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“Encontros com Corpos que Fugiram”:
ação performativa de acolhimento e refúgio
Ian Calvet Marynower
Para citar este artigo:
MARYNOWER, Ian Calvet. "Encontros com Corpos que
fugiram": ação performativa de acolhimento e refúgio.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 2, n. 55, ago. 2025.
DOI: 10.5965/1414573102552025e0211
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“Encontros com Corpos que Fugiram”: ação performativa de acolhimento e refúgio
Ian Calvet Marynower
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-26, ago. 2025
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“Encontros com Corpos que Fugiram”: ação performativa1 de acolhimento e refúgio2
Ian Calvet Marynower3
Resumo
O artigo analisa a ação performativa “Encontros com Corpos que Fugiram”, realizada no Rio
de Janeiro, com a participação de Ian, autor deste texto, e Mohammed El Jazouli, marroquino
refugiado no Brasil. A performance consistiu no encontro entre ambos, um gesto de partilha
entre corpos marcados por diferentes experiências de pertencimento e deslocamento. Por
meio do relato dos processos de preparação e execução da performance, o artigo discute as
implicações desse encontro. Aqui, a ação performativa é compreendida como a possibilidade
de construir espaços de acolhimento ao outro, um lugar onde a confluência de múltiplas
alteridades se torna, justamente, o motor da ação.
Palavras-chave
: Performance. Encontro. Refúgio. Cidade.
“Encounters with Bodies that Fled”: A Performative Action of Shelter and Refuge
Abstract
The article examines the performative action “Encounters with Bodies that Fled”, held in Rio
de Janeiro, with Ian, the author, and Mohammed El Jazouli, a Moroccan refugee in Brazil. The
performance was an encounter between them, a gesture of sharing between bodies shaped
by different experiences of belonging and displacement. Through the report of the
preparation and execution processes of the performance, the article discusses the
implications of this encounter. Here, performative action is seen as the creation of spaces of
hospitality, where the confluence of multiple alterities becomes the driving force of the
action.
Keywords:
Performance. Encounter. Refuge. City.
“Encuentros con cuerpos que huyeron”: una acción performativa de acogida y refugio
Resumen
El artículo analiza la acción “Encuentros con cuerpos que huyeron”, realizada en Río de
Janeiro, con Ian, autor de este texto, y Mohammed El Jazouli, refugiado marroqen Brasil.
La performance consistió en un encuentro entre dos cuerpos que compartieron diferentes
experiencias de pertenencia y desplazamiento que los marcaron. A través del relato de la
preparación y ejecución de la acción, el artículo analiza las implicaciones de ese encuentro.
Aquí, la acción performativa se entiende como la creación de espacios de acogida, donde la
confluencia de múltiples alteridades se convierte, precisamente, en el motor de la acción.
Palabras clave
: Performance. Encuentro. Refugio. Ciudad.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Felipe Valentim. Doutorado em Literatura Comparada
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestrado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela
UERJ . Bacharelado em Artes Cênicas Direção Teatral Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
2 Este artigo é uma adaptação de um capítulo da minha dissertação de mestrado “Poética das Linhas: trajetos, traçados,
emaranhados e os refúgios a tecer” desenvolvida no PPGAC-ECO-UFRJ e defendida no ano de 2020. A pesquisa foi
financiada pela CAPES.
3 Doutorado e Mestrado em Artes da Cena pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduação em Artes Cênicas
com Habilitação em Direção Teatral pela UFRJ. ian.calvet@hotmail.com
http://lattes.cnpq.br/0199434992787268 https://orcid.org/0000-0002-3069-6075
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Introdução
A ação performativa “Encontros com Corpos que Fugiram”, realizada no Rio
de Janeiro em 2019, surgiu do desejo de investigar as dinâmicas dos encontros e
seus mais variados modos de acolhimento. Junto com Mohammed El Jazouli,
marroquino refugiado no Brasil, professor de francês e mestre em publicidade, eu
propus um espaço de troca em que as nossas narrativas individuais se
entrelaçavam por meio da presença e da escuta mútua. Na época, minha pesquisa
de mestrado4 investigava a relação entre a performance e as linhas fronteiriças,
materiais e simbólicas, na sua dupla capacidade de unir e dividir. Trata-se de linhas
conectivas, que, por exemplo, aproximam diferentes indivíduos através da
reciprocidade que pode existir num encontro; mas também podem ser linhas de
corte, um muro na fronteira entre dois países, ou linhas que apartam um indivíduo
de sua terra-mãe, colocando-o na condição de refugiado em um lugar estrangeiro.
Através desse olhar sobre as linhas, busquei ações artísticas que dialogassem com
essa noção e assim, criei a performance cujas implicações este texto investiga.
Seis anos depois de ter realizado essa ação performativa, percebo a
atualidade e a urgência desse debate. Diante da ascensão de governos de extrema-
direita e suas políticas anti-imigração, torna-se ainda mais necessário refletir sobre
a possibilidade do fazer artístico abrir espaços para os encontros, a construção de
refúgios e a aceitação da alteridade. É no contexto, em nível global, de um
crescente recrudescimento do autoritarismo linhas rígidas, armadas e
intolerantes à diversidade – que decido publicar esse artigo.
A performance “Encontros com Corpos que Fugiram” teve o seguinte
programa performativo5:
1. conversar à beira-mar com um(a) refugiado(a) morador(a) da cidade do Rio
4 A pesquisa foi realizada entre 2018 e 2019 no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC-UFRJ).
5 “Programa Performativo é um conceito/um procedimento composicional concebido pela performer e
teórica da Performance Eleonora Fabião. Trata-se de “um conjunto de ações previamente estipuladas,
claramente articuladas e conceitualmente polidas a ser realizado pelo artista, pelo público ou por ambos
sem ensaio prévio” (Fabião, 2013, p.4)
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de Janeiro.
2. deixar que ele(a) me guie dentro da cidade em direção a um lugar de sua
escolha.
3. ao chegar a esse local, o(a) refugiado(a) me mostrará um objeto oriundo
do seu país e origem. Essa solicitação será feita dias antes.
A escolha da beira-mar como espaço para o encontro foi decisiva para a
poética e a estética da ação. O mar, elemento de travessia e de fronteira, remete
às experiências de deslocamento e refúgio: é lugar de passagem, espaço de trocas
materiais e simbólicas, cuja imensidão separa continentes ao mesmo tempo em
que os conecta. Desde as antigas rotas comerciais e migratórias até os fluxos
contemporâneos de deslocamentos forçados, o mar tem sido cenário de
encontros e desencontros, de tensões e esperanças. À sua beira, o encontro com
Mohammed pôde situar-se nesse território de trânsito, onde a conversa se deu
atravessada por um horizonte compartilhado, tecido na abertura ao outro.
Minha decisão de incluir apenas um objeto na ação performativa, e não mais,
teve por objetivo concentrar a atenção num único elemento, um objeto que
sintetize memórias, afetos e as narrativas da pessoa em situação de refúgio. O
motivo pelo qual solicitei esse objeto previamente, e não durante ou após a
performance, foi o convite para que meu interlocutor também preparasse a ação,
instaurando um tempo de reflexão. Esse intervalo entre a escolha do objeto e a
ação amplia a dimensão da performance, pois já inaugura o encontro no plano da
expectativa, fazendo com que o objeto chegue carregado de desejo de partilha.
Assim, ele não atua apenas como vestígio de um passado, mas como catalisador
de sentidos que orientam o presente da ação.
Também é necessário elucidar as variadas dimensões que percebo na noção
de encontro. Aprofundar esse conceito significa melhor compreender os caminhos
escolhidos para realizar a ação performativa no intuito de alicerçar um terreno
fértil para um bom encontro entre Mohammed e eu. O filósofo português José Gil,
ao dissecar os muitos aspectos que envolvem um encontro, permite-nos traçar
alguns parâmetros para estabelecer as suas qualidades. O autor afirma que o “bom
encontro” seria um “encontro que pegou”:
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O que quer dizer pegou”? Que encontraram o tom que permite a um e a
outro conversar como se de amigos muito conhecidos se tratasse.
Podem agora dizer o que quiserem que o seu diálogo funciona, a troca de
fluxos de fala circula num plano contínuo que reúne os dois corpos num
laço afetivo permanente, aparentemente durável. Esse laço compõe a
textura do plano: independentemente das palavras ditas, forças mais
fortes do que as que drenam as mensagens mantêm a ligação dos corpos
(Gil, 2013, p. 123).
Tais “forças mais fortes” circulam e compõem o laço afetivo do encontro;
elas se fazem presentes através da produção de comuns e de diferenças, ou seja,
de processos de identificação e desidentificação entre as pessoas que se
encontram. É na diferença, na distinção entre o eu e o outro, que a potência de
agir é aumentada, posto que “uma amizade, um amor, realiza bons encontros
se proporcionam o desenvolvimento, em cada um, desse espaço inocupável,
singular, absolutamente vazio que o defina na sua diferença com o outro” (Gil,
2013, p. 127). Isso quer dizer que, mesmo no processo de aproximação entre dois
indivíduos, onde produzem-se zonas de interseções e comunidades entre ambos,
deve-se preservar os espaços das singularidades, aquilo que não pode ser
ocupável por nenhum outro. Uma vez desrespeitados esses espaços singulares,
criam-se relações invasivas, intimidadoras, e, no limite, opressivas. Em suma,
invadir o espaço do outro é correr o risco de estrangular a potência de um
encontro.
Deste modo, deflagra-se movediça a própria ideia da ação performativa. Os
caminhos para a sua concretização exigiam de mim extrema delicadeza e,
sobretudo, responsabilidade por criar zonas de acolhimento. O trabalho era um
agir insistente, e a conta-gotas, para desfazer as linhas que me separavam de
Mohammed. Tratava-se de linhas como barreiras: a falta de intimidade, as
singularidades dos hábitos culturais, a língua etc. Seria necessário desfazer as
linhas das formalizações sociais que dividiam binariamente: eu carioca, artista
pesquisador – e ele – refugiado estrangeiro dentro de uma cultura desconhecida.
Desfazer estas linhas-barreiras, contudo, é imediatamente fazer novas linhas-
conectivas, permitindo outros tipos de ligações, abrindo espaço para o
afloramento das imprevisibilidades de um encontro e, inclusive, de uma amizade.
Desta forma, instaura-se um terreno novo e desconhecido, que poderá existir
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se cerzido mutuamente, por meio da cumplicidade e da confiança entre
Mohammed e eu.
Nesse sentido, a importância de um encontro “bom”, marcado por este
adjetivo qualificativo, também se fundamenta no pensamento de Spinoza. Um
encontro é considerado “bom” quando afeta corpos e promove transformações
mínimas ou mais significativas capazes de influenciar tanto a experiência individual
quanto a coletiva. Como Spinoza nos lembra, retomado por Deleuze, é
fundamental diferenciar encontros que aumentam a potência de agir daqueles que
a diminuem:
O bom existe quando um corpo compõe diretamente a sua relação com
o nosso, e, com toda ou com uma parte de sua potência, aumenta a
nossa. Por exemplo, um alimento. (Deleuze, 2002, p.28)
Isso significa que um “bom” encontro agrega afetos positivos, intensifica a
vida, amplia a capacidade de sentir e pensar, além de mobilizar novas formas de
existir. Assim, os encontros com Mohammed tiveram como pressuposto a busca
pela construção de uma parceria: uma experiência na qual ambos se afetam numa
dinâmica de mútua agregação e reinvenção.
A escolha pelo recorte do encontro com uma pessoa em situação de refúgio
teve por objetivo colocá-la em evidência, tensionando as camadas de
deslocamento e pertencimento que marcam esses corpos. Ao escolher me
encontrar com alguém nessa condição, reconheço que a experiência do refúgio
não é reduzida a um estatuto jurídico, ela carrega consigo implicações políticas,
históricas e subjetivas do próprio indivíduo. Mohammed é representante de um
grupo, mas, sobretudo, sujeito que encarna uma singularidade que permite discutir
tanto as questões amplas do refúgio quanto aspectos específicos de sua própria
história. Assim, busco evitar leituras que tratam o refúgio como um bloco uniforme
de experiências, ignorando a diversidade de trajetórias, contextos e motivações
que levam alguém a deixar seu país. Ao contrário, o encontro com Mohammed
visou evidenciar as fissuras e nuances dessas narrativas dominantes, valorizando
as zonas de ambiguidade e contradição.
Outro ponto importante neste trabalho é a problematização do próprio termo
“refugiado” que aqui será substituído por “corpos que fugiram”. Um corpo foge de
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um país, foge das intransigências dos sistemas políticos, mas foge também de
outros lugares indesejados – tanto físicos quanto imaginários. Um corpo foge – ou
busca fugir da rigidez dos seus próprios pensamentos, do afloramento de
desejos por vezes indomáveis, de encontros opressores com pessoas indesejáveis,
com coisas indesejáveis, com aquilo que invade nossos espaços não
compartilháveis. Portanto, por conta dessas inúmeras e incessantes fugas, a minha
relação com os “corpos que fugiram” era constantemente transformada, de
acordo com seus desejos e suas questões no momento de cada encontro. Deste
modo, os interlocutores que encontrei nos caminhos para desenvolver e realizar
essa ação adquiriam variadas nomeações, eles eram: ora parceiros de trabalho,
ora conhecidos, ora amigos, ora alguém que se recusa, ora alguém que não me
entende, ora alguém que eu não entendo...
Desfazer as linhas-barreira entre mim e as pessoas com as quais me envolvi
para compor esse trabalho marcou o processo de preparação para a ação
performativa. Durante oito meses, realizei um trabalho de aproximação a fim de
construir elos firmes. Tal trabalho permitiu que a ação transbordasse para além
do programa performativo, conforme descrito anteriormente, ou ainda, os meses
de aproximação e os processos criativos engendrados para a realização do
programa também pertencem à performance e serão aqui descritos.
Assim sendo, tratarei de apresentar os contornos da performance desde seu
princípio, identificando os primeiros impulsos, ou os primeiros pulsos, da ação. Em
seguida, apresentarei o meu próprio processo criativo repleto de avanços, recuos,
incertezas e, principalmente, de encontros com corpos que, cada um a seu modo,
fugiram e seguem fugindo incluo também o meu corpo nesses processos de
fugas. Por fim, descreverei o encontro final que tive com Mohammed, cumprindo
assim o programa performativo previsto.
Encontros para encontrar os encontros
Era um sábado de sol no mês de maio, um dia quente no tímido outono
carioca. Acordo com saudades do Pedro, meu irmão, por parte de pai, que na
época tinha 9 anos de idade. Pedro não mora comigo e, por conta do meu cotidiano
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conturbado, se eu descuidar, posso acabar passando meses sem vê-lo. Por isso,
liguei para Pedro e marcamos um encontro na praia. Na época, eu estava
empolgado com as leituras dos textos do mestrado e a escrita de uma futura
dissertação. Pedro, por um lado, também demonstrava empolgação por conta dos
novos amigos da escola; por outro, o menino estava profundamente
desestimulado com suas obrigações que exigiam leitura e escrita. Pedro não gosta
de ler e, muito menos, de escrever textos. Eu me lembro de que, na sua idade, eu
igualmente desgostava; mas, hoje, arrependo-me por ter descoberto tão
tardiamente as delícias dos livros e das criações textuais.
A praia não estava cheia. Estendemos nossas coisas na areia, meu irmão foi
brincar de construir castelinhos e eu fui dar um mergulho no mar. Pedro tem medo
do mar e não entrou de jeito nenhum. Ao voltar da água, eu me sento no chão
junto a Pedro com a tarefa de construirmos juntos um reino de areia. É curioso
constatar que, quando estamos com uma criança, nós, os adultos, conseguimos
criar coragem para nos permitir realizar, sem censuras, as “coisas de crianças”;
aquilo que jamais faríamos se estivéssemos sozinhos ou entre adultos. Ao longo
da brincadeira, Pedro insiste em manifestar reiteradamente o seu desgosto por ler
e escrever.
Começamos a desenhar na areia – rostos, formas geométricas, personagens
de desenhos animados. De súbito, eu proponho uma brincadeira: “Pedro, que tal
escrever na areia um texto, uma história, quem sabe uma peça de teatro?”. O meu
irmão fica aterrorizado ao ouvir a palavra “escrever”; eu insisto, chamo-o para a
beira do mar onde a areia é mais dura e a escrita fica mais visível e coloco o
meu dedo indicador no chão escrevendo: “era uma vez”. Faço o convite para que
Pedro continue a história, escrevendo de acordo com o seu desejo. Ele para,
observa o seu dedo, a areia, a praia; permanece por um tempo calado, pensando
e, de súbito, começa a escrever de modo cada vez mais acelerado.
Quando percebi, Pedro havia construído um extenso texto à beira mar por
um comprimento de, aproximadamente, cento e cinquenta metros. A história do
autor-criança demandava investimento físico do corpo, ou seja, para compreender
a sua narrativa era necessário que o leitor caminhasse margeando a água com o
rosto voltado para o chão. Além disso, destaco a figura do mar como um
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importante coautor que interferia de modo inegociável na escrita de Pedro: o mar,
com suas ondas mais fortes que estouravam na beira da praia, eventualmente,
apagava parte da escrita tornando-se uma grande borracha. Deste modo, o autor
era constantemente obrigado a reescrever parte do texto, e assim o fazia
reformulando seu conteúdo. Eram narrativas que surgiam, diluíam-se e
retornavam de modo diferente de acordo com a insistência das ondas do mar.
Pensei: na maré baixa, quando o mar recua, a história na areia venceria a insistência
da água e, finalmente, conseguiria fixar-se.
Por duas horas, Pedro permanece intenso nessa ação. A maré não baixou
antes do término de sua escrita e, por isso, as histórias se apagaram por completo;
também se perdeu em nossas memórias o conteúdo das narrativas, mas creio
que isso pouco importa. A questão é que a criança, no seu fluxo criativo, revelou-
se artista. Pedro, um corpo que fugia do seu aprendizado escolar, agiu sem
censuras, sem se preocupar com possíveis espectadores, sem sequer ter a
pretensão de fazer de sua escrita uma obra de arte. Instaurava-se uma ação
performativa com o conjunto de suas ações bem estabelecido: refazer as linhas
que o mar desfaz.
A teórica Regina Melim, quando disserta sobre as delimitações nas obras de
arte, afirma a possibilidade de estas escaparem dos espaços fechados,
instaurando-se em qualquer lugar, a qualquer momento. Segundo a autora,
“Quando o ateliê passa a ser ‘qualquer lugar’, ‘todo lugar’ ou ‘onde estiver’, seu
conceito passa a estruturar não somente como um lugar físico, mas, sobretudo,
como uma espécie de parênteses no tempo, passando a existir, então, onde o
artista está” (Melim, 2008, p. 50). Pedro, que almeja ser um cientista espacial
quando crescer, faz-se existir enquanto artista, transforma a praia num ateliê a
céu aberto.
Exaustos de sal, de vento, de frases escritas e reescritas, da insistência de
dedos brincantes na areia; levo meu irmão para sua casa e nos despedimos com
um abraço afetuoso: obrigado por me ensinar a te ensinar, Pedro.
Fim do primeiro encontro.
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Em vista deste acontecimento ocorrido com meu irmão, fui percebendo, cada
vez mais, que a noção de “corpos que fugiram” amplia os entendimentos sobre a
condição de refugiado. Enquanto o termo refugiado remete a uma categoria
jurídico-política, como dito anteriormente, “corpos que fugiram” aponta para
experiências de fuga que não cabem apenas nessa moldura legal. Mohammed, em
sua trajetória, fugiu de um regime autoritário que produziu nele sintomas de
exaustão, ansiedade e depressão. meu irmão Pedro, ao escrever na areia da
praia, também encenava uma fuga: a recusa de submeter-se à lógica escolar que
o sufocava. Evidentemente, são experiências extremamente distintas entre si, mas
ambas revelam, em intensidades diferentes, o gesto de escapar de situações
opressivas, reinventando-as cada um ao seu modo.
No mês de maio de 2019, conheci Mohammed numa oficina de Teatro para
Refugiados dentro do projeto de extensão Laboratório de Estética e Política (LEP)
coordenado pela profa. Dra. Alessandra Vannucci, integrante do corpo docente do
Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena, UFRJ. As aulas ocorriam aos
domingos de manhã, no espaço cultural “Olho da Rua”, no bairro Botafogo, Rio de
Janeiro. Conversei com a profa. Alessandra e ela, gentilmente, permitiu que eu
assistisse à oficina. Quando cheguei à aula, oito alunos alguns refugiados, outros
brasileiros estavam desenvolvendo uma cena a partir das premissas do Teatro
do Oprimido6.
Nessa oficina, eu pude observar a realidade de muitos refugiados, ali
presentes, sendo encenada. Um dos temas recorrentes era a busca por conseguir
o visto de permanência no Brasil. A cena se passava dentro de uma delegacia da
Polícia Federal e os seus personagens eram distribuídos de acordo com o desejo
de cada participante o agente policial, o refugiado, o policial de baixo escalão
etc. O conflito se desenvolvia a partir das improvisações dos alunos que utilizavam
suas habilidades argumentativas para alcançar os objetivos cênicos dos
personagens interpretados: o refugiado buscava conseguir o visto de permanência;
o agente policial deveria impor dificuldades, pois assim lhe fora ordenado; o policial
6 Segundo seu criador, Augusto Boal, esse fazer teatral Busca sempre a transformação da sociedade no
sentido da libertação dos oprimidos. É a ação em si mesmo e é a preparação para ações futuras. [...] provoca-
se a interpretação da ficção na realidade e da realidade na ficção: todo os presentes podem intervir a
qualquer momento na busca de soluções para os problemas tratados” (Boal, 2011, p. 19-20).
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de baixo escalão deveria apenas zelar pela ordem na delegacia.
Mohammed, com aproximadamente 30 anos e 1,85 metros de altura, chamou
a minha atenção pelo seu jeito peculiar de portar-se em cena: rompantes de agudo
em tom estridente saíam de sua boca sem motivo justificável, eram gritos e
gargalhadas; sua vitalidade e desinibição por estar em cena era evidente. Foi
naquele espaço de aula que o marroquino encontrara um ambiente acolhedor,
permitindo-lhe experimentar diferentes modos de ser a partir das funções que,
até pouco tempo, o oprimiam. A liberdade expressiva que o marroquino encontrara
através da cena, legitimava a eficácia e importância do Teatro do Oprimido. Ficava
evidente como esta técnica possibilitava que o participante se descolasse de sua
própria perspectiva identitária, a fim de estimular modos de ver e pensar as
circunstâncias a partir de diferentes pontos de vistas.
Ao ver, em específico, a figura de Mohammed, constatei que aquele ambiente
de aprendizado e deslocamentos lúdicos da sua condição social, despertava no
marroquino a alegria e a potência de agir. Para ele, o encontro com aquelas
pessoas, naquela dinâmica de aula, sem dúvida alguma havia “pegado”
resgatando a citação de José Gil. Tive forte desejo de conhecê-lo, mas não queria
apresentar-me de modo formal, ou seja, como um pesquisador interessado em
compreender a sua condição de refugiado. Assim como percebo, isso seria colocar
de antemão uma barreira entre nós, com o risco de fixar Mohammed como “objeto
de estudo”. Encontrei então uma solução muito simples, favorecida pela ocasião:
Mohammed foi o último aluno a sair da sala de aula e eu fui esperá-lo na rua com
o intuito de encontrá-lo “por acaso”, um acaso evidentemente calculado. Ao longo
da espera, fumei um cigarro. Mohammed saiu e me olhou, eu de imediato falei: “ei,
pra onde você indo?”. Ele me disse: “vou pegar o metrô”. Eu retruquei
emendando um assunto: “vamos juntos, também vou pegar o metrô. Gostou da
aula?”.
A conversa durou o tempo da distância do percurso até a estação do metrô
de Botafogo. Ali nos tornamos colegas de uma aula de teatro com mochila nas
costas e roupas suadas no corpo. No caminho, conversamos sobre a crise na
política brasileira e as diferenças culturais entre Brasil e Marrocos. Antes da nossa
despedida, trocamos contato de celular, tal como dois conhecidos na potência de
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engatar uma amizade futura. Um aperto de mão e Mohammed seguiu o seu rumo.
Fim do segundo encontro
Uma linha virtual foi estabelecida entre nós dois, um espaço de contato: o
WhatsApp
. Enquanto eu frequentemente o enviava reportagens de jornais e
recomendações de leitura, Mohammed me mandava ‘memes’ engraçados. E,
simultaneamente, a linha do Pedro, feita na areia molhada do mar, não saía da
minha mente. Na singularidade desses dois acontecimentos, eu acreditava existir
um terreno em comum, ainda não revelado. Para costurar minha trama, seria
necessário encontrar no novelo desses ocorridos um fio condutor e transpassá-lo
no estreito buraco de uma agulha, ou seja, lançar tais acontecimentos para dentro
de um mesmo campo poético. Seria como passar um elefante pelo buraco de
uma fechadura, uma ação aprioristicamente descabida, absurda, desnecessária.
Me questionei: como fazer? Como, a partir de uma ação, dar prosseguimentos às
outras ações futuras? Como eu utilizaria tais experiências, aparentemente
desconexas, no contínuo desta escrita? E o pior de todas as questões, aquela que
congelava os ossos do meu corpo: por que fazer isto?
Em busca de respostas, retornei à beira do mar. Diante da força desse deserto
salgado, rascunhei relações entre o mar e as embrionárias intuições da ação
performativa que tentava planejar. Sem dúvida, o mar tem as suas peculiaridades:
a ação de suas ondas insistentes desfaz, a longo ou a curto prazo, tudo aquilo que
se ergue e se fixa sobre a terra. Nesse sentido, o filósofo Gilles Deleuze afirma que
O mar está sobre a terra, aproveitando-se do menor decaimento das
estruturas mais elevadas, [...] a terra ainda aí, sob o mar, e congrega suas
forças para romper a superfície. Reconheçamos que os elementos, em
geral, se detestam, que eles têm horror uns dos outros. Nada de
tranquilizador nisso tudo. [...] O homem pode viver bem, e em
segurança, ao supor findo (pelo menos dominado) o combate vivo entre
a terra e o mar (Deleuze, 2004, p. 11).
Para dominar “o combate vivo entre a terra e o mar”, supondo-o findo, a
civilização inventou o concreto, o cimento e o minério de ferro – ambos, materiais
indispensáveis na construção civil. Tais materiais se estendem sobre a terra,
criando uma borda que visa impermeabilizar os contornos no mar basta
pensarmos nos canais que guiam as águas fluviais das regiões urbanas, nos diques
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para contenção das marés, nas áreas aterradas para o avanço da cidade sobre o
mar. É inegável a importância desses materiais para viabilizar as nossas existências
na urbe. São eles que possibilitam o crescimento das cidades litorâneas e o fato
de estarmos aqui, no Rio de Janeiro, transitando sobre suas incontáveis superfícies
aterradas. Contudo, o mar é insubordinável às investidas do concreto, do cimento
e do minério de ferro como afirma o dito popular “água mole em pedra dura,
tanto bate até que fura”. Sim, é o mar, na sua plácida imensidão, que fura a dureza
dos materiais de construção por insistência, resgatando o seu contato vivo com a
terra.
O mar, ao desfazer as linhas desenhadas na areia, manifesta uma pedagogia
própria que ensina o meu irmão a conquistar o amor pela escrita. Esse mesmo
mar é o comum entre o Brasil e o Marrocos de Mohammed, ele une os dois países
a partir de sua peculiar poesia rítmica. A onda vem a sensação de molhado daqui
é a mesma de a onda vai todas as linhas na areia e os fragmentos dos
materiais das construções se fundem nas águas de um mesmo e único mar. O
mar, utópica poesia de união entre os povos, é de ninguém e de todos ao mesmo
tempo. Nesta etapa do processo de construção de uma poética para os corpos
que fogem e por meio deles, a minha maré fica alta, o meu peito infla de
entusiasmo: salve os encontros no mar, salve os encontros com o mar! Decido
que o programa performativo final deste trabalho deve ser, necessariamente, à
beira mar e com pessoas vindas de além-mar. É neste momento que consolido a
formulação do programa performativo “Encontros com Corpos que Fugiram”.
Fim do terceiro encontro
Numa segunda-feira em abril de 2019, a convite de Mohammed, fui visitar o
seu local de trabalho no bairro Tijuca, Rio de Janeiro. Ao sair da estação do metrô,
me deparo com o marroquino sentado num banco de praça estava ali me
aguardando trinta minutos. De fato, eu havia me atrasado para o encontro. Peço
desculpas a Mohammed; ele sorri e faz uma afirmação no seu tom agudo usual:
“tá tudo bem!”. Caminhamos pelas ruas da Tijuca até uma porta estreita onde se
escrito “Abraço Cultural” um belo nome de lugar para um encontro, um
espaço que abraça. E de fato o lugar acolhe; ao atravessar a porta, me deparo com
“Encontros com Corpos que Fugiram”: ação performativa de acolhimento e refúgio
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uma ampla sala de recepção: algumas poltronas pelos cantos, uma mesa com
doces e cafés, fotos penduradas na parede com imagens de diferentes lugares do
mundo, uma prateleira com livros de variados idiomas e uma placa ao lado onde
está escrito “Biblioteca do Abraço – pegue, empreste, troque, doe”7.
Ora, o “Abraço Cultural” é uma reação propositiva ao contexto global do
qual, o número de pessoas refugiadas ou exiladas salta, cada vez mais, em níveis
estratosféricos. Diante deste panorama, faz-se urgente pensar em políticas de
acolhimento e modos para aproximar esses estrangeiros migrantes, refugiados
da cultura dos países que eles estão vivendo, ou querem viver. Neste sentido,
percebo a função do “Abraço Cultural” como indispensável e exemplar atualmente,
promovendo a união em torno de um mesmo objetivo, que é o ensino, entre as
mais diferentes culturas. Uma união da qual, não apenas assume as diferenças de
cada indivíduo, mas também, tirar proveito delas como um meio para enriquecer
os processos pedagógicos de seus professores e alunos.
Ao chegar ao Abraço Cultural, recebo de Mohammed que leciona aulas
de francês um folheto com informações sobre o curso: são aulas duas vezes
por semana durante um período de, pelo menos, um semestre, com o custo
mensal de 220 reais (valor bem abaixo da média, se compararmos com outros
cursos de línguas na cidade). Sem perguntar se de fato eu quero ou não, o
marroquino entrega-me uma xícara de café e me conduz até a sala dos
professores. Ali, sentamo-nos numa grande mesa e começamos a conversar sobre
política e as dificuldades de viver na cidade carioca. Em meio ao assunto, resolvo
oficializar o convite para a ação “Encontros com Corpos que Fugiram”. O
marroquino se entusiasma com a proposta e aceita, imediatamente. O terreno foi
alicerçado, estava tudo preparado para a realização do programa performativo.
Fim do quarto encontro.
7 Segundo consta no site do espaço, o “Abraço Cultural é : uma instituição que cria oportunidades de
integração social, cultural e econômica para pessoas em situação de refúgio ou em processo migratório
vulnerável no Brasil”. Fonte: https://abracocultural.com.br/sobre-nos/#proposito Acesso em: 04 fev. 2025.
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Encontro com Mohammed El Jazouli
Figura 1 Registro da ação performativa “Encontro com Corpos que Fugiram”.
Museu do Amanhã, Rio de Janeiro, RJ, junho de 2019. Foto: Luiza Quinderé
Na foto, Mohammed com a mochila nas costas e eu, com a mão na cabeça.
Ao fundo, suavizada pela neblina, uma linha de concreto nos interligando é a
ponte “Rio-Niterói”, uma via movimentada que atravessa a Baía de Guanabara e
encurta as distâncias entre duas importantes cidades do estado carioca. Na
imagem, a ponte se torna uma linha, que interliga a cabeça de Mohammed. O seu
enquadramento foi feito através da percepção atenta e sensível da fotógrafa Luiza
Quinderé – uma amiga que chamei para registrar a ação. Destaco ainda que a foto
é composta por um
ton sur ton
do qual, os nossos corpos em cima do chão de
pedra, a água salgada e o céu com suas nebulosidades aproximam-se por
semelhança graças à cor azul em seus variados tons. De fato, o programa
performativo, no seu escopo, já presumia a predominância do oceano azul.
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A opção por trazer uma fotógrafa comigo é oriunda do meu desejo por
capturar os momentos espontâneos do encontro e tê-los como material de
registro. Sem uma terceira pessoa para tirar a foto, seria impossível capturar o
acontecimento sem interromper o seu fluxo, ou seja, sem pausar a conversa com
o refugiado de forma inconveniente e até intimidadora. Outra observação a ser
feita em relação às ferramentas de registro é o fato de que foi utilizado, com
autorização de Mohammed, um gravador para armazenar os seus depoimentos. A
opção pelo gravador levou em consideração a necessidade de registrar, de modo
mais fiel possível, tudo aquilo que foi dito durante o encontro. Portanto, a partir de
agora, algumas citações em aspas são referentes aos áudios transcritos.
Esta foto foi tirada no Centro da cidade do Rio de Janeiro, nos arredores do
“Museu do Amanhã”, local escolhido por mim pelo motivo do museu habitar uma
península – cercada pelo mar – e evidentemente, como analisei anteriormente, o
mar tem um papel fundamental nessa ação performativa. O “Museu do Amanhã”
é uma estrutura de cimento, concreto e minério de ferro extremamente polêmica.
Com uma aparência similar a uma gigantesca nave espacial, o museu foi um
“legado” das Olimpíadas de 2016. Sua edificação compunha o projeto do “Porto
Maravilha”, um plano de revitalização da região portuária carioca. Os custos para a
consolidação do “Porto Maravilha” foram as violentas expropriações de diversas
comunidades de moradores da região – uma tônica do período pré-olímpico que
promoveu um dos maiores processos de expropriação e gentrificação realizados
na cidade.
Estando nós ali, na beira do “Museu do Amanhã”, manifestavam-se certas
correlações entre o local e a figura de Mohammed: tratava-se da reverberação de
ecos. O marroquino ecoava um país que, para ele, só poderia existir na lembrança
pois está impossibilitado de retornar pelo fato de a ditadura marroquina tolher
a liberdade de expressão de seus cidadãos. Ao mesmo tempo, as pedras do chão
do Museu tentam apagar os ecos dos violentos processos de desapropriação
produção dos nossos refugiados internos revelando a fragilidade ética daquela
incoerente nave espacial intitulada “do Amanhã”. Amanhã para quem? Amanhã de
quem? Portanto, o encontro também foi com os muitos ecos reverberados, no
passado e no presente, destes corpos que fugiram e fogem, porque foram e são
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obrigados a sair.
Era terça-feira, um dia de temperatura amena no aconchegante inverno
carioca. Marquei com Mohammed às 11h da manhã em frente ao monumento
central da Praça Mauá – ao lado do “Museu do Amanhã”. Às 11:07, com Luiza e eu
aguardando a chegada do marroquino, recebo dele a seguinte mensagem via
WhatsApp
: “alô, alô, Ian, ‘ianzinio’, ‘ianinio’, ‘ianzizinho’, ‘iantitito’, não sei como
posso fazer para diminuir você. (risos)”. Em seguida recebo outra mensagem: “olha,
desculpa meu amigo, eu vou atrasar. Eu vou atrasar uma hora, eu tive um
problema aqui. No meio-dia, eu vou chegar lá”. Prontamente, eu respondo:
“‘mohammedizinho’, as pessoas costumam me diminuir aqui de ‘ianzito’ que não
é um diminutivo, mas é apelido. Tudo bem, você chegar ao meio-dia, estamos te
esperando”.
A tentativa de Mohammed por “diminuir” o meu nome evidencia sua busca
por reafirmar os laços de proximidade com a nossa cultura carioca, criar raiz nos
ínterins semânticos deste território. Digo isso, pois o uso do diminutivo nos nomes
próprios é uma característica específica dos cariocas para remeter-se às pessoas
pelas quais cultiva-se um carinho especial. O marroquino capta as sutilezas da
cultura do seu novo país manifestando, através do tom jocoso de uma mensagem
de voz, as dificuldades em apropriar-se dela.
Foi exatamente às 12 horas que Mohammed apareceu na Praça; abraçamo-
nos, eu o apresentei a Luiza Quinderé e caminhamos até o local escolhido por
mim para realizar a conversa do encontro (Figura 1). Ao sentarmo-nos sobre o chão
de pedra, permanecemos em silêncio observando ao redor: o mar, a Baía, o forte
cheiro de maresia, o barulho dos motores das embarcações ao longe. Resolvo
contextualizar de forma breve a história dos arredores do local, evidenciando as
incoerências daquele belíssimo cenário a partir das terríveis desapropriações que
ali ocorreram durante o período pré-olímpico. Aproveitando o gancho do meu
discurso, Mohammed conta que a sua chegada ao Brasil foi justamente durante o
período das Olimpíadas. Peço, então, para que ele me narre exatamente os fatos
do seu primeiro dia na cidade. Ele fala:
Eu saí de Marrocos e vim direto para o Brasil. Vim de avião, porque aqui
no Brasil aceita a entrada dos marroquinos sem visto por conta de uma
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cooperação entre os países. Eu vim direto para o Rio, Casablanca-Rio.
[Eu] fiquei perdido aqui por 3 meses, não sabia onde as coisas eram. Eu
fui direto para Copacabana, não conhecia ninguém, mas eu fui pra
Copacabana. Eu pensei: Rio, logo, Copacabana. No aeroporto, eu vi no
ônibus “Copacabana”, e fui pra carregando toda a minha vida aqui [de
baixo dos braços].8
O mais famoso cartão-postal do Rio de Janeiro influenciou a sua primeira
ação. Ir de imediato para Copacabana, a principal vitrine turística do Rio é, ao
mesmo tempo, saciar a curiosidade muito concretamente e confrontar-se com
seu imaginário da cidade. Dentro de um território desconhecido, Mohammed utiliza
o seu restrito arsenal de referências para transitar; sua escolha de destino é a
partir daquilo que mais lhe parece familiar. Ora, é a força icônica da mundialmente
conhecida Copacabana que lhe traz a sensação ilusória de um lugar onde as suas
referências espaciais não seriam destruídas e, no limite, que o espaço lhe
acolheria. É na busca de ir para Copacabana que percebo seu senso de
responsabilidade: Mohammed tenta zelar pela integridade do seu próprio eixo, da
sua própria bússola. Ton sur ton, o marroquino opta por transitar pelos tons mais
próximos, naqueles que podem ser mais facilmente cognoscíveis. Em um passo
de cada vez, a sua busca foi por apaziguar a brutal radicalidade do fato de ter-se
tornado um estranho em meio a um território desconhecido. Apesar de tudo, o
cartão postal pode revelar-se, na sua vivência in loco, antagônico a sua presumida
beleza e familiaridade.
Andei muito pelo calçadão para ver a praia. As pessoas, vendo que eu era
estrangeiro carregando malas, me ofereciam ingressos para jogos das
Olimpíadas, mas eu não ir pra jogos! Eu fui andando, andando muito, sem
saber muito bem para onde ir. Eu não tinha internet no meu celular. Fui
entrando nos lugares até descobrir um hostel não muito caro para passar
a noite. Eu pensei: Eu vou dormir lá e amanhã eu penso melhor o que eu
vou fazer. [...] Eu acabei ficando 19 dias neste hostel9.
Mesmo ficando 19 dias em um hostel – frequentando diariamente a praia de
Copacabana, onde nadava no mar Mohammed sabia que suas reservas de
dinheiro se esgotariam. Obviamente, era insustentável este estilo de vida na vitrine
da cidade. Curioso notar a ambivalência, nas entrelinhas do discurso do
8 Trecho transcrito da ação performativa “Encontros com Corpos que Fugiram” 11 jun. 2019.
9 Trecho transcrito da ação performativa “Encontros com Corpos que Fugiram” 11 jun. 2019.
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marroquino, entre a necessidade de sobrevivência cada vez mais urgente e
inadiável e seu desejo de desfrutar, tal como um turista, as vantagens de uma
nova cidade. Após este período de turismo, o marroquino “vira a chave” e o desejo
de desfrutar a cidade torna-se, por exigência de suas condições financeiras,
necessidade de sobrevivência na urgência por encontrar um lugar fixo e
sustentável para morar.
Entre suas muitas histórias sobre a busca por um local para morar,
Mohammed afirmou que dormiu na rua durante alguns dias: “eu fiquei sem
dinheiro e dormi na rua. Sim, dormi, mas foi tudo bem. Eu dormi em Botafogo, na
praça Nelson Mandela. Muito seguro! Tem muita gente dormindo lá”10. O tom de
voz do marroquino era suave, leve e sorridente. Evidenciava-se uma rica
contradição entre o violento desamparo de sua experiência pregressa e o modo
como ela era narrada. Se analiso sua narrativa pela perspectiva de um contador
de estórias, percebo que Mohammed utiliza mecanismos caracteristicamente
épicos que permitem construir, junto ao seu espectador, modos analíticos e
críticos de reflexão do relato. Uma narração objetiva, calma e lúcida, emancipada
da subjetividade do personagem, com um narrador que não se envolve
emocionalmente com o conteúdo de sua fala. Em contraponto, temos a densidade
catártica do gênero dramático, da qual o narrador não está distanciado de sua
própria subjetividade e, portanto, é afetado pelos sentimentos estimulados pela
sua própria narração. Segundo o teórico do teatro Anatol Rosenfeld, no modo épico
de contação, o narrador:
não exprime o próprio estado de alma, mas narra estórias que
aconteceram a outrem, falará com certa serenidade e descreverá
objetivamente as circunstâncias objetivas. [...] Isso cria certa distância
entre o narrador e o mundo narrado. Mesmo quando o narrador usa o
pronome “eu” para narrar uma estória que aparentemente aconteceu
com ele mesmo, apresenta-se já afastado dos eventos contados, mercê
do pretérito. Isso lhe permite tomar uma atitude distanciada e objetiva,
contrária à do poeta lírico (Rosenfeld, 1985, p. 24-25).
Essa característica épica do discurso de Mohammed fica evidente quando ele
expõe os motivos que o fizeram sair do Marrocos. Trata-se de uma análise política
extensa sobre o seu próprio país, onde, de modo crítico e distanciado, ele
10 Trecho transcrito da ação performativa “Encontros com Corpos que Fugiram” 11 jun. 2019.
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apresenta o contexto que o cercava antes de sua partida. Em um discurso
engajado, o Marroquino aprofunda suas reflexões por um longo tempo de nossa
conversa. Compartilho uma parte de seus pensamentos:
Para qualquer política pública feita no Marrocos, você tem que falar com
o rei, o rei é quem decide. Os ministros servem para sustentar uma
aparência de democracia. Eles recebem [um] salário para fazer “show”,
fingir que eles fazem alguma coisa, mas, na verdade, todos os partidos
servem a rei. eu penso, cadê a riqueza do Marrocos? Não tem, ou
melhor, é do rei: o monopólio do açúcar, do leite, do fosfato, da
importação de carros, a segurança...11
Após a análise política, o marroquino me conta o motivo que o levou a
abandonar seu país de origem. É neste momento, um dos únicos da conversa, que
o tom de Mohammed se transforma. Ele fica sério, sua voz adquire tons graves e
seu olhar crava na linha do horizonte:
Eu estava cansado. Eu passei por uma depressão profunda. Eu não estava
satisfeito com o que estava acontecendo lá. Eu não estava saindo em
manifestações políticas porque [é] muito perigoso, mais perigoso do que
aqui. Eu também me senti com culpa, porque eu não saio [para as
manifestações]. Eu me senti como um traidor. [...] Eu fico com um
sentimento de “perdido”, de impotente. [...] aí eu falei: olha, eu tenho três
escolhas: ou eu continuava quieto com o sentimento de impotência
ou eu falava correndo o risco de vida ou eu iria embora. Escolhi a
terceira opção.12
A origem da sua decisão para sair do Marrocos é política, trata-se da
impossibilidade de manifestar-se publicamente e expor seus pensamentos: “No
Marrocos, não se criticava o rei e, por conta da ausência da liberdade de
pensamento, a tirania foi se transformando em algo natural”13. A partir do discurso
de Mohammed, percebo que a situação sociopolítica de seu país invadiu seu
território individual, fez adoecer sua mente e seu corpo trazendo graves
consequências psicofísicas como a depressão, a ansiedade e o pânico. O
marroquino me conta que isso não é um sintoma vivido apenas por ele, mas por
muitos jovens progressistas de sua região. Percebo que esse processo ocorre em
11 Trecho transcrito da ação performativa “Encontros com Corpos que Fugiram” 11 jun. 2019.
12 Trecho transcrito da ação performativa “Encontros com Corpos que Fugiram” 11 jun. 2019.
13 Trecho transcrito da ação performativa “Encontros com Corpos que Fugiram” 11 jun. 2019.
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outros lugares do mundo, inclusive no Brasil, com o fortalecimento da extrema-
direita nos últimos anos e o período nefasto em que fomos governados por um
presidente com evidentes traços autoritários.
Noutro momento de nossa conversa, relembramos o dia no qual nos
conhecemos na oficina ministrada pela Profa. Dra. Alessandra Vannucci. A cena
elaborada em aula – que se passava numa sala de alfândega – foi vivenciada pelo
marroquino. Ele conta sobre a sua saga para conseguir o visto de permanência no
país:
Na Polícia Federal, uma moça muito chata gritava na minha cara, ela não
me entendia e muito menos eu entendia ela. Acredite, no serviço de
atendimento a estrangeiros não se fala inglês, não se fala nenhuma
língua! Um dia, eu entreguei meus documentos para um policial que me
falou: “Mohammed, ‘blábláblá’!”; eu disse:
Excuse me, I dont speak
Portuguese
(Desculpe, eu não falo português). Ele disse:
if you want to
be here, you have to speak Portuguese
(Se você quer estar aqui, você
tem que falar português). Eles eram muito intolerantes. [...] Eles queriam
saber meu endereço verdadeiro, eu falei que não tinha:
I am homeless
(Eu sou um desabrigado). Eles me mandavam voltar [na] semana
seguinte, e [na] seguinte, e [na] seguinte... Acontece que era muito caro ir
até o Galeão, [aeroporto do Rio de Janeiro onde fica a delegacia
especializada em assuntos de migração] eu tinha que gastar 16 reais! Foi
numa dessas idas e voltas sem ter sucesso, que eu desisti de tentar14.
Mas fato é que para Mohammed permanecer no Brasil, ele teria que se
submeter aos absurdos por ele relatados na Polícia Federal. Através de um amigo
que conhecera no Brasil, o marroquino chegou até o “Caritas”, uma organização da
Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), cujo objetivo é o atendimento de
refugiados e solicitantes de refúgio. Foram os profissionais do “Caritas” que
auxiliaram juridicamente Mohammed ao longo do processo de aquisição do visto
de permanência no país. E foi graças ao visto que o marroquino legalizou sua
permanência no Brasil, pôde assinar contratos, alugar oficialmente uma moradia
e conquistar um emprego formal. Atualmente, Mohammed trabalha no “Abraço
Cultural”, ministrando aulas de francês para adolescentes e adultos. O marroquino
morou em Campo Grande no subúrbio da cidade e hoje mora em São
Cristóvão bairro mais próximo da região central. Mohammed brinca: “Daqui a
14 Trecho transcrito da ação performativa “Encontros com Corpos que Fugiram” 11 jun. 2019.
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pouco eu volto para Copacabana, que, dessa vez, com absoluta condição de
me sustentar e ir à praia dar as minhas nadadas diárias!”15. Eu emendo, emanando
boas vibrações: “E quando isso acontecer, meu amigo, me chame para irmos
juntos nadar no mar!”.
Ao perceber que a conversa havia se estendido por mais de uma hora, eu
convido Mohammed para iniciarmos a segunda parte da ação performativa e peço
que ele nos conduza em direção a um local de sua escolha dentro da cidade.
Levantamo-nos. Contudo, Mohammed permaneceu imóvel, travado. Ele olha para
o céu, pensa por um tempo e pede “pelo amor de Deus” uma dica de lugar para
ir. Eu afirmo que não poderia dar dica alguma; porém, observando o desespero do
marroquino, vejo-me obrigado, para manter a fluência do próprio encontro, em
fornecer outras informações sobre a escolha do local. Eu falo: “Pense num lugar
onde você se sinta no Marrocos”. E faço um pedido: “Não nos diga o destino!”. Após
pensar por alguns minutos, Mohammed uma gargalhada aleatória e começa a
caminhar.
Nós descemos pela Avenida Rio Branco, uma das principais ruas do Centro
carioca; Luiza e eu estamos eufóricos, ansiosos por saber onde o marroquino iria
nos levar. A sensação de ser guiado por um estrangeiro dentro da nossa própria
cidade subverteu o fluxo da ação performativa: se até então criávamos uma zona
de acolhimento para Mohammed; nesse momento, ele assumia a responsabilidade
de nos acolher e compartilhava assim a autoria da performance. Como coautor
responsável que foi, o marroquino me advertiu durante a nossa caminhada: “por
eu te conhecer Ian, sei que você não irá gostar muito do lugar que eu estou te
levando”. Eu apenas sorrio e falo: “eu? Quem sou eu!”. Estava satisfeito de ser
simplesmente conduzido.
Após uma caminhada de 15 minutos, chegamos ao local escolhido por
Mohammed: um Starbucks, uma filial de uma conhecida rede estadunidense
responsável por uma das maiores cadeias de cafeteria do mundo. É como o
McDonald’s dos cafés – suas lojas seguem o mesmo padrão assim como os seus
cardápios, que variam um pouco de acordo com a cultura de cada país. Ao olhar
15 Trecho transcrito da ação performativa “Encontros com Corpos que Fugiram” 11 jun. 2019.
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a cafeteria americana, fico com raiva e penso “ele pode estar debochando da
minha cara. O que uma loja norte-americana tem a ver com o Marrocos?”.
Mohammed frustra as minhas expectativas; porém, esse meu ímpeto revoltoso
inicial se desfaz quando entro na Starbucks: o som dos carros da avenida diminui,
a temperatura me faz ficar estranhamente à vontade e o cheiro do café é muito
sedutor. Mohammed vai correndo para o balcão, saca o seu cartão do bolso e pede
três cafés – é neste momento que, como responsável por aquele encontro eu me
sinto no dever de pagar os cafés e brigo carinhosamente com o marroquino: “para!
Eu que tenho que pagar para você!”. Ele me encara e pergunta: “por quê?!” Eu
permaneci em silêncio.
Ora, o autor da ação assumiu de fato a função de anfitrião, a meu ver, um
sintoma bem-sucedido da ação performativa. Ao nos sentarmos a uma das mesas
dentro da cafeteria, Mohammed diz: “lá em Marrocos, não perguntamos se as
pessoas querem ou não isso ou aquilo, apenas fazemos, entregamos as coisas e
pronto foi assim que eu fiz quando paguei os seus cafés”. O marroquino justifica
a escolha daquele local de destino ao afirmar que, no seu país, ele costumava
tomar muitos cafés, sentado e lendo livros. Desde que chegou ao Brasil,
Mohammed preserva esse hábito, indo semanalmente ao Starbucks: “é estranho
falar isso, mas, aqui, me sinto em paz,” ele nos confessa.
Em seguida, Mohammed abre a mochila e retira o objeto escolhido para o
encontro, era um Qraqueb um instrumento de metal de origem marroquina que
em muito se assemelha às castanholas. Porém, o Qraqueb é maior e mais pesado,
emitindo um forte som metálico (Figura 2). Contou-nos Mohammed que esse
instrumento foi desenvolvido por escravos. Quando acorrentados por seus
capatazes, perceberam a possibilidade de criar sons e fazer músicas a partir do
formato das correntes que atavam seus pés e suas mãos. Revela-se didática a
ressignificação da prisão em libertação: a corrente transforma-se em instrumento
de criação musical, emancipação psicofísica e libertação espiritual. Da mesma
forma, trata-se de uma metáfora que aproxima Mohammed do instrumento que
trouxe em sua bagagem para o Brasil. O marroquino transformou a sua
inadequação a determinado local (as correntes que o fadavam a ser aquilo que
não queria) em uma busca por reestruturar sua vida, reconstruindo os modos de
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relação que desejou e deseja para si.
Saímos do Starbucks. Despeço-me de Mohammed com um forte abraço.
Despeço-me também da fotógrafa Luiza Quinderé, agradecendo sua gentileza em
me auxiliar na ação. Mohammed segue na direção de volta ao “Museu do Amanhã”,
Luiza entra no metrô comigo e seguimos, cada um, em sentido contrário zona
norte, zona sul. A ação performativa chegava ao seu fim.
Figura 2 Registro da ação performativa “Encontro com Corpos que Fugiram.” Starbucks.
Centro da Cidade, Rio de Janeiro, RJ, jun. 2019. Foto: Luiza Quinderé
Considerações finais
A criação desta ação performativa esteve vinculada ao estabelecimento de
um campo fértil para o surgimento de afetos, acolhimentos e, sobretudo, para a
construção de uma amizade entre Mohammed e eu. Esse dado é fundamental
para desfazer qualquer mal-entendido sobre uma hipotética mimetização da
relação entre psicanalista e paciente, o que fugiria das minhas competências. Pelo
contrário, o encontro não visava interpretar ou analisar Mohammed; em nenhum
momento me coloquei numa posição distanciada, neutra ou mediadora, como
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faria o psicanalista que observa o outro sob um viés clínico. A questão desta
performance, e do meu papel enquanto artista propositor da ação, foi a partilha
de presenças, a reinvenção de vínculos e a delicada tarefa de sustentar uma
escuta mútua, crucial para o desenvolvimento de uma amizade.
Nesse sentido, é possível aproximar a experiência desta ação performativa ao
pensamento de Eleonora Fabião. Para a autora, a performance é um campo de
criação conjunta, uma ação que busca instaurar outras formas de estar com o
outro. Segundo ela, a prática dos programas performativos conduz o artista “à
realização de ações físicas cujo objetivo é a experiência do espaço-tempo no aqui-
agora dos encontros; cujo super-objetivo é o embate com a matéria-mundo”
(Fabião, 2013, p. 4).
A ação realizada ao lado de Mohammed compartilha dessa concepção de
performance. A invenção de modos coletivos de compartilhar e coabitar o tempo-
espaço presente é, sob o ponto de vista sociopolítico, uma tarefa fundamental
para buscar outras formas de acolhimento e escuta de pessoas em situação de
refúgio e, sob o ponto de vista artístico, um exercício de reinvenção dos modos
para fazer isso. Assim, dimensões sociais, políticas e artísticas se retroalimentam,
adquirindo a capacidade de inspirar formas inovadoras para as políticas públicas.
Caso existisse uma oferta institucionalizada de ações artísticas voltadas ao
acolhimento de pessoas refugiadas, seria possível ampliar os espaços de escuta e
partilha, fomentar reflexões sobre os processos de adaptação desses indivíduos
ao contexto urbano e, ao mesmo tempo, conferir maior visibilidade às suas
experiências.
Por fim, compreendi que a construção de espaços de encontro, pautados no
acolhimento e na escuta, é um processo sutil, no qual o desejo de estar junto deve
ser preservado acima de tudo. Em contraste com os modos autoritários de ação
– onde forças se impõem sem escuta e sem tato – a performance cria e expande
espaços para a aceitação da alteridade, impulsiona e é transformada por ela, move
corpos e aprofunda os elos. A performance como um veículo para a reinvenção
de mundos.
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Referências
BOAL, Augusto.
Teatro do Oprimido e outras Poéticas
. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011.
DELEUZE, Gilles.
A Ilha Deserta e Outros Textos
. São Paulo: Iluminuras, 2004.
DELEUZE, Gilles.
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Recebido em: 18/02/2025
Aprovado em: 20/08/2025
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
PPGAC
Centro de Artes, Design e ModaCEART
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Revista de Estudos em Artes Cênicas
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