
Brecht e a experiência da incongruência construtiva: dizer sim, dizer não
André Luiz Antunes Netto Carreira | Stephan Arnulf Baumgärtel
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-24, abr. 2025
mudança do mundo, ou seja, com ‘todas’ as mudanças. Neste sentido, discutir
a relação de Brecht com o projeto político autoritário do stalinismo, é um
primeiro passo para romper com as ideias simplificadas sobre o artista9.
A construção da condição mítica de Brecht se deveu tanto aos seus
próprios esforços, como ao impacto de sua produção intelectual e artística e,
também, à ação de seus seguidores. José Antonio Pasta no seu livro Trabalho
de Brecht, comentando o texto “Organização da Glória”, diz:
Não resta dúvida que o zelo de Brecht pela distribuição e colocação de
seus trabalhos o aproxima perigosamente do cinismo e das manobras
de mercado, cujos métodos promocionais ele, como se vê, realmente
observou e incluiu nos seus cálculos. [...] Outros, [como Martin Esslin]
tomando [essa atitude] exclusivamente pelo seu aspecto promocional,
já chamaram isso de “cinismo”, “defeito de caráter”, “filosofia de lúcida
autopromoção” baseada na convicção de que a sobrevivência – e o
sucesso – são muito mais importantes do que qualquer gesto heroico”
(Pasta, 2010, 54).
Mas, o mito Brecht se consolidou principalmente a partir do uso de sua
imagem pelos aparelhos políticos e culturais relacionados às correntes
stalinistas em âmbito mundial nos anos 50/60. O fato é que a ação militante no
campo da cultura o elegeu como paradigma de teatro político em detrimento
de outras linhas estéticas e ideológicas, talvez por desconhecimento de outras
práticas ou por conveniência política dentro das tramas de poder do sistema
das artes no campo da esquerda. Afonso Sastre diz:
Ciertamente, la relación de Brecht con Piscator fue muy fructífera para
ambos; pero me inclino a creer, a pesar del gran olvido de la figura de
9 Essa discussão demanda um conhecimento sobre as posições de Brecht com relação à política autoritária
e repressiva do aparato burocrático stalinista. Este tema é pouco abordado no Brasil, apesar de ser
discutido internacionalmente. Zizek se refere ainda aos documentos que atestam que publicamente
“Brecht apoiou as medidas tomadas pela RDA contra o levante do povo em 1953, ano da morte de Stalin.
Essas medidas incluíram o envio de forças russas para serem usadas contra o povo que era considerado
uma ameaça à lei e à ordem soviética” (Zizek, 2007, p. 177). Por outro lado, conhecemos o poema satírico
“A solução” em que Brecht sugeriu “Que o governo dissolvesse o povo/ E elegesse outro”, para solucionar
os motivos do descontentamento operário (ver também Clark, 2007). Ou seja, encontramos um Brecht
que admitiu dentro de si sua fascinação para com a violência dos gestos de soberania (impondo sacrifícios
trágicos, se seguimos as problemáticas de suas peças de aprendizagem), e outro que também se mostrou
ciente da dimensão patética, ridícula e horrenda, do exercício burocrática dessa mesma soberania. Se não
queremos falsificar a imagem de Brecht, precisamos aprender a lidar com essa e outras contradições: um
autor anti-fascista, mas fascinado com o gesto violento e ditatorial de uma teologia política como
fundamentação de qualquer política que merece esse nome, ou seja, capaz de instaurar outra realidade
social. Um autor chocado e amedrontado ante o fuzilamento de amigos como Tretiakov (ver o poema O
povo é infalível?, 1939) durante a limpeza política stalinista, mas que nunca se pronunciou publicamente
contra esse regime, seja por medo, lealdade verdadeira ou ambição oportunista. A questão é como sua
poética e pedagogia teatral foi atravessada por essa ambivalência.