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Até semente pende:
processos investigativos da cena épica
Roberta Cristina Ninin
Marcela Goellner
Para citar este artigo:
NININ, Roberta Cristina; GOELLNER, Marcela. Até semente
pende: processos investigativos da cena épica. Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 54,
abr. 2025.
DOI: 10.5965/1414573101542025e105
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Até semente pende: processos investigativos da cena épica
Roberta Cristina Ninin | Marcela Goellner
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-19, abr. 2025
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Até semente pende: processos investigativos da cena épica1
Roberta Cristina Ninin2
Marcela Goellner 3
Resumo
A Quadrilha de Piaba, grupo composto por discentes e docente da matéria Projeto de
Investigação da Cena Épica, do curso de Licenciatura em Teatro da Unespar, compartilha
suas investigações poéticas acerca da luta de classes no contexto da precarização
incessante do trabalho através da peça “Entrega Tudo!”, partindo dos estudos de Brecht
sobre o teatro épico e a partir de sua peça “A exceção e a regra”. O objetivo dessa escrita
é a partilha e a reflexão sobre a experiência de criação dessa montagem, que engloba o
desenvolvimento do processo artístico e pedagógico coletivo, em diálogo com autorias
de Abreu (2000), Carleto (2024) e Mate (2021).
Palavras-chave: Teatro de grupo. Teatro épico. Teatro brasileiro. Universidade. Formação
de professores de teatro.
Even seeds hang: investigate processes of the epic scene
Abstract
The Quadrilha de Piaba troupe, a group composed of students and a professor from
the Investigation of Epic Scene Project course in the Theater Licentiate program at
Unespar, shares its poetic investigations on class struggle within the context of the
relentless precarization of labor through the play "Give It All!" (Entrega Tudo!). The work
draws from Brecht’s studies on epic theater and his play The Exception and the Rule (A
exceção e a regra). The aim of this text is to share and reflect on the experience of
creating this production, which encompasses the development of a collective artistic
and pedagogical process, in dialogue with the works of Abreu (2000), Carleto (2024), and
Mate (2021).
Keywords: Group theatre. Epic theatre. Brazilian theatre. University. Teacher training in
theatre.
Incluso la semilla pende: procesos investigativos de la escena épica
Resumen
La Quadrilha de Piaba, un grupo conformado por estudiantes y docentes de la
asignatura Proyecto de Investigación de la Escena Épica del curso de Licenciatura en
Teatro de la Unespar, comparte sus indagaciones poéticas sobre la lucha de clases en
el contexto de la precarización incesante del trabajo a través de la obra "¡Entrega
Todo!" (Entrega Tudo!). El trabajo parte de los estudios de Brecht sobre el teatro épico y
de su obra La excepción y la regla (A excepção e a regra). El objetivo de este texto es
compartir y reflexionar sobre la experiencia de creación de este montaje, que abarca el
desarrollo de un proceso artístico y pedagógico colectivo, en diálogo con los trabajos de
Abreu (2000), Carleto (2024) y Mate (2021).
Palabras clave: Teatro grupal. Teatro épico. Teatro brasileño. Universidad. Formación de
profesores de teatro.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Marina Chiara Legroski. Doutora em Letras pela
Universidade Federal do Paraná (UFPR). Profa. UFPR.
2 Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em Artes pela Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Graduação em Licenciatura em Artes Cênicas pela UNESP. Profa. da Licenciatura em
Teatro da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR). roberta.ninin@unespar.edu.br
https://lattes.cnpq.br/1920667853739253 https://orcid.org/0000-0002-1402-2409
3 Mestranda em Artes Cênicas pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Especialização em
Metodologia no Ensino de Artes pelo Instituto Brasileiro de Formação (IBF). Graduação Licenciatura em Teatro pela
Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR). Graduação em Comunicação Social pela Universidade de Tuiuti/Paraná (UTP).
mar_goellner@hotmail.com http://lattes.cnpq.br/1112682926915067 https://orcid.org/0009-0006-5073-3669
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Entrega Tudo!
Recebe o pedido e se dirige até o local de retirada, pega o pedido, coloca na bag
junto
aos outros pedidos. Anda 10, 15, 20 min. Entrega o pedido. Recebe outro
pedido... E, depois de muito tempo, chega em casa, na sua propriedade
privada. Quem é você? Na casa mais conectada do Brasil se reúnem
entregadores de todos os tipos e de todos os produtos. Querem conversar com
você, caro espectador, sobre o que estamos engolindo: será que a vida nos
engoliu ou nós que a engolimos?4
Introdução
O ano é 2024. Estamos no Brasil, na capital paranaense, Curitiba, no curso de
Licenciatura em Teatro da Universidade Estadual do Paraná, junto a docentes e
discentes do segundo ano, em seu primeiro semestre letivo, durante uma matéria
denominada Projeto de Investigação da Cena Épica5. Caminhamos para o término
do primeiro quarto do século XXI e vivemos “Tristes tempos estes, meus caros,
quando a toda a hora, nós somos obrigados a defender o óbvio”, como já dizia, na
primeira metade do século passado, o dramaturgo, encenador e poeta alemão
Bertold Brecht (1898-1956). E por que ainda precisamos defender o óbvio? Que
óbvio é esse?
Sob a égide do sistema capitalista, mais de quinhentos anos, seguimos
vivendo na luta de classes entre os detentores dos meios de produção, a
burguesia, e os vendedores da sua força de trabalho, trabalhadoras e
trabalhadores e defendendo os mínimos direitos para a manutenção de uma
vida digna à todas as pessoas.
Com base nos estudos de Brecht sobre o teatro épico e, em especial, a partir
de sua peça “A exceção e a regra”, colaborativamente, a Quadrilha de Piaba
formada por um grupo de discentes e docente da matéria decidiram
4 Sinopse da peça Entrega Tudo!, cuja ficha técnica é composta por: dramaturgia do grupo Quadrilha de Piaba
coordenada por Roberta Ninin; direção de Roberta Ninin; assistência de direção de Marcela Goellner;
atuantes Ary Monteiro, Luh Silva, Logan Godinho, Kai Novais, IsKips, Maria Elis, Lea Santos, Romah
Nascimento, Feppo; iluminação de Léo Menin/Theotheo; sonoplastia de Marcela Goellner /Theo
Lopes/Theotheo.
5 Essa matéria obrigatória do curso de Licenciatura em Teatro, composta por 85 h, atribuídas, segundo o
Projeto Pedagógico, em 10h teóricas e 75 horas práticas, foi coordenada durante os meses de março a agosto
de 2024, no Campus Curitiba II da UNESPAR, por três docentes: Alvaro Bittencourt, Natacha Dias e Roberta
Ninin.
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compartilhar suas investigações poéticas acerca da luta de classes no contexto da
precarização incessante do trabalho, também artístico, na contemporaneidade,
através da peça “Entrega Tudo!”. O objetivo dessa escrita é partilhar a experiência
da criação dessa montagem, além de, neste processo, abordar, reflexivamente, o
desenvolvimento do seu processo artístico e pedagógico coletivo, bem como suas
etapas constituintes.
De maneira geral, o que nos guiou nesta experiência na universidade, visando
a formação de licenciandas e licenciandos em teatro, foi examinar, coletivamente,
a precarização das relações de trabalho presentes nessa sociedade capitalista,
além das ferramentas da ideologia dominante. Nossa intenção foi revelar os
mecanismos, intrínseca e socialmente contraditórios, por meio de cenas críticas e
divertidas. Na criação dos elementos cênicos, buscamos trabalhar, de forma
consciente e intencional, a relação com o público e a construção de diversas
camadas dramatúrgicas comentadas, para produzir um convite à atitude crítica
perante os temas e relações apresentadas. Motivar esses questionamentos de
maneira espirituosa e burlesca foi um norte durante toda a construção pedagógica,
cênica e reflexiva do processo.
O processo foi construído durante os meses de março a agosto de 2024, a
partir de encontros semanais, que duravam aproximadamente cinco horas, nas
noites de sextas-feiras. A peça foi interpretada por nove estudantes do curso de
Licenciatura em Teatro. Em cena, eles apareciam carregando sua bag, uma
mochila de delivery nas costas. Confeccionadas a partir de papelão, cada uma tem
uma cor e foi customizada singularmente por cada atuante, com adesivos,
imagens e escritas. É dentro delas que os artistas trazem os objetos cênicos que
serão usados durante toda a apresentação.
No espaço cênico, a fita crepe desenha a “planta” de uma casa, com 5,76 m
nas laterais por 4,5 m na frente e atrás (originalmente). Na parte de dentro, os
cômodos são delimitados, interligados por um corredor, e cada um tem diferentes
tamanhos e formas. Alguns são ocupados por um único atuante e outros são
compartilhados por uma dupla.
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Figura 1 - Cena Entrega Tudo!. Foto: Marcela Goellner (Curitiba, 2024).
A peça estreou no mês de agosto e foi a conclusão da matéria obrigatória
ofertada na grade curricular do curso, mas se expandiu para além dos muros da
universidade. Após a primeira sessão, recebemos convites para novas
apresentações, o que motivou o grupo a produzir também novos locais de
circulação. Nos dias 5 e 6 de setembro, por exemplo, compusemos a programação
da Mostra Emergente, organizada por estudantes e egressos da Unespar, no Teatro
Novelas Curitibanas um dos espaços públicos culturais de destaque para a
circulação teatral na cidade. No mês de outubro, apresentamos no Festival de
Pinhais/PR, onde o grupo ganhou as premiações de melhor dramaturgia e melhor
elenco, além de indicações em outras categorias. Ainda, aceitamos o convite de
levar a peça para a cidade de Matinhos, na UFPR Litoral, durante a Mostra de Arte
I.ntervalo 2024, no mês de novembro. E, por fim, atualmente, estamos trabalhando
com um novo desafio: adaptar a encenação para a rua, pois fomos contemplados
na programação do Fringe6, na 33ª edição do Festival de Teatro de Curitiba, em
2025.
6 Fringe é uma mostra teatral aberta que ocorre durante o Festival de Curitiba/PR. Essa mostra não passa
pela curadoria do evento, contemplando, assim, desde companhias profissionais à estudantes de teatro,
circo, música, dança e perfomances de várias partes do Brasil, por meio de inscrições voluntárias. Mais
informações disponíveis em: https://festivaldecuritiba.com.br/evento/fringe.
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O início: a concepção do épico para a turma
Pensamos o teatro épico na perspectiva narrativa e brechtiana, apoiados nas
reflexões teóricas do dramaturgo brasileiro Luís Alberto de Abreu (2000) e em suas
dramaturgias comentadas no livro Projeto Comédia Popular Brasileira da Fraternal
Companhia de Arte e Malas Artes (Ninin, 2010), bem como nos expedientes épicos
presentes em obras teatrais apresentadas na 32ª edição Festival de Curitiba (ano
em que o projeto ocorria), acompanhados pelo conjunto de docentes e discentes
da turma. As peças e os grupos teatrais mais comentados pelos estudantes foram:
"Cabaré Coragem", do grupo Galpão (MG)7, e "O que nos mantém vivos" do Teatro
Promíscuo (SP)8.
A partir dessas referências iniciais, sugerimos à turma a apresentação do
cabaré “Mostre o seu épico”, onde as licenciandas e os licenciandos em Teatro
puderam mostrar as suas habilidades artísticas, com o objetivo de caminharmos
numa compreensão mais abrangente e popular de procedimentos do elemento
épico. Foram realizados jogos teatrais com esquetes circenses (Bolognesi, 2003) e
de Karl Valentin (1882-1948) e também leituras de trechos de obras das autoras
brasileiras Conceição Evaristo (1946) e Carolina Maria de Jesus (1914-1977).
A partir de um convite feito a uma estudante egressa da Unespar, mestranda
em Artes Cênicas no IA/Unesp, Marcela Goellner, ela se dispôs a conversar com a
turma sobre sua pesquisa, que permeia trajetórias do épico e do cômico no teatro
brasileiro contemporâneo. Assim, entramos em contato com obras teatrais da
Trupe Lona Preta (SP) e a imprescindível discussão sobre a comicidade presente
no teatro político. Após a divisão dos estudantes da turma em grupos sob a
orientação de suas respectivas orientadoras, o convite à mestranda foi estendido
para que ela acompanhasse o processo descrito neste artigo.
No escopo desta reflexão, Maria Silvia Betti, professora pesquisadora em
Letras e Artes Cênicas na USP, ao discutir sobre a atualidade do método de Brecht
7 Mais informações disponíveis em: https://www.grupogalpao.com.br/agenda/cabare-coragem-festival-
curitiba-
8 Mais informações disponíveis em:https://festivaldecuritiba.com.br/noticias/renato-borghi-e-uma-ausencia-
incontornavel/
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para o teatro, nos refresca a memória acerca do que o autor trazia em cena com
sua obra: “Essa é a essência brechtiana, segundo a qual a ciência e a aquisição do
conhecimento funcionam como formas fundamentais de entretenimento e prazer
e não como recusa deles, conforme se afirma com frequência”. Fundamentando-
se “na atividade transformadora e nas práxis” (Betti, 2015, p.200) das pessoas
envolvidas no processo, defendemos um método dialético para o teatro. Método,
este, que pode ser potencializado com a comicidade, uma das diretrizes do nosso
percurso neste trabalho na Unespar.
E essa escolha pedagógica de criação e encontro com o público despontou
desde as conversas coletivas, ainda com a turma toda, quando alguns estudantes
demonstraram a vontade de construir trabalhos cênicos que fossem críticos
socialmente. No entanto, ao mesmo tempo, expressaram relutância a uma forma
“séria” e panfletária acoplada ao teatro e a criticidade, tendo em vista suas
reflexões e experiências a partir de montagens realizadas anteriormente. Nesse
contexto, evidenciou-se a ideia preconceituosa e de senso comum de que para se
tratar das contradições e de questões políticas seria necessário construir uma
linguagem densa e pesada, que buscasse, inclusive, causar um certo desconforto
do público. Trazendo em debate essas questões, foi possível iniciarmos uma
abertura da turma aos referenciais trabalhos e possibilidades de tratamento
artístico a temas sérios e densos por vezes desconfortáveis , de maneira
divertida e prazerosa.
Aliás, vale salientar que associar o teatro político à desqualificação do cômico,
da sátira, da paródia, do Teatro Revista, ou seja, à desqualificação de
manifestações teatrais populares, é algo perceptível na historiografia do Teatro
Brasileiro. Essa associação pode ser, também, evidenciada pelas raras aparições
das formas populares de cultura nas grades curriculares dos cursos de Teatro nas
Universidades brasileiras. Alexandre Mate, professor de Teatro na UNESP e
pesquisador incansável do teatro no Brasil, nos faz refletir sobre essa ausência:
os raros estudos ligados à comicidade popular e ao teatro de rua em uma
matriz brasileira e popular, sobretudo nas instituições universitárias, tanto
a falta de acesso como o silêncio, refletem o preconceito classista e
refratam argumentos retóricos da suposta inferioridade estética das
formas populares. Por meio de tais estudos poder-se-ia também, acessar
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aquilo que pudesse chamar/ tratar de brasileiro, a partir das raízes
populares (que não são subservientes a patrões e que, normalmente, não
se envergonham de serem periféricas) e em perspectiva crítica (Mate,
2021, p. 51).
Como mencionado, no intuito de investigarmos o teatro épico brechtiano
na perspectiva da cultura popular e da comicidade brasileira, buscamos algumas
influências estética que beberam das raízes das formas populares de cultura,
especialmente na relação direta com o público e de estruturação dramatúrgica
aberta com lacunas, ou seja, sujeita, necessariamente, às trocas entre ator e
espectador. A partir dessas bases, experienciamos, na prática, o poder agregador
e ativador de reflexão crítica do riso.
Corpo coletivo do Teatro de Grupo: um processo colaborativo
A partir das problematizações norteadoras trazidas intencionalmente pelas
docentes, a divisão em grupos de trabalho foi organizada seguindo a proposta:
Qual seria o ponto de partida da criação do teatro épico pelo grupo? Música gesto,
Narrativa gesto ou Corpo gesto? Sabendo que uma proposta está contida na outra,
apenas didaticamente a turma foi separada para que o encaminhamento das
investigações épicas fluísse mais concentradamente.
Com isso, para este recorte de escrita partilhada, faremos referência aos
proponentes das cenas épicas do grupo Corpo gesto, cuja docente orientadora
levantou uma primeira questão: “o que você tem engolido e tem lhe feito mal?”
No levantamento de temas pelo grupo em formação, buscou-se explorar um
imaginário comum, cujos temas-perguntas permearam o processo: qual é o meu
corpo, individual e social? Como amar o meu corpo? Não há tempo para chorar e
se machucar. Onde foi parar o que eu engoli? O que fica armazenado, em excesso?
Não vou falar sobre ser trans (Isso não é uma afirmação). Afetos e desafetos dentro
e fora da nossa estrutura familiar. Fazer amar e fazer odiar: espetacularização da
vida humana. A vida me engolindo e eu engolindo a vida: medo de ser quem se é.
Além de temas, nos ensaios semanais, compostos por improvisações de
cenas a partir destes e perguntas disparadoras das orientadoras do processo e
autoras deste relato, outros materiais eram solicitados a/os pesquisadoras/es:
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músicas, entrevistas, charges. A letra da música Tijolo, do Álbum Posada e o Clã
(2017), influenciou sobremaneira o grupo, dando o seu nome Quadrilha de Piaba
, trazendo profundas provocações em torno do que já estava na ordem do dia:
Até no amor a gente se agride
Parece arte/revolução
Mas é tudo conchavo do Zé da imprensa com a empresa do
João
Briga de peixe grande
Quadrilha de piaba
Se rico soubesse groovar
O pobre nem batucava.9
Interessante ressaltar, em âmbito pedagógico e metodológico, que todas as
cenas eram improvisadas e, em seguida, registradas em um local compartilhado
(Google drive) a que todas as pessoas do grupo tinham acesso, para um exercício
de fazer-anotar-refazer. Neste momento do processo, ainda estávamos em busca
de um tema comum que unisse os/as integrantes do grupo para a tessitura da
dramaturgia. Os aquecimentos corporais/vocais, os jogos teatrais, as proposições
criativas, práticas do corpo cênico e de canções trabalhadas durante os encontros
compuseram um grande arsenal de materiais levantados neste início de processo.
Além disso, tinham o propósito de harmonizar as compreensões de todas as
pessoas e, principalmente, de construir um corpo coletivo.
Essa coesão coletiva também foi sendo construída por meio da forma
organizativa do trabalho colaborativo e a formação do grupo e de seu modo de
produção, onde debatíamos coletivamente todos os assuntos concernentes ao
processo criativo, encaminhando tarefas específicas e, posteriormente, nos
dividindo em comissões para as criações cênicas. Sobre a definição do trabalho
colaborativo, Simone Carleto (2024), artista pedagoga e professora colaboradora
do curso de Licenciatura em Teatro e da pós-graduação em Artes Cênicas no
IA/Unesp, contribui com a nossa discussão, aqui, ao afirmar que essas “formas de
produção mais horizontalizadas” preveem “definição das funções dos
9 Composição de Carlos Posada: Tijolo tu já lê/ entende/ Até semente pende/ Até sem dente morde/ Até
no amor a gente se agride/ Parece arte/revolução/ Mas é tudo conchavo do Zé da imprensa com a empresa
do João/ Briga de peixe grande/ Quadrilha de piaba/ Se rico soubesse groovar/ O pobre nem batucava/ E
uns vão simulando tristeza/ Outros fazendo piada/ Confundindo a pesca do povo/ Poluindo as águas/ Com
muita lábia/ Com muitos ismos/ Falta pão/ Falta livro/ Falta corpo/ Falta espírito/ Mas tijolo tu lê/
entende/ Até semente pende/ Até sem dente morde/ Até no amor a gente se agride.
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participantes, em que há uma responsabilidade na autoria do texto, da cenografia,
figurino etc., daí provavelmente a presença de camadas dramatúrgicas dos
espetáculos”:
O processo colaborativo, como prática de certo modo recente nos
processos de criação artística, caracteriza-se no principal elemento do
modo de produção do teatro de grupo, consolidou-se a partir da criação
de inúmeras obras em todo o país, a partir do teatro coletivo amador. Se,
por um lado, inúmeros grupos e artistas buscavam o teatro profissional,
por outro, o teatro amador organizava-se, em diversos momentos, a partir
de movimentos sociais, comunidades e associações diversas (Carleto,
2024, p. 78, grifo nosso).
A autora, ao caracterizar as poéticas do sujeito histórico teatro de grupo,
aponta as seguintes características que também podemos associar ao teatro épico
em investigação cênica: “uma poética que privilegia assuntos de relevância social,
assumidamente políticos e que pressupõe a participação crítica do público como
parceiro da realização do fenômeno teatral” (Carleto, 2024). Portanto, o sujeito
histórico teatro de grupo corresponde a um conjunto de práticas inseridas em um
determinado contexto sócio-econômico-cultural. Ele é caracterizado por
pressupostos, procedimentos e expedientes que qualificam uma práxis, ou seja,
uma forma de operar a criação teatral. Alexandre Mate (em “Algumas
considerações sobre o sujeito histórico teatro de grupo”, não publicado, p.02, 2024)
ainda complementa essa reflexão acerca do teatro de grupo ao registrar seus
aspectos determinantes “de ser obra pública, criada por meio de expedientes
colaborativos (épicos e teatralistas)”, alinhadas ao expediente das formas
populares de cultura e a visão do experimento “estético-histórico-social”
manifestado na condição de troca com o público.
O fio da meada: a peça de aprendizagem brechtiana
A Exceção e a Regra10, peça de aprendizagem de Bertolt Brecht, foi base para
a construção dramatúrgica de Entrega Tudo!, da Quadrilha de Piaba. Esta peça
denuncia a divisão de classes e a inversão da lógica entre exceção e regra na
sociedade capitalista. Trata do julgamento e absolvição, pelo judiciário burguês, de
10 Die Ausnahme und die Regel Lehrstück, Escrita em 1929/30. Estreia em: 1.5.1938 em Girat Chaim, Palestina
(em hebraico) 30.9.1956 em Düsseldorf (em alemão). Trad. Geir Campos.
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um comerciante que mata o seu carregador durante uma viagem de negócios pelo
deserto. A peça expõe a relação de luta de classes entre os interesses do
comerciante, que oprime, e o do carregador, o oprimido, evidenciando criticamente
a inversão lógica do uso da regra e da exceção, seguindo os interesses dos
opressores, que faz, da exceção, a regra.
Composta por 17 cenas11, a peça resultado da matéria investigativa na
universidade foi trabalhada por 9 atuantes12 em cena, que brincaram e se
apropriaram das discussões provocadas por essa peça de aprendizagem, também
chamada de didática, criada por Brecht (no período de 1920) como um jogo de
aprendizagem revelando que “o jogo constitui valioso instrumento para a aquisição
do conhecimento”. Como explica a estudiosa na área Ingrid Koudela (1991, p. 100):
À medida que o termo “didático”, na acepção tradicional, implica “doar”
conteúdos através de uma relação autoritária entre aquele que “detém”
o conhecimento e aquele que é “ignorante”, a peça didática de Brecht
propõe o exercício de uma “didática não depositária”, pela qual o aluno
aprende por si próprio e verifica até onde caminhou com o conteúdo, em
lugar de se ver confrontado de início com uma determinação do objetivo
da aprendizagem.
Com esse modelo de ação, foi possível evidenciarmos a necessidade de
trazer à cena as classes sociais; pensamentos e defesas diferentes; discussões
sobre fake news, sobre a manipulação das informações (por qual dogma? Lucro?
Interesse de quem?); importância de revelar o que está por trás da ideologia
dominante, o que está escamoteado, o que nos faz ver como natural, quem
queremos criticar e trazer de forma crítica. A opção foi ironizar o discurso do
opressor.
Sendo assim, compartilhamos algumas cenas, resultantes de processo
artístico e pedagógico, colocando em prova a relação conflitante entre as classes
sociais: do opressor/patrão (ora personagens apresentadores e entrevistadores) e
do oprimido (personagens entregadores) - todas personagens criados e mostrados
11 Cena 1 - Coreografia bag; Cena 2 - Abertura; Cena 3 - Entrada na Casa; Cena 4 - Briga na cozinha; Cena 5 -
Comercial; Cena 6 - Objetos; Cena 7 - Fast Food; Cena 8 - Comercial bag de ouro; Cena 9 - Entrevista de
Emprego; Cena 10 - Comercial Margarina; Cena 11 - Conversas no Bar; Cena 12 - Break News; Cena 13 - Patrão;
Cena 14 - Engolir; Cena 16 - Comercial Patrão Esperança.
12 Atuante 1 - Ary; Atuante 2 - Luh; Atuante 3 - Logan; Atuante 4 - Kai; Atuante 5 - Isaac; Atuante 6 - Maria;
Atuante 7 - Lea; Atuante 8 - Roma; Atuante 9 - Feppo.
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pelos atuantes em cenas independentes, dramaturgicamente.
Corpo gesto
A partir da ementa dessa matéria introdução e desenvolvimento de leitura
e de análise do texto teatral épico e seus elementos, promovendo a relação do
texto com a encenação de base épica, culminando na elaboração de exercícios
cênicos a serem apresentados publicamente, em grupo, e orientados por um/a
docente focamos no corpo cênico e político dos/as futuras professoras de
teatro desse país. Qual a narrativa do corpo dessa personagem?
Cena 1: Coreografia Bag. Uma apresentação do coro de atuantes: Atuantes,
com suas bags aparentemente pesadas nas costas, adentram o espaço ocupado
pelo público, em ritmo de “marcha soldado zumbi”, realizando uma coreografia,
ao seguir, em ressonância, a música Escravos de , cantada com a boca fechada.
Cena 7: Fast Food. Sem encadeamento lógico, como em um pesadelo,
atuantes/entregadores acordam, levantam e vestem as suas bags, ao som de
notificação do Ifood. Após uma coreografia que perpassa o balé clássico ao funk
brasileiro, atuantes/entregadores, em círculo, de costas para o público dizem:
Todes: Aqui é fast food, arte em meia hora! Faça já o seu pedido!
Atuantes caminham até ao público, cada um buscando o seu “cliente”,
anotando o pedido nas mãos. Voltando ao círculo, de costas para o
público, murmuram os pedidos solicitados à eles. Quando em conjunto,
ainda de costas ao público, dizem:
Todes: Pedido em andamento! x3
Alongando-se, atuantes começam a fazer exercício vocal, com a
respiração um pouco mais pesada, como se estivessem se preparando
para algo ali naquele momento, repetindo algumas vezes: “Si. Fu. Chi. Pa.”
Narrativa gesto
Cena 2: Abertura. Baseado diretamente no primeiro texto apresentado pelo
coro inicial de Atores13 em A Exceção e a Regra, atuantes espalhados entre o
13 Agora vamos contar/ A história de uma viagem/ Feita por dois explorados e por um explorador/ Vejam bem
o procedimento desta gente:/ Estranhável, conquanto não pareça estranho/ Difícil de explicar, embora tão
comum/ Difícil de entender, embora seja a regra./ Até o nimo gesto, simples na aparência, Olhem
desconfiados! Perguntem/ Se é necessário, a começar do mais comum!/ E, por favor, não achem natural/ O
que acontece e torna a acontecer/ Não se deve dizer que nada é natural! Numa época de confusão e sangue,/
Desordem ordenada, arbítrio de propósito,/ Humanidade desumanizada/ Para que imutável não se
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público, e também em coro, recitam o texto, abaixo, como se contassem uma
história de terror:
Agora se início/ A história de uma casa/ Construída por explorados,
com tijolos,/ Blocos de pedra nos ombros, ossadas, escombros,
estrondos./ Destruída por exploradores, que espremem e esgotam/ A
força que te põe de pé./ São séculos ciclos na insana espiral e o peso nas
costas,/ Permanece igual!/ E o que sobra para nós? Que damos corda
nessa estúpida engrenagem. / O que há de errado? O que será? O que é?
/ Aniquilando o que é humano, o que é coragem. / algo de errado e
você sabe o que é!?
Cena 3: Entrada na casa. Momento em que os atuantes se posicionam do
lado de fora da delimitação em fita crepe da casa, no chão do teatro (que fora
desenhada como planta baixa, conforme dito anteriormente). Em pé, olham
fixamente o público, apresentando seus solilóquios reverberados desde suas
entranhas, como se estivessem em um confessionário de um programa de
televisão pago por assinantes para acompanharem suas vidas, no estilo "pague
para ver" (em inglês: pay per view.), como, por exemplo, o programa denominado
Big Brother Brasil transmitido pela rede globo. Qual seria a realidade capturada
pelas câmeras/ espectadores? Dá-se início a mais um reality show da vida privada
e oprimida dos trabalhadores. Após os solilóquios, os atuantes caminham,
abatidos, em direção à porta central e de entrada da casa, até o seu
cômodo/morada.
Atuante 1 (Ary): A vida tem me engolindo TODOS OS DIAS! (ergue a mão
como se segurasse algo e come, saboreia, e chupa os dedos como se
estivesse lambendo as migalhas que restam nos dedos. Mastiga mastiga
mastiga, sente um gosto meio amargo e engole). A vida me mastiga bem
devagar...e, no processo, vai quebrando todos. Os meus. Ossos. Ela masca
o meu cérebro como se fosse um chiclete, assim (nessa hora pega um
chiclete, o masca, tira da boca e oferece ao público). Isso cansa (entra na
casa e escolhe um cômodo).
O atuante 5, como narrador, interfere na sequência de solilóquios, chamando
a atenção do público para o termo 'propriedade privada' um dos pilares do
sistema econômico capitalista14 e a relação com o ambiente de repouso dos
considere/ Nada.
14 Propriedade privada segundo Friedrich Engels e Karl Marx: "[…] A propriedade privada da burguesia moderna
é a expressão final e mais completa do sistema de produção e de apropriação de produtos, que é baseado
no antagonismo de classes, na exploração de um homem por outro. Neste sentido, a teoria dos comunistas
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trabalhadores desprovidos de espaço e liberdade.
Atuante 5 (Kip): […] Essa é minha casa e essa é a porta (gesticula para a
plateia indicando onde está a porta) [...] Essa é a minha propriedade
privada, (olha para trás, os outros atuantes murmuram revoltados).
bom, desculpa, desculpa, “NOSSA” propriedade privada. Eu sei, ela não
é muito grande, mas eu conquistei com muito mérito (olha para trás
novamente, mesmo gesto) Nós a conquistamos, com muito mérito e
algumas dívidas (sussurra a última palavra). Mas enfim, eu gostaria de
convidar vocês para conhecê-la; os espaços são pequenos, mas eu
espero que vocês sintam os momentos que nós vivemos nela. (se vira
para dentro da casa e se dirige ao seu cômodo).
Cena 5: Comercial Abertura. Soa três vezes o som de notificação do Ifood.
Atuantes congelam, levantam, pegam um lencinho e o amarram no pescoço.
Agora, cada atuante é uma assistente de palco do programa de auditório, dirigido
por dois apresentadores, para anunciar o grande prêmio cobiçado pelos
trabalhadores entregadores: a big bag power show de ouro! Entra a vinheta do
programa, dançada mecanicamente pelas assistentes, cujos sorrisos forçados de
canto de boca buscam provocar um estranhamento no público.
Atuante 9 (Feppo): Começamos agora o nosso programa…
Atuantes 8 e 9: Entrega Tudo!
Atuante 8 (Romah): Interrompemos esses momentos melancólicos aqui
apresentados para levar a vocês, que estão aí, entretenimento de
qualidade. Afinal quem quer depois de um dia inteiro, sentar aqui e ainda
ter que ouvir as mazelas da vida humana?
Atuante 9 (Feppo): Afinal pra que chorar aqui, se podemos lacrimejar no
banheiro do trabalho, não é mesmo?
Cena 6: Objetos. O que os objetos nos contam? Ao contrário das mudanças
de luz repentinas e de muitos holofotes nos Atuantes/Apresentadores, a vez é dos
Atuantes/Narradores, que em primeira pessoa, compartilham suas intimidades
corriqueiras entre eles e com o público.
Atuante 8 (Romah): Essa é a minha casa. Logo na entrada temos a
varanda, espaço curto. Aqui, nessa parede, temos o tanque. Aqui, nessa
porta, temos a cozinha, pia fica logo aqui, janela logo em cima, geladeira
nesta quina, fogão nessa parede. Seguindo, temos o banheiro. Vamos
entrar no quarto, podemos ver minha cama, uma janela logo em cima.
Atuante 9 (Feppo): No meu quarto, tinha uma cama de casal e dois
roupeiros. Nós dormíamos em 4 pessoas nessa cama, eu e mais três
irmãos, e os roupeiros eram divididos entre os meninos e as meninas.
pode ser resumida em uma sentença: abolição da propriedade privada” (2006, p.32-33).
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Atuante 2 (Luh): Na minha sala não tinha nem sofá nem mesa, no verão
para aproveitar o chão gelado, a gente estendia umas toalhas junto de
várias almofadas e comia ali mesmo, como se todo dia fosse dia de
piquenique.
Música gesto: criação da Sonoplastia
Resultado do trabalho colaborativo, a sonoplastia da peça “Entrega Tudo!” é
fruto das propostas e experimentações coletivas, que nasceram na sala de ensaio
junto à Quadrilha de Piaba, como respostas a problemas apresentados pela
encenação. Durante o processo, tínhamos acesso a uma caixa de som onde
testamos possibilidades sonoras junto às cenas.
Na medida que o amadurecimento da dramaturgia e das cenas acontecia, na
práxis, elaboramos uma lista com as músicas referenciadas nessa tessitura em
processo e, conforme nos certificamos do imbricamento destas durante as
improvisações, as músicas eram gravadas enquanto intervenções sonoras; ora
complementando, ora comentando as cenas. Há algumas resoluções cênicas, por
exemplo: utilizamos voz off, cumprindo o papel de personagem onipresente e
onipotente deus e/ou patrão e ligação de uma cena na outra, como na própria
finalização da peça. Com isso, foram criadas músicas parodiadas, com a intenção
de estabelecer um efeito de reconhecimento imediato, crítico e cômico do público
em relação à versão original e ao conteúdo parodiado.
Este procedimento é possível de ser analisado na cena Patrão, onde os
atuantes cantam uma paródia de uma canção do personagem Gaston, do filme “A
bela e a Fera”, produzido pela Disney, divulgado amplamente pelas mídias
hegemônicas. A paródia trata-se de uma recriação, geralmente, cômica ou
imitação burlesca de uma obra [...] com sentido crítico inusitado ou explícito",
transposição de um texto tomado como modelo conhecido submetido a
um formato crítico (Guinsburg, 2006, p. 231).
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Figura 2 - Cena Entrega Tudo!. Foto: Marcela Goellner (Curitiba, 2024).
Cena 13 - Patrão. Cena de veneração e vassalagem ao patrão, com pitadas de
oportunismo. Atuante/Patrão se veste com uma máscara de rato fazendo
alusão ao atual governo estadual do Paraná e uma capa com a bandeira do
Brasil. Outros atuantes dançam e cantam em torno do Patrão, advindos da plateia,
fazendo acrobacias com a bandeira patriótica.
Não me conformo em vê-lo, Patrão
Triste e desanimado
Qualquer um quer ser você, oh Patrão
Mesmo que mal humorado
Ninguém na cidade é tão respeitado
Não há quem te possa enfrentar
É muito fácil saber o porquê
És o rei desses meros mortais
Não há igual ao Patrão
Nem melhor que Patrão
Nem o bolso mais cheio que o do Patrão
Na cidade ninguém é tão homem
Modelo de perfeição
Se há valentes aqui todos somem
Pois você quando briga põe todos no chão
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Pra explorar é o Patrão
Pra espancar é o Patrão
Numa briga ninguém morde mais que o Patrão
Quando caço, eu busco o meu alvo
(Uh)
Os bichos suplicam perdão
(Ah)
Sempre miro no dorso primeiro
Mas atiro por trás
É legal?
Tanto faz!
Ninguém bate em Patrão
Nem combate o Patrão
Ninguém cospe à distância melhor que o Patrão
Nosso troféu
O presente do céu
Aplaudamos de pé, todos sabem quem é
O deus vivo que habita entre nós
Não há nada igual, ele é excepcional
Ele é o P-A-U N-O C-U
Patrão
Neste caso, construímos a crítica através da alteração da letra da música, dos
gestos e das movimentações em cena, que geraram contradição com o conteúdo
cantado, buscando produzir um espanto, um estranhamento.
Após a lista encaminhada e as gravações feitas, foram necessárias edições
sonoras dos materiais a fim de refinar e organizar o tempo e os arquivos das
músicas: uma habilidade técnica também necessária à execução desse elemento
cênico e dramatúrgico no momento da apresentação.
Conclusão perambulante
Perante todo esse percurso coletivo da Quadrilha de Piaba, é possível
avaliarmos a formação de grupo fortalecida durante todo o processo, mesmo após
a conclusão da matéria Projeto de Investigação da Cena Épica, ocasionando uma
prática e atuação dos integrantes do grupo focados no empenho na realização, na
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participação em aula e nos debates, na apropriação da linguagem teatral épica, na
capacidade de análise do processo, na interação com os colegas de cena.
Sem contar que criar colaborativamente contribuiu para a compreensão do
épico que não se limita a um gênero (romance, novela, poema épico), investe na
inserção de relatos, descrição, personagem-narrador; na exibição da materialidade
da cena construída aos olhos do público; no acontecimento passado reconstituído
pelo ato da narração; no tratar de conflitos de classes no mundo e no contexto
em específico de quem atua em cena.
Neste percurso, ainda em trilhos, em vias de apresentar-nos na rua, na 33ª
edição do Festival de Curitiba (2025), observamos atentamente os ensinamentos
do mestre Abreu (2000) sobre o quanto perder o contato com a praça, com as
ruas, com a comunidade, é perder nosso imaginário. "Os próprios sentimentos sem
o sadio conflito com a complexidade do mundo real tendem a permanecer na
superfície ou a se tornar idealizados". Pois, ao abandonar as ruas, diminuímos
nossa capacidade de aprender (Abreu, 2000, p.6-7).
Referências
ABREU, Luis Alberto de. A restauração da narrativa. O Percevejo, n.9, 2000, p. 115-
125. Disponível em:
https://www.sesipr.org.br/nucleodedramaturgia/uploadAddress/A%20Restauraca
o%20da%20Narrativa%5B24539%5D.pdf. Acesso em: 13 fev. 2025.
BETTI, Maria Silvia. A atualidade de Vianinha: reflexões a partir de O método Brecht,
de Fredric Jameson. Artcultura, Uberlândia, 15(27), 2015. Acesso em:
http://www.seer.ufu.br/index.php/artcultura/article/view/29345.
BOLOGNESI, Mario Fernando. Palhaços. São Paulo: Ed. Unesp, 2003.
CARLETO, Simone. Processos de criação coletivo-colaborativos. São Paulo: Scarlet
Editora, 2024.
ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. O manifesto comunista. 16.ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2006.
GUINSBURG, Jacó; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariangela Alves de. Dicionário do
Teatro Brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva, 2006.
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KOUDELA, I. D. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 1991.
MATE, A. Preconceitos estruturais contra as formas populares de cultura, as
comédias populares e os teatros de rua. Ephemera, Ouro Preto, v. 4, n. 8, p. 30-67,
31 out. 2021.
NININ, Roberta Cristina. Projeto comédia popular brasileira da Fraternal
Companhia de Artes e Malas-Artes: Trajetória do ver, ouvir e imaginar. São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2010.
Recebido em: 16/02/2025
Aprovado em: 22/03/2025
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
PPGAC
Centro de Artes, Design e Moda CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br