1
Tecer o rio:
a potência poética para pensar o [como]
Lígia Helena de Almeida
Vanessa Tatiana Azeñas Mallea
P
ara citar este artigo:
ALMEIDA, Lígia Helena de; MALLEA, Vanessa Tatiane Azeñas
Tecer o rio: a potência poética para pensar o [como].
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 1, n. 54, abr. 2025.
DOI: 10.5965/1414573101542025e302
Este artigo passou pelo
Plagiarism Detection Software
| iThenticate
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Tecer o rio: a potência poética para pensar o [como]
Lígia Helena de Almeida | Vanessa Tatiana Azeñas Mallea
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-13, abr. 2025
2
Tecer o rio: a potência poética para pensar o [como]1
Lígia Helena de Almeida2
Vanessa Tatiana Azeñas Mallea3
Resumo
O texto apresenta um relato da participação das pesquisadoras como ministrantes da oficina
“Tecer o rio: brincadeiras para corpos que escrevem”, durante o IV Fórum Brecht e Educação.
Partindo do pressuposto da pesquisa qualitativa crítica e radicalmente qualitativa, ambas
propuseram um encontro, intervenções e performances no decorrer do Fórum, com a
pretensão de voltar o olhar para o ato de pesquisar em si, reconhecer o caminho que constrói
o [como] pesquisamos, quem somos e quais os fundamentos que nos fazem tecer as
costuras e escolher os fluxos de nossas escritas. Em consonância com o Fórum, a
experiência se perguntou sobre a trajetória que figura nossos corpos em corpos políticos.
Palavras-chave: Pesquisa. Metodologias. Axiologia. Jiwasa.
Weaving the river: the poetic power to think about [how]
Abstract
The text presents an account of the researchers' participation as lecturers in the workshop
“Weaving the river: games for bodies that write” during the IV Brecht and Education Forum.
Starting from the assumption of critical qualitative and radically qualitative research, both
proposed a meeting, interventions and performances during the Forum, that intended to turn
our gaze to the act of research itself, consider the path we build, [how] we research, who we
are and what are the foundations that make us weave the seams and choose the flows of
our writings. In line with the Forum, the experience questions the trajectory that our bodies
figure in political bodies.
Keywords: Research. Methodologies. Axiology. Jiwasa.
Tejiendo el río: el poder poético de pensar [cómo]
Resumen
El texto presenta un relato de la participación de las investigadoras como disertantes en el
taller “Tejiendo el río: juegos para cuerpos que escriben” durante el IV Foro Brecht y la
Educación. A partir del presupuesto de una investigación crítica cualitativa y radicalmente
cualitativa, ambas propusieron un encuentro, intervenciones y performances durante el Foro,
pretendieron volver las miradas hacia el propio acto de investigar, considerar el camino que
construimos, cómo investigamos, quiénes somos y cuáles son los fundamentos que nos
hacen tejer las costuras y elegir los flujos de nuestras escrituras. En línea con el Foro, la
experiencia cuestionó la trayectoria que nuestros cuerpos figuran en los cuerpos políticos.
Palabras clave
: Investigación. Metodologías. Axiología. Jiwasa.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Ma. Mayra Martins Guanaes. Doutoranda em Letras
pelo Programa de Língua Espanhola, Literatura Espanhola e Hispano-Americana (USP). Mestrado em Letras (UNIFESP).
Bacharelado e licenciatura em Português e Espanhol (UNIFESP).
2 Doutoranda em Mudança Social e Participação Política pela USP. Mestrado em Ciências pela Universidade de São Paulo
(USP) - (Apoio CAPES). Bacharelado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Metodista
de São Paulo. Atriz pela Escola Livre de Teatro de Santo André.
ligiahalmeida@gmail.com http://lattes.cnpq.br/0725825887957528 https://orcid.org/0009-0003-1061-1550
3 Doutoranda em Mudança Social e Participação Política na Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em Direitos Humanos
e Democratização na América Latina e Caribe (UNSAM- Argentina). Especialista em Gestão de Projetos Culturais pela USP.
Diplomada em Feminismos Comunitários Camponeses e Populares em Abya Yala (UNJuy Argentina) e em Organização
de Aulas e Administração Pedagógica (UMSA Bolívia). Licenciada em Ciências da Comunicação (UCB Bolívia).
tatiana.azen@gmail.com http://lattes.cnpq.br/8303995079166262 https://orcid.org/0009-0004-7453-8994
Tecer o rio: a potência poética para pensar o [como]
Lígia Helena de Almeida | Vanessa Tatiana Azeñas Mallea
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-13, abr. 2025
3
Durante o IV Fórum Brecht e Educação, duas pesquisadoras se uniram em
suas perguntas e desejos em torno de fluir, tecer, resistir, existir e escrever com o
corpo. Lígia Helena investiga as adolescências periféricas e o ensino do teatro,
utilizando a metáfora do rio, que são temas muito grandes para serem
navegados com pressa. Também aposta no afeto como uma experiência que se
dá no centro de existências que desejam encontrar-se.
Tatiana Azeñas investiga migrações e maternidades como duas experiências
que se atravessam e propõe abordá-las a partir da possibilidade de encontrar
grafias artísticas próprias e coletivas que permitam narrar as rotas de migrar e
poder chamá-las migratografias. A aposta é pela metáfora do tecido, como
metáfora do que se faz enquanto se caminha, com um fio daqui e outro de lá,
un
tejido mezclado, ch´ixi
(Rivera Cusicanqui, 2020), habitantes das fronteiras, físicas
e internas: ser mãe, mulher, migrante, ser humana, habitar um corpo andino numa
urbe paulista, na selva de asfalto.
Assim, no seio do Grupo Ecoar - Grupo de Estudo e Pesquisa em Corpo e Arte
da EACH-USP, elas se reconheceram e começaram a intercambiar reflexões,
sonhos de investigação e de vida, áudios longos e entusiasmados com o som ao
fundo da linha de metrô, do ruído das ruas, dos filhos brincando, panelas batendo,
porque o cotidiano e o acadêmico não estão separados, e elas sabem disso muito
bem, e por isso habitam esta conexão, na medida do possível.
Juntas, trocaram sobre os modos, os [como] e os [como] não: conspiraram
metáforas, bonitezas, perguntas sem respostas, rios, tecidos e, claro, afetos.
Encontraram fios comuns: a escrita de mulheres, a linguagem indomável, o teatro,
o corpo, o afeto, a maternidade, a luta social, a arte e a pesquisa.
Um dia Lígia recebeu o convite de Marcelo Gianini, um querido professor,
destes professores que sabem marcar nossas vidas com suas trajetórias e suas
práticas. Ele a convocava a participar do IV Fórum Brecht e Educação que naquele
ano ele e uma grande equipe receberiam na UFAL, em Alagoas. Lígia decidiu tecer
este rio com Tati, e desta forma estes fios que se juntavam começaram a criar um
afluente.
Tecer o rio: a potência poética para pensar o [como]
Lígia Helena de Almeida | Vanessa Tatiana Azeñas Mallea
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-13, abr. 2025
4
Colocaram no centro do tecido uma inquietude: realmente é possível pensar
coletivamente? Quando nos juntamos em torno de um evento, seja este científico,
político, artístico, ou as três coisas de uma vez, como fluímos para alcançar que
nossas formas de sentir e pensar de fato se convertam e entrem em diálogo?
Neste desejo de encontro, qual papel jogam nossos corpos? Como colocamos
nossos pensamentos para serem tecidos uns com os outros? Escrevemos,
desenhamos com o corpo? Pensamos de fato em como pensamos? E a escuta do
que o/a/e outro pensa e sente? Como a levamos adiante? Com que parte do corpo
escutamos? Onde e com quem aprendemos (ou não) a escutar?
Como desenhar os processos dos pensamentos coletivos que se tecem na
medida em que nos colocamos à disposição para estarmos em relação com outras
pessoas? Se em suas investigações individuais as pesquisadoras se interrogam
sobre como se organiza o processo do pensamento de cada uma delas, aqui a
reflexão gira em torno de como o que pensamos se entrelaça com os
senti-
pensares
, formando um tecido coletivo que fluirá para sustentar e reafirmar a
possibilidade de mudança social concreta. Importante grifar que a referência em
pensar como pensamos e buscar esta pergunta no processo de pesquisa em si se
dá em perguntas apontadas antes pela orientação da Profa. Dra. Marília Velardi
(2018, p. 48):
Como eu penso quando me proponho a rememorar um processo ou
experiência que vivi? Como EU penso? Como dizem para eu pensar?
Rompo ou aceito? E quando penso, observo e descrevo um processo
artístico ou pedagógico que estou (vi)vendo, como descrevo e escrevo?
Atuo na escrita? Permito erigir uma escrita atuada, performática? Ou atuo
conforme as regras de escrita do tipo: nunca em primeira pessoa, seja
impessoal!
Pensando desses modos, o que é possível? Ver? Enxergar?
Compreender? Analisar? Narrar? Sintetizar? Repare: o verbo vem depois:
a ação é consequência…objetivo da ação é consequência do pensamento.
Mas e o pensamento? Muitas vezes vem depois da imersão, da vida, da
experiência corporificada, vivida ou encarnada. Sabemos disso. Sabemos?
Provocadas por essas inquietudes em torno do Fórum, idealizaram uma
oficina em três momentos que denominaram “Tecer o rio: brincadeiras para
corpos que escrevem” e “Tecer o rio: jogos para corpos que escrevem”. Assim, foi
elaborada uma pergunta central da oficina provocativa: Quem somos nós que
Tecer o rio: a potência poética para pensar o [como]
Lígia Helena de Almeida | Vanessa Tatiana Azeñas Mallea
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-13, abr. 2025
5
escrevemos? Em que medida acreditamos que podemos modificar nossos
territórios, tecer laços, formar rios?
Seguem agora relatos de como foram pensados, vividos e sentidos, desde a
perspectiva provocadora, cada um dos momentos propostos:
Oficina/
taller
Figura 1 - Registro dos objetos apresentados durante a oficina.4
(Acervo pessoal das autoras, 2024)
Durante a oficina, os participantes foram convidados a mover as bacias (do
corpo) como se fossem vasilhas de água - apelando à polissemia da palavra bacia.
Depois, cada participante foi convidado a coreografar o seu fluir individual para,
pouco a pouco, costurar um tecido/cardume, ecos de corpos que fluem da escuta,
em maior ou menor medida.
A relação com a água deixou transparecer desejos e dores em uma cidade
onde, por um crime ambiental, cinco bairros inteiros foram desabitados ao risco
de que os moradores pudessem morrer sob os escombros de uma tragédia
anunciada, cuja causa tem nome, sobrenome e muito lucro por detrás: a empresa
4 Desde materialidades objetivas - como canetas, canetinhas, papeis, cola e tesoura, até os mais subjetivos,
como um pano-rio e objetos de memória afetiva para as ministrantes, como um Aguayo trazido da Bolívia
por Tati ou um amigurumi em formato de Leão enviado pelo filho de gia para dar sorte na viagem à Maceió.
Tecer o rio: a potência poética para pensar o [como]
Lígia Helena de Almeida | Vanessa Tatiana Azeñas Mallea
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-13, abr. 2025
6
Braskem, que tirou o lago e a casa de milhares de famílias, em que muitos
morreram de ataque cardíaco pela dor de ficar, de um dia para o outro, sem nada.
Hoje estes bairros são testemunhos fantasmas de um crime pelo qual ninguém
responde.
Com esta marca da água fazendo eco nos participantes, iniciou-se a leitura
de um texto de Clarice Lispector que apresenta esta pergunta: “Se você fosse você,
como seria e o que faria?”.
O uso deste texto como referência para pensar a pesquisa acadêmica não
vem destas pesquisadoras, mas de anos antes, por outras pesquisadoras do Grupo
Ecoar que se debruçaram artisticamente sobre este texto e se perguntaram: “Se
você fosse você na pesquisa acadêmica, quem você seria?” (Longano; Anjos;
Silveira, Velardi, Matsuo, Nogueira e O’Keffe, 2021).
Aqui, na retomada deste texto/pergunta no IV Fórum Brecht e Educação, foi
sugerido aos participantes que se movessem para a escrita de uma carta, uma
carta que teria a enorme missão de responder a pergunta para a qual o texto de
Clarice nos mobiliza. Cada um sentou-se em um canto da sala, com a pele tocando
o piso fresco de madeira, tentando encontrar a resposta, e, pouco a pouco,
deixando fluir as sensações,
Se eu fosse eu?
Si yo fuera yo?
Depois da escrita da carta, outra provocação foi tecida, a de lançar a carta ao
mar como se fosse uma mensagem em uma garrafa: considerando que existem
casos de mensagens em garrafas que datam de mais de 100 anos, lançar uma
mensagem ao mar é um ato de confiança no fluir das águas. No chão, tecidos
azuis, os mesmos com os quais cada um e cada uma havia fluído com suas águas,
agora recebem as mensagens, as vestem. É pedido a eles que recorram a uma das
cartas deixadas no tecido/rio ao azar (ou à sorte), uma que não seja a própria, que
a leiam, e em seguida, correspondam à correspondência.
Leitura, música de fundo, silêncio, escrita.
Quando todas as cartas-resposta estão prontas, cada um se transforma em
Tecer o rio: a potência poética para pensar o [como]
Lígia Helena de Almeida | Vanessa Tatiana Azeñas Mallea
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-13, abr. 2025
7
carteiro, busca o remetente e não apenas entrega a carta, como também a lê.
Sussurros, ouvidos abertos, lágrimas, risadas, cumplicidade, gargalhadas, choro,
abraço, calmaria. O rio foi tecido.
Figura 2 - Registro do momento de construção de um poema coletivo.
(Acervo pessoal das autoras, 2024)
Um último momento da oficina é então proposto: inspirado nas intervenções
de uma das participantes do Grupo ECOAR, Luiza de Freitas, psicóloga e poeta que
investiga as poéticas do cuidado, e que sugere intervenções com colagens de
palavras, recortes de textos, somados a devires de escrita individuais e coletivos
inspirados na obra de Lygia Clark, sugere-se aos participantes um ato de
intervenção nas cartas recebidas - cortes e trechos escolhidos, colagens,
aleatórios ou não, recortes em curvas, figuras e palavras escritas, em uma papel
azul, pela escuta coletiva em seu ir e vir da pergunta de Clarice “
Se eu fosse eu…”
- surgiu um poema rio.
Luiza Freitas faz esta intervenção poética a partir da pergunta “Tem poesia
na pesquisa?”. Diante do poema que surge, da soma de pensamentos em torno da
pergunta sobre se pode o pesquisador, a pesquisadora, ser ele/ela próprio/a na
academia, em sua pesquisa, aponta-se uma resposta para Luiza: sim, tem poesia
na pesquisa.
Tecer o rio: a potência poética para pensar o [como]
Lígia Helena de Almeida | Vanessa Tatiana Azeñas Mallea
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-13, abr. 2025
8
Intervenção/ Intervenciones
Nos corredores de um Fórum habitado por corpos teatrais, teatreiros,
diferentes, sorridentes, apurados, cansados, várias coisas convidam a quem passa
a parar. Apresentações performáticas, pinturas, instalações. Uma delas em
especial garantiu o cuidado com os e as participantes do Fórum: os cafés servidos
nas tardes pela companheira do Prof. Marcelo Gianini, Paula Bombonatti, que se
dispôs, pelo bem estar da comunidade pesquisadora que se formou naqueles dias,
a servir lanches sortidos com frutas, bolos, pãezinhos e muito afeto.
Outra intervenção foi aquela tecida com tecidos azuis e o poema-rio
elaborado coletivamente durante a oficina, deixando mais folhas azuis, canetas e
canetinhas para que outras pessoas, que não tivessem participado da oficina,
pudessem interferir, partilhando pela palavra escrita as memórias e percepções
dos encontros gerados no Fórum. As pessoas se aproximavam para ler, algumas
para escrever, algo mais para somar no tecido deste rio.
Figura 3 - Acervo pessoal das autoras, 2024
outra intervenção, esta mais silenciosa, foi proposta durante o cabaré de
encerramento organizado pelos alunos da graduação em teatro da UFAL, fazendo
circular entre o público que assistia às apresentações artísticas um caderno quase
Tecer o rio: a potência poética para pensar o [como]
Lígia Helena de Almeida | Vanessa Tatiana Azeñas Mallea
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-13, abr. 2025
9
em branco com a seguinte provocação: “Proto-colo: daremos colo ao que vivemos
no Fórum”, colo - levar nos braços com carinho, apoiar nas pernas, acolher.
No contexto de um fórum brechtiano, era evidente a alusão ao protocolo
como instrumento de avaliação instaurado por Bertolt Brecht, fazendo um jogo de
palavras ao estilo de Cecília Vicuña, artista Chilena, e seus
Palabrarmas5.
Para
Marcelo Gianini, em sua percepção no jogo de palavras: o primeiro colo.
Além do cabaré, escritas também foram feitas no caderno durante a viagem
de ônibus para o Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, no derradeiro dia do
fórum.
Ato/
Acto
performativo
Domingo, 03 de dezembro: visita à Serra da Barriga. Chegada às 11 horas sob
um calor intenso depois de subir uma ladeira à beira da montanha, com a força
do lugar envolvendo a todos e todas desde o início. O professor Daniel Luiz
Marques, coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da UFAL
(NEABI), levou o grupo por um trajeto de conhecimento dos aspectos do Quilombo
dos Palmares, explicitou a importância deste lugar de memória para a luta afro
brasileira e indígena. Cacau, contadora de histórias negra, mãe de santo, contou a
história da orixá Nanã.
“Sou de Nanã euá, euá, euá, ê”
.
Depois o grupo foi convidado a descer para as margens de uma lagoa sagrada,
onde um mestre de capoeira puxou um canto e pediu para que, quem quisesse,
fizesse presente, pelo chamado do nome, aos seus seres amados que partiram.
Muitos nomes surgiram, vozes quebradas, sorrisos, lágrimas, nó na garganta.
Unir os mortos de hoje aos mortos caídos na luta, na luta da capoeira, na luta
dos quilombos, das causas sociais, das resistências, sabe-los vivos nas memórias
de quem ainda está aqui. Com esse clima solene de quem recorda de quem se
foi, iniciou-se o último ato da proposta de tecer o rio: entregar o poema rio para a
água e, assim, reverenciá-la.
Tati narrou o conto da
Abuela Grillo,
uma lenda guarani contada em espanhol,
que conta a história de uma avó que ia de aldeia em aldeia levando a chuva com
5 Tradução: Palavrarmais.
Tecer o rio: a potência poética para pensar o [como]
Lígia Helena de Almeida | Vanessa Tatiana Azeñas Mallea
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-13, abr. 2025
10
seu canto. A lenda conta como ela teve que fugir das grandes empresas que
queriam se apropriar de sua força e engarrafar seu canto. Seguindo o canto de
Tati, o grupo cantou junto a música da água sagrada em
quechua, lengua indígena
andina: “Ch'illchi, ch'illchi paritay, Ch'illchi mullaypuni, ch'illchi paritay. Suave, suave,
lluviecita. Siempre llueveme, suave lluviecita.
Com o tecido azul e o poema nas mãos, cada um segurando uma das pontas,
Lígia leu a sua versão do poema
Se eu fosse eu:
...Se eu fosse eu
não teria sapatos
andaria na rua com panos leves sem roupas de baixo
subiria em árvores e viveria perto de um rio
um rio onde eu pudesse mergulhar todo começo de dia
todo fim de día…
Em volta do pano-poema-rio cada um e cada uma foi convidado a falar de
forma breve o que faria se pudesse
ser eu
: “
falaria em línguas, nunca mais usaria
sapatos, dançaria mais, correria menos, moraria mais perto do mar”.
O poema,
canto, as palavras foram simbolicamente entregues ao lago em um gesto coletivo
de lançar o poema tecido ao lago enquanto cantava-se:
“Sou de Nanã euá, euá,
euá, ê”.
Silêncio.
Escuta.
Respiração.
Até os pássaros fizeram silêncio.
Reverenciar a água sagrada do Quilombo.
Figura 4 - Registro: Will Oliveira/Whashington da Anunciação
Tecer o rio: a potência poética para pensar o [como]
Lígia Helena de Almeida | Vanessa Tatiana Azeñas Mallea
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-13, abr. 2025
11
na despedida, um dos alunos da UFAL que participou das três etapas
descritas acima se aproximou das pesquisadoras: “Posso falar com vocês? Queria
agradecer, porque com vocês aprendi que posso dividir as minhas dores com os
outros e que não preciso passar por tudo sozinho.”
Escreva com seus olhos como pintoras, com seus ouvidos como
musicistas, com seus pés como dançarinas. Vocês são as reveladoras da
verdade, com pena e tocha. Escreva com suas nguas de fogo. Não deixe
a tinta coagular em sua caneta. Não deixe o censor apagar a chama, nem
a zombaria abafar sua voz. Ponha tudo de si no papel.
Não estamos em paz com os opressores que afiam seu uivo em nossa
dor. Não estamos em paz. Encontre a musa dentro de você, traga-a à
superfície. Não a simule, não a venda por uma salva de palmas ou por
seu nome na capa (Anzaldúa, 2021, p. 61).
Conclusões
Ainda no processo de desenhar a proposta de Tecer o rio durante o Fórum
Brecht, durante uma reunião com Marcelo Gianini para alinhar o desenho da oficina
com a proposta do Fórum, surgiu a seguinte inquietude em forma de metáfora:
Nos espaços artísticos, acadêmicos ou militantes como um fórum, uma
assembleia, um seminário ou um festival, existem, ao menos, dois modos de se
colocar os nossos corpos nestes espaços. O primeiro, no qual estas pesquisadoras
não acreditam, é frequentar esses lugares com nossas verdades únicas, como
quem leva a passear seu mascote dando uma volta na quadra. Quantas vezes e
quantas pessoas não se colocam em espaços de intercâmbio com seus bichos-
verdades? No entanto voltam para casa sem que estes bichos sejam modificados,
sem assistir a nenhum diálogo, em seguida escrevem com os corpos, com a
presença e o modo de ocupar os espaços, com as verdades fechadas, ouvidos
tapados, questões resolvidas.
Na lógica da produtividade acadêmica, nem mesmo as pesquisadoras que
escrevem este texto, trazendo estas provocações, estão ilesas de irem por este
caminho.
Em oposição a esta forma, encontra-se a segunda possibilidade: a de
frequentar este tipo de encontro com abertura para o surgimento de novas
Tecer o rio: a potência poética para pensar o [como]
Lígia Helena de Almeida | Vanessa Tatiana Azeñas Mallea
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-13, abr. 2025
12
questões, dúvidas e abismos. Na concepção de caminhar entendida através da
palavra em aymara
SARNAQAWI,
que significa caminhar ou viajar e ao mesmo
tempo é uma metáfora do viver como nos diz Silvia Rivera Cusicanqui (2018).
É um colocar-se em jogo com a pesquisa, as teorias, os pensamentos e
pensadores, nos espaços em que se propõe expô-la permitindo que ela esteja viva,
em relação com a vida em si - acontecendo. É uma defesa do afeto (do afetar-se)
a que a radicalidade de Paulo Freire nos evoca:
Gostaria agora de insistir na minha recusa a certo tipo de crítica de
natureza cientificista que, no mínimo, sugere ausência de rigor na maneira
como discuto os problemas e na linguagem, ou na sintaxe “demasiado”
afetiva que uso. A paixão com que conheço e com que falo ou escrevo
não diminui em nada o compromisso com que
denuncio
ou
anuncio
. Eu
sou uma inteireza e não uma dicotomia. Não tenho parte de mim
esquemática, meticulosa, racionalista, conhecendo os objetos, e outra
desarticulada, imprecisa, querendo simplesmente bem ao mundo.
Conheço com meu corpo todo, sentimentos, paixão. Razão também
(Freire, 2021, p. 28).
Tecer o rio relembrando o trabalho das ancestrais tecelãs que consideraram
e continuam a considerar a tecelagem feita como parte do seu próprio corpo, ou
como um ser vivido em si (Denise Arnold y Elvira Espejo, 2013). Un Yanak Uywaña:
Criação Mútua das artes explicado por Elvira Espejo (2022), em que o fazer
artesanal dos tecidos recorda a possibilidade de criar mutuamente, participando
de um exercício coletivo de dar e receber, de reciprocidade como ética de vida.
No processo do Fórum ficou evidente a presença do exercício da memória
curta e longa. O crime ambiental que está impresso nos corpos dos estudantes,
nas ruas de sua cidade e na tristeza de seus bairros fantasmas. O medo
relacionado à água, que busca a cura, a generosidade daqueles corpos em dançar
a água, apesar da dor.
E a longa memória das heranças ancestrais negras, indígenas, quilombolas,
dessa tessitura de saberes que convoca, que traz saúde e que ao mesmo tempo
sustenta a cada um para construir o caminho que traçamos, aquele que sonhamos
que virá.
Por fim, um outro conceito de metáfora se aproxima do desenho desta
Tecer o rio: a potência poética para pensar o [como]
Lígia Helena de Almeida | Vanessa Tatiana Azeñas Mallea
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-13, abr. 2025
13
experiência:
Jiwasa,
que em aymara significa um
nós
inclusivo - envolve todos os
seres da natureza. Quando escutado com ouvidos brasileiros, a palavra lembra rio,
riowasa
. Tecer um rio que é coletivo, que vai além de quem está no Fórum, além
da academia, mas da qual ela também faz parte.
Referências
ANZALDÚA, Glória.
A vulva é uma ferida aberta e outros ensaios
. Rio de Janeiro: A
Bolha Editora, 2021.
ARNOLD, Denise; ESPEJO, Elvira.
El textil tridimensional: la naturaleza del tejido
como objeto y como sujeto.
La Paz: Fundación Albó, Fundación Interamericana e
Instituto de Lengua y Cultura Aymara, 2013.
ESPEJO, Elvira.
Yanak uywaña: la crianza mutua de las artes
. La Paz: PCP, 2022.
FREIRE, Paulo.
A sombra desta mangueira
. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021.
LONGANO, Anna Carolina; ANJOS, Kátia Silva Sousa dos; SILVEIRA, Marília Balbi;
VELARDI, Marilia, MATSUO, Renata; NOGUEIRA, Isabel e O´KEEFE.
Se eu fosse eu/If
I Were Me
. Youtube, 05 de outubro de 2021. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=kdeteXDML7k
RIVERA CUSICANQUI, Silvia.
Sociología de la imagen
. Buenos Aires: Tinta Limón,
2018.
RIVERA CUSICANQUI, Silvia.
Un mundo ch’ixi es posible: Ensayos desde un presente
en crisis.
Buenos Aires : Tinta Limón, 2020.
VELARDI, Marilia. Questionamentos e propostas sobre corpos de emergência:
reflexões sobre investigação artística radicalmente qualitativa.
MORINGA
-Artes do
Espetáculo, v. 9, n. 1, 2018.
VICUÑA, Cecília.
Palavrarmais.
Medusa: São Paulo, 2017.
Recebido em: 04/03/2025
Aprovado em: 22/03/2025
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
PPGAC
Centro de Artes, Design e Moda CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br