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Estranhas criaturas
: o Drama na formação de
professores em uma mirada às infâncias
Luiz Eduardo Gasperin
Para citar este artigo:
GASPERIN, Luiz Eduardo.
Estranhas criaturas
: o Drama na
formação de professores em uma mirada às infâncias.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 2, n. 55, ago. 2025.
DOI: 10.5965/1414573102552025e0103
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Estranhas criaturas
: o Drama na formação de professores em uma mirada às infâncias1
Luiz Eduardo Gasperin2
Resumo
O artigo analisa a abordagem do Drama na formação inicial de professores de teatro,
articulando aportes da sociologia da infância, de epistemologias decoloniais e da
proposta do corazonar (Arias, 2010). A experiência, desenvolvida em uma disciplina
voltada às práticas teatrais com crianças, teve como eixo a narratividade e a contação
de histórias, com base no livro
Estranhas Criaturas
, de León e Rubio. O Drama é proposto
como prática sensível e ética de escuta e criação compartilhada, capaz de desestabilizar
lógicas coloniais e adultocêntricas, e ampliar modos de ensinar com as infâncias.
Palavras-chave
: Drama. Formação docente. Infância. Práticas decoloniais. Narratividade.
Estranhas criaturas
: Drama in teacher education through a gaze at childhoods
Abstract
This article analyzes the use of Drama in initial teacher education in theater, drawing on
childhood sociology, on decolonial epistemologies, and on the concept of corazonar
(Arias, 2010). The experience, conducted within a course focused on theatrical practices
with children, centered on storytelling and narrativity, using the book Estranhas Criaturas
by León and Rubio as a pre-text. Drama is proposed as an ethical and sensitive practice
of listening and collective creation, capable of challenging colonial and adult-centered
logics and expanding ways of teaching with childhoods.
Keywords:
Drama. Teacher education. Childhood. Decolonial practices. Narrativity.
Estranhas criaturas
: el Drama en la formación docente en una mirada hacia las infancias
Resumen
Este artículo analiza el enfoque del Drama en la formación inicial de docentes de teatro,
articulando aportes de la sociología de la infancia, de epistemologías decoloniales y de
la propuesta del corazonar (Arias, 2010). La experiencia, realizada en una asignatura
centrada en prácticas teatrales con niñas y niños, tuvo como eje la narración de historias,
basada en el libro
Estranhas Criaturas
, de León y Rubio. El Drama se propone como
práctica ética y sensible de escucha y creación compartida, capaz de desestabilizar
lógicas coloniales y adultocéntricas, además de ampliar formas de enseñanza con las
infancias.
Palabras clave
: Drama. Formación docente. Infancia. Prácticas decoloniales.
Narratividad.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Emarize Hennemann do Prado. Especialização em
Linguística e formação de leitores pela Faculdade Venda Nova do Imigrante. Graduação - Licenciatura em Letras pela
Universidade Federal do Paraná (UFPR).
2 Doutorado em Artes da Cena pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestrado em Artes pela Universidade
Federal de Uberlândia (UFU). Graduação em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Prof.
Licenciatura em Teatro na Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR).
gasperineduardo@hotmail.com http://lattes.cnpq.br/5753535052952361 https://orcid.org/0000-0001-7015-4011
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Somos una especie en viaje/ No tenemos pertenencias,
sino equipaje/ Vamos con el polen en el viento/ Estamos
vivos porque estamos em movimiento/ Nunca estamos
quietos/ Somos trashumantes, somos.
(Jorge Drexler, 2010).
Prólogo
Abro esta escritura contando um pouco de quando tudo começou ou
melhor, da encruzilhada. Era uma tarde de dezembro de 2010, no Sesc Minas
Gerais, unidade de Uberlândia. O espaço recebia as atividades formativas da
Mostra de Teatro Infantojuvenil
. Tratava-se de uma palestra com a professora e
artista Beatriz Ângela Cabral a Biange. Do lugar onde estive, ouvi e aprendi minhas
primeiras lições sobre o Drama como abordagem metodológica para o ensino de
teatro. Durante sessenta minutos, a narrativa e as imagens de processos e projetos
conduzidos por ela, que é pioneira do Drama no Brasil, provocaram inquietações
na plateia. Vale ressaltar que sua audiência não era composta por um público
especializado, mas majoritariamente por adolescentes e artistas ainda em fase de
aprendizado, formal e não formal. Lembro-me com nitidez do momento em que
ela olhou para o público, cuja maioria era de adolescentes, com poucos adultos –
como se nem ela mesma acreditasse que aqueles adolescentes estivessem tão
atentos ao que dizia.
Ao término, ela se aproximou e perguntou aos adolescentes: “Vocês
gostaram?” – e foi prontamente respondida com um pulsante: “Sim!”. As imagens,
os trechos em vídeo e o modo narrativo como ela apresentou seu trabalho – tudo
isso encantou os presentes. Eu estava diante de uma professora que performava
suas práticas teatrais e que as reformulava, naquele instante, durante o encontro
com aqueles que tinham ido ao espaço para assisti-la, a fim de que,
independentemente da faixa etária ou de categorizações socioculturais, todos a
pudessem compreender. Por ela, anos mais tarde, eu desenvolveria uma enorme
admiração, tanto por sua trajetória quanto por sua dedicação ao ensino no Brasil.
Agora, 25 anos depois, no início dos 30 anos do Drama no Brasil, estou
escrevendo com base na experiência desse encontro e das reverberações que ele
provocou em minha vida. Aquele momento não foi apenas o início de uma jornada
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acadêmica ou profissional; foi o ponto de partida de um processo contínuo de
transformação, como algo que se espalha sem pressa, mas que nunca deixa de
crescer. O Drama, como abordagem metodológica, foi se integrando ao meu fazer
pedagógico e artístico, sempre presente como uma bagagem que se carrega de
forma discreta, mas que tem sua importância em cada movimento que se faz.
O aprendizado que obtive daquele encontro não ficou apenas naquele
momento, eu o trouxe comigo, em um fluxo constante, assim como algo que está
sempre em movimento, mesmo quando aparentemente em silêncio. Meu trabalho
com o Drama não é contínuo, mas ele se faz presente, orientando e ampliando a
forma como me relaciono com o teatro e com os outros. O Drama, assim como o
movimento sugerido na canção mencionada inicialmente, não é um destino fixo,
mas um processo em constante evolução.
A mirada
Este texto propõe uma análise da abordagem do Drama na formação inicial
de professores de teatro, enfatizando a potência da narrativa como prática
estruturante da experiência formativa e da produção de conhecimento. A
investigação foi realizada no âmbito da disciplina
Projeto de Investigação em
Teatro Educação II PINTE II
, ofertada de modo obrigatório no curso de
Licenciatura em Teatro da Universidade Estadual do Paraná, com base no Drama
Estranhas criaturas
, que mobilizou o processo de ensino-aprendizagem em teatro
com e para crianças, tendo como pré-texto o livro
Estranhas Criaturas
(León;
Rubio, 2019).
O foco desta reflexão recai sobre a narrativa como tecnologia pedagógica e
estética que atravessa e articula diferentes dimensões do Drama, possibilitando a
ampliação do vocabulário metodológico e a abertura de novas formas de
implicação ética, política e sensível na formação docente inicial.
A escolha de
Estranhas Criaturas
como pré-texto não apenas mobilizou a
imaginação e a elaboração coletiva dessa experiência em Drama, mas também
instaurou uma perspectiva de deslocamento ontológico, ao apresentar uma
narrativa contada a partir do ponto de vista do humano e do não humano no
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caso, os animais. Esse gesto ficcional encontra ressonância nas epistemologias
decoloniais, que convocam a pensar outros modos de existência e de relação entre
humanos e não humanos, desestabilizando as hierarquias e as dicotomias que
sustentam a colonialidade do ser, do saber e do poder (Quijano, 2000; Arias, 2010
Walsh, 2017; Santos, 2015; Kambeba, 2019).
Na articulação com a infância, esta perspectiva se une aos aportes da
sociologia da infância (Sarmento, 2003), que reconhece a criança como sujeito
social ativo, produtor de cultura e portador de saberes, deslocando concepções
adultocêntricas e hierárquicas. A escuta sensível, nesse contexto, é compreendida
como uma prática ético-política (Friedmann, 2022), que sustenta processos
pedagógicos comprometidos com o reconhecimento das infâncias como
territórios de resistência, criação e invenção.
No que se refere ao horizonte epistemológico e metodológico desta pesquisa,
ela não se inscreve nos quadros tradicionais da pesquisa qualitativa, mas, sim, nas
premissas do “corazonar”, proposto por Patrício Arias (2007). O corazonar
compreende a produção de conhecimento como um processo que se dá desde e
com o corpo sentipensante, no qual a razão se entrelaça com o afeto, o
compromisso ético e a implicação vital, configurando um caminho de
de(s)colonização do saber, do ser e do poder. Como destaca Arias: “Corazonar es
construir, en los encuentros con el otro, formas de alteridad marcadas por la
afectividad [...] Es el sentir una necesidad vital para otra comprensión de todas las
dimensiones de la vida” (Arias, 2007, p. 499).
Assim, o objetivo deste artigo é analisar de que modo a narrativa, na condição
de prática de contar histórias e como dispositivo de elaboração simbólica, pode
operar como estratégia central e articuladora na abordagem do Drama,
potencializando a formação inicial de professores de teatro tomando como base
processos ético-estéticos comprometidos com a decolonialidade e com a
valorização das infâncias como produtoras de saberes e práticas insurgentes. O
estudo está estruturado em três partes: na primeira, apresenta-se o contexto da
experiência pedagógica, situando a abordagem do Drama na formação docente e
sua articulação com as epistemologias decoloniais e com a sociologia da infância;
na segunda, descreve-se a experiência vivida com as(os) estudantes, destacando
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a centralidade da narrativa como fio condutor dos processos dramáticos; e, na
terceira, discute-se as implicações ético-estéticas dessa proposta, apontando
possíveis desdobramentos para as práticas pedagógicas em teatro, especialmente
na formação inicial de professores comprometidos com a transformação social e
com o reencantamento do mundo.
O Drama
A abordagem do Drama tem se constituído, ao longo da minha trajetória
docente, uma prática metodológica potente para a formação inicial de professores
de teatro, especialmente por sua capacidade de articular processos criativos,
éticos e estéticos em uma perspectiva dialógica. No contexto da Universidade
Estadual do Paraná, no Campus Curitiba II, onde atuo, o Drama é parte integrante
das práticas pedagógicas alguns anos, consolidando-se como uma referência
importante para o ensino do teatro.
Embora algumas estratégias como o estímulo composto sejam amplamente
mobilizadas e investigadas no curso, como mostram Magalhães e Rosseto (2018)
e Martins (2022), neste trabalho busco deslocar o olhar para a narrativa e a
contação de histórias como práticas estruturantes e articuladoras dos processos
de Drama. O narrar histórias, compreendido aqui não como mero recurso didático,
mas como prática artística, pedagógica e epistemológica, configura-se como uma
tecnologia que amplia o vocabulário metodológico do Drama, potencializando
deslocamentos éticos, afetivos e estéticos no processo formativo. O ato de contar
convida ao processo de alteridade por meio de uma criação compartilhada,
pautada mais na composição de sentidos e menos na transmissão de um enredo.
O ato de contar histórias é uma forma de nos transferirmos ao mundo. E
apenas nessa afirmação já reside a anima, já que ela passa pela ideia de
dar alma, dar sentido, dar vida a algo [...] As histórias existem apenas
porque são contadas. Elas são parte de um conhecimento acumulado
culturalmente que inspira e expira narrativas milenares, revisadas todo o
tempo, direta e indiretamente. Quando ouvimos histórias, vivenciamos
experiencias únicas (Medeiros, 2015, p. 214).
É a partir dessa compreensão que desenvolvi, na disciplina
Projeto de
Investigação em Teatro-Educação II Pinte II
, um espaço de experimentação em
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que a narrativa ocupasse lugar central, não apenas como conteúdo, mas como
estratégia na abordagem do Drama e como princípio ético. A disciplina, cujo foco
está na investigação de abordagens metodológicas do ensino de teatro com as
infâncias, articula a expressão dramática, a experiência estética e a prática
pedagógica em distintos contextos formais e não formais. Desse modo, a contação
de histórias constitui-se como fio condutor desse processo de ensino-
aprendizagem em teatro, articulando-se com as outras estratégias do Drama e
ampliando as possibilidades expressivas e formativas das(os) estudantes.
Na perspectiva da(o) estudante, como ressalta Heloise Vidor: “o aluno é
levado a falar dentro de uma situação ficcional, como ele mesmo, ou como se
fosse algum personagem, ou ainda narrando algum acontecimento” (Vidor, 2010,
p. 29). Esta afirmação reforça a centralidade do ato narrativo como mediador das
experiências no Drama, evidenciando que a prática de contar histórias amplia a
possibilidade de posicionamento dos sujeitos: não apenas representar, mas narrar,
refletir, deslocar-se entre papéis e perspectivas. É justamente essa multiplicidade
de posições que favorece os deslocamentos éticos, afetivos e estéticos aos quais
me refiro.
Esses deslocamentos aparecem na prática pedagógica quando, por exemplo,
as discentes, ao contarem histórias de sua infância, revisitam memórias afetivas
que as aproximam das crianças com quem atuarão futuramente,
compreendendo-as não como sujeitos passivos, mas como produtores de cultura.
Da mesma forma, o deslocamento ético surge quando, ao lidar com narrativas que
expressam diferentes realidades socioculturais, as(os) estudantes são convidadas
a revisar preconceitos, ampliar olhares e sensibilizar-se para outras formas de
existência e expressão. o deslocamento estético se manifesta na
experimentação de novas linguagens narrativas, como o uso de objetos, imagens
ou sons que enriquecem a dimensão expressiva do trabalho.
O Drama, nessa perspectiva, não se reduz a um conjunto de estratégias ou
técnicas, mas se afirma como uma metodologia sensível, que se articula às
epistemologias decoloniais e à sociologia da infância, orientando-se pela
valorização das experiências e expressividades infantis.
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Centrar o processo na narrativa é, então, uma busca por ampliar entre as(os)
estudantes a compreensão do Drama como uma abordagem que vai além da
construção de ficções ou da utilização de procedimentos técnicos, instaurando
espaços de convivência, de problematização ética e de elaboração estética. Contar
histórias, nesse sentido, é criar condições para que novas escutas e novas relações
sejam possíveis, promovendo uma formação docente que se configura não apenas
como aquisição de saberes, mas como um exercício permanente de
de(s)colonização do olhar, do fazer e do sentir, bem como de compromisso com
processos formativos mais sensíveis e implicados.
A segunda dimensão a ser abordada, o aporte da sociologia da infância
mostra-se fundamental. Tendo como um de seus principais expoentes o autor
Manuel Jacinto Sarmento e destacando-se como um campo de estudos
consolidado, esta vertente reconhece a criança não apenas como um ser em
desenvolvimento, mas como um sujeito social e cultural ativo, capaz de participar
da construção e da reprodução da cultura em seus próprios termos. Em seus
escritos, Sarmento (2003) propõe, ainda, que as infâncias sejam compreendidas
em sua multiplicidade e em seus contextos, afastando-se de visões lineares,
homogêneas ou universalizantes.
Neste panorama, a escuta sensível assume papel central. Conforme Adriana
Friedmann (2022), a escuta na mediação pedagógica com crianças não se reduz à
simples recepção passiva, mas constitui uma “postura ética e política que
reconhece a criança em sua singularidade e autonomia, promovendo vínculos de
respeito e legitimação de suas narrativas e expressões” (Friedmann, 2022, p. 17).
Essa escuta implica um afastamento das hierarquias tradicionais do saber adulto
sobre o infantil, configurando-se como uma prática que abre espaço para o diálogo
e o reconhecimento das vozes das crianças.
Assim, a sociologia da infância e a escuta sensível contribuem
significativamente para a compreensão da criança e da infância na
contemporaneidade, ao promoverem uma visão plural, dinâmica e ética da criança
como sujeito ativo. Na disciplina, esses referenciais fundamentam a abordagem
do Drama como proposta pedagógica que valoriza as experiências e
expressividades infantis, fortalecendo a construção coletiva do conhecimento e a
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criação de práticas educativas cênicas que dialogam com as realidades e culturas
infantis.
Em um dos primeiros encontros, as discentes foram convidadas a vivenciar
um processo de Drama3 conduzido por mim, o que se tornou um ponto de inflexão
no modo como passaram a se relacionar com o conteúdo. Em vez de aprenderem
sobre o Drama apenas de forma teórica, experienciaram-no diretamente. Esse
processo, inicialmente individual, logo se transformou em experiência coletiva. A
escrita desse texto reflete essa transformação, pois, a partir de então, as
licenciandas4 passaram a escrever juntas, colaborando na construção do
conhecimento – tal qual a proposta do Drama, em seu cerne.
Ao vivenciarem o Drama, perceberam o impacto da abordagem metodológica
não apenas na prática pedagógica futura, mas também no próprio processo de
aprendizagem. O conhecimento sobre o ensino de teatro deixou de ser entendido
como algo linear ou individual, mostrando-se coletivo e em constante
transformação. Nessa dinâmica, o Drama apresentou-se como modo de ensino
que promove pensamento crítico e trabalho colaborativo.
Além disso, o curso busca integrar prática e teoria por meio de uma ampla
gama de referências bibliográficas que auxiliam as(os) estudantes a compreender
e experienciar as convenções/estratégias do Drama no contexto brasileiro.
Destacam-se os trabalhos de Beatriz Ângela Cabral (2006), bem como as
contribuições de Heloise Baurich Vidor (2010), Wellington Menegaz (2025) e Diego
Pereira (2021).
O aprendizado, portanto, não se limita ao ambiente da sala de aula,
estendendo-se às experiências vividas em visitas a espaços educativos e
comunitários, que ampliam a compreensão do Drama em contexto real. O ensino
do Drama na formação de licenciandas(os) torna-se um convite ao movimento, ao
questionamento, à colaboração e à descoberta contínua, por meio dos quais o
3 [...] o Drama, como proposta de trabalho pedagógico e prática teatral, busca-se apropriar desse espaço
ficcional para a construção de conhecimento, por meio da inserção das(os) participantes em situações
dramáticas agindo como se estivessem realmente em tais situações (Pereira, p.34, 2021).
4 A disciplina foi ofertada no semestre da 4ª série da Licenciatura em Teatro e contou com a participação
de 14 estudantes, no ano de 2025.
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conhecimento é construído coletivamente.
Considero fundamental destacar que esta experiência se articula com
políticas e epistemologias decoloniais na medida em que propõe um ensino de
teatro atento à diversidade cultural, à valorização das infâncias e à escuta de
saberes historicamente marginalizados. O Drama, nesse sentido, afirma-se como
aliado na criação de outras pedagogias possíveis, comprometidas com processos
formativos mais críticos, sensíveis e libertadores.
Desvelando
Estranhas Criaturas
Antes de qualquer coisa, é preciso abrir a caixa: uma caixa cheia de areia onde
tudo pode acontecer. É ali, no espaço potencial da brincadeira, que o Drama
encontra seu ponto de partida.
Estranhas Criaturas
, livro de Cristóbal León e
Cristina Sitja Rubio, publicado pela editora Martins Fontes em 2019, apresenta-se
como esse espaço fértil um pré-texto que, ao ser acolhido como convenção
dramática, propõe travessia sensível pelos caminhos do imaginário, da escuta e da
criação coletiva.
Escolher esse pré-texto significa, também, assumir um gesto decolonial. A
história, contada pela perspectiva dos animais da floresta, desloca a centralidade
humana e convida a leitora e o leitor a imaginarem o mundo pelos olhos do outro
prática que ressoa os alertas de Nêgo Bispo, para quem “a terra não é posse, é
parente” (Santos, 2015, p.67), e de Márcia Kambeba, quando afirma que "o território
primeiro se escreve na carne e na memória" (Kambeba, 2019, p.15). Assim, as
práticas decoloniais, desenvolvidas por autores como Aníbal Quijano (2000) e
Catherine Walsh (2017), oferecem lente para repensar as relações entre humanos,
natureza e alteridade.
No livro, após uma celebração, os animais descobrem que suas casas as
árvores desapareceram. Um mistério se instala: quem teria feito isso? A
investigação revela criaturas que caminham sobre duas pernas, constroem com
pressa e destroem com indiferença: os humanos, nomeados como “estranhas
criaturas”. A narrativa, com delicadeza e força simbólica, aborda a desflorestação
e seus efeitos devastadores.
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Transposto para o campo do Drama,
Estranhas Criaturas
transforma-se na
caixa de areia simbólica, onde é possível habitar o ponto de vista do animal, da
árvore e da própria terra. Nesse contexto, a metáfora da colonização surge menos
como evento histórico-geopolítico e mais como gesto cotidiano de invadir, ocupar
e apagar (Quijano, 2000). Ao acolher esse pré-texto, criamos experiências
dramáticas que convocam os participantes a escavarem esse terreno simbólico:
quem são as estranhas criaturas? Em que medida também somos elas? O
contexto de ficção trazido pela história torna-se ensaio ético-estético capaz de
sensibilizar o olhar para outras cosmologias e modos de existência.
Essa perspectiva dialoga com a de Ailton Krenak (2019), que propõe "adiar o
fim do mundo" por meio de uma ética de cuidado e convivência, aproximando-se
da ideia de empatia ambiental presente no livro. Esse horizonte expandido se
articula com a proposta de Gasperin, cujas práticas teatrais são ancoradas nas
memórias femininas e nas experiências fronteiriças entre Brasil e Paraguai, quando
escreve: "as raízes d’água [...] contam das vozes que estão na margem, vidas em
situação de vulnerabilidade que encontram na beira um lugar para (re)existir" (2021,
p. 169). O Drama, ao acolher essas vozes, torna-se um campo de escuta expandida,
que se enraíza na terra vermelha da ancestralidade e borda mundos por meio da
sensibilidade e da política.
A sociologia da infância, associada às ações decoloniais, reforça a
necessidade de práticas pedagógicas que sejam construídas com as crianças, e
não apenas para elas (Sarmento, 2003). Nesse sentido, o Drama oferece um
dispositivo de criação compartilhada, por meio do qual tanto as(os) participantes
quanto a coordenadora ou o coordenador do processo elaboram sentidos sobre
mundo e território. Como indica Walsh, o horizonte anticolonial exige "práticas
insurgentes de conhecimento que se gestem nos interstícios do cotidiano" (2017,
p. 52); o jogo entre a ficção e a realidade, aqui, torna-se um desses interstícios, ao
atuar como espaço-tempo de escuta, conflito e imaginação.
Do ponto de vista metodológico, o trabalho com a convenção do contexto
ficcional entrelaçada à realidade, orientada por questões sociais e políticas que
atravessam as experiências dos participantes. Ao articular memória, território e
urgências contemporâneas, essa convenção permite que as cenas funcionem
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como espelhos críticos da vida cotidiana, ativando aquilo que Boal denomina
"simultaneidade de ação e reflexão" (Boal, 1993).
Segundo Beatriz Cabral e Diego de Medeiros Pereira (2017), o Drama instaura
um espaço de jogo como território simbólico no qual as experiências
dramatúrgicas se organizam por meio de episódios unidades cênicas que não se
conectam de forma linear, mas compõem uma rede de significação em que a
experimentação, o afeto e o pensamento se entrelaçam. Como afirmam:
Cada nova proposição, situação criada ou atividade realizada no processo
é considerada um episódio do Drama. [...] A complexidade das interações,
dentro de um episódio, decorre do fato de que esse se refere ao
aprofundamento ou às implicações de alguma ação ou postura
evidenciada no episódio anterior e, como tal, poderá incluir questões de
ética e juízos de valor. Nesse sentido, o material criado em uma
experimentação alimenta as novas propostas de jogo que serão
oportunizadas em um próximo episódio (Cabral; Pereira, 2017, p. 288).
Nessa perspectiva, o pré-texto não oferece uma história a ser contada, mas
uma estrutura aberta a ser habitada. O jogo não se encerra na ficção: ao contrário,
abre frestas para que a vida entre em jogo na experiência dramática. Essa
atualização se dá, sobretudo, por meio do engajamento afetivo, ético e sensível
dos sujeitos implicados, tornando o Drama um campo fértil de perguntas e de
invenção. Desse modo, o processo dramático torna-se um espaço de
corazonamiento metodológico
, em que documento e imaginação se contaminam
para "tejer sueños, esperanzas, luchas y ternuras" (Arias, 2010, p. 18), ativando o
conhecimento como prática afetiva e política. Ao corazonar a experiência cênica,
tornamos o Drama um lugar onde "el sentir es una necesidad vital para otra
comprensión de todas las dimensiones de la vida" (Arias, 2010, p. 499), o que
permite não apenas problematizar desigualdades historicamente naturalizadas,
mas também bordar, com as crianças, futuros possíveis.
Nesse ponto, o Drama se afirma como modo insurgente de criação coletiva
e escuta expandida. Ao incorporar as sabedorias insurgentes como fundamento
ético e epistêmico, o processo de ensino e aprendizagem por meio dessa
abordagem se torna um "espacio tejido desde la fuerza insurgente de la vida
misma" (Arias, 2010, p.14), no qual as diferenças não são apagadas, mas
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reconhecidas como fios que sustentam a diversidade da experiência teatral e da
existência.
Ainda segundo o mesmo autor (2010, p. 23), "corazonar es una práctica
insurgente frente a la colonialidad del saber, del poder y del ser", e tal insurgência
se encarna também na escuta da infância como território de criação e saber. Ao
reconhecer as crianças como produtoras de cultura e sentido (Sarmento, 2003), o
Drama encontra na infância um lugar fértil para a de(s)colonização sensível da
experiência.
Escolher
Estranhas Criaturas
como pré-texto é um gesto político e
epistemológico, pois mobiliza o Drama como território de
corazonamiento
um
espaço onde o conhecimento não se impõe, mas se compartilha em afeto, corpo
e memória. Como propõe Arias (2010, p.18), trata-se de "aprender a ser puentes
para una nueva existencia", o que exige práticas metodológicas que se façam com
o outro, e não sobre o outro. Nesse sentido, o Drama teatraliza não apenas
situações fictícias, mas também os vínculos e os modos de convivência possíveis
diante da catástrofe.
A partir desse reconhecimento, a proposta de Drama se torna uma travessia
coletiva: mais do que propiciar uma vivência teatral às crianças, trata-se de
construir, com elas, um modo sensível de estar no mundo, fazendo do jogo de
papéis uma convocação para formas de escuta, pertencimento e resistência.
Como afirma Adriana Friedmann (2022, p. 17),
a escuta na mediação pedagógica com crianças não se reduz à simples
recepção passiva, mas é uma postura ética e política que reconhece a
criança em sua singularidade e autonomia, promovendo vínculos de
respeito e legitimação de suas narrativas e expressões.
Nesse ponto, o Drama se apresenta como método capaz de materializar uma
pedagogia anticolonial, pois se baseia na criação de um contexto compartilhado,
em que as diferenças não são apagadas, mas expostas, celebradas e
transformadas em matéria cênica. Como afirmam Cabral e Pereira (2017, p. 293),
“o jogo abre espaço para o ‘colocar-se’. O Drama agrega as diferenças oferecendo
suporte às opiniões antagônicas com base nas suas representações de sujeitos
sociais distintos”.
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Ao propor essa prática de escuta expandida, o Drama torna-se uma
experiência de insurgência sensível, uma forma de adiar o fim do mundo, como
deseja Ailton Krenak (2019), e de bordar, com as crianças, mundos outros, como
ensina a tradição oral de tantas comunidades ancestrais. Não é sobre interpretar
o outro, mas reconhecer-se com o outro em um espaço de criação que é, também,
um território de vida. Inspirada pela sociologia da infância e pela decolonialidade,
as práticas educativas são convocadas a deslocar o olhar adultocêntrico, abrindo
espaço para propostas construídas em diálogo com as crianças e suas formas
próprias de conhecer e habitar o mundo (Sarmento, 2003). Nesse horizonte, o
Drama pode ser compreendido como um território de encontro, onde crianças e
professores-artistas cultivam relações, imaginam outras formas de existir e
compartilham a autoria de mundos possíveis.
Das vozes participantes: narrar o processo vivido
Como forma de trazer para a escrita as vozes das(os) estudantes, dialogo, a
partir deste subtítulo, com as narrativas produzidas por elas no processo do Drama
Estranhas Criaturas
, realizado no semestre de 2025 e vivenciado por 14
estudantes da 4ª série do curso de Licenciatura em Teatro, e que contou com três
episódios. A contação de histórias emerge como fio condutor da experiência
tanto nas ações desenvolvidas ao longo do processo quanto na maneira como
as(os) participantes revisitaram e ressignificaram o que foi vivido, construindo suas
próprias versões dos acontecimentos. Essa mediação narrativa produz o que
Guerrero Arias (2010) chama de
corazonamiento
pedagógico, segundo o qual o
conhecimento se por meio do afeto, da memória e da implicação ética no
mundo vivido.
É importante acrescentar que a proposta do Drama deve abarcar em seu
conteúdo ou, melhor dizendo, em seu tema um eixo norteador do trabalho a
ser desenvolvido. Como afirma Menegaz (2025, p.106), “ao propor determinado pré-
texto, é importante que o(a) professor(a) tenha selecionado o(s) tema(s) que
pretende investigar”. Nesse sentido, e endossando a ideia do autor, compartilho
três passos fundamentais que orientaram a criação desta abordagem
metodológica voltada ao ensino-aprendizagem em teatro: 1. Seleção e escuta do
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pré-texto; 2. Delimitação do tema e do foco de interesse; 3. Formulação dos
episódios – com a identificação das convenções e delimitação das estratégias - e
suas reverberações.
O primeiro passo consistiu em selecionar o livro
Estranhas Criaturas
como
uma forma de provocação inicial, acolhendo-o não apenas como narrativa literária,
mas como campo simbólico de escuta sensível e de um convite à alteridade. Essa
escolha se inscreve como uma estratégia do Drama aliado neste caso,
especificamente, como prática insurgente que exige do propositor um
posicionamento ético diante dos sentidos que deseja tensionar.
No segundo passo, o tema proposto foi a colonização e seus desdobramentos
simbólicos e ético-políticos. Ao desenvolver os episódios que sustentaram o
processo, selecionei como foco três eixos que emergem, ao longo desses
encontros, de modo não linear, mas intersecionados: a invasão como gesto
cotidiano de ocupação e apagamento; o poder como exercício de controle sobre
o território e os corpos; e a lógica do “ganha-ganha” como retórica que dissimula
a exploração em nome do progresso.
Os eixos foram pensados não como conteúdos a serem ensinados, mas como
campos de tensão a serem vividos, problematizados e elaborados pelas(os)
estudantes por meio do jogo de papéis. Ao assumirem múltiplas perspectivas
ora como humanos colonizadores, ora como animais expropriados –, as(os)
participantes foram convidadas a experimentar, sensivelmente, as implicações da
colonização como prática estruturante da vida e da pedagogia. A experiência, nesse
sentido, não buscou apenas representar os efeitos da colonização, mas criar
condições para que se tornassem vivência compartilhada, atravessada por
conflitos, escuta e negociação.
Essa escolha dialoga com as epistemologias decoloniais (Quijano, 2000;
Walsh, 2017; Bispo, 2021), que propõem a desestabilização de narrativas
hegemônicas e a escuta de vozes historicamente silenciadas, bem como com a
sociologia da infância (Sarmento, 2003; Friedmann, 2022), ao compreender as
crianças como sujeitos produtores de cultura e sentido. O Drama, nesse contexto,
operou como território de criação ética, de modo que o tema da colonização não
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se restringiu a uma crítica histórica, mas se fez presente como provocação
pedagógica e convite à reimaginação de outras formas de viver, ensinar e se
relacionar com o mundo.
O terceiro passo diz respeito à criação dos episódios que compuseram a
experiência dramatúrgica, formulados por mim, como professor da disciplina,
tendo como base o tema da colonização e dos sentidos simbólicos provocados
pelo pré-texto
Estranhas Criaturas
. Os episódios
Estranha Jornada
,
Estranha
Visita
e Estranho Culpado – foram concebidos com atividades capazes de ativar a
escuta, provocar deslocamentos éticos e fomentar a elaboração coletiva, por meio
das convenções e estratégias, criaram-se situações improvisadas que tensionaram
relações de poder, pertencimento e conflito. Cada episódio buscou mobilizar
diferentes camadas do processo formativo, permitindo que as(os) estudantes
vivenciassem e significassem, por meio do corpo e da imaginação, os
atravessamentos do tema proposto.
No primeiro episódio, Estranha Jornada, antes de adentrar a ficção, as(os)
estudantes foram convidadas a se organizar em grupos de quatro a cinco pessoas.
As(Os) participantes de cada um dos grupos deveriam distribuir entre si os papéis,
como é feito usualmente no Drama. Porém, neste processo, a opção foi ampliar a
noção de desempenhar um “papel” para a de construir personagens, buscando
aprofundar a imersão e o engajamento das(os) estudantes. Essa apropriação
justifica-se pela intenção de explorar dimensões mais complexas da narrativa,
permitindo que cada participante desenvolvesse uma identidade cênica mais
elaborada durante a jornada rumo à fundação de uma nova cidade. Cada grupo
recebeu uma pequena sacola contendo cinco pedaços de papel, nos quais deveria
desenhar ou nomear cinco itens indispensáveis àquelas pessoas imaginárias,
considerados essenciais para a construção desse novo lugar.
Após essa etapa, cada integrante se apresentou ao grande grupo, em
personagem, anunciando seu nome e seu vínculo com o coletivo que integrava.
Em seguida, soou um chamado para o início de uma caminhada pelo espaço da
sala, acompanhado de uma narração que introduziu o deslocamento simbólico
rumo à clareira onde, mais adiante, a cidade começaria a se formar.
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A proposta articulou estratégias como a do professor-personagem, cuja
função pedagógica fundamenta-se na reflexão trazida por Heloise Vidor (2010),
além da assembleia, do mapa simbólico, das caminhadas e da criação de
personagens, estimulando a imaginação espacial e afetiva das(os) participantes.
Ao compor a fundação de uma nova cidade com seus quintais, fronteiras e
modos de vida –, as(os) estudantes puderam experimentar, ainda que
simbolicamente, o gesto da colonização: a ocupação de um território
presumivelmente vazio, a instauração de uma ordem própria e a delimitação do
“dentro” e do “fora”. Essa fase ativou discussões sobre pertencimento, escolha,
poder e identidade, estabelecendo o pano de fundo simbólico para os conflitos
que se seguiriam.
Ao final do episódio, as(os) habitantes da nova cidade começaram a demarcar
os seus quintais. Sobre essa experiência, duas/dois estudantes narram5:
Era uma vez um homem chamado Freddy que tinha o sonho de construir
uma cidade livre de problemas. Para isso, selecionou pessoas via redes
sociais e partiu em busca de uma terra disponível para abrigá-los. Após
a primeira reunião, todos os integrantes se conheceram: o primeiro grupo
era de uma família de imigrantes refugiados alemães (“nazistas”); o
segundo grupo, uma comunidade anárquica; e o terceiro, uma família de
padeiras. Cada grupo levou uma mala com objetos cinco itens
pequenos e essenciais para a construção de uma nova cidade. Após vinte
dias de caminhada, encontraram uma clareira no meio da floresta e ali
se instalaram para uma vida feliz. Todas as tribos” se acomodaram,
construíram suas casas bem separadas e começaram a viver suas
novas vidas (Relato de estudante participante, Fonseca, 2025).
Os personagens caminham em busca de uma nova civilização. Ao final
da caminhada, chegamos a um lugar totalmente livre de humanos,
perfeito. Saindo dos personagens, juntos desenhamos esse lugar ideal
(Relato de estudante participante, Panaitz, 2025)6.
No segundo episódio,
Estranha Visita
, a ficção se intensificou com a chegada
de novas personagens: os animais da floresta. Tratava-se, agora, de inverter os
papéis vividos no episódio anterior. As(Os) estudantes que haviam interpretado
5 As citações das estudantes são trechos de registros narrativos relatos ou diários - produzidos após a
vivência dos episódios de Drama. Esses textos fazem parte do processo de pesquisa narrativa e modelo
avaliativo adotado no contexto desta disciplina, entrelaçando experiência, memória e reflexão nas vozes das
participantes.
6 Os relatos atribuídos a Fonseca (2025), Borges (2025), Silva (2025), Faria (2025) etc., referem-se a textos
produzidos pelas estudantes da disciplina durante a experiência de Drama descrita neste artigo. Foram
utilizados com autorização e em anonimato parcial, conforme os princípios éticos da pesquisa-formação.
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grupos humanos responsáveis por ocupar a clareira e fundar uma nova cidade,
foram convidadas a se transformar nos verdadeiros habitantes daquele território,
tempos ausentes, mas que agora retornavam e encontravam seus lares
ocupados e modificados.
A transição para esses novos papéis foi conduzida por meio de exercícios de
corpo e observação animal, seguidos da construção de personagens não humanas.
As(Os) estudantes escolheram quais animais seriam onça, sapo, quati, coruja,
entre outros –, definindo suas características, modos de viver e suas relações com
o território. Em seguida, foram instigadas(os) a explorar a cidade construída
pelos humanos, com o olhar e os sentidos desses seres, ativando gestos de
curiosidade, estranhamento e revolta. Essa etapa foi desenvolvida por meio de
improvisações livres e interações com os espaços e objetos da sala, agora
ressignificados como quintais, cercas, ferramentas e estruturas invasoras.
A experiência culminou em uma grande assembleia dos animais, conduzida
em roda, na qual os personagens manifestaram suas percepções e sentimentos
diante da situação. A indignação coletiva emergiu com força: os relatos
dramatizados expressaram luto pelas perdas, desejo de retaliação, confusão sobre
os limites e estratégias possíveis de reação. A figura da onça, por exemplo, revelou
ter tido seu filhote raptado por uma das famílias humanas; o quati exaltava-se ao
descobrir restos de comida deixados nos arredores; o sapo, distraído com as
moscas, oscilava entre a indiferença e o apoio à revolta. Ao final da assembleia, foi
tomada – por unanimidade – a decisão de atacar o acampamento humano.
Esse episódio operou um giro ético na estrutura do Drama. Se, no primeiro
momento, as(os) estudantes criaram e ocuparam o espaço, agora eram
convocadas a escutá-lo desde outra perspectiva a daqueles que foram
expropriados. A troca de papéis permitiu que se colocassem em posições de
alteridade e conflito, provocando deslocamentos afetivos e simbólicos profundos.
A floresta, que antes era cenário neutro para a fundação de uma nova ordem,
revelou-se território ancestral de resistência. A assembleia dos animais funcionou,
assim, como um dispositivo ético e dramatúrgico potente, por meio do qual a
escuta se transformou em embate, e a pedagogia se aliou ao dissenso, à denúncia
e à insurgência. Segundo as(os) participantes:
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As tribos não se unificam. Vivem lado a lado, colaboram pontualmente,
mas permanecem distantes entre si. A clareira torna-se um espaço
dividido por estilos e valores de vida diferentes. Os anárquicos vivem de
forma organizada e cooperativa em uma cabana coletiva. As padeiras são
jovens encantadoras e ótimas cozinheiras. Elas têm um quintal simples,
mas bem-equipado com forno artesanal e ferramentas adaptadas. Ah...
elas têm um filhote de onça domesticado. os alemães vivem em um
acampamento precário, com uma lona, um regador e uma faca. Esse
grupo é liderado por um patriarca autoritário e pessimista. O filho mais
velho se diz filósofo; o do meio, xamã; o caçula, extrovertido e
namoradeiro. E o Freddy vive isolado na floresta, em uma pequena
cabana, aparecendo em momentos importantes, deixando mistério
(Relato de estudante participante, Neto, 2025).
A entrada dos animais na história. Os animais que viviam naquela floresta
tinham ficado longe por um ano de seu habitat, e que então voltavam aos
seus lares, mas ali tinha quintais desconhecidos. Nos transformamos
nesses animais. Nós, como animais, xeretamos as coisas estranhas
daquelas outras espécies e, com isso, nos revoltamos com a morte dos
animais; identificamos o roubo do filhote de onça; a invasão do nosso
território (Relato de estudante participante, Borges, 2025).
Estava acontecendo uma espécie de assembleia que reuniu todos os
animais que eram os verdadeiros donos daquele lugar. Todos estavam
muito revoltados, se sentindo invadidos e roubados, pois agora não
tinham mais onde morar. Falavam todos ao mesmo tempo. Os felinos,
especialmente a onça que teve seu filhote roubado, estavam decididos a
atacar o acampamento e destruir tudo; o quati só pensava em comida e
dizia que estava muito feliz, pois agora tinha comida de sobra; o sapo se
distraía constantemente com as moscas que pareciam provocá-lo o
tempo todo, mas, sempre deixando claro seu apoio aos felinos. A ideia
deles foi aprovada por unanimidade. Estava decidido que os animais iriam
invadir o acampamento e acabar com todos os invasores de uma vez por
todas! (Relato de estudante participante, Silva, 2025).
O terceiro e último episódio,
Estranho Culpado
, teve início com um salto
temporal dentro da ficção. A proposta era revisitar os acontecimentos anteriores
como se tivessem ocorrido muito tempo, criando um distanciamento que
permitisse às/aos participantes refletir sobre as consequências da invasão do
território e do conflito entre humanos e animais. A narrativa se deslocava, agora,
para o campo da memória, da reconstrução e da responsabilização.
A entrada na nova camada ficcional foi mediada por imagens congeladas, nas
quais os grupos representavam diferentes reações à devastação da clareira. As
figuras humanas retornavam à cena, agora confrontadas com o rastro de
destruição deixado pelas disputas territoriais. Em seguida, foi proposto um
exercício coletivo de julgamento simbólico: quem seria o responsável por tudo
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aquilo? As(Os) estudantes, em personagens, debateram hipóteses, reviveram
episódios e identificaram figuras-chave da história. A figura de Freddy misterioso
idealizador da cidade, presente desde o início como liderança ambígua – emergiu
como possível culpado.
Para aprofundar a análise, foi introduzida a ideia de documentário ficcional.
As(Os) estudantes assumiram papéis de cineastas, pesquisadoras, jornalistas e
personagens sobreviventes. Através de entrevistas encenadas, reconstruíram a
trajetória da cidade, os conflitos vividos e os efeitos da invasão sobre o território.
Os relatos traziam versões contraditórias, revelando a complexidade do
julgamento: teria Freddy manipulado os grupos para atingir objetivos pessoais?
Seria apenas um visionário frustrado? Ou um bode expiatório para um processo
coletivo de apagamento?
Este episódio expandiu o vocabulário estético do Drama ao combinar
convenções como julgamento, reencenação e documentário. Mais do que buscar
uma verdade, a proposta visava problematizar a construção de narrativas e as
formas de responsabilização social. O conflito entre os personagens tornou-se
metonímia para disputas políticas mais amplas sobre quem pode contar a
história, quem detém o poder de nomear culpados e quem permanece à margem
da memória oficial.
A transição da ficção para o “documentário” ativou o pensamento crítico
das(os) estudantes e marcou o encerramento do processo ficcional com um tom
de denúncia e reflexão. Ao invés de resolver o conflito, o episódio final ampliou
suas reverberações, transformando o espaço da sala em um campo simbólico de
escuta histórica, ética e política.
Começamos formando imagens reagindo à nossa chegada nos quintais
destruídos; depois, fizemos imagens apontando para quais grupos
acreditávamos serem culpados. Os humanos decidem então montar uma
assembleia para discutirmos o que aconteceu (Relato de estudante
participante, da Silva, 2025).
Após o momento do conflito, uma assembleia aconteceu. E por uma
variedade de fatores chegaram à conclusão de que o culpado era Freddy.
Concomitantemente, a guerra prevista na assembleia dos animais estava
prestes a acontecer. Tempo... estudantes do ano de cinema da
Faculdade de Artes do Paraná, decidem gravar um documentário sobre
Freddy. O homem que deu início ao termo “fake news". Hoje ele se
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encontra internado, por isso foi necessário trazer uma perspectiva mais
acadêmica (Relato de estudante participante, Faria, 2025).
Ninguém sabe ao certo o que realmente aconteceu naquela clareira,
muito menos naquele dia. Freddy foi encontrado vagando pela floresta,
muito debilitado e em estado de choque. Apesar da intensa pesquisa dos
estudantes, muito pouco se conseguiu descobrir. Um dos grupos
conseguiu encontrar o local descrito por Freddy, mostraram uma
pequena vila em destroços, que foi analisada pela pesquisadora doutora
Marta Benevitch, indicando que sim, é possível que ali tenha vivido uma
comunidade (Relato de estudante participante, Silva, 2025).
Em vez de um ponto final, o que essas narrativas sugerem é uma espécie de
travessia em espiral, na qual contar, escutar e imaginar são práticas que se
alimentam mutuamente. O Drama, nesse sentido, não encerra a experiência – ele
a estilhaça em múltiplas vozes, ressonâncias e sentidos que seguem reverberando.
Ao convocar narrativas próprias sobre o vivido, as(os) estudantes não apenas
reorganizam a memória do processo, mas reinscrevem-se como autoras(es) e
pesquisadoras(os) de si, tensionando o lugar da docência, da criação e da escuta.
Assim, mais do que concluir um percurso, esta seção delineia um gesto formativo
que permanece em movimento – abrindo janelas para outros mundos possíveis e
preparando o terreno para o que se anuncia a seguir: um manifesto em voz
coletiva.
Manifesto
Com base na estrutura desenvolvida ao longo dos episódios e nas questões
que emergiram durante a experiência do Drama
Estranhas Criaturas
, tornou-se
evidente a presença de um texto espectro uma camada subjacente de sentido
que se intensificou especialmente a partir do Episódio 2, quando as participantes
assumiram os papéis de animais.
Tais animais, na dramaturgia vivida, têm seus territórios invadidos, suas casas
tomadas e são forçados a migrar, buscando adaptação em outro campo, outro
pedaço de terra. A Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada pela
UNESCO em Bruxelas, em 27 de janeiro de 1978, foi utilizada por mim, na condição
de coordenador do processo, como subtexto para orientar as escolhas éticas e
poéticas da experiência embora as(os) participantes não tivessem conhecimento
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prévio ou direto desse documento.
Ainda assim, após a assembleia dos animais, realizada durante o processo,
emergiu com força um desejo coletivo de vingança, de retomada, de reapropriação
e mesmo de expulsão violenta dos invasores. Esse tensionamento desloca a
reflexão para além do campo legal ou moral, fazendo emergir uma poética de
insurgência frente ao apagamento e à perda.
Assim, após a finalização do Episódio 3 e dos desfechos criados pelas(os)
participantes, foi produzido um minidocumentário, que retrata e ficcionaliza os
movimentos de dois grupos: um de pessoas em busca de criar uma nova
comunidade, e outro de animais que lutam pela retomada de seus territórios.
Trago aqui um tom mais narrativo e descritivo. Ao encerrar o último
minidocumentário e tocar o som para que todas(os) saiam da ficção, tiro da
mochila um megafone. Aperto o botão de sirene: todos param. Alguém se assusta.
Uma pessoa se retira da sala – o barulho gera desconforto. Ainda assim, continuo,
encaro o grupo face a face. Desligo o botão. Começo a ler um impresso em papel
A3, que diz:
MANIFESTO DOS SERES INVISIBILIZADOS
Contra a exploração colonial da vida em todas as suas formas
PREÂMBULO
Considerando que a colonização não terminou ela apenas trocou de
roupa: agora veste jaleco, terno, jaleco branco, fantasia de progresso;
Considerando que a história da dominação é também a história da
redução: transformar florestas em pasto, rios em dutos, animais em
carne, gente em número; Considerando que os corpos que não falam a
língua do mercado são os primeiros a serem silenciados sejam eles
corpos indígenas, animais, florestas ou águas; Considerando que todo ser
vivo, toda terra fértil, toda nascente, todo bicho e toda semente são alvos
de uma lógica de extração que se disfarça de desenvolvimento;
Considerando que a lógica do ganha-ganha funciona para quem está
no topo da cadeia, enquanto os demais continuam a ser explorados,
esgotados, enterrados; Considerando que o animal aqui é exemplo, mas
poderia ser a terra, poderia ser a montanha, poderia ser o rio ou o povo
que mora às suas margens; Considerando que passou da hora de
reescrevermos nossa convivência com o mundo não como donos, mas
como parte (Gasperin, 2025, p.1).
O texto é lido, e a voz daquele que o anuncia é ampliada pelo megafone. Mas
ele não permanece só. Logo em seguida, o impresso é entregue, uma(um) a
uma(um), às/aos estudantes, que passam a ler – em voz alta, em sequência – os
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doze artigos que compõem o manifesto.
PROCLAMAMOS: Art. Toda forma de vida tem valor em si, e não deve
ser medida por sua utilidade para os humanos. Art. 2º Nenhum território
seja corpo ou terra deve ser ocupado, explorado ou violado em nome
do lucro. Art. O animal enjaulado, a terra cercada, o rio represado e o
povo desalojado gritam a mesma dor. Art. A domesticação da vida
seja pelo cercamento da terra, pelo enjaulamento do bicho ou pelo
controle do corpo é herança da invasão colonial. Art. A ideia de
“recursos naturais” é uma linguagem de guerra: transforma o mundo em
coisa. A vida não é recurso. É relação. Art. Toda “descoberta” que
desconsidera quem estava ali é um ato de apagamento. Toda
“inovação” que parte da destruição é um retrocesso. Art. Não
neutralidade na ciência nem no desenvolvimento quando ambos se
baseiam na pilhagem dos territórios vivos. Art. 8º A lógica da substituição
da floresta pelo gado, do cerrado pela soja, do corpo pelo capital é a
mesma lógica da colônia: esvaziar para ocupar. Art. O sofrimento
animal, a extinção das espécies e a degradação ambiental são sintomas
de uma mesma doença: a superioridade humana institucionalizada. Art.
10º Todo espetáculo construído sobre o sofrimento seja o rodeio, o
zoológico ou a imagem do povo empobrecido como exótico perpetua
a lógica da vitrine colonial. Art. 11º Não há justiça possível sem escuta dos
que foram silenciados: os bichos, os povos, os ventos, os matos e os
mares. Art. 12º O futuro será possível se formos capazes de abandonar
a ideia de que tudo existe para nos servir (Gasperin, 2025, p.2).
A leitura coletiva do
Manifesto dos Seres Invisibilizados
, realizada ao fim do
processo, funcionou como um dispositivo liminar que deu forma dramatúrgica,
ética e estética às tensões mobilizadas ao longo da experiência. O manifesto, na
condição de gesto performativo, não apenas potencializou a dimensão simbólica
do último episódio, mas condensou em linguagem poética os atravessamentos
vividos pelas(os) participantes: a ocupação e a expropriação de territórios, a dor
do apagamento, o desejo de retomada e o questionamento da lógica colonial que
ainda estrutura modos de vida e ensino. Sua emergência performática explicita,
portanto, o entrelaçamento entre a prática do Drama e as epistemologias
decoloniais (Quijano, 2000; Walsh, 2017; Bispo, 2021; Kambeba, 2019), reforçando o
Drama não apenas como metodologia, mas como campo de insurgência sensível
e crítica.
Neste sentido, a experiência formativa aqui analisada articula os fundamentos
da sociologia da infância (Sarmento, 2003; Friedmann, 2022), que concebe a
criança como sujeito ativo e produtor de cultura, às proposições do “corazonar”
(Arias, 2007), compreendido como modo de conhecer que se dá pela escuta, pela
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afetação e pela presença sensível. A centralidade da narrativa e da contação de
histórias, no processo, contribuiu para alargar o vocabulário metodológico das(os)
estudantes, que passaram a compreender o ensino do teatro como prática ética
de escuta, alteridade e construção coletiva de sentido. O Drama, nesse contexto,
desloca-se de uma técnica para tornar-se ética encarnada: meio pelo qual se
constroem relações, se elaboram conflitos e se fabulam futuros.
Assim, encerrar o processo com um manifesto não é apenas dar voz ao
simbólico da experiência é afirmar que a formação docente pode e deve ser,
também, um território de enunciação crítica, poética e coletiva. O manifesto
dramatiza a urgência de repensarmos nossas relações com o mundo, tomando
como base outros pactos de existência: com a terra, os bichos, as águas e as
crianças. Ele transforma o conteúdo vivenciado em posicionamento político,
convocando educadoras e educadores a não apenas perguntarem “o que
ensinar?”, mas “com quem e para que reexistir?”. Nesse gesto, o Drama se atualiza
como prática de mundo e como pedagogia do possível capaz de adiar o fim, sem
perder o começo.
E a mirada às infâncias? Talvez essa pergunta ecoe com mais força
justamente ao final do processo quando os episódios foram vividos pelas(os)
estudantes adultas(os), mobilizando deslocamentos éticos, afetivos e políticos.
Embora as crianças não estivessem fisicamente envolvidas na experiência, suas
presenças simbólicas e epistemológicas foram constantes: nos textos teóricos
discutidos, nos gestos de escuta praticados, nos modos de olhar e imaginar
ativados pelas(os) participantes. A mirada às infâncias, nesse contexto, não se deu
como contemplação distante, mas como convocação: a formação docente se
constituiu como ensaio de sensibilidade diante da alteridade infantil. Com base na
sociologia da infância e na escuta sensível como postura ética e política (Sarmento,
2003; Friedmann, 2022), as(os) estudantes compreenderam que propor um Drama
envolvendo crianças não se limita à aplicação de estratégias, mas exige um
exercício contínuo de escuta, de afetação e de de(s)colonização do olhar.
Aprenderam que ensinar teatro levando em consideração as infâncias é,
sobretudo, promover espaços de convivência e criação nos quais as vozes infantis
não apenas ecoem, mas nos transformem.
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Recebido em: 10/06/2025
Aprovado em: 17/07/2025
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
PPGAC
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Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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