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Alguns apontamentos político-ideológicos sobre o
Teatro Oficina e sua estética teatral
Rodrigo Morais Leite
Para citar este artigo:
LEITE, Rodrigo Morais. Alguns apontamentos político-
ideológicos sobre o Teatro Oficina e sua estética teatral.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 2, n. 55, ago. 2025.
DOI: 10.5965/1414573102552025e0201
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Alguns apontamentos político-ideológicos sobre o Teatro Oficina e sua estética teatral1
Rodrigo Morais Leite2
Resumo
Este artigo pretende oferecer um inventário político-ideológico acerca das práticas cênicas
incorporadas pelo Teatro Oficina (SP) e seu principal animador, José Celso Martinez Corrêa,
desde 1968 até meados dos anos 2000. Na primeira parte, empreendeu-se a um
levantamento das principais análises e críticas dirigidas ao grupo paulistano, em termos
ideológicos, no decorrer de sua trajetória. Na segunda, a partir de uma problematização do
uso da nudez nos espetáculos do grupo, discorreu-se sobre as influências que explicariam
tal opção e suas respectivas repercussões ideológicas. Na parte final, à guisa de conclusão,
procurou-se arrematar o debate, com vistas a estabelecer uma síntese agregadora das visões
anteriormente expostas.
Palavras-chave
: Teatro Oficina. José Celso Martinez Corrêa. Crítica ideológica. História do
teatro brasileiro. História do teatro paulista.
Some political-ideological notes on Teatro Oficina and its theatrical aesthetic
Abstract
This paper aims to offer a political-ideological inventory of the scenic practices incorporated
by Teatro Oficina (SP) and its main animator, José Celso Martinez Corrêa, from 1968 to the
mid-2000s. In the first part, a survey is made of the main analyses and criticisms directed at
the São Paulo group, in ideological terms, over the course of its history. In the second part,
based on a problematization of the use of nudity in the group's shows, we discuss the
influences that explain this choice and its respective ideological repercussions. In the final
section, by way of a conclusion, an attempt was made to round off the debate, with a view
to establishing a synthesis that brings together the views set out above.
Keywords:
Oficina Theatre. José Celso Martinez Corrêa. Ideological criticism. History of
Brazilian theatre. History of São Paulo theatre.
Algunas notas político-ideológicas sobre el Teatro Oficina y su estética teatral
Resumen
El artículo pretende ofrecer un inventario político-ideológico de las prácticas escénicas
incorporadas por el Teatro Oficina (SP) y su principal animador, José Celso Martinez Corrêa,
desde 1968 hasta mediados de la década de 2000. En su primera parte, se hace un repaso
de los principales análisis y críticas dirigidos al grupo paulista, en términos ideológicos, a lo
largo de su historia. En la segunda parte, a partir de una problematización del uso de la
desnudez en los espectáculos del grupo, se discuten las influencias que explican esta
elección y sus respectivas repercusiones ideológicas. En la última sección, a modo de
conclusión, se ha intentado redondear el debate, con vistas a establecer una síntesis que
aúne los puntos de vista expuestos.
Palabras clave
: Teatro Oficina. José Celso Martínez Corrêa. Crítica ideológica. Historia del
teatro brasileño. Historia del teatro de São Paulo.
1 Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada pela Profa. Dra. Marina Chiara Legroski da Universidade Federal do
Paraná (UFPR).
2 Pós-doutorado, doutorado e mestrado pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita (UNESP). Especialização em
Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Graduação em História pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor da Escola de Teatro na Universidade Federal da Bahia (ETUFBA)
e no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da UFBA. leitemorais13@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/8339089126125328 https://orcid.org/0000-0003-4875-2183
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É muito provável que o Teatro Oficina seja um dos grupos mais estudados na
história do teatro brasileiro, tanto dentro quanto fora da academia. Ao longo dos
anos, muitos livros, artigos, teses e dissertações sobre o grupo foram escritos,
perfazendo uma fortuna crítica difícil até de ser levantada, que dirá lida em sua
totalidade. Além desses trabalhos, voltados somente à trajetória do Oficina, muitos
outros, de feitio mais panorâmico, incluíram o coletivo paulistano em seus
escopos, analisando-o numa perspectiva mais ampla.
O presente artigo pretende oferecer um mapeamento crítico-historiográfico
acerca do prestigiado grupo da rua Jaceguai (SP), cuja exposição se revele capaz
de mostrar a existência de duas correntes antagônicas no interior das abordagens.
Uma delas, menos empática, disposta a identificar traços de reacionarismo
estético nos expedientes do Oficina; a outra, mais empática, vai no sentido inverso,
propensa a encarar tais expedientes como plenamente inseridos no campo
progressista.
Na seleção dos textos, optou-se por aqueles que, de algum modo, se inclinam
pelas veredas da crítica ideológica, tendo em vista estabelecer relações entre a
estética teatral encampada pelo Teatro Oficina e suas repercussões político-
sociais, independentemente do lado para o qual as análises penderam. Por conta
disso, ficaram de fora algumas apreciações de espetáculos como, por exemplo,
O
rei da vela
e
Gracias, señor,
escritas, respectivamente, por Décio de Almeida Prado
(1987) e Sábato Magaldi (2014), textos que desencadearam, quando apareceram,
violentas reações da parte de José Celso Martinez Corrêa, geradoras de polêmicas
históricas. Também ficaram de fora certos estudos que não se dispuseram a
analisar o Teatro Oficina sob um ponto de vista político-ideológico, em que pese
oferecerem informações preciosas sobre a história do grupo, como seriam os
casos de
Teatro Oficina
:
onde a arte não dormia
(1989), de Ítala Nandi,
José Celso
Martinez Corrêa
(2002), de Aimar Labaki, e
Teatro Oficina de São Paulo: seus
primeiros dez anos
(2006), de Renan Tavares.
Juízos reticentes
Começando a análise pela primeira corrente, informe-se que desde 1968 é
possível rastrear, no âmbito da imprensa escrita, duras acusações dirigidas ao
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Teatro Oficina, personalizadas na figura de seu principal animador, com vistas a
lhe imputar a pecha de realizador reacionário. E por que 1968? Porque foi o ano
em que José Celso Martinez Corrêa estreou um de seus mais controversos
trabalhos:
Roda viva
, a partir do texto homônimo de Chico Buarque de Holanda.
Antes de prosseguir, não custa ressalvar que
Roda viva
, embora dirigido por
Celso, não foi um espetáculo realizado pelo Teatro Oficina, mas por produtores
independentes do Rio de Janeiro e de São Paulo. Não obstante, é praticamente
um consenso, na historiografia aqui examinada, que a pesquisa cênica
empreendida naquele espetáculo dava prosseguimento ao que fora realizado
antes em
O rei da vela
, histórica montagem do Oficina, estreada em 1967.
Ademais,
Roda viva
também se liga à história do Oficina devido ao fato de
nele se antever, em estado embrionário, uma gama variada de experimentos
relacionados ao coro, elemento de grande relevância na encenação propugnada
por Zé Celso. Tais experimentos, ao serem transplantados para a rua Jaceguai, se
tornariam, a partir de então, uma das “marcas” mais associadas à linguagem do
grupo.
Nesse sentido,
Roda viva
se coloca em uma posição intermediária entre o
“desbunde” tropicalista de
O rei da vela
e o coro carnavalesco criado para a
montagem de
Galileu Galilei
(1968). Se hoje esse trabalho “independente” de
Celso é bastante lembrado, muito se deve, entre outras coisas, ao escândalo
suscitado diante de determinadas atitudes tomadas pelo coro que o compunha,
dentre as quais invadir a plateia na intenção de provocar fisicamente os
espectadores.
A esse teatro, de insuspeitadas influências artaudianas, Celso nomeará,
inicialmente, de “teatro agressivo”, em sua ânsia de provocar estupor no público
burguês. Cumprindo temporada no Teatro Princesa Isabel (RJ),
Roda viva
ensejou,
poucos dias depois de sua estreia, uma alentada análise de Yan Michalski, crítico
do extinto
Jornal do Brasil
.
Tal análise desdobrou-se, na verdade, não em uma, mas, sim, em duas
críticas3. Em sua primeira investida na exegese da obra, Michalski tece
3 Como era comum na época, os críticos valiam-se de suítes quando não era possível esgotar um determinado
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comentários, no geral, elogiosos à encenação de Celso, acentuando sua
criatividade e seu virtuosismo, embora ressalve que a proposta cênica levada a
cabo pelo diretor tenha suplantado, e até negado, as intenções originais da peça.
Na segunda parte da crítica, totalmente voltada à encenação e à cenografia do
espetáculo (esta, a cargo de Flávio Império), as reservas sobrevêm, todas ligadas,
não por acaso, ao seu aspecto relacional, assumido pelo coro.
Nesse ponto, o arrazoado de Michalski adquire uma inflexão acre, que se
revela com mais força em uma passagem na qual, após expor a intenção do diretor
de retirar o espectador de seu marasmo habitual, obrigando-o a agir diante das
provocações do elenco, o crítico se posiciona contrário a tais experimentos, nos
seguintes termos:
Os choques que José Celso nos espectadores de
Roda viva
não
passam de sustos, pisões e sacudidelas, cujo efeito se esgota ao se
acenderem as luzes da plateia. A participação à qual o espectador é
violentamente forçado é falsa, arbitrária: mesmo se ele, para se ver livre
da desagradável insistência de um ator suado e ofegante, assinar o sujo
papelzinho que lhe é apresentado como um manifesto, é evidente que
isto não o levará a tomar qualquer atitude diferente daquela que tomaria
antes, quando tiver de definir-se na vida quotidiana, política ou
humanamente. Limitando-se a submeter o espectador a uma série de
sensações momentâneas, que se esgotam dentro do prazo de duração
do espetáculo, José Celso atribui ao teatro que faz uma função
semelhante àquela que é exercida pelo teatro de suspense: em matéria
de alienação,
Roda viva
(na sua parte de agressão premeditada), rivaliza
com
Blackout
4. que
Blackout
usa métodos menos fascistas para
assustar seus espectadores (Michalski, 2004, p. 116).
Pouco depois da admoestação de Michalski, naquele mesmo ano de 1968,
outra figura importante do teatro brasileiro da época sairia a campo para revelar
seu descontentamento com a estética desenvolvida por Celso em seus últimos
trabalhos. Todavia, desta vez, as reservas não tinham como autor um crítico
teatral, mas um dramaturgo e encenador que manteve, durante um bom tempo,
uma relação bastante próxima com o Teatro Oficina: Augusto Boal5.
assunto em apenas uma edição do jornal. Uma prática hoje praticamente inconcebível, ao menos no campo
do jornalismo cultural.
4
Blackout
é uma peça teatral escrita pelo dramaturgo inglês Frederick Knott e que, no Brasil, ganhou sua
primeira montagem em 1967, pelas mãos de Antunes Filho.
5 Além de orientar um curso de interpretação no Oficina, Boal dirigiu três produções do grupo:
Fogo-Frio
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Em um texto intitulado “Que pensa você da arte de esquerda?”, incluído no
programa de apresentação do espetáculo
feira paulista de opinião
, produção do
Teatro de Arena, Boal distingue três tendências no teatro de esquerda que se
desenvolvera em São Paulo até então. À primeira, ele nomeia de neorrealista; à
segunda, de exortativa; e, à terceira, de tropicalismo chacriniano-dercinesco-
neorromântico. À primeira linhagem se associariam as peças de Plínio Marcos,
verdadeiros “retratos” de determinadas parcelas da realidade brasileira; à segunda,
o ciclo iniciado com
Arena conta Zumbi
, disposto a simplificar a realidade em prol
da luta política.
Em relação à terceira, embora Boal não aponte nenhum exemplo
paradigmático, a menção ao Teatro Oficina, bem como o embasamento de sua
argumentação, leva a crer que
O rei da vela
e
Roda viva
6 seriam, com certeza, os
espetáculos mais representativos dessa vertente. Em verdade, neste ponto
específico, a crítica do encenador amplifica-se para além do teatro, espraiando-se
para o movimento tropicalista como um todo, ao qual se contrapõe por razões
basicamente políticas.
Na sua visão, dentro do campo da esquerda, a práxis tropicalista seria
politicamente conservadora devido à sua propensão em atacar a aparência e não
a essência das coisas, algo expresso no conceito de neorromantismo. Dentre as
três tendências discriminadas, a terceira se apresenta, para o argumentador, como
aquela que “[...] tendo sua origem na esquerda mais se aproxima da direita” (Boal,
2016, p. 33-4). No tocante ao coletivo em análise, eis o que afirma Augusto Boal:
O tropicalismo, dado que pretende ser tudo e pois não é nada, apesar de
seu caráter dúbio, teve pelo menos a virtude de fazer com que o Teatro
Oficina deixasse de ser um museu de si mesmo, carregando eternamente
seus pequenos burgueses a quatro num quarto7, de fazer surgir a pouco
explorada invenção do portunhol, e teve sobretudo a vantagem de propor
a discussão, ainda que em bases anárquicas (Boal, 2016, p. 31).
(1960),
A engrenagem
(1960) e
Um bonde chamado desejo
(1962).
6 Curiosamente,
Roda viva
dividiu, em São Paulo, o mesmo espaço onde a
1ª feira paulista de opinião
estreou
e se manteve em cartaz: o Teatro Ruth Escobar. Foi que ocorreu o ignóbil ataque ao elenco do primeiro
espetáculo, realizado por membros do CCC (Comando de Caça aos Comunistas).
7 Referência a dois espetáculos produzidos pelo Teatro Oficina na década de 1960:
Pequenos burgueses
(1963)
e
Quatro num quarto
(1962).
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Um ano após as duras reservas de Boal virem à tona, uma nova carga de
críticas desabaria sobre os processos cênicos adotados por Celso e o Teatro
Oficina, agora proferidas por Anatol Rosenfeld, destacado teórico do teatro. Em
um ensaio intitulado “O teatro agressivo”, lançado em 1969, no volume um de
Texto
e contexto
, Rosenfeld faz uma reflexão sobre as origens e os preceitos norteadores
desse tipo de expressão cênica mais radical, disposta a incomodar e até mesmo
a ofender o público no intuito de tirá-lo de seu conforto e de sua passividade
habituais, fruto de uma atitude contemplativa diante do fenômeno teatral. Na
parte final do texto, ostensivamente dirigido a Celso, o ensaísta defende que
esse tipo de teatro, quando desprovido de “exatidão sociológica” ou apartado de
um “contexto estético válido”, se mostraria, ao invés de progressista, conservador:
Deste teatro neoculinário, que estabelece uma relação morna de conluio
sadomasoquista, o público burguês acaba saindo sumamente satisfeito,
agradavelmente esbofeteado, purificado de todos os complexos de culpa
e convencido do seu generoso liberalismo e da sua tolerância
democrática, já que não só permite, como até sustenta um teatro que o
agride (no íntimo, porém, sabe perfeitamente que um teatro que é
provocação, apenas provocação e nada mais, não o atinge de verdade)
(Rosenfeld, 1996, p. 57).
Nessa sequência de juízos reticentes quanto às orientações estético-
ideológicas do Oficina, em um célebre ensaio de 1970, escrito por Roberto Schwarz,
o problema da arte tropicalista e suas reverberações políticas é novamente
levantado. Numa linha de raciocínio próxima à de Augusto Boal, o coletivo
paulistano é interpretado como a extensão teatral de um movimento artístico
maior, que de certo modo o sobrepujaria.
Intitulado “Cultura e política, 1964-1969”, o ensaio se apresenta, em princípio,
como uma crítica à postura do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em seus anos
de militância pré e pós-golpe civil-militar, nos quais ele teria relegado a questão
do conflito de classes, preceito basilar do marxismo, em favor da luta contra o
imperialismo internacional. Semelhante conduta, que no fundo propunha uma
política de conciliação de classes, seria em boa medida responsável pelo fracasso
da resistência contra o arbítrio perpetrado em 1964.
À medida que as reflexões de Schwarz avançam, mais elas adentram no setor
cultural, com o autor passando em revista uma série de manifestações artísticas
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atreladas à esquerda em geral e à resistência à ditadura em particular, com
especial predileção, nesse sentido, pelo teatro8. Ao chegar a vez do Teatro Oficina,
Schwarz estabelece, de início, uma comparação entre este e o Teatro de Arena,
grupo anteriormente analisado no ensaio em questão:
Também à esquerda, mas nos antípodas do Arena, e ambíguo até a raiz
do cabelo, desenvolvia-se o Teatro Oficina, dirigido por José Celso
Martinez Corrêa. Se o Arena herdara da fase Goulart o impulso formal, o
interesse pela luta de classes, pela revolução, e uma certa limitação
populista, o Oficina ergueu-se a partir da experiência interior da
desagregação burguesa em 1964. Em seu palco esta desagregação
repete-se ritualmente, em forma de ofensa. Os seus espetáculos fizeram
história, escândalo e enorme sucesso em São Paulo e Rio, onde foram os
mais marcantes dos últimos anos. Ligavam-se ao público pela
brutalização, e não como o Arena, pela simpatia; e seu recurso principal
é o choque profanador, e não o didatismo (Schwarz, 2008, p. 101).
Ao final da explanação, que se esmera em matizar o cotejo acima exposto, o
ensaísta interroga:
Como então afirmar que este teatro conta à esquerda? É conhecido o
“pessimismo de olé” da República de Weimar, o
Jucheepessimismus
, que
ao enterrar o liberalismo teria prenunciado e favorecido o fascismo. Hoje,
dado o panorama mundial, a situação talvez esteja invertida. Ao menos
entre intelectuais, em terra de liberalismo calcinado, parece que nasce
ou nada ou vegetação de esquerda. O Oficina foi certamente parte nesta
campanha pela terra arrasada (Schwarz, 2008, p. 106).
Em sua ótica, o caráter revolucionário (ou reacionário) do Oficina dependeria,
fundamentalmente, do “chão histórico” no qual suas propostas subversivas e
disruptivas prosperassem: se, na República de Weimar, semelhante visão cáustica
da realidade ajudou na preparação do terreno em que, mais tarde, o nazismo
frutificaria, no Brasil da década de 1960 ele poderia, quem sabe, funcionar no
sentido oposto, abrindo caminho para a cristalização de um socialismo
democrático entre nós.
No âmbito dos estudos voltados à história do Oficina, o mais crítico parece
ser
Teatro Oficina (1958-1982): trajetória de uma rebeldia cultural
, de Fernando
Peixoto, lançado em 1982. Na condição de ex-integrante, Peixoto realiza, nesse
8 Além de ensaísta, Roberto Schwarz é também dramaturgo e tradutor de dramaturgia. São dele as peças
A
lata de lixo da História
(1977) e
Rainha Lira
(2022), bem como as traduções para o português de
A santa
Joana dos matadouros
(1929-31) e
Vida de Galileu
(1938-39), ambas de Bertolt Brecht.
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trabalho, algo como a crítica interna do grupo. Em seu relato, percebe-se uma
grande admiração pelas conquistas de Celso à frente da trupe, entremeadas
de grandes lamentações pelos rumos tomados por ele a partir de um determinado
ponto (1968), cada vez mais propensos ao irracionalismo artaudiano.
Se se pode resumir o pensamento de Peixoto, para este autor, um teatro de
cunho imanente, nos moldes estabelecidos por Bertolt Brecht, seria incompatível
com um teatro de cunho transcendente, exatamente aquele proposto por Antonin
Artaud. A “tragédia” do Oficina, em sua interpretação, estabeleceu-se quando o
grupo, sob a liderança de Celso, passou a conciliar, sem o devido conhecimento
de causa, dois polos em tese inconciliáveis. Essa contradição aporética, que
inclusive motivou Peixoto a sair do grupo, não teria sido jamais resolvida, ao menos
até o momento em que seu livro foi escrito e editado.
Em seus pressupostos teóricos, o cerne da crítica de Fernando Peixoto se
aproxima às reservas tecidas por Anatol Rosenfeld. Em outro livro de sua lavra (
O
que é o teatro?
), Peixoto deixa bem claro de que lado, contudo, ele sempre esteve
nessa contenda. Ao dissertar sobre as características primordiais do teatro
sacralizado almejado por Artaud, ele assevera:
O teatro de participação física [...] acaba se transformando em teatro de
comunhão metafísica. Uma nova forma de catarse, que afasta a temática
política e recusa a discussão sobre a realidade, refugiando-se na
celebração de uma espécie de êxtase coletivo, baseado no instinto e na
irracionalidade. Enfim, um teatro de autossatisfação (Peixoto, 1983, p. 105).
Outra obra historiográfica bastante crítica em relação ao trabalho de Celso
é
A hora do teatro épico no Brasil
, de Iná Camargo Costa, cuja primeira edição é
de 1998. Embrenhando-se pelas veredas da crítica ideológica, a partir de premissas
marxistas, Costa concentra fogo especialmente em dois espetáculos do
encenador:
O rei da vela
e
Roda viva
. Para a autora, numa argumentação densa e
caudalosa, difícil de resumir, Zé Celso teria treslido, nas respectivas montagens, a
semântica original das peças, esvaziando ou até mesmo invertendo os seus
enunciados políticos. Tal inversão seria, quase sempre, num sentido retrógrado,
tendo em vista oferecer um teatro político palatável ao gosto burguês. Nas
palavras da pesquisadora,
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olhares um pouco mais perspicazes percebiam, entretanto, que a guinada
vanguardista (iniciada timidamente em 1966, oficializada pelo Oficina em
1967 e consolidada por José Celso em 1968 com
Roda viva
), na verdade
reinstalava a cena brasileira no descampado da ideologia burguesa e,
inventando e explorando jogos apropriados ao terreno, tinha como efeito
tornar “habitável, nauseabundo e divertido o espaço do niilismo de após-
64”9 (Costa, 2016, p. 204-205).
Com base em tais premissas, Costa culpabiliza a trabalho de Celso por
fechar as portas do moderno teatro político no Brasil aquele representado, em
anos anteriores, principalmente pelo Teatro de Arena a despeito (ou não) de seu
encorpado vanguardismo.
O reverso da medalha
Partindo agora para o polo oposto, de todos os estudos dedicados ao Teatro
Oficina, é provável que o mais consagrador, no sentido de lhe devotar mais
admiração, seja o de Edélcio Mostaço (
Teatro e política: Arena, Oficina e Opinião
),
publicado em 1982. O subtítulo desse trabalho, suprimido posteriormente na
segunda edição, é “Uma interpretação da cultura de esquerda”, que de imediato
deixa à mostra seu viés analítico, também situado no terreno da crítica ideológica.
Todavia, apesar de enveredar pela mesma seara interpretativa de
pesquisadores como Fernando Peixoto e Iná Camargo Costa, suas conclusões e
juízos de valor a respeito da companhia são diametralmente opostos aos de seus
colegas. Com efeito, se poderia afirmar, sem muito exagero, que o estudo de
Mostaço representaria, na comparação com os de Peixoto e Costa, o reverso da
medalha no que concerne ao legado deixado pelo grupo e à sua imagem perante
a história do teatro brasileiro.
A ideia primordial do autor, seguindo os passos de Roberto Schwarz, é a de
que, no decorrer dos anos de 1950, emergiu no país uma cultura de esquerda
bastante peculiar, disposta a aceitar, por motivos estratégicos, uma conciliação de
classes, segundo a qual o proletariado deveria abrir mão, por um certo tempo, da
luta pela derrocada burguesa. Naquele momento histórico específico, mais
9 Aqui Costa faz uma pequena citação do ensaio “Cultura e política, 1964-1969”, de Roberto Schwarz,
referência fundamental no embasamento de suas reflexões.
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importante do que o conflito de classes seria o combate ao imperialismo e à força
exercida pelo capital internacional, fatores impeditivos para que o Brasil superasse
a modernidade.
Desenvolvida nas fileiras do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, também, do
Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), ainda que de modos diferentes, tal
estratégia se tornaria, nos anos seguintes, uma ideologia (quase) hegemônica no
campo da esquerda, antecedendo e mesmo sucedendo em alguns anos ao golpe
civil-militar de 1964. A ela, dar-se-ia o nome de
frente nacionalista
.
Caracterizada, antes de tudo, por esse pacto conciliatório, a frente
nacionalista teria fincado raízes profundas na arte brasileira daquele período,
podendo ser surpreendida, dentro do teatro, especialmente nas práxis de dois
coletivos: o Teatro de Arena, em São Paulo, e o Grupo Opinião, no Rio de Janeiro.
Cada qual, por vias distintas, estaria atrelado, em maior ou menor grau, ao pacto
estabelecido pela frente, que se refletiria na dramaturgia e nas práticas cênicas
empregadas por ambos.
Dentro do espectro ideológico da esquerda, somente o Oficina, entre os
grupos analisados, fugiria à regra, ao negar o pacto em favor da consecução de um
teatro mais anarquista do que socialista, e que, por isso mesmo, se mostraria mais
disruptivo em relação ao
status quo
do que aquele promovido pelos seus pares
frentistas. A esse caminho percorrido por Celso e o Teatro Oficina, Edélcio
Mostaço designa de “terceira via”. Em determinado trecho do seu livro, o
pesquisador define sua posição a esse respeito:
Negando atrelar-se aos compromissos populares então em voga, o
Oficina atingia com tiro certeiro o alvo da questão naquele momento: a
classe que frequentava o teatro era a pequena burguesia, e era ela quem
estava sendo mobilizada contra a propaganda revolucionária. Um apelo à
conscientização poderia ser efetivado, nessa ambiência, dentro da
perspectiva e dos referenciais dessa mesma classe. Assim o Oficina,
contrário ao voluntarismo teleológico do CPC [Centro Popular de Cultura]
e da frente nacionalista que carreava o grosso da produção artística ao
redor, fazia por seu público um duplo trabalho: propunha-lhe uma opção
ideológica claríssima e, ao não mistificá-lo, possibilitava que tal opção
germinasse fora das paredes do teatro (Mostaço, 2016, p. 92-93).
Nesse sentido, ao encetar, por intermédio de seus procedimentos criativos,
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uma “revolução permanente”, o Oficina realizaria um trabalho de fundamental
importância no âmbito da resistência ao regime, colocando em xeque contínuo
todas as ordenações sociais, “[...] inclusive e principalmente as mentais” (Mostaço,
2016, p. 96). Embora Mostaço se valha, em sua elocução, dos pressupostos
teóricos presentes em “Cultura e política, 1964-1969”, suas conclusões dele se
afastam na medida em que, para ele, o trabalho de desmistificação encampado
pelo Teatro Oficina, ainda que se ativesse somente ao efeito por detrás das
estruturas sociais e econômicas, cumpria bem a missão embutida em seu projeto.
Mesmo se ressentindo da ausência de um discurso programático, positivo, ao
contrário do que acontecida com o Teatro de Arena, ele se justificaria devido à sua
potência enquanto afetação iconoclástica.
Igualmente empático, embora desenvolvido em outra chave analítica, é o
estudo de Mauro Pergaminik Meiches (2018), nomeado
Uma pulsão espetacular:
psicanálise e teatro
. Ao contrário de todas as referências até aqui utilizadas, o
recorte temporal de
Uma pulsão espetacular
não contempla o período final da
década de 1960, quando
Roda viva
veio à tona. Suas balizas cronológicas vão da
volta de José Celso do exílio (1978), momento em que o Teatro Oficina procurou
retomar suas atividades no Brasil, e o início da década de 1990, na qual o grupo
“renasce” com a reconstrução de sua antiga sede. Ou seja: o livro de Meiches
abarca aquele que seria o “período obscuro” da história do coletivo, devido a um
suposto ostracismo vivenciado por Zé Celso nos anos em que, além de lutar pelo
tombamento e reconstrução do Teatro Oficina, teve que se avir com o assédio
imobiliário praticado pelo Grupo Sílvio Santos10.
Um dos méritos inegáveis de sua pesquisa se associa exatamente à
desconstrução dessa imagem, na medida em que, além de jamais ter deixado de
produzir no referido quartel, boa parte dos melhores trabalhos realizados por
Celso entre 1994 e 2006 foram, na verdade, concebidos na década de 1980 como,
por exemplo, os espetáculos
Mistérios gozosos
(1994),
As bacantes
(1996) e
Os
sertões
(2002-2006).
10 Data de 1980 o embate entre o Grupo Silvio Santos, que naquele ano adquiriu um grande terreno no entorno
do Teatro Oficina, e o coletivo ali instalado, disposto a impedir, por todos os meios possíveis, a construção
de um empreendimento imobiliário no local.
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Na ótica propugnada por Meiches, trespassada por uma espessa camada de
teoria psicanalítica, de 1968 em diante o Oficina teria adentrado numa espiral, cada
vez mais vertiginosa, no intuito de romper os limites do teatro tradicional,
dramático, representativo, em busca de uma conformação coral. Se, de início, essa
conformação se restringia ao próprio grupo, pela constituição de um elenco avesso
à individualização de seus integrantes, em um segundo momento essa pulsão,
para usar um termo caro a Meiches, irá se dirigir ao público, de modo a incluí-lo
em suas hostes.
Ao primeiro abalo, relacionado à contestação da precedência do texto
dramático sobre a encenação, seguiram-se outros, como a tentativa de extirpar
qualquer tipo de representação teatral, a supressão da distância que separa os
atores e atrizes do público e, por último, como ápice desse processo, a reforma
do Teatro Oficina. Uma reforma cujas intenções, vale ressaltar, iam muito além da
indistinção, na configuração do espaço, entre palco e plateia. Mais do que isso, o
projeto de reconstrução, elaborado por Lina Bo Bardi e Edson Elito, pretendia fazer
do Teatro uma espécie de “corredor cultural”, interligando a rua Jaceguai ao Parque
do Bixiga11. Infelizmente, Celso morreu sem ver esse sonho realizado. De todo
modo, no tocante às implicações políticas imanentes a um projeto dessa natureza,
Mauro Pergaminik Meiches dá algumas indicações:
A representação da
pólis
torna-se ambígua: de um lado, esse coro
enuncia não a espetacularização da cidade, mas tudo o que ela deve ser
diferentemente do que já é, sob pena de morrer asfixiada na clausura da
insatisfação de sua vida pulsional; de outro, a própria cidade, ou o que
resta dela fora desse exclusivíssimo coro, que não consegue fazer-se
representar para dar a medida a este protagonista desmesurado que
volta a lhe falar (Meiches, 2018, p. 58).
Assim como os atores e atrizes tiveram que se despojar de suas funções
representativas para comporem o coro, o público, agora, também é convidado a
desindividualizar-se. A esse processo, disposto a romper as barreiras estéticas
11 No momento em que este artigo é elaborado, após a morte tanto de Celso quanto de Silvio Santos, a
Prefeitura de São Paulo, no intuito de desapropriar o terreno, com 11 mil m² de extensão, comprou-o do
Grupo Silvio Santos, pelo valor de R$ 65 milhões. O ato de desapropriação, que reuniu o atual prefeito
(Ricardo Nunes) e representantes do Teatro Oficina, aconteceu no dia 06 de setembro de 2024. De acordo
com matéria publicada pelo jornal
Folha de S. Paulo
, “agora, a única disputa que resta é em torno do projeto
do parque, e se será possível contemplar os desejos da comunidade, que incluem a abertura do córrego
Bixiga” (Kruse, 2024).
Alguns apontamentos político-ideológicos sobre o Teatro Oficina e sua estética teatral
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interpostas entre a atuação cênica e os seus espectadores, Celso nomeia,
desde os anos de 1970, de te-ato. Não obstante sua elocubração ter se verificado
em época tão remota, mais recentemente, quando o Teatro Oficina tomou
posse de sua nova sede, inteiramente remodelada, foi possível levá-lo às últimas
consequências; a saber, estabelecer com a plateia uma verdadeira comunhão
orgiástica. O livro de Meiches, originalmente publicado em 1997, não adentra nessa
fase, embora consiga vislumbrá-la com muita propriedade.
Para uma melhor compreensão dos aspectos políticos embutidos na
proposta do te-ato, especialmente aqueles que se ligam à relação do Oficina com
a cidade, um estudo mais recente, assinado por Sílvia Fernandes (2020), traz boas
contribuições12. Seguindo, em substrato, as mesmas trilhas conceituais de Meiches,
com a vantagem oferecida pela posição cronológica mais favorável, que permitiu
à autora conhecer onde tais propostas desembocariam, Fernandes se debruça
sobre a história do grupo entre os anos de 1993 e 2006, período compreendido
entre a retomada do Oficina e a estreia da quinta e última parte de
Os sertões
.
Sem se desvencilhar das questões políticas imbricadas à estética teatral,
Fernandes defende que a teatralidade sobressaltada do Oficina Uzyna Uzona13,
disposta a se distender em ações performativas, suplantou os limites tradicionais
do teatro, assumindo uma tendência vitalista consubstanciada no ideal do coro.
Tal noção, que obviamente não se restringe aos atuadores do grupo, estendendo-
se aos espectadores, traria consigo, em perspectiva moderna, aspectos atávicos
do coro originário grego, ligados a questões de cidadania. Ou seja, da relação das
pessoas com a cidade, palavra que aqui deve ser tomada em seu sentido
stricto
(a esfera municipal de poder) e também num sentido
lato
(outras esferas políticas
como, por exemplo, o Estado e a União). Encarados por esse ângulo, os
expedientes performativos do Oficina estariam longe de configurarem uma
estética reacionária:
A implosão do espetacular é, como todo trabalho do Oficina, algo impuro.
Explicita-se no convívio de pulsões de ordem sensorial com a razão
12 Trata-se do ensaio “Notas sobre a história do Oficina”, incluído na revista Sala Preta de 2020 e também
publicado, em uma versão reduzida, no livro
História do teatro brasileiro 2
:
do modernismo às tendências
contemporâneas
(2013), organizado por João Roberto Faria.
13 Nome adotado pelo grupo desde 1984 e que segue até os dias atuais.
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científica, que certos analistas veem como uma oscilação profícua entre
as influências de Brecht e Artaud, ambas fortalecidas pela pesquisa
incessante do diretor com o coletivo. A partir desse pressuposto, pode-
se considerar o coro como a forma de performar a experiência comum
e, ao mesmo tempo, refletir sobre os problemas urgentes do país, nesse
momento ainda sob o regime autoritário. Ambos os aspectos são
trabalhados simultaneamente e não apenas como dispositivo de
organização cênica ou solução espetacular (Fernandes, 2020, p. 215).
A questão da nudez e da sexualização dos espetáculos do Oficina
Não dúvida de que um dos elementos mais folclóricos ligados à poética
de Celso tem a ver com uso feito por ele, em escala crescente, da nudez, aliada
a uma hipersexualização de seus espetáculos que não se restringia aos atuadores
do Oficina, estendendo-se, com frequência, ao público. Com o passar do tempo,
semelhante despudor cênico se tornaria, sem dúvida, um dos traços definidores
do grupo, objeto, inclusive, de inúmeras piadas e paródias.
Para o debate aqui empreendido, interessado nos aspectos ideológicos
subjacentes à estética teatral desenvolvida pelo Oficina, o recurso, nada fortuito,
da nudez, apresenta-se como um ótimo gancho para um aprofundamento maior
da questão. Entre outros motivos, isso acontece porque, desde que utilizado pela
primeira vez, o apelo a tal recurso fez crescer, chegando ao paroxismo na
década de 1990, época em que o grupo produziu alguns de seus espetáculos mais
sexualizados.
A origem dessa prática remonta, novamente, ao ano de 1968, quando o Teatro
Oficina estreou
Galileu Galilei
. Na cena que finalizava o primeiro ato do espetáculo,
passada durante o carnaval de Veneza, o coro de atores e atrizes arregimentado
por Celso remanescente da montagem de
Roda viva
ocasionalmente se
despia, embora, ao que parece, ainda de maneira um tanto aleatória14. O trabalho
seguinte,
Na selva das cidades
, proporcionou ao teatro brasileiro o seu primeiro nu
14 A afirmação se baseia num comentário emitido por Fernando Peixoto em
Teatro Oficina (1958-1982):
trajetória de uma rebeldia cultural
, segundo o qual “as apresentações se sucedem e a cena do Carnaval,
criando problemas internos, cada dia ganha mais espaço dentro do espetáculo: José Celso não cessa de
ensaiar e propor novos avanços. As demais cenas, feitas de forma direta e seca, seguem um modelo
dramático, despojado e objetivo, já conhecido e repetido: a trajetória do Oficina na verdade caminha com o
Coro, empenhado numa improvisação constante e pesquisando, dentro de propósitos discutíveis mas
definidos, uma nova maneira de relacionamento com o público, jogo que oscila, indefinido, entre restos da
agressividade de
Roda viva
, agora acrescidas de gestos crispados em rigorosos movimentos de karatê, e
uma afetividade tipo paz e amor, que numa tarde de domingo chega a exibir dois ou três nus gratuitos”
(Peixoto, 1982, p. 76).
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frontal, protagonizado pela atriz Ítala Nandi. Mais tarde, após o término dos anos
de exílio, Celso reabriu o Teatro Oficina (1979) com o espetáculo
Ensaio geral
para o carnaval do povo
15, desenvolvido em Portugal, que também continha nudez.
O passo decisivo, contudo, rumo ao tão sonhado encontro orgiástico sonhado
por Celso, contido na expressão te-ato, aconteceu quando o encenador foi
convidado pela Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (EAD-USP)
para dirigir o espetáculo de formatura da turma de 1982. Ou seja: como outrora,
em um trabalho realizado fora do Teatro Oficina. Para a confecção da dramaturgia,
Celso serviu-se de um poema escrito por Oswald de Andrade chamado
Santeiro
do mangue
, que intitulava o espetáculo. Nele, o encenador promoveu, na parte
inicial da obra, uma suruba em cena, algo que causou considerável polêmica à
época. Anos depois, em 1994, Zé Celso retomaria, dentro do Oficina Uzyna Uzona,
o mesmo espetáculo, rebatizado com o nome de
Mistérios gozosos
.
Mas por que, afinal, isso se sucedeu? Quais seriam os princípios teóricos e
estéticos que explicariam e, mais do que isso, sustentariam tamanho
desbragamento sexual? Sem querer emitir respostas definitivas, é possível
rastrear, com alguma segurança, certos preceitos que estariam por detrás dessa
tendência, que para muita gente não ultrapassaria os limites da mera pornografia.
Acredita-se que, na conformação dessa marca, quatro forças ou influências se
conjugam, uma não excluindo, necessariamente, a outra, antes pelo contrário. O
primeiro desses fatores seria de ordem social, seguido por outros de ordem teatral,
literária e psicológica.
O fator social atende pelo nome de contracultura. O Teatro Oficina,
amadurecido na agitadíssima década de 1960, absorveu, como talvez nenhuma
outra companhia, o espírito de sua época, responsável por promover, no auge da
Guerra Fria, uma revolução cultural e comportamental. A disposição para romper
arcaicos tabus sexuais, bem como de experienciar a abertura das “portas da
percepção” pelo uso das drogas, são atitudes que marcaram toda a geração
baby
15 No exílio em Portugal, o Teatro Oficina remontou
Galileu Galilei
, com o próprio Zé Celso no papel principal.
Posteriormente, Galileu subdividiu-se em dois espetáculos:
Os discursos do movimento
e
O carnaval do
povo
.
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boom
16, da qual Celso sempre se mostrou um legítimo representante, embora
nascido antes de a Segunda Guerra Mundial eclodir.
O fator teatral se liga, com toda certeza, à grande influência exercida, no
interior do Oficina, pelo conceito de teatro da crueldade de Antonin Artaud,
coadjuvado pelas proposições de Jerzy Grotowski e seu teatro pobre. Se, no início
desse contato, Zé Celso parece ter interpretado o conceito de crueldade ao pé da
letra, na difusão de um teatro de agressão, mais tarde, ao absorver melhor as
propostas artaudianas, ele as encaminhou numa direção mais correta, relacionada
à noção de comunhão.
Em seu esforço permanente de atualização, o Teatro Oficina transitou por
quatro das principais poéticas do teatro moderno, capitaneadas por quatro nomes
seminais: Constantin Stanislavski, Bertolt Brecht, Antonin Artaud e Jerzy Grotowski.
Cada uma dessas poéticas, no entanto, seria absorvida pelo grupo de um modo
bem diverso. No caso de Stanislavski, que abre a fila, a influência se deu por
intermédio do trabalho de dois grandes divulgadores do mestre russo no Brasil:
Augusto Boal e Eugênio Kusnet, ao ministrarem seminários de interpretação para
o grupo no início do decênio de 1960.
Em relação a Brecht, o contato foi mais direto e se deu quando, entre 1964 e
1965, Celso passou uma temporada na Europa. Lá, ele teve a oportunidade de
visitar o
Berliner Ensemble
, companhia depositária, em tese, do legado brechtiano,
onde assistiu a alguns espetáculos e de onde retornou com uma mala repleta de
material a seu respeito (programas, livros, fotos, discos etc.).
Por último, no tocante ao influxo do teatro sacralizado advogado por Artaud
e Grotowski, inicialmente ele parece ter se introduzido de maneira livresca, ou seja,
pela leitura de seus livros capitais em edições estrangeiras ou em traduções
encomendadas para uso interno17. Mais tarde, em 1970, ano em que os grupos
16 A expressão normalmente se refere à geração nascida entre os anos de 1940 e 1960 nos países ocidentais,
período marcado por uma forte explosão demográfica impulsionada, entre outros fatores, pelo fim da
Segunda Guerra Mundial. A geração responsável, em suma, pelas revoluções sociais e culturais que
marcaram a década de 1960.
17 Seriam os livros
O teatro e seu duplo
(2006) e
Para um teatro pobre
(2013), respectivamente. O segundo,
de acordo com Fernando Peixoto (1982), foi lido pelo elenco do Oficina em português, numa tradução
encomendada pelo próprio grupo.
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Living Theatre
, dos Estados Unidos, e
Los Lobos
, da Argentina, estiveram no Brasil,
trazendo as insígnias artaudiana e grotowskiana em seus trabalhos, semelhante
ascendência se tornaria mais concreta, graças ao (curto) intercâmbio estabelecido
entre eles e o Oficina.
Nessa busca em oferecer ao público uma experiência dionisíaca, capaz de
desencadear nele uma vivência de natureza mítica, objetiva-se, no plano da
recepção, tornar o espectador permeável a um processo de dissolução psicológica,
tendo em vista aproximá-lo de um almejado “[...] grau zero de construção
intersubjetiva” (Meiches, 2018, p. 91). Bombardeado por estímulos sensoriais de
diversa ordem, o receptor teatral passa por um experimento intelectual enraizado,
acima de tudo, no corpo, compreendido em toda a sua complexidade psicofísica.
Em seus substratos conceituais, trata-se de uma forma de provocação que
procura atingi-lo no intuito de eliminar seus automatismos físicos e mentais,
preparando o terreno, por assim dizer, para o afloramento de novos estados de
ser. Ou, em outras palavras, de uma desestabilização da identidade, entidade
construída à base de uma série de forças coercitivas.
Dito tudo isso, da maneira mais sintética possível, sobrevém a questão fulcral
para o debate aqui empreendido: nesse processo de libertação corporal, estaria
embutida, aberta ou veladamente, o abandono do pudor, materializado na nudez
e no contato sensual a envolver atuadores e espectadores? A resposta, faz-se
necessário ressalvar, não é de fácil resolução. Nos textos reunidos em
O Teatro e
Seu Duplo
(2006), Artaud não vislumbra essa problemática, ao menos não em tais
dimensões, provavelmente porque, no tempo em que viveu, anterior à
contracultura, promover um despudoramento da cena ao nível acima exposto
seria algo inimaginável.
No intuito de oferecer uma proposição aceitável, vale a pena recorrer às
palavras de um especialista no assunto, o professor e pesquisador Cassiano Sydow
Quilici, que, em seu livro sobre o encenador francês (
Antonin Artaud: teatro e
ritual
), faz a seguinte observação:
[...] não é fácil enquadrar Artaud no imaginário contracultural que operava,
muitas vezes, com a oposição entre ‘corpo reprimido’ e ‘corpo liberado’.
Em seus escritos encontramos desde a investigação de um erotismo
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desenfreado, que ultrapassa todas as leis da cultura e tende ao absoluto
(como na obra
Heliogabale
, ou
L’Anarchiste Couroneé
), até a condenação
da sexualidade e a defesa da castidade, presentes nos escritos de Rodez,
que correspondem ao ‘ideal gnóstico’ da pureza corporal. A questão do
desejo em Artaud foge aos enquadramentos e dualidades habituais, e
exigiria, por si só, um trabalho aprofundado de investigação (Quilici, 2004,
p. 48).
Afiando-se na argumentação de Quilici, se poderia deduzir que a
interpretação adotada por Celso das teorias artaudianas correria sérios riscos
de não passar pelo crivo de uma apreciação acadêmica? É provável. Contudo, se
um acadêmico precisa prestar contas à comunidade dentro da qual se insere, o
mesmo não se aplica a um artista como Celso, isento desse tipo de
compromisso, que lhe permitiria “deglutir” Artaud da maneira que melhor lhe
conviesse. O mesmo vale para as proposições de Jerzy Grotowski, cujos conceitos
de “ator santo”, “autopenetração” e “via negativa”, muito provavelmente, ao
inseminarem a poderosa sensibilidade artística de Celso, ganharam uma
aplicabilidade que fugiria, em maior ou menor escala, àquela idealizada pelo
encenador polonês.
Conforme ressaltam Armando Sérgio da Silva e Jacó Guinsburg, em um
trabalho conjunto sobre a linguagem teatral do Oficina,
as sérias pesquisas sobre o pensamento teatral de Jerzy Grotowski,
empreendida durante os ensaios de
Na Selva das Cidades
, de Bertolt
Brecht, contribuíram para que o grupo continuasse a acentuar, de
maneira cada vez mais extremada, não a interrelação, mas a interação
ator-público (Silva; Guinsburg, 1981, p. 233).
Que essa interação, com o passar dos anos, atingiria as raias de um contato
francamente sexualizado, a congregar elenco e público num coro orgiástico, é
algo que Grotowski, no período em que produziu espetáculos (1959-1969), não
ousou, nem de longe, levar a cabo.
A terceira linha de força a explicar a linguagem lasciva e indecorosa burilada
pelo Oficina, principalmente em sua segunda fase de ebulição (1993 em diante),
vem de uma sugestão literária: a obra ensaística e poética de Oswald de Andrade.
Adepto assumido das teses primitivistas desenvolvidas pelos modernistas de 1922,
dentro da linhagem à qual Andrade fazia parte, Celso parecia levar a sério a
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recomendação gaiata de seu antecessor, presente no poema “Erro de português”,
de 1925, onde se lê:
Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o Índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido o português
(Andrade, 1974, p. 177)
Seria esse, para os dois artistas, o pecado original da civilização brasileira, ao
qual caberia, pela via artística, expiar. No famoso
Manifesto antropófago
(1928),
Andrade, por meio de um genial trocadilho, expressa esse sentimento na forma de
um dilema hamletiano:
tupi or not tupi, that is the question
(Andrade, 1982, p.
353). Anos depois, ao musicar essa passagem, o Teatro Oficina a transformaria
num poderoso refrão, verdadeiro
leitmotiv
a evocar suas raízes modernistas e,
mais do que isso, oswaldianas.
Dentro desse caldeirão de influências que agiram sobre Zé Celso, cabe ainda
levantar uma última referência, saída do campo da psicologia. Trata-se da obra de
Wilhelm Reich, autor de
Análise do caráter
(1933) e
A revolução sexual
(1936). Para
o polêmico psicanalista, cuja obra se associa à contracultura, haveria uma relação
direta entre as estruturas sociais e as estruturas subjetivas. Isso equivale a dizer
que as estruturas sociais, com seus poderes repressores, seriam introjetadas pelos
indivíduos, na forma de couraças físicas e psíquicas aprisionadoras de suas
subjetividades18. Não é difícil deduzir, a partir dos dados apresentados, para qual
fim Zé Celso, ao ler o pensador austríaco ainda na década de 1960, irá destinar seu
teatro: à desconstrução, sem dúvida, de tais couraças, que na ótica reichiana, de
fato, se ligam diretamente ao universo da sexualidade humana.
A questão ideológica: a estética do Oficina é, afinal, revolucionária ou
reacionária?
Desde o início deste artigo, se tem abordado, com frequência, a problemática
18 De acordo com Bruno Henrique Prates de Almeida, autor da dissertação intitulada
A noção de couraça na
obra de Wilhelm Reich: origens e considerações sobre o desenvolvimento humano
(2012), o conceito de
couraça na obra de Reich se desenvolveu entre a década de 1920, início da trajetória intelectual do
psicanalista, e 1935, ano em que elaborou a ideia de couraça muscular, quando incluiu à sua conceituação
os aspectos fisiológicos do corpo humano.
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político-ideológica a envolver as encenações de Celso, com especial ênfase nos
trabalhos em que, pelas influências supracitadas, a nudez e o desbragamento
sexual despontam de maneira paroxística (
As bacantes
seria, nesse sentido, o
modelo paradigmático). foram expostos, até aqui, diferentes pontos de vista
acerca do tema, que acaba se tornando controverso em razão deles não
convergirem de modo algum. os que acusam a “estética do desbunde” de
reacionária, os que a tomam como progressista, numa proporção mais ou
menos paritária.
Sem querer encerrar o debate, que é dos mais interessantes, trata-se, de
certo modo, de uma falsa polêmica, especialmente quando analisada por um viés
mais sincrônico do que diacrônico, isto é, mais atento às teorias do que à
aplicabilidade delas dentro de um determinado contexto histórico.
O teatro moderno, em suas inúmeras manifestações, produziu, ao longo do
tempo, duas formas que se poderiam taxar de revolucionárias, no sentido político
do termo: o teatro épico-dialético, de um lado; o teatro da crueldade, de outro.
Jogando no primeiro time, ainda que em diferentes posições, sobressaem os
nomes de Vsevolod Meyerhold, Erwin Piscator e Bertolt Brecht. No segundo time,
além da óbvia inclusão de Antonin Artaud, criador do conceito, agrega-se, com
algumas ressalvas, o nome de Jerzy Grotowski, encenador que, até certo ponto,
realizou, em sua prática cênica, aquilo com que Artaud apenas sonhara. Isso sem
contar o trabalho de certos coletivos que, no início dos anos de 1960, descobriram
as ideias de Artaud (e foram por elas tocadas), cujo exemplo mais conhecido seria,
provavelmente, o
Living Theatre
, graças a espetáculos como
Frankenstein
(1965) e
Paradise Now
(1968), que lhe deram renome internacional.
O teatro épico-dialético, indexado ao pensamento marxista, nega com
veemência a ideia de indivíduo, um dos alicerces do liberalismo burguês,
substituindo-a pela noção de sujeito, ou, para ser mais preciso, de sujeito-
histórico. Contra uma concepção segundo a qual o homem é um ser que constrói
autonomamente sua personalidade (individualismo), o teatro épico-dialético
impõe outra, na qual ele é concebido como o conjunto de todas as relações sociais.
Com efeito, antes de se sonhar com uma mudança ontológica do homem, primeiro
deveria advir uma revolução social, que lhe proporcionaria, uma vez estabelecida,
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condições de desenvolver uma nova subjetividade, baseada em novos valores.
o teatro da crueldade, tudo indica, não chega a negar o primado do
indivíduo. O que ele propõe, na realidade, é a criação de um novo indivíduo, que
não seja aquele da ordem burguesa, autodeterminado e autoconsciente.
Desprezando, em boa medida, as teorias racionalistas que se escondem por detrás
dessa noção, ele sugere uma revolução a incidir diretamente no plano das
subjetividades, com o objetivo de desrecalcá-las. Como diria Friedrich Nietzsche
(2007), a superação do “eu” por intermédio do êxtase dionisíaco, responsável por
conectar o ser à natureza profunda que o liga ao todo (Uno).
Por intermédio de um processo cosmogônico, que privilegia formas de
intelecção irracionais, o homem é levado a desenvolver e aprimorar novas
camadas de percepção, que ultrapassariam os limites cognitivos do indivíduo
burguês. Se, no exemplo anterior, o
páthos
revolucionário deveria agir de fora para
dentro do homem, aqui ele se no sentido inverso, sem ser, por isso, menos
revolucionário.
Mesmo em teoria, os polos acima expostos não são nem antagônicos e nem
excludentes, na medida em que eles também possuem características comuns.
Para os propósitos deste trabalho, mais focado em discernir do que em equiparar,
ainda haveria mais uma distinção a fazer, relacionada à posição ocupada por essas
duas estéticas na história do pensamento ocidental. Enquanto o teatro épico-
dialético mantém, com conforto, os dois pés fincados na modernidade, o teatro
da crueldade, por seu turno, tem um assentado na modernidade e outro na
chamada pós-modernidade.
O primeiro, ligado ao projeto iluminista, compartilha com ele seu forte caráter
racionalista, universalista, próprio de uma cosmovisão segundo a qual o mundo é
cognoscível, ou seja, explicável à luz da razão. Afirmar que ele é explicável significa
acreditar que ele pode ser melhorado pela via do esclarecimento, conceito-chave
a toda forma de pensamento ilustrado. E o teatro brechtiano, em sua forma épica-
dialética, seria, antes de tudo, um teatro de esclarecimento.
o segundo tende a rejeitar tal projeto ao mostrar-se cético em relação aos
ditames da razão, vista, na pior das hipóteses, como uma entidade aprisionadora,
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ou, na melhor delas, como um atributo humano limitado, incapaz de conferir à
vida um sentido cosmogônico. Para que isso se dê, o teatro da crueldade advoga
uma visão de mundo, em certo sentido, suprarracional, dentro da qual o indivíduo
não é mais encarado como uma mônada fechada, indivisível, mas como alguém
permeável à ação de forças que deveriam conectá-lo ao cosmos.
Nessa busca de uma plenitude, que nos remeteria ao universo das essências,
dois vetores interagem: um, centrífugo, ligado à ideia de identidade, que procura
situar o indivíduo dentro do seu contexto social; outro, centrípeto, ligado à ideia de
alteridade, que buscaria a verdade dos seres fora das classificações,
desestabilizando as identidades para incorporar o singular e o diferencial. Embora
esses dois vetores convivam juntos, levando-se em consideração toda a
argumentação anterior, percebe-se que o teatro da crueldade se inclina mais para
o lado da alteridade, o que o deixa mais próximo da subjetividade pós-moderna,
fragmentada por excelência, do que da moderna, com sua ênfase numa suposta
identidade universal.
Seja como for, o Teatro Oficina, em seus 67 anos de história, perpassou pelas
duas estéticas, às vezes em separado, às vezes de maneira simultânea, agregando,
numa mesma obra, Brecht e Artaud, Meyerhold e Grotowski, sem com isso perder
o foco político, por mais que ele se apresentasse, para alguns, demasiadamente
ambíguo. Se, a partir de um determinado momento, Artaud ganhou a dianteira na
preferência do grupo, daí não se conclui que Brecht tenha sido deixado de lado.
Ele sempre se manteve presente no trabalho de Celso, pois este sempre
ambicionou realizar um teatro que fizesse sentido; um teatro que, em outros
termos, não se corporificasse em puro formalismo, “risco” contemplado pelo
teatro da crueldade em sua busca por uma cena dessemantizada.
Por todas essas questões, aliadas a outras que ainda poderiam ser
levantadas, fica mais fácil apreciar algumas noções ideológicas inerentes à estética
do Oficina, partindo do pressuposto de que nenhuma estética paira acima das
ideologias, na medida em que, se toda arte é um fenômeno estético-político-
social, que dirá o teatro, arte coletiva e comunitária.
Alguns apontamentos político-ideológicos sobre o Teatro Oficina e sua estética teatral
Rodrigo Morais Leite
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-25, ago. 2025
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Recebido em: 24/08/2024
Aprovado em: 27/07/2025
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