.41,
n.1, Santa Catarina, 2016. Acesso em: 14 fev. 2024. DOI: 10.18593/r. v41i1.9267.
VIDOR, Heloise Baurich.
Drama e teatralidade: o ensino do teatro na escola
. Porto
Alegre: Mediação/Edital Elisabete Anderle, Fundação Catarinense de Cultura,
Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte, Governo de Santa Catarina,
2010.
VIDARTE, Paco.
Ética bixa: proclamações libertárias para uma militância
LGBTQ
. São Paulo: n-1 edições, 2019.
Recebido em: 10/06/2025
Aprovado em: 12/07/2025
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
PPGAC
Centro de Arte, Design e ModaCEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br