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Dialética em jogo:
experimentos com a Peça Didática Brechtiana
Marcelo Gianini
Para citar este artigo:
GIANINI, Marcelo. Dialética em jogo: experimentos com a
Peça Didática Brechtiana. Urdimento Revista de Estudos
em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 54, abr. 2025.
DOI: 10.5965/1414573101542025e101
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Dialética em jogo: experimentos com a Peça Didática Brechtiana
Marcelo Gianini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-26, abr. 2025
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Dialética em jogo: experimentos com a Peça Didática Brechtiana1
Marcelo Gianini2
Resumo
Reflexões em torno de encenação realizada pelo projeto Igreja Dialética Brechtiana,
tendo como objeto de análise a proposição de um processo de ensino e aprendizado
do pensamento dialético por meio do jogo teatral. Tomou-se como material para o
estudo a experiência com dois procedimentos lúdicos, o jogo com a cena de
julgamento e o jogo da troca de papéis, colocados em relação com a tríade dialética
e o conceito de dialética em repouso, e com ferramentas das peças didáticas de
Bertolt Brecht, como a interrupção da ação e o deslocamento da ação do palco para
a plateia. A reflexão conceitual se deu em diálogo com Walter Benjamin e Theodor
W. Adorno, além do próprio Brecht.
Palavras-chave: Jogo Teatral. Dialética. Peça Didática. Bertolt Brecht. Pedagogia do
Teatro.
Dialectics at play: experiments with the Brechtian Learning Play
Abstract
Reflections on a performance carried out by the Igreja Dialética Brechtiana project,
having as object of analysis the proposition of a teaching and learning process of the
dialectical thinking through theatrical play. The experience with two playful
procedures was taken as material for the study. The game with the trial scene and
the game of changing roles, placed in relation to the dialectical triad and the concept
of dialectics at rest, and with tools from Bertolt Brecht’s learning plays, such as the
interruption of the action and the displacement of the action from the stage to the
audience. The conceptual reflection took place in dialogue with Walter Benjamin and
Theodor W. Adorno, in addition to Brecht himself.
Keywords: Theatrical Game. Dialectics. Learning Play. Bertolt Brecht. Theater
Pedagogy.
Dialéctica em juego: experimentos con el juego didáctico brechtiano
Resumen
Reflexiones sobre una performance realizada por el proyecto Igreja Dialética
Brechtiana, teniendo como objeto de análisis la propuesta de un proceso de
enseñanza y aprendizaje del pensamiento dialéctico a través del juego teatral. Se
tomó como material de estudio la experiencia con dos procedimientos lúdicos, el
juego con la escena del juicio y el juego de roles cambiantes, colocados en relación
con la tríada dialéctica y el concepto de dialéctica en reposo, y con herramientas
provenientes de las obras didácticas de Bertolt Brecht, como la interrupción de la
acción y el desplazamiento de la acción del escenario al público. La reflexión
conceptual se produjo en diálogo con Walter Benjamín y Theodor W. Adorno, además
del propio Brecht.
Palabras clave: Juego Teatral. Dialéctica. Juego Didáctico. Bertolt Brecht. Pedagogía
Teatral.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Larissa da Silva Barbante. Graduação em Letras pela
Universidade Federal de Alagoas (Ufal).
2 Doutorado e Mestrado em Pedagogia do Teatro na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-
USP). Graduação em Educação Artística Habilitação em Artes Cênicas. Professor adjunto do Curso de Teatro Licenciatura
da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). margianini@hotmail.com
http://lattes.cnpq.br/7288167787924464 https://orcid.org/0000-0002-3354-5221
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O decisivo na política não é o pensamento
individual, e sim como Brecht afirmou certa vez
a arte de pensar dentro da cabeça dos outros.
(Walter Benjamin)
A indissociabilidade entre teatro e pedagogia é uma das marcas da produção
artística de Bertolt Brecht. Suas peças didáticas (Lehrstücken) talvez sejam a
concretização mais explícita deste projeto, formando um conjunto de
experimentos (Versuche) político-artístico-pedagógicos com o objetivo de propor
o ensino e a aprendizagem da dialética para os participantes do acontecimento
teatral. Em princípio essas produções dramatúrgicas estavam voltadas para a
aprendizagem daqueles que atuam, pois, segundo Brecht, “a peça didática ensina
quando se é atuante, não quando se é espectador” (Brecht apud Koudela, 2010,
p.36), assim prescindia-se da constituição formal de uma plateia, o que fez com
que Reiner Steinweg estabelecesse como sua “regra básica” a atuação sem
espectadores (Koudela, 2010, p. 36). Porém, o próprio Brecht dirigiu montagens
teatrais desses textos com artistas profissionais para apresentações públicas, o
que pode ser uma pista para se problematizar o alcance de sua didática em
relação à presença de plateia em suas peças didáticas.
No Brasil, a partir de meados da década de 1980, essa produção brechtiana
teve enorme impulso por meio das pesquisas de Ingrid D. Koudela, que propôs
uma série de procedimentos artístico-pedagógicos tendo como operador o jogo
teatral. Afirma a pesquisadora em sua obra seminal sobre o tema: “O presente
trabalho persegue o objetivo de uma utilização pedagógica do conceito de peça
didática em Brecht, buscando um método de ensino para sua abordagem através
do jogo” (Koudela, 2010, p. XXI). A partir desta produção de Koudela, construímos o
experimento Igreja Dialética Brechtiana, projeto de Extensão desenvolvido na
Universidade Federal de Alagoas - Ufal, entre os anos de 2019 e 2024, com elencos
compostos, principalmente, por estudantes do curso de Teatro Licenciatura.
O presente artigo contém algumas reflexões sobre este experimento, tendo
como objeto de análise a proposição de um processo de ensino e aprendizado da
dialética por meio do jogo teatral, sendo que este projeto lúdico se não somente
no palco, entre aquelas e aqueles que atuam, como também na plateia, entre
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quem assiste a produção espetacular. Elegemos como parceiros de diálogo os
pensadores alemães Walter Benjamin e Theodor W. Adorno, com aportes dos
brasileiros José Paulo Netto e Leandro Konder, além do próprio Bertolt Brecht.
Como material de análise optamos pela descrição de alguns experimentos e suas
resultantes obtidas na realização da montagem do texto A peça didática de Baden
Baden sobre o acordo, de Bertolt Brecht (1988), cuja adaptação da Igreja Dialética
Brechtiana foi denominada de O acordo.
O Projeto de Extensão Igreja Dialética Brechtiana: uma missa dialética
A origem da Igreja Dialética Brechtiana está em outro projeto de Extensão, as
Performances Político Poéticas desenvolvidas no âmbito do extinto Programa de
Extensão Corpo Cênico da Ufal, nos anos de 2018 e 2019. O referido projeto
trabalhou na criação de pequenas encenações inspiradas no estudo e no jogo com
textos de Brecht que têm a personagem do Senhor Keuner como protagonista,
sendo o foco da pesquisa cênico-pedagógica a construção do gestus social3. As
apresentações públicas resultantes desse processo desencadearam outra questão
para o grupo: seria possível explicitar o processo de análise e criação cênica
realizadas nos ensaios como parte da própria encenação? Poderíamos agregar ao
local de representação (palco) o espaço de pesquisa (ensaios), ampliando o
alcance desse processo pedagógico lúdico, também, para a plateia? Queríamos
verificar se poderíamos realizar o processo de reflexão dialética dos ensaios,
operados pelo jogo teatral, no processo da apresentação teatral, como
estruturante da encenação.
Para este intuito, parecia-nos necessária a escolha de um texto que
comportasse em sua estrutura dramatúrgica momentos de parada para reflexão,
ou, nas palavras de Walter Benjamin, de “interrupção dos processos” (Benjamin,
2017, p. 14). A escolha recaiu em uma das peças didáticas de Brecht, A peça
didática de Baden Baden sobre o acordo, que apresenta como fábula o julgamento
de Quatro Aviadores Acidentados que pedem ajuda ao Coro, na qual são
designadas falas para o público, que assim atuaria como uma espécie de juiz, num
3 Gestus: conceito elaborado por Brecht para descrever “uma ação física e/ou imagética que revela aspectos
específicos e contraditórios da personagem, da cena ou de toda a encenação” (Koudela, 2015, p. 90).
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diálogo aberto entre palco e plateia. Também nos chamou a atenção a estrutura
dramatúrgica desta peça didática, que apresenta semelhanças com a liturgia de
uma missa católica, o que nos sugeriu o formato de encenação. A montagem
realizou diversas apresentações no ano de 2019, incluindo-se a abertura do I
Congresso do Fórum Popular na Ufal4, sobre a qual faremos uma análise mais a
frente.
O projeto foi retomado em 2022, agora com o apoio institucional do Edital
Vivências Artísticas da Proexc Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da Ufal, através
de bolsas de estudo para parte do renovado elenco, e desde então foram
realizadas apresentações para diversos públicos, como discentes e docentes dos
cursos de Teatro Licenciatura, de Filosofia e de Comunicação Social, em eventos
promovidos pela Proexc, na Bienal Internacional do Livro de Alagoas, no encontro
Singularidades 2.0 do curso de Filosofia e no IV Fórum Brecht e Educação, todos
realizados em Maceió, Alagoas.
A encenação, como mencionado acima, segue a estrutura de uma missa
católica na qual os atuantes são responsáveis pela condução do ato religioso e a
plateia é colocada no papel de “fiéis” em uma igreja. Diga-se que esta aproximação
entre ato religioso e a peça didática brechtiana não é um achado inovador, pois,
como já detectara Walter Benjamin ao se referir ao primeiro desses textos, O voo
sobre o oceano, uma “tensão característica das peças didáticas posteriores.
Uma rigidez clerical é aplicada no ensino de uma técnica moderna” (Benjamin,
2017, p.27). Além das semelhanças com o ritual católico, o formato de missa
procura também tensionar o conteúdo do texto brechtiano, pois, como afirma
Benjamin:
A tarefa primordial de uma direção épica é expressar a relação da ação
representada com a ação da representação em si. Se o programa integral
de formação marxista é determinado pela dialética que norteia o
comportamento de ensinar e aprender, algo análogo acontece no teatro
épico em razão de seu permanente confronto entre o evento cênico que
é mostrado e o comportamento cênico que o mostra (Benjamin, 2017, p.
19).
4 Fórum realizado nos dias 16, 17 e 18 de maio de 2019, na Universidade Federal de Alagoas, que teve como
objetivo fortalecer e ampliar a participação e o diálogo entre a Ufal e a sociedade alagoana, em especial os
movimentos sociais.
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Entendemos tanto o formato de missa como o nome do projeto como gestus,
que revelam contradições entre forma e conteúdo, entre atitude e discurso, com
o intuito de causar estranhamento no processo de recepção teatral. Neste sentido,
o texto brechtiano é performado como uma liturgia, sendo lido, cantado,
salmodiado, projetado no fundo do palco e dialogado pelo elenco, este dividido
em Coro, Líder do Coro (Sacerdote em O acordo), Narrador (Diácono em O acordo),
Quatro Aviadores Acidentados e Multidão (membros da plateia tratados como fiéis
da Igreja). Em relação ao texto base de Brecht, além de pequenos cortes e
adaptações, foi excluída a cena dos Palhaços e o Sr. Schmitt, acrescentados
pequenos textos visando explicitar o paralelismo com a liturgia da missa católica
e ainda canções de outras produções brechtianas em parceria com Kurt Weill, a
Canção de Salomão (canto de entrada e de conclusão da missa/encenação), e a
Balada sobre a inutilidade do esforço humano (cantada ironicamente no momento
da comunhão/acordo entre palco e plateia), além da marchinha carnavalesca Me
um dinheiro , dos irmãos Ferreira (Homero, Glauco e Ivan), como apelo para
a doação de dinheiro pelos “fiéis” da Igreja Dialética Brechtiana.
O formato de missa faz com que o texto também possa realizar a função de
“um drama para a tribuna” (Benjamin, 2017, p. 11), onde o palco se transforma em
uma tribuna política, explicitada desde o início da encenação. Os diálogos
presentes no texto brechtiano são performados sempre voltados para o olhar do
público, tais como são os depoimentos dados em um tribunal, tornando a
comunicação entre palco e plateia direta. A paródia de missas católicas conforma-
se também como sátira, “que sempre foi uma arte materialista, [e] tornou-se
também dialética em suas [de Brecht] mãos” (Benjamin, 2017, p.84). Os textos não
são memorizados pelo elenco, mas intencionalmente lidos, o que faz desse gesto
a reafirmação intermitente da epicização do palco e sua transformação em espaço
de reflexão. As conformações gestuais em tribuna e em leitura liquidam qualquer
possibilidade de ilusão teatral (Benjamin, 2017, p. 12):
Ao público, o palco não apresenta mais “as tábuas que representam o
mundo” (ou seja, um espaço encantado), mas um espaço de exibição com
localização favorável. Para o palco, o público deixa de ser uma massa de
cobaias hipnotizadas e se torna uma reunião de interessados, cujas
demandas devem ser atendidas. Para o texto, a encenação não é mais
uma interpretação virtuosa, mas controle estrito. Para a encenação, o
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texto não é mais uma base, mas coordenadas em que se registra, como
novas formulações, o resultado. Para os atores, o diretor não passa mais
orientações sobre efeitos, mas teses diante das quais é preciso tomar
partido. Para o diretor, o ator não é mais o fingidor que tem de encarnar
um papel, mas o funcionário que o inventaria.
Figura 1 - Igreja Dialética Brechtiana em O acordo (31/10/2024) (acervo do grupo)
Na imagem acima podem ser observados alguns dos elementos descritos
anteriormente: projeção de textos, leitura em aparelhos celulares, atuação que
explicita o gesto de narração ao voltar-se para o público e o cenário ascético,
assim como os figurinos das personagens (da direita para a esquerda,
Narrador/Diácono, Coro, Líder do Coro/Sacerdote, Coro e Aviadores Acidentados),
coadunam com o que Benjamin chama de “excepcional parcimônia do aparelho”
(Benjamin, 2017, p. 27) na encenação da peça didática.
Para as reflexões que se seguem, fez-se o recorte de dois jogos teatrais
utilizados na montagem, tendo a plateia como jogadora: a troca de papéis e o jogo
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do tribunal. Na encenação, a troca de papéis é realizada como parte do jogo do
tribunal, mas aqui se tentará, na medida do possível, analisá-los de forma
independente para melhor entendimento da proposta.
Jogo da troca de papéis: uma reunião de interessados
O jogo é visto como operador privilegiado em processos de ensino e
aprendizagem da linguagem teatral em diversos contextos educacionais no Brasil.
Diversas modalidades pedagógicas têm no jogo sua estrutura de organização
didática, como os Jogos Teatrais de Viola Spolin, o arsenal de jogos do Teatro do
Oprimido de Augusto Boal e os Jogos Dramáticos franceses. Koudela parte desta
perspectiva de jogo como operador pedagógico da linguagem teatral para usá-lo
nos procedimentos de ensino e aprendizagem com as peças didáticas brechtianas.
Esta perspectiva lúdica é indicada como possibilidade técnica já no artigo seminal
de Walter Benjamin sobre o que é o teatro épico, de 1939, quando afirma que
“talvez seja possível se aproximar mais do (modo de encenar) do teatro épico, e
de maneira mais objetiva, a partir da noção de ‘fazer teatro’ (Theaterspielen)
(Benjamin, 2017, p. 28). Observe-se que a palavra alemã Theaterspielen também
pode ser traduzida por “brincar de teatro” e Theaterspiel como “peça de teatro” ou
“jogo teatral”, sendo este último sentido o utilizado por Ingrid Koudela (2010, p.
XXII). Nossa proposta não é eleger o jogo teatral como metodologia exclusiva de
trabalho ou de análise da obra brechtiana, nem como práxis dialética privilegiada,
mas como desencadeador do estudo, em suma, como operador do conhecimento:
O jogo teatral é, na visão brechtiana, um comportamento próprio do ser
humano, sendo que o desenvolvimento artístico do teatro como
espetáculo é uma marca dentro do continuum que segue da criança até
o artista adulto. [...] O jogo teatral em Brecht incorpora o espaço do
filósofo que reflete sobre os processos históricos para exercer sua ação
sobre eles (Koudela, 2015, p.110-111).
Um dos procedimentos sugeridos por Brecht para a atuação em seu teatro
épico e em suas peças didáticas é o Jogo da Troca de Papéis, a partir do princípio
segundo o qual as personagens dramáticas não são propriedades individuais dos
atuantes, por isso precisam ser analisadas pelo coletivo, o que faz com que o
elenco seja estimulado a atuar em papéis conflitantes. Koudela observa que:
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Brecht propõe o jogo da troca de papeis através do texto da peça didática,
onde se encontram indicações [de atuação] [...] e exige literalmente (A
decisão) que todos os participantes passem de um papel ao outro e
assumam sucessivamente o lugar de acusados, acusadores,
testemunhas e juízes./ O princípio da troca de papeis (ver o próprio papel
representado pelo outro) tende a desenvolver maior objetividade
(Koudela, 2010, p. 115).
O procedimento visa propiciar aos participantes um olhar socialmente crítico
das personagens e da situação representada. A personagem é o objeto analisado
pelas diversas subjetividades, passando de um atuador para outro, o que
possibilita uma multiplicidade de análises. A troca de papéis, em geral, provoca
diversas formas de olhar para o objeto e de atuar sobre a situação em análise, seja
por identificações e/ou distanciamentos, seja considerando o contexto imediato
da ação e/ou mediatizando a situação em diálogo com o mundo.
Visto que a troca de papéis é sugerida por Brecht para aqueles que atuam
nas peças didáticas e como queríamos realizar na encenação teatral o processo
desenvolvido nos ensaios, convidamos a plateia para se apossar desta ferramenta
de análise. Se no teatro épico os espectadores são vistos como analistas
distanciados da situação representada, em nossa peça didática também são
colocados no papel de fiéis da Igreja Dialética e, no momento da interrupção da
ação (cena de julgamento), como promotores e advogados das personagens
Quatro Aviadores Acidentados, deslocando o eixo da cena do palco para a plateia.
Neste jogo de troca de papéis (no caso, papéis dentro de papéis), os espectadores
tanto se distanciam (analistas), como se aproximam (“fiéis” da Igreja) e também
atuam (advogados e promotores) diante da situação.
Walter Benjamin, ao se referir “a um poderoso processo de refundição das
formas literárias” (Benjamin, 2017, p. 88) na imprensa soviética, afirma que “o leitor
[...] está sempre disposto a se tornar alguém que escreve seja alguém que
descreve, seja alguém que prescreve” (Benjamin, 2017, p. 89). Para o pensador
alemão,
na imprensa, pelo menos na russo-soviética, reconhecemos que o
poderoso processo de refundição [...] não passa por cima apenas de
divisões convencionais entre os gêneros, entre escritor e poeta, entre
pesquisador e divulgador científico, mas revisa até mesmo a divisão entre
autor e leitor (Benjamin, 2017, p. 89).
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A primeira vez que participei desse jogo teatral ocorreu de forma similar a
que realizamos em O acordo, como jogo dentro do jogo da cena de julgamento.
Foi em minha graduação em Teatro com Ingrid Koudela, em 1986. Na ocasião,
jogávamos a partir do texto de Heiner Müller, O Horácio, e debatíamos se a pena
de morte deveria ser aplicada na situação apresentada naquela fábula. Lembro até
hoje como, então com meus 20 anos de idade, participei acaloradamente do
debate integrando o grupo contrário à pena de morte. Minhas opiniões e
colocações pareciam imediatas, próximas à espontaneidade, pois estavam de
acordo com meus princípios éticos, o que fazia com que o jogo inicialmente fluísse
com muita segurança de minha parte. Porém, quando Ingrid propôs a troca de
papéis e meu grupo teve que defender a pena de morte, meu cérebro se torceu:
como defender com consistência argumentativa algo que em minha opinião é
abominável? Ver meus colegas de turma assumindo os papéis que lhes foram
designados abriu uma brecha em meus pensamentos: no teatro eu poderia expor
publicamente uma opinião contrária à minha desde que estivesse “protegido” por
uma máscara! Ali, em jogo, eu não necessariamente expunha meus princípios
éticos, mas os posicionamentos do papel que me fora designado. Esta
possibilidade de analisar a situação sob outros pontos de vista, de “pensar dentro
da cabeça dos outros”, de andar em torno do objeto, de examinar a situação de
forma distanciada, foi então, para mim, reveladora da potência do teatro (em
especial, do teatro épico) e da possibilidade do exercício do pensamento dialético
através do jogo.
Walter Benjamin cita uma frase de Brecht sobre a importância do
conhecimento prévio da plateia da fábula a ser apresentada que pode elucidar o
que dizemos em relação a quem atua em jogo com a peça didática: “Ele (Brecht)
disse que a relação com a fábula deve ser igual à do professor de balé com a
aluna; seu primeiro objetivo é o de flexionar as articulações dela até o limite do
possível” (Benjamin, 2017, p. 24). Estávamos ali exercitando os limites de nossa
flexibilidade intelectual, incitados pelas regras do jogo teatral. A designação dos
papéis obedecia ao “esquema triádico” do pensamento dialético, tese, antítese e
síntese, sendo as duas primeiras explicitadas no jogo de debate, porém ali também
se mostravam os limites da crença em uma síntese conciliadora, idealizada.
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A respeito desta atuação cênica para jogar com a situação dada, ou seja, da
necessária implicação do sujeito no objeto, pode-se pensar no que José Paulo
Netto diz a respeito do método de Marx:
O papel do sujeito é essencialmente ativo: precisamente para apreender
não a aparência ou a forma dada ao objeto, mas a sua essência, a sua
estrutura e a sua dinâmica (mais exatamente: para apreendê-lo como um
processo), o sujeito deve ser capaz de mobilizar um máximo de
conhecimentos, criticá-los, revisá-los e deve ser dotado de criatividade e
imaginação. O papel do sujeito é fundamental no processo de pesquisa
(Netto, 2011, p. 25, grifos do autor).
Esta subjetividade necessária para a compreensão do objeto estudado, no
caso, da situação em análise, “exclui qualquer pretensão de ‘neutralidade’,
geralmente identificada com ‘objetividade’” (Netto, 2011, p. 23).
O jogo teatral com sua dinâmica ativa, criativa e imaginativa pode ser um
excelente operador na aprendizagem do pensamento dialético, ou mais
precisamente uma técnica de pesquisa e análise do objeto estudado (Netto, 2011,
p.23). A percepção do que seria esse pensamento dialético, ainda que naquele
momento bastante superficial, tendendo para sua aplicação mecânica, me tocou
na carne, na experiência muscular, pois o jogo teatral me possibilitou acessar um
modo de reflexão coletivo e refinado. A possibilidade de jogar por meio de papéis
diferentes, por meio de personagens diversos e opostos, cria momentos genuínos
de tensão no processo de construção do conhecimento, seja este coletivo por
meio da publicização dos argumentos, seja individualizado, nas tentativas de
pensar “dentro da cabeça dos outros”. Ali percebíamos uma tênue experiência da
forma de operar do pensamento dialético que pressupõe uma tese (afirmação) e
de uma antítese (negação), que se chega a uma síntese (negação da negação),
sempre em movimento. Através do jogo teatral chegamos a uma síntese dinâmica,
que não era pacífica ou pacificadora em nenhum momento.
Nos casos de experimentos como O Horácio e com turmas de estudantes de
teatro, a disponibilidade para experiências teatrais faz parte do contexto de estudo,
o que faz com que o jogo se desenvolva de maneira fluída. Quando transposto
para a forma espetacular, como faríamos na encenação de O acordo, pela Igreja
Dialética Brechtiana, teríamos o mesmo engajamento da plateia, supondo que
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esta, em sua maior parte, não seria composta por artistas cênicos familiarizados
com o jogo teatral? O jogo de troca de papéis, que me possibilitara a experiência
pública da contradição, seria acessível a públicos não especializados? Assim como
no experimento de O Horácio, usamos outro jogo teatral como organizador didático
da troca de papéis, a cena de julgamento.
Jogo da Cena de Julgamento: a interrupção da ação
O texto de A peça didática de Baden Baden sobre o acordo em várias
passagens convoca a plateia (Multidão) para se manifestar através de perguntas
dirigidas pelo Coro, como esta:
O CORO dirigindo-se à Multidão- Escutem: quatro homens / Pedem seu
socorro. / Eles voaram através dos ares e / Caíram ao solo e / Não querem
morrer. / Por isso pedem / O seu socorro. / Aqui temos / Um cálice com
água e / Um travesseiro, / Mas digam-nos / Se devemos ou não ajudá-
los. // A MULTIDÃO responde ao Coro Sim. // O CORO à Multidão: Eles
os ajudaram? // A MULTIDÃO - Não (Brecht, 1988, p. 193).
As diversas perguntas provocam interrupções na ação, fazendo com que a
empatia que a fábula por ventura possa despertar nos espectadores não seja
mobilizada, pois “a dialética pretendida pelo teatro épico não depende de uma
sequência temporal das cenas; ela se manifesta especialmente nos elementos
gestuais que estão na base da sucessão cronológica” (Benjamin, 2017, p. 20). O
momento da parada caracteriza-se como este gesto de interrupção da fábula, de
impedimento da sequência da vida e como convite para o exame dialético da
situação. Segundo Benjamin (2017, p.20):
A condição revelada pelo teatro épico é a dialética em repouso. Assim
como em Hegel a passagem do tempo não é a mãe da dialética, mas
apenas o meio no qual ela se apresenta, no teatro épico a mãe da
dialética não é o curso contraditório dos enunciados ou os modos de
comportamento, mas os gestos em si.
A parada no fluxo fabular congela os gestos, sendo utilizada por Brecht como
recurso em cenas de julgamento presentes em sua dramaturgia, para que se
realize o exame da situação, em diversas peças, como A decisão, que é a
representação de um tribunal revolucionário; A exceção e a regra, concluída com
o julgamento do Comerciante assassino do Cule; Vida de Galileu, em que o
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julgamento de Galileu Galilei pelo Tribunal da Inquisição é seu ápice dramático (se
ainda podemos usar essa expressão para o teatro épico dialético brechtiano...);
Aquele que diz sim e Aquele que diz não, nas quais o julgamento deve ser realizado
pelos próprios pares do Menino que precisa (ou não) morrer para salvar sua
comunidade. A cena de julgamento também é estruturante na dramaturgia de
duas peças didáticas de Heiner Müller: O Horácio e em Mauser.
O estancamento no fluxo da vida real, o momento em que seu transcurso
cessa, torna-se perceptível como refluxo: o espanto é o refluxo. A
dialética na cessação é seu real objeto. É a rocha a partir da qual o olhar
se volta para aquele fluxo de coisas [...]. Mas, se o fluxo de coisas se choca
[como uma onda] contra essa rocha do espanto, não diferença entre
uma vida e uma palavra. No teatro épico, ambas são apenas a crista da
onda. Esse teatro faz com que a vida jorre para o alto do leito do tempo
e, por um átimo, brilhe no vazio, para depois deitá-la novamente.
(Benjamin, 2017, p. 20-21).
A interrupção revela a situação por meio do congelamento da ação, cessando
o fluxo contínuo da fábula e sua recepção imediata para examinar as
determinações presentes, ou seja, mediatizá-la. O congelamento do fluxo normal
das vidas representadas em nossa “missa” se dá no convite para que a plateia de
“fiéis” compartilhe suas opiniões. Nosso gesto de convocação caracterizava essa
interrupção da ação para a análise da situação, porém a interpelação da plateia
não era direta, com o intuito de obter respostas espontâneas, mas mediada por
uma sequência de regras a serem seguidas e que conformariam a investigação da
situação em jogo, numa espécie de “rito político” e método de análise. As regras
do jogo organizam o processo de mediação e “obrigam-nos a refletir sobre outro
elemento insuprimível da realidade: as contradições” (Konder, 1981, p. 48).
A dialética é consciente de que há, de um lado, o pensamento, e de outro,
aquilo sobre o qual o pensamento se empenha. O pensar dialético não é
meramente intelectualista, mas consiste justamente na tentativa de
autolimitação do pensar por meio da coisa (Adorno, 2022, p. 71).
As regras não são, em si, a coisa a ser pensada, mas operam como
mediadoras e limitadoras no pensamento dialético.
Regra 1: em nossa paródia da missa, uma das interrupções da fábula acontece
no momento similar ao rito da paz, no qual os presentes ao ritual católico desejam
a “paz de Cristo” às pessoas sentadas em seu entorno, cumprimentando-se
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mutuamente e reafirmando a unidade entre fiéis e comunidade. Se na missa
católica este momento também reafirma a presença viva de Cristo entre os
presentes, em nossa “missa” convoca-os para duvidar do que está sendo dito e
representado no palco-altar. Numa espécie de “lógica viva da ação” (Sartre apud
Konder, 1981, p. 6), solicitamos à plateia que converse e exponha sua opinião sobre
a questão que Brecht analisa na fábula: “se o homem ajuda o homem”5, ou melhor,
“se o ser humano ajuda o ser humano?”
Neste momento, o foco da ação dramática literalmente deixa o palco e se
concentra na plateia. Espectadores deixam a função da expectação para se
reconhecerem como sujeitos livres para emitir suas opiniões. O palco se cala e a
plateia conversa entre si; a assembleia se dissolve por instantes dando lugar à
praça pública, à ágora, por alguns minutos.
Após esses minutos de debates livres, o “Sacerdote” retoma a condução do
evento e solicita que as opiniões debatidas entre os pequenos grupos de “fiéis”
sejam socializadas para toda a comunidade presente, porém esta socialização é
realizada segundo um ordenamento, como num jogo de tribunal, numa nova
“coerção do pensamento” (Adorno, 2022):
A fim de alcançar o todo, não nos resta nada a não ser a estreiteza do
ponto de vista parcial, uma vez que não possuímos o todo de antemão.
Apenas se nós nos entregarmos a essa estreiteza, se nós, portanto,
perseverarmos nessa limitação, [...] apenas assim nos será possível
chegar à verdade (Adorno, 2022, p.132).
Regra 2: divide-se a plateia em duas metades, direita e esquerda, sendo que
um lado deverá defender que o ser humano ajuda o ser humano e o outro lado irá
contradizer esta afirmação, ou seja, a cada defesa da humanidade (tese) segue-se
sua negação (antítese). Para socializar a palavra, os membros da plateia erguem a
mão, solicitando um tempo-espaço de fala. Aqueles escolhidos pelo Líder do
Coro/Sacerdote para expor publicamente suas opiniões devem se levantar de suas
poltronas e dizê-las a todas as pessoas presentes, “fazendo uso do direito à
5 Na primeira montagem, em 2019, éramos fiéis ao texto brechtiano no direcionamento desta questão, o que
provocava muitas vezes um debate sobre gêneros. Esse encaminhamento nos parecia abrir outra
contradição que não dialogava com nosso objeto de reflexão. Assim, na segunda montagem (2022/2024),
alteramos todas as referências universalizantes da palavra “homem” para “ser humano”.
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visibilidade e a audibilidade”, como diz nosso “Sacerdote”, fazendo referência ao
pensamento de Hannah Arendt sobre a atividade política (Arendt, 2011, p. 271).
Desta maneira,
a massa se diferencia nos debates, nas decisões responsáveis, nas
tentativas de posicionamento fundamentadas, [acusando] a totalidade
falsa, dissimuladora, chamada ‘público’ (que) começa a se desagregar a
fim de abrir espaço para diferentes partidos que correspondem às
verdadeiras condições (Benjamin, 2017, p. 18).
Figura 2 - Igreja Dialética Brechtiana em O acordo (31/10/2024) (acervo do grupo)
O jogo dialético neste momento da “missa” pode ser observado na imagem
acima que mostra uma pessoa da plateia em pé, fazendo uso do direito à palavra
e sendo observada pela comunidade de “fiéis”. A designação do que cada metade
da plateia deve defender mostrou-se essencial para a compreensão do sentido
que a fábula brechtiana pretende. Caso não houvesse a regra da “divisão de
opiniões” e seguíssemos a expressão direta das opiniões, livremente, sem coerção,
talvez tivéssemos uma avalanche de posicionamentos contrários ao sentido
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gregário da humanidade, como iremos expor na sequência. Após uma sequência
de afirmações e negações, geralmente em número de três “embates”, nova
interrupção e nova regra.
Regra 3: a troca de papéis, fazendo com que aqueles que defendiam os seres
humanos passassem à posição contrária, e vice-versa. As contradições que
sustentavam o debate passam a operar dentro das cabeças das pessoas
presentes na plateia: como desdizer o que acabei de dizer? Para ter continuidade
o jogo exterior, competitivo, de confronto aberto entre opiniões contrárias,
necessita-se agora de um jogo interno, reflexivo, racional, de cada uma das
pessoas presentes. A contradição, para que apareça em termos dialéticos, terá de
“ser considerada a partir da coisa. Isso significa que ao desdobrar a coisa [Sache]
como sendo em si mesma contraditória, ela a desdobra, ao mesmo tempo, como
coisa cindida consigo mesma” (Adorno, 2023, p. 233). O próprio acontecimento
teatral que conclama a plateia a chegar a um acordo, a um entendimento comum,
em um ato que até aquele momento, em aparência, desejaria ajudar a
humanidade6, expõe suas contradições. Propunha-se assim um exercício simples
de dialética: colocar-se na posição do outro. Walter Benjamin, ao se referir à peça
didática brechtiana, afirma que:
O teatro épico é concebido tanto para os atores quanto para os
espectadores. A peça didática destaca-se como caso peculiar
principalmente porque a excepcional parcimônia do aparelho simplifica
e propõe a troca de público com os atores, dos atores com o público.
Todo espectador torna-se coadjuvante. E, de fato, é mais fácil interpretar
o “professor” do que o “herói” (Benjamin, 2017, p. 27).
Ao recorrer à fábula como elemento estruturante da reflexão dialética, Brecht
não nos propõe uma reflexão filosófica abstrata, mas política: é preciso saber o
que fazer com aqueles que pedem ajuda. Este jogo teatral em que as pessoas da
plateia se tornam atrizes e atores e os atuantes se tornam mediadores nos lembra
uma “regra” da dialética apresentada por Jean Paul Sartre (citada parcialmente
acima): “a dialética, como lógica viva da ação, não pode aparecer a uma razão
contemplativa” (Sartre apud Konder, 1981, p. 6). No caso exposto, a razão ativa é
6 No decorrer da fábula, o Coro brechtiano defenderá o exato oposto: Ajuda e violência constituem um todo
// E é este todo que é preciso transformar. (Brecht, 1988, p. 201)
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incitada pelo jogo de tribunal e faz com que aqueles que assistem tornem-se parte
da reflexão coletiva ao trocarem de papéis, incitados a “pensar dentro da cabeça
dos outros” (Brecht apud Benjamin, 2017, p 90).
Após mais uma série de embates, o “Sacerdote” oficiante declarava que a
análise da situação proposta estava encerrada. Não haveria uma síntese
tranquilizadora; não haveria consenso a partir de posicionamentos abstratos, mas
somente através do acordo coletivo da comunidade. O espanto da plateia não se
dá necessariamente diante das contradições que a situação revela, mas diante do
método de pensamento.
Findo o jogo, em praticamente todas nossas apresentações os
posicionamentos contrários à proposição de que o ser humano ajuda o ser
humano foram mais consistentes. A defesa da humanidade sempre teve poucos
advogados, situação que analisaremos mais à frente. Dessa maneira, ao ser
inquirida se as personagens dos Quatro Aviadores Acidentados deveriam ser
ajudadas, a plateia geralmente assumia as palavras da Multidão presentes no texto
de Brecht: “Não”.
Mas outra contradição aparecia nas duas perguntas seguintes: “LÍDER DO
CORO [Sacerdote] - Devemos rasgar o travesseiro? / A MULTIDÃO Sim. / LÍDER
DO CORO [Sacerdote] Devemos jogar fora a água? / A MULTIDÃO Sim.” (Brecht,
1988, p 200). Ao contrário do “sim” proposto na dramaturgia brechtiana, em nossas
apresentações poucas pessoas da plateia concordavam com as duas proposições,
sendo que a maioria daquelas pessoas que se expressavam gritava “não!”. Houve
até um caso em que um estudante de Comunicação Social ficou de tal forma
impactado com a recusa da ajuda que, levantando-se de seu lugar, mostrou-se
propenso a impedir a ação cênica seguinte, na qual o Coro rasga o travesseiro e
joga fora a água, tendo saído da sala naquele momento visivelmente emocionado
por não conseguir seu intento. Paradoxalmente aquelas mesmas pessoas que
menos de um minuto decidiram negar ajuda aos Quatro Aviadores Acidentados,
agora se negavam a realizar a ação de recusa. O ato de rasgar o travesseiro e de
jogar fora a água deixava perplexa a plateia. O que lhes parecia ser uma opinião
convicta, (e a nós também), se mostrava naquele momento repleta de dúvidas.
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O teatro épico [...] mantém ininterruptamente uma consciência viva e
produtiva de ser teatro. Essa consciência permite tratar os elementos do
real no sentido de uma ordem experimental, e as situações estão no final
dessa experiência, não em seu início. Ou seja, elas não são aproximadas
do espectador, mas afastadas dele. O espectador as reconhece como
verdadeiras não com a complacência do teatro do naturalismo, mas
com espanto. [...] O interesse é despertado naquele que se espantou; nele
está o interesse primordial (Benjamin, 2017, p.13).
Este outro espanto, agora diante das consequências de seu próprio
julgamento, parecia lembrar à plateia o caráter político de seu posicionamento e
de suas falas públicas. Benjamin afirma que “é da natureza do teatro épico a
oposição dialética entre teoria e prática (que faz com que a ação, em seus pontos
de ruptura, permita vislumbrar a teoria)” (Benjamin, 2017, p. 40). O espanto diante
da consumação dos atos de jogar fora a água e de rasgar o travesseiro talvez fosse
esse vislumbre diante da teoria por meio da prática. “Por essa razão, o teatro épico
é o teatro do herói surrado. O herói não surrado não se transforma em pensador”
(Benjamin, 2017, p. 40). Na sequência da fábula, Brecht mostrará a transformação
dos Aviadores Acidentados em “heróis surrados”, mas a descrição da encenação
que nos interessa neste artigo é interrompida neste ponto.
Dialética em repouso
O jogo com a cena de julgamento não tem como objetivo final uma síntese
idealizada, mas indica a necessidade de ir além da reflexão crítica e chegar-se à
tomada de decisão por meio do acordo coletivo. Naquela situação, a do contexto
da fábula, era necessária uma decisão política a ser colocada em prática. Ser a
favor ou contra a humanidade, mesmo que de uma forma simplificada como na
encenação de O acordo, pressupõe uma ação política, ou pelo menos a simulação
de uma, visto tratar-se de teatro. A análise da parte (se o ser humano ajuda o ser
humano) não pode ser apartada do todo presente na fábula, que visa
problematizar a necessidade do acordo no processo revolucionário.
O processo dialético é algo que se refere a ambas as coisas: refere-se às
partes, ou seja, aos momentos particulares, dos quais precisamos ir além
a partir da força do todo; e refere-se ao todo, pois o todo, o conceito [...]
deve modificar-se continuamente segundo critérios advindos da
experiência do particular (Adorno, 2022, p. 116).
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Em O acordo não havia nenhum estímulo por parte do Coro para que a plateia
chegasse a um consenso, pois este não iria interferir na fábula apresentada.
Benjamin observa que esse modo de atuação do teatro épico explicita aos
espectadores que “o interesse artístico é idêntico ao político” (Benjamin, 2017,
p.28): queríamos exercitar nossos limites de flexibilidade intelectual, como dito
anteriormente.
O recorte deste momento de interrupção da fábula nos propicia algumas
análises sobre a possibilidade do pensamento dialético se realizar como jogo
teatral. Na maioria das apresentações, com exceção de uma, o jogo do tribunal e
da troca de papéis fluiu com tranquilidade, sendo que os argumentos contrários à
humanidade, isto é, a proposição de que o ser humano não ajuda o ser humano
foi predominante. As primeiras apresentações realizadas no curso de Teatro
Licenciatura da Ufal nos levaram a acreditar que esta postura seria decorrente de
uma atitude provocadora e contestadora daqueles estudantes, geralmente,
críticos ao senso comum vigente em nossa sociedade predominantemente cristã,
que prega a fraternidade e a ajuda ao próximo muitas vezes de uma forma
hipócrita. Porém, plateias de estudantes e professores de Filosofia e de
Comunicação Social também tiveram mais facilidade em atacar a humanidade.
Não foram raras as situações em que, ao tentar-se defender a humanidade, os
gestos e os atos falhos da pessoa que argumentava deixavam escapar seu
posicionamento contraditório. Além da descrença sincera na humanidade,
poderíamos detectar outras questões que envolvam esse posicionamento cético?
A análise do texto brechtiano (do todo) e a nossa encenação podem indicar
algumas pistas para esta questão, pois, antes de dirigir a questão à Multidão
(plateia), Brecht propõe três cenas denominadas Inquéritos sobre se o homem
ajuda o homem (sendo que em nossa encenação somente apresentamos duas
delas), inserindo inclusive em uma rubrica a recomendação: “Apresentam-se vinte
fotografias que mostram como, em nossa época, os homens são massacrados
pelos homens” (Brecht, 1988, p.195). Ao final destas cenas, a pergunta dirigida à
plateia era recorrente: o homem (ser humano) ajuda o homem (ser humano)?
Brecht sugere, em sua dramaturgia, que a Multidão responda sempre “não”,
fazendo com que a plateia olhe para a questão de forma negativa, talvez
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provocando o caráter associal das pessoas presentes, considerado por ele
pedagógico em suas peças didáticas. Nossa encenação, ao instigar esta
perspectiva associal, fez com que, em algumas vezes, não chegássemos a uma
síntese provisória e dinâmica (a negação da negação), ficando estagnados na
antítese (a negação). Neste caso, a imediaticidade presente no todo agia de forma
impeditiva para a análise da parte, daí a necessidade da mediação dos atuantes
(Coro).
Pois a dialética não é a tentativa de se aproximar de um todo como que
de fora, de maneira esquemática e, mais uma vez, mecânica, a fim de
então compreender o fenômeno, uma vez que este, afinal, não pode ser
compreendido a partir de si mesmo. Pelo contrário, ela consiste na
tentativa, isso sim, de iluminar de tal maneira o fenômeno particular, de
se demorar junto ao fenômeno particular, de determinar o fenômeno
particular de tal modo que ele, precisamente por meio dessa
determinação em si, além de si mesmo, tornando-se transparente
diante daquele todo, daquele sistema dentro do qual ele encontra
unicamente seu valor relativo [Stellenwert] (Adorno, 2022, p. 115).
Houve uma exceção a confirmar a regra: a plateia do I Congresso do Fórum
Popular Universitário da Ufal, em que ocorreu o extremo contrário, pois não
conseguíamos quem advogasse contra o ser humano. Ali, no auditório repleto de
ativistas, camponeses, sem terras, sem teto, indígenas, quilombolas e de outros
movimentos sociais, foi extremamente difícil extrair opiniões contrárias à
humanidade. Com muito custo, uma pessoa, que defendia a humanidade, se
dispôs a literalmente mudar de posição na plateia e se contradizer, expondo sua
fratura. Teríamos conduzido (mediado) de forma equivocada a discussão neste dia
para aquela plateia?
Benjamin afirma que “o conceito de teatro épico (formulado por Brecht como
teórico de sua prática poética) indica, sobretudo, que esse teatro deseja um
público relaxado, que acompanha a trama com descontração” (Benjamin, 2017, p.
23), o que não correspondia às pessoas presentes naquele contexto. Ao conduzir
nossa encenação não levamos em consideração que aquela apresentação se
inseria na abertura de um fórum com explícitas intenções políticas. Assim, a plateia
era composta por militantes sociais e não por um “público relaxado”. As pessoas
ali presentes não eram espectadores comuns, individualizados, mas
representantes de seus movimentos sociais. Havia mais um dado a ser
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considerado e que não levamos em consideração: ainda que a encenação proposta
solicitasse um distanciamento do objeto de análise da parte daqueles que
participam do jogo, a fala e a visibilidade são públicas e estavam dadas no contexto
eminentemente político daquele encontro. O contexto político interferiu na
proposição artístico-pedagógica. A forma como a situação é apresentada na
encenação não conseguiu alterar a atitude de representatividade das militâncias
presentes. O jogo não funcionou.
Talvez, dentro da luta político-social, a escolha de uma síntese, digamos, mais
cristalizada favoreça a ação, e por outro lado, uma reflexão filosófica abstrata,
apartada do contexto social, tenda à imobilidade política diante de outras
indeterminações. Assim, como agentes de transformação social, é preciso traçar
um horizonte utópico que não enfraqueça o próprio movimento. Participar
publicamente de um jogo de negação dessa utopia não parecia ser a estratégia
política mais acertada naquele evento. Por outro lado, afirmar que a plateia
presente naquele Fórum Popular teria dificuldade em lidar com o pensamento
dialético seria realizar uma reflexão dedutiva, ou seja, não dialética. Parece-me que
o próprio procedimento de jogo teatral, a simulação de um julgamento, é que não
conseguiu chegar ao seu intento, ou seja, as escolhas da encenação não
dialogavam com aquele público naquele contexto. Observe-se que, mesmo assim,
não se pode afirmar com convicção que o jogo proposto não tenha funcionado
dentro da cabeça daquelas pessoas, somente que as contradições não foram
expostas publicamente, daí a inviabilidade daquele jogo naquele contexto.
O jogo teatral como operador do pensamento dialético
Benjamin, ao se referir ao ato coletivo do pensamento, afirma: “O decisivo na
política não é o pensamento individual, e sim como Brecht afirmou certa vez
a arte de pensar dentro da cabeça dos outros” (Benjamin, 2017, p. 90). Pensar
dentro da cabeça dos outros e pensar coletivamente, com muitas cabeças dentro
de outras muitas cabeças, de forma a saturar o objeto pensado com múltiplas
determinações (Netto, 2011).
Seria interessante examinar se o jogo teatral e, mais especificamente, a troca
de papéis poderiam ser úteis na introdução ao pensamento dialético. José Paulo
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Netto afirma que “em Marx, a crítica do conhecimento acumulado consiste em
trazer ao exame racional, tornando-os conscientes, os seus fundamentos, os seus
condicionamentos e os seus limites(Netto, 2011, p. 18, grifos do autor). Em nossa
encenação, o gestus da missa/tribunal forma à reflexão distanciada, não
emocional e empática, propondo o exame racional da situação. O próprio jogo no
qual a plateia se envolvida em seu papel de “fiéis” de uma igreja fictícia explicita
nossa atitude não-ilusionista e distanciada. Porém, esse distanciamento satírico
seria suficiente para que esse exame racional da situação apresentada tornasse
conscientes seus próprios fundamentos, condicionamentos e limites?
Nas diversas apresentações, a qualidade desta investigação dependia muitas
vezes da presença na plateia de pessoas não somente dispostas a participar do
jogo, mas dispostas a ir além, a apresentar reflexões que não se limitassem ao
próprio jogo da encenação. Precisávamos que na plateia estivessem presentes
pessoas que extraíssem a negação na própria afirmação, isto é, que entrassem no
jogo dialético deixando a coisa, a situação, se movimentar. Adorno observa que:
Se nos entregarmos sem reserva à compulsão exercida por um
determinado objeto, por uma coisa determinada, e seguirmos sem
ressalvas essa coisa determinada, então o movimento ao qual se chega
é ele próprio determinado pela coisa. [...] Esta seria, por conseguinte, o
conceito de uma dialética aberta por oposição a uma dialética fechada,
idealista (Adorno, 2022, p. 108).
Quando essa compulsão pelo objeto (situação) acontecia, sentia-se que se
instaurava no ambiente aquele prazer da reflexão coletiva. Porém, instaurar o jogo
de forma com que essa dialética aberta acontecesse não era uma tarefa fácil e
mecânica, como também dependia da plateia presente. Muitas vezes o jogo
acontecia ao contrário do que esperávamos, com as pessoas movimentando a
situação, motivadas exclusivamente pelo prazer do jogo.
Mesmo o princípio da dialética, contraposto ao pensamento mecânico,
caso não seja manejado dialeticamente, ou seja, em íntima proximidade
com seu objeto e adaptando-se de maneira flexível a ele, pode a qualquer
instante recair num modo mecânico de pensar (Adorno, 2022, p. 163).
Despertar a reflexão crítica proposta por Netto também tinha como
condicionante não somente a presença de pessoas críticas, mas a própria atuação
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do elenco na função de mediação do debate. A interrupção da ação para o
desvelamento da situação (Benjamin, 2017) não poderia ficar restrita ao texto
brechtiano, mas se estender à atuação do elenco, aos seus gestos cênicos. Havia
um limite delicado: qual seria o tom certo (o gesto correto) que convidaria a plateia
a jogar seus papéis designados e, ao mesmo tempo, ultrapassar a ludicidade da
situação cênica para adentrar no campo do real? José Paulo Netto diz que
A teoria é, para Marx, a reprodução ideal do movimento real do objeto
pelo sujeito que pesquisa: pela teoria, o sujeito reproduz em seu
pensamento a estrutura e a dinâmica do objeto que pesquisa. E esta
reprodução (que constitui propriamente o conhecimento teórico) será
tanto mais correta e verdadeira quanto mais fiel o sujeito for ao objeto
(Netto, 2011, p. 21, grifos do autor).
Daí a importância da mediação diante daquelas plateias que chamamos
acima de adeptas do “jogo pelo jogo”, que adentram no terreno da ludicidade
meramente pelo prazer da diversão e não pelo prazer da análise. Benjamin observa
que a intenção revolucionária pode se transformar em uma ação contra-
revolucionária, como a que ele detectava na nova objetividade como movimento
literário, afirmando que esta
transformou a luta contra a miséria num objeto de consumo, [pois]
consumiu seu significado político com a conversão de reflexos
revolucionários que surgiam na burguesia em objetos de distração, do
lazer. [...] A transformação sofrida pela luta política de uma obrigação
por decidir em um objeto do prazer contemplativo, de um meio de
produção em um artigo de consumo - caracteriza essa [da nova
objetividade] literatura (Benjamin, 2017, p. 94, grifos do autor).
Essa ação contra-revolucionária observada por Benjamin, que transforma em
mercadoria a própria ação revolucionária, é o que detectamos em relação ao “jogo
pelo jogo”, ao ato de deixar-se levar pelo prazer e pelo divertimento que o jogo
proporciona, transformando-o não em operador do conhecimento, mas em um
fim em si mesmo. Quando o debate proposto em nossa encenação virava um
exercício de vaidade, em que as pessoas buscavam de qualquer forma se
contrapor aos argumentos apresentados, não importando a reflexão sobre a
situação analisada, mas sua performance no jogo, nos afastávamos da essência
do pensamento dialético que, segundo Theodor Adorno, “consiste em que a
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antítese seja obtida a partir da própria tese” (Adorno, 2022, p. 141), e caíamos no
que ele chamava de automatismo do “esquema triádico”:
A seriedade da dialética reside propriamente nisto: não se trata de jogo
simplesmente conceitual de contradições colocadas externamente;
antes, reside sim em que a contradição provenha da própria tese, ou seja,
em que a contradição se revele pelo fato de que a própria proposição
dialética seja sempre e ao mesmo tempo verdadeira e falsa (Adorno,
2022, p.160).
A própria encenação expõe suas contradições quando os atuantes se deixam
levar irrestritamente pelo jogo (falham na mediação), o que muitas vezes
compromete a reprodução do movimento real do objeto, ou seja, mesmo partindo
da aparência (o jogo da encenação), não consegue desvelar a essência (ou seja, a
estrutura e a dinâmica) da situação analisada (Netto, 2011). Talvez isto decorra
deste prazer da ludicidade, do “jogo pelo jogo”, da participação opinativa sem
reflexão crítica sobre o objeto, como assistimos rotineiramente nas redes sociais.
A pedagoga teatral Cristiane Paoli-Quito nos ensina que a arte do palhaço é saber
trabalhar “50% dentro e 50% fora” de si, isto significa que, ao se exceder em seu
histrionismo, o palhaço se torna fanático no jogo e, portanto, refém de sua auto-
imagem, de sua necessidade de fazer rir a qualquer preço. Ao resistir ao jogo, ao
movimento do objeto, fica-se refém das imagens (e dos julgamentos) alheias. O
limite do jogo teatral como operador do pensamento dialético talvez seja aquele
que Benjamin designa como comportamento diretivo, instrutivo, necessário para
levar consumidores de volta à produção, “ou seja, quanto mais for capaz de
transformar leitores ou espectadores em colaboradores” (Benjamin, 2017, p. 95),
tal qual ele via no teatro épico de Brecht.
Isto reforça o caráter pedagógico desses experimentos na formação dos
licenciandos em Teatro, atuantes nesta encenação, e que remetem às palavras de
Walter Benjamin:
Em Berlim, quando perguntaram ao diretor russo Meyerhold como seus
atores se diferenciavam dos da Europa ocidental, ele respondeu: “Por
duas coisas. Em primeiro lugar, eles conseguem pensar; em segundo,
pensam de maneira materialista, não idealista. A afirmação de que o
palco é uma instituição moral se mostra legítima em relação a um
teatro no qual o conhecimento não é apenas transmitido, mas gerado.
No teatro épico, a formação do ator consiste numa atuação que o leva
ao conhecimento: esse conhecimento, por sua vez, determina sua
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atuação não apenas no sentido do conteúdo, mas também por meio de
tempos, pausas e ênfases. Não se trata de questão de estilo (Benjamin,
2017, p. 19).
O que podemos vislumbrar, até o momento, nesta pesquisa em andamento,
é que o jogo teatral pode se apresentar como operador na formação da pensadora
e do pensador dialético, pois exercitam a flexibilidade intelectual dos participantes.
Adorno observa que:
A dialética é, na verdade, um método que se refere a um modo de pensar,
mas que ao mesmo tempo diferencia-se de outros métodos por meio
disto: ela procura insistentemente não permanecer estagnada, busca
recorrentemente se corrigir a partir dos próprios dados [Gegebenheit] das
coisas mesmas (Adorno, 2022, p. 70).
A ausência de movimento pode gerar a ausência de vida. É preciso sempre
fraturar os estratos para que a vida jorre novamente. O jogo instaura esta
instabilidade nos corpos e na reflexão intelectual. O desenvolvimento da
capacidade de jogo a partir das peças didáticas brechtianas pode formar uma das
capacidades necessárias ao pensamento dialético: não permanecer estagnado.
Voltemos a Benjamin como conclusão provisória: “Observemos, ainda que de
modo casual, que para o pensar não há melhor começo que o rir. E uma agitação
do diafragma geralmente oferece melhores condições ao pensamento do que a
agitação da alma” (Benjamin, 2017, p. 97, grifo nosso). Aqui, a palavra começo pode
nos ser extremamente útil para refletirmos sobre esse(s) limite(s) do jogo teatral
como possível operador do pensamento dialético.
Referências
ADORNO, Theodor W. Introdução à dialética. Trad. Erick Calheiros de Lima. São
Paulo: Editora Unesp, 2022.
ARENDT, Hannah. “A crise na cultura: sua importância social e política”. Entre o
passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2011.
BENJAMIN, Walter. Ensaios sobre Brecht. Trad. Cláudia Abeling. São Paulo:
Boitempo, 2017.
BRECHT, Bertolt. A peça didática de Baden Baden sobre o acordo. Teatro Completo,
volume 3. Trad. Fernando Peixoto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
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KONDER, Leandro. O que é dialética. São Paulo: Brasiliense, 1981.
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Recebido em: 04/03/2025
Aprovado em: 22/03/2025
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