1
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua
acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Para citar este artigo:
PINHEIRO, Lucas de Almeida.
A Boutique do Mestre
Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas
e com baixa visão.
Urdimento
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 55, ago. 2025.
DOI: 10.5965/1414573102552025e0109
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
2
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa
visão1
Lucas de Almeida Pinheiro2
Resumo
O artigo investigou o processo de Drama
A Boutique do Mestre Perfumista
, analisando sua
potencialidade como abordagem pedagógico-criativa acessível a pessoas cegas ou com baixa
visão. A experiência, conduzida em um projeto de extensão universitária, evidenciou a
mobilização da mundividência tátil na formação e criação teatral. Os resultados indicaram
que o Drama pode desafiar o visuocentrismo e fomentar interações entre participantes com
diferentes percepções sensoriais. Além disso, reforçaram a importância da Extensão como
espaço privilegiado para o diálogo entre discentes do ensino superior e pessoas com
deficiência visual, historicamente marginalizadas no meio acadêmico.
Palavras-chaves
: Drama. Mundividência tátil. Acessibilidade teatral. Deficiência visual.
Extensão universitária.
The Boutique of the Master Perfumer
: Drama and its accessibility for blind and low vision
individual
Abstract
The article investigated the Drama process
The Boutique of the Master Perfumer
, analyzing
its potential as a pedagogical-creative approach accessible to blind or visually impaired
individuals. The experience, conducted within a university extension project, highlighted the
mobilization of tactile worldview in theatrical training and creation. The results indicated that
Drama can challenge theater’s visual-centric nature and foster interactions among
participants with different sensory perceptions. Furthermore, they reinforced the importance
of Extension as a privileged space for dialogue between higher education students and
visually impaired individuals, historically marginalized in academic settings.
Keywords
: Drama. Tactile worldseeing. Theatrical accessibility. Visual impairment. University
extension.
La Boutique del Maestro Perfumista
: Drama y su accesibilidad para personas ciegas y con baja
visión
Resumen
El artículo investigó el proceso de Drama
La Boutique del Maestro Perfumista
, analizando su
potencial como enfoque pedagógico-creativo accesible para personas ciegas o con baja
visión. La experiencia, realizada en un proyecto de extensión universitaria, evidenció la
movilización de la mundividencia táctil en la formación y creación teatral. Los resultados
indicaron que el Drama puede desafiar el visuocentrismo teatral y fomentar interacciones
entre participantes con diferentes percepciones sensoriales. Además, reforzaron la
importancia de la Extensión como un espacio privilegiado para el diálogo entre estudiantes
de educación superior y personas con discapacidad visual, históricamente marginadas en el
ámbito académico.
Palabras clave
: Drama. Mundividencia táctil. Acessibilidade teatral. Discapacidad visual.
Extensión universitaria.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Isa Etel Kopelman. Doutorado e Mestrado
em Artes pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Graduada em Letras pela Pontíficia
Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
2 Doutorado e Mestrado em Artes da Cena pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Graduação em
Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Prof. Dr. na Universidade Estadual de Maringá
(UEM). Atua como diretor, pesquisador e pedagogo teatral. lapinheiro@uem.br
http://lattes.cnpq.br/9869389697175337 https://orcid.org/0000-0003-4736-4779
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
3
Introdução
De acordo com a pesquisadora cega Joana Belarmino (2004), as pessoas com
deficiência visual possuem um modo particular de ser, perceber e estar no mundo.
Qualificado pela autora de “mundividência tátil”, essa especificidade vivencial e
relacional convoca o canal auditivo, olfativo e todo o corpo tátil do indivíduo como
meios para a codificação do mundo. Em um processo contínuo de mutação e
atualização, moldado pelas mudanças ambientais sejam elas naturais ou
artificias, Belarmino (2004, p. 114) afirma que a mundividência tátil é
uma espécie de visão econômico-seletiva, uma vez que se estrutura a
partir de recortes do ambiente, ou pequenas fatias de informação,
arranjadas a partir de detalhes que vão estruturando uma ação no
mundo, sempre mutável e atualizada por percepções novas desse
ambiente.
Nessa direção, a presença de pessoas cegas nas Artes Cênicas pode expandir
suas matrizes ao desafiar a centralidade do olhar e convocar outras modalidades
sensório-perceptivas para a criação, fruição e formação teatral. Dotada de
potências epistêmicas, políticas e estéticas próprias, a mundividência tátil
impulsiona a investigação de novas poéticas, técnicas e abordagens, que tomam
como substratos inventivos, disruptivos e propositivos outros modos de ser, estar
e se relacionar no e com o mundo saberes que, por muito tempo, foram
ignorados na arte teatral.
Para que isso ocorra, além de abertura para o diálogo, é necessário confrontar
o persistente processo de segregação e exclusão vivenciado pelas pessoas cegas
e com baixa visão no teatro. Implica, ainda, romper com a “bipedia compulsória”
(Carmo, 2023) que estrutura e orienta nossas práticas pedagógico-criativas, bem
como repensar acomodações históricas e estruturalmente enraizadas sobretudo
àqueles que, como eu, são enxergantes e não vivenciam diretamente a cegueira.
Diante desse cenário, investigar o diálogo das práticas pedagógico-criativas
teatrais com a mundividência tátil exige um deslocamento metodológico que
contemple processos experimentais, capazes de tensionar o visuocentrismo
cênico para que outras modalidades sensório-perceptivas sejam exploradas, tanto
em instância composicional quanto formativa. Assumir, assim, a mundividência
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
4
tátil como dispositivo disruptivo, capaz de ressignificar o teatro e suas pedagogias,
demanda ensinar-aprender, criar e pesquisarCOM (Moraes, 2010) as pessoas cegas
e baixa visão outras possibilidades de vida dentro e fora dos palcos.
Com essa compreensão e interesse, em 2022, estabeleci uma parceria com
a Fundação de Assistência à Criança Cega de Curitiba (FACE)3. Da minha parte,
havia a necessidade de retomar as investigações práticas do meu doutoramento
(Pinheiro, 2024), momentaneamente interrompidas pela pandemia de Covid-19.
Para a Fundação, o interesse estava na ampliação de seus programas,
incorporando as artes cênicas ao conjunto de suas atividades.
Ao longo de 2022, junto a cinco adolescentes atendidos pela FACE (dois cegos
e três com baixa visão, com idades entre 13 e 15 anos), iniciamos uma investigação
sobre a potência de suas “mundividências táteis” (Belarmino, 2004) na arte teatral.
Ao quinteto, atuando como colaboradora artístico-pedagógica, somou-se Nicolle
Fernandes4. No período, dialogando com os trabalhos de Rabêllo (2011) e Cunha
(2017) à época, as duas maiores referências nacionais voltadas às interfaces
entre a Pedagogia do Teatro e pessoas cegas –, investigamos os “Jogos Teatrais”
(Spolin, 2001) e o “Estímulo Composto” (Somers, 2011) como abordagens
formativo-criativas. Um processo abordado em outro texto (Pinheiro e Martins,
2022).
Em 2023, os desdobramentos da parceria levaram à sua formalização,
transformando-a em um Projeto de Extensão vinculado ao curso de Licenciatura
em Teatro da Universidade Estadual do Paraná (Unespar). A institucionalização
buscava não apenas dar continuidade aos trabalhos, mas, também, fomentar
espaços de intercâmbio e construção de saberes entre discentes da universidade
e o grupo de teatro da FACE, os Faceiros. Convém pontuar que, no período, não
havia estudantes com deficiência visual no referido curso5. Evidentemente, reflexo
de uma problemática nacional, profundamente enraizada em barreiras históricas
3 Fundada em 1972, a FACE atua como rede de apoio educacional a pessoas cegas ou com baixa visão a partir
de atividades que trabalham a independência, a autonomia e a autoconfiança. Seus programas atendem
adultos e crianças desde o nascimento.
4 Profissional de atendimento educacional especializado, contratada pela FACE e egressa do curso de
Licenciatura em Teatro da Universidade Estadual do Paraná.
5 Até o momento, a primeira e única discente com deficiência visual do curso iniciou sua graduação em 2018,
finalizando-a em 2022.
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
5
e estruturais, como apontou o Censo da Educação Superior de 2019 (Brasil, 2020)
ao indicar que apenas 0,56% do total de matrículas em graduações corresponde a
pessoas DEF6.
Nesse novo ciclo, retomamos os “Jogos Teatrais”, o “Estímulo Composto” e
os trabalhos de Rabêllo (2011) e Cunha (2017), aprofundando nossas investigações
a partir dessas abordagens. Atendendo aos desejos dos Faceiros7, no segundo
semestre de 2023 demos início à criação de uma peça teatral. No entanto, diante
de uma estagnação criativa, propus à equipe do projeto8 de extensão o “Drama”
(Cabral, 2006) como estímulo para investigar novas relações cênicas e ampliação
de possibilidades dramatúrgicas no processo, além de apresentar tal abordagem
à equipe extensionista – composta, no período, por seis discentes da Licenciatura
em Teatro e uma do Bacharelado em Artes Cênicas.
Um processo de Drama, dividido em dois episódios, foi então vivenciado pelo
grupo; ambos, dialogando com a temática do tráfico de animais e suas
consequências, investigadas durante os ensaios. No primeiro,
O Interrogatório
,
cada personagem era conduzida a uma pequena sala onde o Policial Bom e o
Policial Mau atuados por discentes do projeto interpelavam a dona de um
petshop sobre os possíveis crimes cometidos em suas dependências. no
segundo episódio,
O Banho de Sol
, as personagens eram levadas ao jardim da FACE
que, fazendo as vezes do pátio de uma penitenciária, oferecia um espaço de troca
de informações sobre seus interrogatórios.
Os dois episódios expandiram as perspectivas criativas dos Faceiros, gerando
materiais que culminaram na criação da peça “A Fuga do Tamanduá Bandeira”,
estreada em dezembro de 2023. Ao longo dos ensaios, o grupo expressava com
frequência o interesse em revistar o Drama, assim que as apresentações da peça
6 DEF é uma gíria criada pelos bailarinos da Companhia Roda Viva, de Natal/RN. Sob a perspectiva de Estela
Lapponi (2023), o termo indica a pessoa com deficiência que tem orgulho de ser quem é e se apropriar de
si; que tem consciência de sua identidade social e o que isso significa a nível sociopolticocultural; que tem
consciência de sua ancestralidade não genética, a ancestralidade DEF.
7 Termo que os adolescentes adotaram para nomear nosso grupo de teatro.
8 Nomeio como “Equipe do Projeto” a colaboradora artístico-pedagógica, externa à Unespar, e as pessoas
discentes da instituição envolvidas nas ações extensionistas.
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
6
ocorressem. Nos seguintes trechos, extraídos de uma das gravações9 dos nossos
ensaios, trago alguns desses comentários:
A: Podíamos voltar pro (sic) lance do Interrogatório e do Banho de Sol,
né? Viver a história, sem ficar ensaiando... esquecendo que estamos
ensaiando, deixa tudo mais emocionante! (Informação verbal)
M: Queria que a gente fizesse mais vezes aquilo de todo mundo ser
personagem, porque vontade de criar mais coisas. É todo mundo
mergulhado na história... e a gente vai criando sem saber exatamente o
que vai acontecer. É como se a gente estivesse criando uma história
enquanto vive ela ao mesmo tempo. (Informação verbal)
R: Eu acho muito mais divertido do que ficar improvisando. E eu gosto
bastante de improvisar. foi um improviso diferente, porque a gente ia
descobrindo tudo junto, todo mundo junto, como se fosse real e sem
achar que estava fazendo alguma coisa errada ou que não funcionasse
na cena. (Informações verbal)
Diante das solicitações, concebemos um novo processo de Drama para ser
vivenciado no início de 2024:
A boutique do mestre Perfumista
. Estruturado em
quatro episódios, cada um com cerca de uma hora de duração, esse processo
constitui o foco deste artigo que busca analisar as estratégias e reverberações
dessa experiência. Ao mesmo tempo, a discussão também se propõe apontar o
Drama como abordagem pedagógico-criativa propícia à valorização da
mundividência tátil no ensino-aprendizagem e experimentação teatral de pessoas
com e sem deficiência visual.
A boutique do Mestre perfumista
Em 2024, o projeto de extensão passou a contar com a participação de três
adolescentes enxergantes, cuja entrada ocorreu por meio de uma parceria
estabelecida com um Colégio anexo à FACE isto, para que pudéssemos utilizar
salas mais amplas para os nossos encontros semanais. Como elas não possuíam
experiências prévias com o teatro decidimos que, enquanto estruturávamos o
processo de Drama, retomaríamos os Jogos Teatrais em vias de lhes dar uma
mínima base cênica e improvisacional processo desenvolvido ao longo de dois
9 A “Fuga do Tamanduá Bandeira” foi criado exclusivamente a partir das improvisações que ocorriam em sala
de ensaio. Para capturar e organizar as ideias geradas nesses momentos, adotamos uma estratégia prática:
gravávamos todas as sessões de ensaio, transcrevendo-as posteriormente. No encontro seguinte,
revisávamos juntos os registros transcritos, discutindo e selecionando os trechos que considerávamos mais
interessantes ou promissores para revisitar e desenvolver.
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
7
meses.
Durante esse período, percebemos que elas e os adolescentes cegos e com
baixa visão mantinham-se em grupos distintos. Compreendendo que a
aproximação não deveria ser forçada, mas que a própria cena poderia atuar como
elo entre o grupo, os reorganizávamos em duplas, trios ou quartetos para
solucionarem os problemas propostos por Spolin único momento em que, de
fato, interagiam.
Em nossa análise, tal separação parecia decorrer mais de fatores geracionais
e de afinidade do que de atitudes capacitistas: as novas integrantes, amigas de
infância, tinham 12 anos; os adolescentes com deficiência visual, fundadores dos
Faceiros, tinham entre 15 e 16 anos e já participavam do projeto desde 2022.
Dessa forma, além de atender aos desejos dos Faceiros, também
apostávamos no Drama como abordagem para estimular tais interações, que
emergiam da necessidade de responder às situações dramáticas propostas pelo
processo. Ao mesmo tempo, esperávamos que o Drama aprofundasse a
investigação multissensorial, alinhada à mundividência tátil, que desenvolvíamos
com o grupo – como abordei em outro texto, atualmente no prelo.
Esse panorama nos levou a procurar materiais que pudessem articular essas
vontades e se tornar nosso pré-texto elemento que, segundo Cabral (2006, p.
15), fornece “o ponto de partida para iniciar o processo dramático, e que irá
funcionar como pano de fundo para orientar a seleção e identificação das
atividades e situações exploradas cenicamente”. Após pesquisas, encontramos
dois, duas crônicas de Clarice Lispector (2004):
Os perfumes da terra e Cem anos
de Perdão
. Como pré-texto, as escolhemos porque Clarice explora nelas a
influência dos aromas, das fragrâncias e das flores no cotidiano, além da
cumplicidade entre aqueles que, juntos, desejam desbravar o mundo,
reconhecendo no outro a presença indispensável para que essa jornada aconteça.
As fragrâncias têm destaque em
Os Perfumes da terra
. Em uma passagem,
ela diz:
Eu me perfumo para intensificar o que sou. Por isso não posso usar
perfumes que me contrariem. Perfumar-se é uma sabedoria instintiva. E
como toda arte, exige algum conhecimento de si própria. Uso um
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
8
perfume cujo nome não digo: é meu, sou eu (Lispector, 2004, p. 43).
Essa perspectiva sobre o perfume como uma extensão da identidade se
conecta diretamente ao que se tem no conto
Cem anos de perdão
, onde
encontramos uma Clarice que revisita sua infância em Recife e as artimanhas que
desenvolveu junto a uma amiga para roubar rosas das casas alheias. Carregada da
particularidade literária da autora, a crônica desvela como o ato de furtar flores –
equiparado ao de colher pitangas transcende a posse material e se manifesta
na própria experiência do gesto, na excitação de obter algo que, por sua natureza,
já se oferece ao mundo, pois “elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez
de amadurecer e morrer no galho, virgens” (Lispector, 2004, p. 11).
Baseando-se na ideia do perfume como algo particular, na necessidade de
que as plantas sejam colhidas para não morrerem virgens nos galhos e na
cumplicidade mesmo em situações de extrema tensão, estruturamos o processo
de Drama
A boutique do mestre Perfumista
, conduzido por mim, três discentes do
curso de Licenciatura em Teatro da Unespar10 e a colaboradora artístico-
pedagógica. Ao todo, participaram do processo seis adolescentes três
enxergantes e três com deficiência visual, sendo um com baixa visão e dois cegos.
A seguir, analiso o processo, estruturado em quatro episódios.
Primeiro episódio
Uma semana antes do início do processo, em um dos encontros ordinários
do projeto de extensão, li e entreguei uma Carta-Convite a cada integrante do
grupo impressa em tinta, em braile e com letra ampliada. Disse que a havia
encontrado em um antigo baú do meu avô e que, por sua natureza intrigante,
imaginava que gostariam do conteúdo:
Olá,
Entre conhecidos, sou chamado de O CONDE.
Chegou até meu conhecimento que vocês são pessoas curiosas, inteligentes e corajosas.
Por isso, resolvi convidar vocês a participarem de uma jorna única e inesquecível, onde os
segredos do olfato, do tato, do paladar e da audição se entrelaçam com
10 Isac Kemp, Luh Silva e Luy Anunciação sendo este, à época, bolsista do Programa Institucional de Apoio
à Inclusão Social (PIBIS), com financiamento da Fundação Araucária e Secretaria de Ciência, Tecnologia e
Ensino Superior do Estado do Paraná.
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
9
enigmas intrigantes e desafios emocionantes.
Preparem-se para uma aventura repleta de mistérios.
Porém, cuidado!
Há perigos à espreita.
A recompensa será boa e deliciosa, mas só aqueles que sobreviverem terão o privilégio de
a desfrutarem.
Os espero na antiga e respeitada Boutique de Perfumaria.
Não se esqueçam de trazer com vocês, pelo menos, um artefato indispensável e
necessário para a longa, árdua e fascinante aventura que vivenciarão.
Boa sorte vocês irão precisar.
A carta causou curiosidade imediata. Para manter o suspense, anunciei que
só os presentes no encontro seguinte conheceriam seu desdobramento.
Na semana seguinte, em vez de seguirmos para a sala habitual, conduzi o
grupo até a horta do colégio. Enquanto aguardávamos o Conde sugeri que
compartilhassem os objetos trazidos. Cada participante apresentou os itens que
haviam escolhido que iam de chocolates a bengalas e mochilas vazias —,
revelando como interpretaram o convite e se prepararam para o imprevisível. Esse
momento, cuidadosamente planejado, estimulou a escuta mútua e ativou a
imaginação coletiva, transfigurando o cotidiano em ficção (Cabral, 2006).
Logo em seguida, uma figura extracotidiana se aproximou do grupo: a
Assistente do Mestre Perfumista, personagem interpretada por uma das
condutoras do processo11, discente da Licenciatura em Teatro. Essa estratégia
corresponde à noção de professor-personagem, conceito descrito por Pereira
(2015) como a inserção ficcional do educador/condutor do processo na cena,
atuando como parceiro e mediador da ação dramática. Uma figura que,
geralmente:
advém da história (utilizada como pré-texto). Utiliza-se das indicações do
texto para a criação de corpo, voz, figurino, assim como de fragmentos
ou ideias contidas no texto original para a construção do discurso do
personagem, o que não significa que o condutor não possa criar
personagens a partir de outras obras ou referências [...] o professor, no
personagem, improvisa a partir dos acontecimentos que surgem da
relação que estabelece com os envolvidos na situação dramática [...] com
um objetivo específico dentro do episódio (contar um segredo,
desencorajar ou encorajar os participantes, desafiá-los, narrar uma parte
11 A construção dessa figura, assim como das demais personagens que compõem o universo ficcional da
Boutique do Mestre Perfumista
, foi sendo desenvolvida ao longo dos episódios, nos momentos em que a
equipe do projeto se reunia para refletir sobre o que havia sido vivenciado com o grupo de adolescentes,
em constante diálogo com as demandas do processo e com as relações estabelecidas pelos participantes
cegos e enxergantes.
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
10
da história sobre seu ponto de vista, dar alguma informação, entre outras
possibilidades) (Pereira, 2015, p. 143).
Ao se encontrar com o grupo, a Assistentes do Mestre Perfumista pediu que
a seguissem até a Boutique, conduzindo-o ao laboratório de Química da escola,
devidamente preparado para se transformar em uma Boutique de Perfumaria.
Como explicam Janiaski, Perobelli e Menegaz (2023, p. 29), a ambientação cênica
é uma estratégia importantíssima para enriquecer e aprofundar a experiência com
o processo de Drama:
É fundamental, para que aconteça uma experiência significativa e
produtiva para todos(as) os(as) participantes, que o ambiente seja
preparado cenicamente, para que possamos fazer a transposição dos(as)
estudantes para o contexto da ficção. Onde se passa a história? Qual o
cenário que se apresenta? Quais são as materialidades, sonoridades e
visualidades que se manifestam? Pois o espaço tem o potencial de aguçar
nossos sentidos, percepções e emoções. E desta forma, somos levados
à qualidade de imersão necessária para que o processo de Drama
aconteça.
Nossa Boutique possuía dois balcões. Sobre um, diversos instrumentos e
equipamentos próprios de um laboratório estavam dispostos, como béqueres,
tubos de ensaio, pipetas, funis, provetas e balanças. Em outro, uma vasta coleção
de matérias-primas possíveis à confecção de perfumes: folhas, frutas, pétalas de
flor, sementes, casas de limão, óleos essenciais, incensos, especiarias variadas e
álcool destilado criando uma ambientação cênica tátil e olfativa. No fundo da
sala, outro professor-personagem, trajando um avental multicolorido e assumindo
o papel do enigmático Mestre Perfumista, estava à espera do grupo.
O Mestre Perfumista acolheu os participantes com um tom solene e
encantado, apresentando a Boutique como um templo dedicado à arte das
fragrâncias e à alquimia olfativa. Em sua apresentação inicial, descreveu a
disposição dos elementos no espaço insumos à esquerda, instrumentos de
laboratório à direita permitindo que os adolescentes cegos ou com baixa visão
pudessem compor uma imagem espacial da cena, em sintonia com o
ethos
de
acessibilidade do projeto.
Em seguida, convidou o grupo a investigar livremente os objetos e substâncias
disponíveis. As folhas, pétalas, cascas e frascos tornaram-se pontos de partida
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
11
para uma investigação sensorial, marcada especialmente pelo tato e pelo olfato.
Em meio à vivência, o Perfumista os encorajou a experimentar de olhos fechados,
destacando que
um grande perfumista sente com as mãos e o nariz aquilo que
os olhos não veem
”.
Enquanto o grupo investigava os materiais, a experiência revelava-se mais do
que um jogo cênico: instaurava-se um campo comum de sensibilidade, onde
diferentes modos de percepção não apenas coexistiam, mas guiavam a
investigação coletiva. Essa atmosfera foi abruptamente interrompida pela entrada
do Conde, que irrompeu na sala com voz grave, sotaque indefinido e ar de
autoridade. Anunciou-se como líder implacável de antigas batalhas e impôs um
desafio: criar, em apenas cinco minutos, um perfume cítrico com notas
amadeiradas.
O desafio provocou uma resposta imediata. Em poucos minutos, o grupo
colaborou na escolha dos ingredientes e na criação da fragrância, combinando
notas cítricas com canela, baunilha e álcool. A urgência imposta ativou escuta,
negociação e invenção coletiva. Ao final, o frasco foi entregue ao Mestre
Perfumista, que, após avaliá-lo cuidadosamente, reconheceu o êxito da missão: a
essência criada era digna de respeito e da aprovação do Conde.
Figura 1 - Balcão com ingredientes. Descrição: Fotografia colorida. Em cima de uma mesa branca,
estão dispostas sacolas transparentes com ervas e folhas. Laranjas, copos plásticos brancos e
um béquer também compõem a imagem. Fim da descrição. Fonte: Arquivo pessoal, 2024.
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
12
Satisfeito com o primeiro teste, o Conde propôs um novo desafio: criar um
perfume que capturasse a essência de uma Noite Estrelada raro, simbólico e
quase inatingível. Parte dos ingredientes estaria na Boutique; outros exigiriam
coragem e sensibilidade para serem encontrados ao longo da jornada. O Mestre
Perfumista, então, declarou que precisaria de pelo menos uma semana para
preparar os elementos e orientar o caminho.
Com seriedade, o Conde concluiu:
Retornem na próxima semana. Reflitam
sobre o que significa criar algo grandioso. Uma Noite Estrelada não é apenas um
perfume é uma obra-prima. Estudem, experimentem... Se forem bem-
sucedidos, a recompensa será proporcional à sua coragem
.” E, dito isso, retirou-
se, deixando o grupo imerso nas possibilidades do que ainda estava por vir e
ansiosos para o episódio da semana seguinte.
Esse primeiro episódio evidenciou que o envolvimento dos participantes com
o universo ficcional da Boutique ativou experiências sensório-perceptivas
complexas especialmente voltadas ao tato e ao olfato, sentidos centrais à
mundividência tátil (Belarmino, 2004) e desencadeou deslocamentos éticos e
relacionais no grupo. Ao convocar todos à criação coletiva de uma fragrância,
atravessada pela escuta, negociação e imaginação, a proposta mobilizou sentidos
e formas de convivência.
A ambientação cênica sensorial e a mediação das personagens-docentes
(Pereira, 2015) colaboraram para a construção de um contexto ficcional (Cabral,
2006) que acolheu diferentes formas de perceber e estar em relação. Nesse
campo de invenção, as fronteiras que ainda pareciam separar os subgrupos
adolescentes cegos e enxergantes começaram a se dissolver, impulsionadas
pela urgência do jogo e pela necessidade de cooperação em que outras lógicas
sensoriais e sociais possam emergir.
Segundo episódio
Apesar de possuirmos uma “coluna vertebral” que delineava a narrativa do
processo, a equipe do projeto se reuniu após o primeiro episódio para discutir,
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
13
refletir e preparar o encontro seguinte. Como afirma Desgranges “não se pode
pensar em Drama sem pensar em processo” (2006, p. 125). A meu ver, essa
dimensão processual, inerente ao Drama, é uma de suas maiores qualidades
artístico-pedagógicas, pois permite que quem conduz o processo possa revisitá-
lo e reestruturá-lo, conforme as respostas que o grupo participante às
situações originalmente propostas.
No primeiro episódio, ficou evidente que o grupo seguia dividido em dois: de
um lado, as três adolescentes enxergantes; de outro, os três adolescentes com
deficiência visual. Como percebemos que a Carta-Convite havia mobilizado
significativamente o coletivo, optamos por recorrer novamente a esta estratégia,
não apenas como dispositivo dramático, mas também relacional. Assim,
produzimos três cartas, deixando parte do texto em tinta e parte em braile, de
modo a promover, forçadamente, a colaboração.
O segundo episódio teve início na Boutique, onde duas Assistentes o
aguardavam: a que os havia acolhido no primeiro episódio e outra, que explicou
ser sua prima. Sobre um dos balcões repousava a primeira carta (o texto
sublinhado corresponde ao que foi escrito em braile):
Caros Aventureiros,
Em nosso último encontro, “O Conde” lhes passou uma missão: a criação de um
perfume com aroma de Noite Estrelada. Como os ingredientes para este
preparo são complexos e difíceis de encontrar, dei início à procura.
Estou no Bosque das Moscas, o lugar ideal para quem prepara fragrâncias.
É neste Bosque que nascem e crescem os melhores insumos!
É neste Bosque, também, que se perdem e morrem as pessoas mais corajosas.
Venham ao meu encontro!
Tomem cuidado com o caminho.
Quem o vê, pode enlouquecer e nunca mais retornar à sanidade.
Ver é se perder.
Sigam as instruções dos meus Assistentes, que o percurso será tranquilo.
Até já,
Mestre Perfumista
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
14
Figura 2 - Carta escrita em tinta e braile. Descrição: Duas mãos leem o trecho escrito
em braile. Fim da Descrição. Fonte: Arquivo pessoal, 2024.
Após discutirem sobre o que poderia ser e onde deveria estar localizado o
Bosque das Moscas, o grupo concluiu ser a praça situada atrás do colégio. Diante
da instrução de que não poderiam enxergar o caminho, decidiram recorrer às
Assistentes em busca de materiais para vendar os olhos de quem enxergava. Com
isso, os adolescentes cegos assumiram a liderança, guiando o grupo com toques
nos ombros, sinais verbais e orientações espaciais.
Essa inversão temporária de papéis, de quem conduz e é conduzido, não
apenas potencializou a percepção do espaço de maneira multissensorial, mas
também desestabilizou, ainda que momentaneamente, a hierarquia implícita do
olhar no ato de andar. Como sugere Larrosa (2011), educar é, antes de tudo, criar
condições para a experiência, e aqui, a experiência dramatizada instaurou um
campo em que a escuta e o tato reconfiguraram a autoridade pedagógica. A
liderança dos adolescentes cegos não foi apenas narrativa, mas ética: ao
conduzirem o grupo, deslocaram os modos instituídos de aprender e ensinar,
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
15
fazendo da travessia um gesto pedagógico em que experiência e cuidado se
entrelaçam.
Durante o trajeto, caixas de som emitiam uma paisagem sonora imersiva,
com uivos de lobos, rajadas de vento, gorjeios de pássaros e o zumbido de moscas
varejeiras, evocando a atmosfera de uma floresta perigosa. Galhos secos, fitas e
tecidos tocavam ocasionalmente os corpos dos participantes, intensificando a
ambientação cênica com estímulos também táteis. Inseridos nesse contexto, os
adolescentes passaram a se autodenominar de Aventureiros uma posição
sugerida inicialmente pelas cartas e reforçada pelas personagens das Assistentes,
do Conde e do Mestre Perfumista.
A adoção dessa nomenclatura não se deu por atribuição direta de papéis
individuais, mas como um posicionamento coletivo diante da missão proposta:
desbravar o Bosque das Moscas em busca dos insumos para o perfume da Noite
Estrelada.
Como define Pereira (2015, p. 129):
os papéis coletivos podem ser definidos como posições assumidas pelos
participantes em resposta a um contexto dramatizado, compartilhadas
por todo o grupo, e que não estão restritas a uma construção
individualizada. Eles favorecem o pertencimento e a participação,
permitindo que todos se sintam implicados no contexto proposto,
mesmo que não desempenhem personagens específicas.
O papel de Aventureiro, nesse contexto, surgiu como identidade ficcional
compartilhada, sustentada pelo ambiente sensorial, pelas indicações das
personagens e pela disposição do grupo em habitar a ficção. Tal movimento revela
uma estratégia dramatúrgica potente, pois, como afirma Pereira (2015), ao invés de
isolar personagens em construções individuais, os papéis coletivos implicam o
grupo inteiro em uma narrativa comum, favorecendo a partilha simbólica e a
responsabilidade compartilhada pela condução do enredo.
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
16
Figura 3 - O Bosque das Moscas. Descrição: Cinco pessoas, vendadas,
estão andando entre árvores. Fim da descrição. Fonte: Arquivo pessoal, 2024.
Durante a exploração tátil da praça, uma das Assistentes comentou
reconhecer o terreno, sugerindo que o Mestre Perfumista poderia estar por perto.
Animado pela hipótese, o grupo espalhou-se pelo espaço, recolhendo insumos
para o perfume d’A Noite Estrelada e guardando-os na mochila de uma das
Aventureiras. Subitamente, um grito anunciou a descoberta de um corpo caído
próximo às raízes de uma árvore. As Assistentes, alarmadas, alertaram para os
perigos do local e repetiram a advertência da carta: “ver é se perder”. O jaleco e
os cabelos longos revelaram a identidade do caído — era o Mestre Perfumista. No
bolso do jaleco, o relevo em braile denunciava: havia uma nova carta a ser lida.
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
17
Figura 4 - O encontro com o Mestre Perfumista. Descrição: Quatro pessoas estão ajoelhadas
próximo às raízes de uma grande árvore. Elas são vistas de costas. Entre elas, uma pessoa está
deitada no chão. Veste calça jeans e um avental colorido. Fim da descrição.
Fonte: Arquivo pessoal, 2024.
Uma das adolescentes cegas pegou o papel e tentou lê-lo, mas percebeu que
as frases estavam soltas e desconexas. No ímpeto de entender o conteúdo, uma
das adolescentes enxergantes tentou retirar sua venda, sendo dissuadida pelos
demais, que concordaram que o mais sensato seria deixar o Bosque das Moscas
antes de tentar decifrar a mensagem. E assim o fizeram. Quando os sons
inquietantes da floresta cessaram uma das Assistentes anunciou que era seguro
remover as vendas para que o conteúdo do papel fosse revelado:
Caros Aventureiros,
Em meus momentos finais, consegui escrever este ligeiro bilhete.
Quem eu mais confiava, foi quem mais me traiu.
Tomem cuidado com as minhas Assistentes...
Mestre Perfumista
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
18
Figura 5: Carta do Mestre Perfumista. Descrição: Imagem da carta, com trechos em tinta e braile.
Fim da descrição. Fonte: Arquivo pessoal, 2024.
Ao notarem que uma das Assistentes – a prima, não a que os havia recebido
no primeiro episódio havia desparecido, o grupo concluiu que ela deveria ser a
culpada e teria retornado à Boutique, com o intuito de roubá-la. Tomados pela
inquietação, voltaram à Boutique, deparando-se com uma terceira carta sobre um
dos balcões:
Aventureiros,
Vim aos vossos encontros em busca de alertá-los.
Os insumos do Bosque das Moscas são insuficientes para a criação do perfume que
desejo.
Estou em busca dos demais elementos necessários à tão desejada e árdua criação.
Guardem o que encontraram.
Na próxima semana, nos encontramos na Boutique para criarmos o tão sonhado
perfume.
O faremos junto ao Mestre Perfumista.
Peço que tragam de vossas casas algum insumo para tal ato, aquele que consideram ser
necessário e crucial para a criação do perfume e a conclusão da tarefa que os incumbi.
O Conde
Como em um interrogatório, os Aventureiros começaram a questionar uma
das Assistentes a mesma que os havia conduzido à Boutique no primeiro
episódio e que agora chamavam de Assistente Boa sobre o paradeiro da outra,
recém-apresentada como sua prima, a quem passaram a chamar de Assistente
Má.
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
19
Durante esse momento de tensão e investigação, os próprios Aventureiros
começaram a delinear, de forma orgânica, suas personalidades ficcionais: da
ingênua à desconfiada, do medroso ao acusador, cada participante assumiu um
posicionamento dramatúrgico, revelando traços individuais e coletivos diante da
situação. Foi nesse contexto que também revelaram seus nomes ficcionais,
reforçando o engajamento com a narrativa e aprofundando os vínculos com o
universo criado. A Assistente Boa, por sua vez, reagiu com jogo de cintura do
improviso, afirmando que as duas eram primas e que não tinha qualquer
envolvimento com o destino do Mestre Perfumista, por quem demonstrava grande
apreço.
Diante das respostas precisas da professora-personagem, os ânimos do
grupo se acalmaram. A Assistente Boa sugeriu que os insumos coletados no
Bosque fossem guardados ali mesmo, na Boutique. Cuidadosamente, os itens
foram dispostos sobre a bancada, enquanto cada participante nomeava e
justificava o que havia colhido. Alguns o fizeram de forma simples e direta; outros,
impulsionados pela atmosfera instaurada e pelo pedido do Conde no episódio
anterior, passaram a utilizar vocabulário técnico, indicando combinações possíveis
entre as matérias-primas reunidas.
Embora não tenha havido uma investigação aprofundada sobre o ofício da
perfumaria que sustentasse plenamente a adoção do “manto do perito” (Pereira,
2015), a proposta permitiu uma aproximação simbólica com esse lugar de
especialidade. Nesse contexto, operar como perito não exigia apenas saber o que
dizer, mas assumir uma postura diante da tarefa, relacionar-se com os materiais
e sustentar uma narrativa própria – ainda que embrionária.
O episódio foi finalizado com o retorno à Boutique, motivado pela suspeita de
traição, e com a leitura de uma nova carta do Conde. Nela, o grupo era convocado
a guardar os insumos coletados e a trazer, na próxima semana, um elemento
pessoal para a criação do perfume. Essa proposição ampliou o vínculo entre a
ficção e a realidade cotidiana, preparando o terreno para que o processo ganhasse
novas camadas de autoria e atravessamento subjetivo. Ao comunicar que
guardaria os ingredientes, a Assistente Boa não apenas encerrou simbolicamente
a etapa vivida, mas também reafirmou a continuidade do jogo processo e da
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
20
implicação do grupo na narrativa em curso.
Terceiro episódio
Para dar continuidade à implicação crescente do grupo e manter a arquitetura
ficcional, optamos por seguir com a estratégia das cartas. O episódio teve início na
Boutique, com a presença da Assistente Boa e do próprio Conde. Ao saber da
suposta morte do Mestre Perfumista, o Conde reagiu com naturalidade, atribuindo
o ocorrido à ingestão de algum insumo raro e sugerindo que ele estaria em
catalepsia.
Curiosidade e tolice andam de mãos dadas!
”, disse, antes de propor:
Talvez uma fragrância com notas aromáticas, florais e resinadas o desperte... Por
que não tentam
?”
Enquanto alguns se mostraram surpresos ao ouvir termos como “notas de
topo, de corpo e de fundo”, outros sorriram, satisfeitos, explicando aos colegas
seus significados e a importância de cada uma na criação de fragrâncias. A
Assistente Boa reforçou as informações, complementando-as com exemplos
práticos e ampliando o repertório coletivo.
Munidos desses conhecimentos, os Aventureiros agora autointitulados
Alquimistas passaram a manipular as matérias-primas: amassavam folhas,
sentindo a umidade entre os dedos; raspavam cascas, percebendo as texturas
ásperas se desfazendo sob a pressão; trituravam especiarias, identificando aromas
que se intensificavam no atrito; cortavam frutas e sentiam o sumo escorrer pelo
toque; misturavam os elementos, atentos às transformações sensoriais entre
temperatura, textura e fragrância.
Enquanto o grupo trabalhava, o Conde circulava pela Boutique, inspecionando
as criações. Após avaliar as fragrâncias, ele declarou que algumas possivelmente
seriam capazes de despertar o Mestre Perfumista, cujo corpo permanecia no
Bosque das Moscas. No entanto, ao retornarem ao local, depararam-se apenas
com as raízes. O grupo investigava o chão com as mãos, tentando encontrar pistas
do paradeiro do Perfumista. Nada. O silêncio do bosque tornava a ausência ainda
mais inquietante. Frustrados, decidiram retornar à Boutique.
Na volta, a fragrância de uma das Aventureiras-Alquimistas foi subitamente
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
21
arrancada de suas mãos. Em meio ao tumulto, uma intensa discussão: alguns
defendiam a ideia de permanecer no bosque para tentar recuperar a criação
furtada, enquanto outros argumentavam que retornar à Boutique seria mais seguro
e estratégico. Após um acalorado debate, o grupo decidiu recorrer à votação, que
revelou a maioria inclinada a regressar à Boutique, acreditando ser o lugar mais
apropriado para reorganizar “os pensamentos” e compreender melhor o que havia
acabado de acontecer.
Figura 6 - Fragrância furtada. Descrição: Fotografia retirada ao ar livre. No foco da imagem,
refletindo a luz solar, balão de fundo, equipamento de laboratório, com líquido avermelhado e
pedaços de ervas. Ao fundo, um gramado e trecho acimentado. Fim da descrição.
Fonte: Arquivo pessoal, 2024.
Ao chegarem à Boutique, indignados, o grupo chegou a uma conclusão
unânime: aquilo poderia ser outra obra da Assistente Má. Sobre um dos balcões
da Boutique, uma nova carta os aguardava:
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
22
Caros Aventureiros-Perfumistas,
A criação que o Conde solicitou não pode nunca ser concretizada!
O aroma da Noite Estrelada é a única chave capaz de desfazer a prisão mental do
Bosque das Moscas.
Se esse perfume cair em mãos erradas, ninguém sabe o que pode ocorrer.
É a minha missão impedir que esta fragrância seja criada!
É a minha sina impedir que a maldição do Bosque das Moscas nunca seja desfeita!
Cada um de vocês conseguiu criar as notas de aroma necessárias para que a fragrância
de uma noite estrelada possa impregnar o ar.
Sem um de vocês, o perfume da Noite Estrelada jamais poderá ser criado!
Por isso, precisei raptar o Mestre Perfumista e algumas das fragrâncias que criaram.
Peço desculpas, mas esta foi a única maneira que encontrei para que a maldição do
Bosca das Moscas não seja quebrada.
Prima, minha querida prima, perdoe-me por este ato.
Se você soubesse minhas verdadeiras intenções, certamente me apoiaria.
Com amor e dor no coração,
A Assistente.
Cada linha lida trazia novas perguntas e alimentava amplas discussões entre
os Aventureiros-Alquimistas, que analisavam minuciosamente as palavras da
Assistente “Má”, tentando decifrar suas verdadeiras intenções.
A Assistente Boa, emocionada, confessou ao grupo que sempre confiara em
sua prima, mas que não conseguia entender os motivos por trás de suas ações,
declarando:
Tudo o que aconteceu hoje mexeu muito comigo. Prometo que, assim
que estiver melhor, continuarei a investigar esse caso. Peço licença, mas preciso
fechar a Boutique por hoje. Na próxima semana, terei novidades, prometo!
”.
Com a deixa da Assistente Boa, o grupo deixou a Boutique. O episódio foi
encerrado em um clima de inquietação e expectativa. A carta da Assistente
reconfigurou os rumos da narrativa ao instaurar um dilema ético e coletivo: seguir
com a criação da fragrância ou impedir sua finalização. A suspensão do jogo
marcada pela declaração emocionada da personagem e pelo fechamento
simbólico da Boutique produziu um espaço fértil para elaborações subjetivas e
conjecturas narrativas, reforçando a potência do Drama como campo de autoria
partilhada, conflito ético e engajamento ficcional.
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
23
Quarto episódio
No quarto episódio, decidimos expandir a ação dramática para outros
espaços do colégio, respondendo a relatos dos próprios participantes sobre a
fragmentação de seus cotidianos escolares. Pertencentes a turmas e intervalos
diferentes, raramente se encontravam pelos corredores o que nos levou a propor
uma ocupação dramatúrgica desses lugares com o intuito de ressignificá-los
coletivamente. O jogo “Caça ao Tesouro”, com pistas em tinta, braile, estímulos
táteis e sonoros, foi então desenhado para ativar outras formas de presença,
percepção e circulação pelos ambientes escolares, convertendo-os em territórios
sensoriais de criação e encontro.
O episódio teve início com o grupo se reunindo diante da Boutique, que se
encontrava de portas fechadas. Ao espiar por uma fresta entreaberta, perceberam
que a loja estava vazia, à exceção de uma carta sobre o balcão:
Caras Aventureiras e Aventureiros Perfumistas,
Na última semana, tentei entender o que se passou na cabeça da minha prima. Os
motivos pelos quais ela fez o que fez e age como tem agido.
A conclusão que consegui chegar foi apenas uma.
Agora, sei o que aconteceu. Ou acho que sei o que aconteceu.
De qualquer modo, agora isso não importa.
Após muito pensar, acredito que finalmente consegui descobrir onde o perfume com
aroma da Noite Estrelada está. Onde ele foi escondido, após ter sido roubado de vocês.
Sim! Vocês já conseguiram criar o perfume.
Ele é o antídoto para a maldição do Bosque das Moscas.
Também descobri os motivos que levaram o Conde a solicitar que tal perfume fosse
criado.
Tentem me encontrar. Estou onde o cheiro fica maior no calor e menor no frio.
No lugar em que as pessoas correm e se divertem.
Onde o aroma de suas peles exala e é combatido com perfumes aerossóis ou cremosos.
Se eu não estiver por lá... Quer dizer que parti para o esconderijo seguinte. Procurem as
pistas pelo caminho.
Cada pista leva até a próxima, e a próxima e a próxima...
Logo nos encontraremos.
Atenciosamente,
A Assistente.
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
24
Figura 7 - Carta da Assistente. Descrição: Mãos leem texto em braile.
Fim da descrição. Fonte: Arquivo pessoal, 2024.
Perplexo com a revelação de que o perfume com aroma da Noite Estrelada
havia sido criado, mas fora roubado, o grupo rapidamente se mobilizou para
tentar localizar a Assistente Boa. Após debaterem, inferiram que ela poderia estar
na quadra poliesportiva do colégio. No entanto, ao chegarem, encontraram o
espaço vazio.
Tateando as redes de proteção ao redor da quadra, um dos participantes
encontrou um pequeno bilhete escrito em braile: "Se eu não estava aqui, quer dizer
que já encontrei o que precisava. Fui em busca do perfume no lugar que não tem
cheiro, porque se cheiro tiver, com péssimo gosto estará. Além de inodoro, ele
também é incolor. Para chegar até lá, como uma pessoa na lua vocês deverão
andar”.
Intrigados, o grupo rapidamente concluiu que o local mencionado deveria ser
um dos bebedouros do colégio. Contudo, a instrução de caminhar "como uma
pessoa na lua" gerou dúvidas. As adolescentes enxergantes, tendo referências
visuais de filmes e séries de TV, tentaram explicar aos adolescentes cegos – cujas
noções sobre o espaço eram advindas somente de informações auditivas – como
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
25
deveriam se deslocar. Descreveram o ritmo, o peso e os movimentos necessários
para emular o caminhar característico de uma pessoa no espaço sideral.
Após algumas tentativas frustradas, recorreram a mim, solicitando orientação
para que todos pudessem caminhar de maneira próxima ao de alguém andando
no espaço. E sugeri: “Façam comparações”, que em minha experiência,
ensinando-aprendendo teatro com pessoas com deficiência visual, descobri que
estabelecer relações entre elementos facilita significativamente o processo de
mimese corporal, quando essa é a intenção.
Buscar nas próprias referências experiências vividas, sensações ou
situações experimentadas e tecer comparações com o que se deseja
mimetizar oferece uma base sólida para a reprodução de ações que a pessoa cega
nunca vivenciou diretamente, apenas ouviu falar sobre. Uma abordagem que age
nos interstícios entre a visão e a cegueira, cruzando identidades sensoriais e
modos de assimilação de informações que podem enriquecer o porvir do processo
mimético sem que haja imposições de quem conduz a prática ou ensaio sobre
como a pessoa deveria agir ou se movimentar. Afinal, como bem destaca Jorge
Larrosa Bondia (2002, p. 21), a informação “é quase o contrário da experiência,
quase uma antiexperiência”.
Assim, recorrer a figuras de linguagem permite uma apreensão que vai além
do racional, transmutando a lembrança em dimensão física. Essas constatações
também são corroboradas por Marlíria Flávia Cunha (2017), que, com mais de trinta
anos de experiência no teatro com pessoas com deficiência visual no Instituto
Benjamin Constant, afirma que essa abordagem torna o processo criativo-
mimético profundamente pessoal, sem que a pessoa enxergante imponha um
“modo certo” de agir.
“Vocês precisam andar como se estivessem dentro de uma piscina!”, sugeriu
uma das adolescentes enxergantes. Imediatamente, a quadra transformou-se na
superfície lunar. O ritmo do grupo tornou-se pausado, os pés mal saíam do chão,
e a resistência imaginária da água dava peso a cada movimento. Os Astronautas-
Aventureiros-Alquimistas partiram até os bebedouros do colégio, onde outra pista
os aguardava.
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
26
Embaixo de um dos bebedouros, uma pista escrita em braile dizia: “Esperei,
esperei, esperei e esperei... Parti para o esconderijo seguinte. Trata-se do lugar em
que o vento faz chacoalhar, que as sombras ajudam a refrescar e que a luz do sol
se transforma em alimentos. Sem ir muito longe de onde estão, a próxima pista
está perto. Tão perto quanto os braços de vocês, esticados ao máximo como se
fossem parte do que sou, podem, quase, alcançar.”
O grupo rapidamente deduziu que a pista indicava as árvores próximas.
Esticaram os braços, deslizando as mãos pelos troncos e galhos, sentindo a
textura das cascas até que, entre as folhagens, encontraram outro bilhete. “Cheiro
de carne, de pão e de linguiça. Cheiro de fumaça que sobe e exala, que impregna
e esfumaça. A próxima pista está no lugar em que as mãos saem sujas e a barriga
cheia. É como gás que devem chegar até lá.”
Guiando-se pelo cheiro de fumaça no ar, os Aventureiros-Alquimistas foram
até a churrasqueira próxima à cantina, onde uma pista em braile os esperava. “Já
fui e já voltei. Os Aventureiros mais velhos saberão onde estou. Não digam para as
mais novas. Leiam apenas para si. Façam as mais novas seguirem vocês. Estou
onde, um dia, já tomamos um Banho de Sol.”
Este bilhete fazia referência a um episódio anterior do Drama, O Banho de
Sol, vivenciado apenas pelos adolescentes com deficiência visual. Sem acesso à
informação, as adolescentes enxergantes protestaram, argumentando que não
saber braile as deixava em desvantagem. “Talvez, seja hora de vocês aprenderem,
não? A gente também não sabe de muita coisa e fica sem noção do que
acontecendo, se ninguém conta pra gente... Viu como é ruim?”, respondeu, rindo,
uma das adolescentes cegas. Após um momento de silêncio, a informação foi
compartilhada e todos seguiram juntos até o parquinho do colégio. Lá, uma última
carta os aguardava.
Caras Aventureiras e Aventureiros,
Encontrei não só as fragrâncias como também o Mestre Perfumista, preso em um sono
profundo.
Como só conseguia carregar uma coisa ou outra, levei o Mestre de volta para a Boutique.
Peguem os perfumes que deixei aqui e voltem para a Boutique.
Aguardo vocês lá.
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
27
Ao retornar à Boutique, o grupo encontrou o Mestre Perfumista deitado sobre
um dos balcões, ainda em sono profundo. A Assistente Boa os recebeu com
entusiasmo: “Agora, cada um de vocês deve levar seu frasco até o nariz do Mestre
Perfumista,” ela instruiu, “para que o antídoto possa fazer efeito.”
Os Aventureiros-Alquimistas aproximaram cuidadosamente seus frascos, um
a um. A intensidade dos aromas foi se sobrepondo ao silêncio da sala. O primeiro
aroma que tocou suas narinas foi um cítrico suave, depois veio o amadeirado
terroso e, por fim, uma nota adocicada de baunilha misturada ao frescor de ervas.
Lentamente, seus dedos começaram a se mover, como se o olfato despertasse
sua consciência. Pouco a pouco, o Mestre Perfumista começou a despertar, até
abrir os olhos e agradecer: “Vocês conseguiram! Não apenas criaram o perfume
com aroma de Noite Estrelada, mas também trouxeram a cura para a maldição
do Bosque das Moscas, que há tanto tempo assola nossa terra. Sou eternamente
grato.”
Antes que o grupo pudesse responder, a porta da Boutique foi aberta
bruscamente. O Conde entrou, seguido pela Assistente “Má”, visivelmente abalada.
Com a voz trêmula e os olhos marejados, ela de desculpou, dizendo: “O Bosque
das Moscas é o lugar onde os melhores insumos, os mais raros ingredientes à arte
da perfumaria nascem e florescem. Meu medo era que, com o antídoto, toda e
qualquer pessoa pudesse ir até lá... e que minha prima e eu perdêssemos nosso
trabalho. Não sabia o que fazer, e o medo tomou conta de mim.”
O Conde aproximou-se para consolá-la, revelando: “Quero que saibam que o
que vocês, Aventureiros-Alquimistas, fizeram hoje mudou tudo. Meu próprio filho...
Ele se perdeu no Bosque muitos anos e nunca conseguiu voltar para os meus
braços. Sempre sonhei em encontrar um antídoto, algo que pudesse dissipar a
maldição do Bosque e impedir que outras famílias sofressem como a minha
sofreu... Vocês criaram o impossível: a fragrância de uma Noite Estrelada. É com
orgulho que concedo a cada um de vocês a alcunha de Mestres Perfumistas. Como
prometido, sua deliciosa recompensa será entregue na próxima semana, em uma
cerimônia que estará à altura de sua conquista”.
O grupo explodiu em aplausos, enquanto a Assistente Boa abraçava sua
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
28
prima, e o Mestre Perfumista, agora desperto, observava tudo com orgulho e
emoção. Pouco depois, pedindo licença, as quatro personagens se retiraram da
sala. Retornaram algum tempo depois, não mais como figuras ficcionais, mas
como integrantes da equipe do projeto de extensão, evidenciando o trânsito entre
ficção e realidade, propondo uma travessia simbólica de volta ao cotidiano, mas
agora transformado pela experiência coletiva do Drama.
A quebra da convenção ficcional funcionou como ritual de passagem: o grupo,
antes constituído por Aventureiros-Alquimistas, agora se reconhecia como Mestres
Perfumistas, não apenas na narrativa, mas em sua potência inventiva e
cooperativa. A suspensão do jogo, nesse sentido, não se configurou como fim, mas
como abertura: espaço fértil para a elaboração crítica da experiência, em que os
adolescentes puderam reelaborar memórias, acessar outras formas de escuta,
negociar sentidos e partilhar afetos.
Em uma escola marcada por dinâmicas segregadoras – entre turnos, corpos,
acessos e modos de aprender –, o episódio final instaurou uma dramaturgia da
convivência. Braile e tinta, visão e tato, informação e experiência deixaram de ser
opostos para tornar-se suportes de partilha, cuidado e criação conjunta. O
processo, nesse gesto final, reafirmou a potência do Drama como uma abordagem
sensível, em que a escuta do outro e a reinvenção do espaço se tornam estratégias
de formação e transformação.
Considerações finais
A experiência do processo de Drama
A boutique do Mestre perfumista
,
proposto a partir de crônicas de Clarice Lispector, evidencia a potência dessa
abordagem como um dispositivo pedagógico-criativo acessível a pessoas cegas ou
com baixa visão. A peculiaridade de suas estratégias e convenções, aliada à
diversidade de caminhos e objetivos que podem ser delineados com o grupo
participante, amplia as possibilidades de interlocução do Drama com a noção de
mundividência tátil, tal como proposta por Belarmino (2004).
Além disso,
A boutique do Mestre perfumista
reafirma o Drama como uma
abordagem capaz de rasurar o visuocentrismo predominante nas práticas
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
29
convencionais de criação e de ensino-aprendizagem teatrais, convocando outras
modalidades sensório-perceptivas a esses processos. As situações propostas ao
longo dos episódios estimularam todos os participantes – cegos, com baixa visão
ou enxergantes a mobilizarem sentidos para além da visão, promovendo
descobertas que ressignificaram suas percepções sobre si e sobre o outro.
“Percebi que é plenamente possível viver sem enxergar” (informação verbal),
refletiu uma das adolescentes enxergantes na avaliação do processo, evidenciando
aquilo que que Cabral (2009, p. 7) define como um dos prazeres do fazer teatral:
[...] ele permite que o indivíduo se perca dentro, ou entre outros mundos,
o que o leva a re-conceituar e re-experimentar as relações entre ele e os
outros outras pessoas, outras histórias, outras realidades, outras
linguagens. É esta possibilidade de estar perdido que torna possível que
ele encontre significados além do banal, que ele possa ler a cena e o
mundo através de outras perspectivas.
Esse deslocamento de perspectivas ficou evidente na travessia do grupo, ao
final do processo, da ficção para o cotidiano, reconhecendo-se como autores de
um percurso coletivo de escuta, conflito ético e invenção. O processo vivido ali não
se limitou à ficção: ele se alargou como espaço político de negociação de sentidos,
no qual as decisões precisaram ser partilhadas, os dilemas debatidos e os afetos
colocados em circulação. Isso exigiu não apenas escuta sensível e
corresponsabilidade, mas também a coragem de sustentar zonas de incerteza e
desacordo. Esse aspecto se revela central numa pedagogia teatral comprometida
com a formação ética dos sujeitos.
Em relação ao nosso objetivo, enquanto equipe do projeto de extensão e
condutora do processo, de estimular a interação entre os adolescentes com e sem
deficiência visual, percebemos que o Drama favoreceu essa aproximação ao longo
dos episódios. A estratégia das cartas escritas em tinta e em braile atuou como
um dos fios condutores dessa relação, exigindo que recorressem uns aos outros
para a leitura e interpretação dos textos. Essa necessidade inicial de cooperação
foi se desdobrando, de maneira mais orgânica, nas demais situações vivenciadas,
inclusive enfrentando tensões e assimetrias de acesso à informação. Esses
episódios de desequilíbrio se tornaram pontos de inflexão na experiência coletiva,
ampliando o repertório crítico e relacional do grupo.
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
30
Atendendo aos desejos manifestados pelos próprios participantes, o
processo também forneceu referências e materiais dramatúrgicos que
contribuíram para a estruturação de um espetáculo teatral, cuja estreia ocorreu
em dezembro de 2024.
No contexto deste artigo, convém, ainda, pontuar a importância da Extensão
Universitária como um espaço propício à ressignificação da Pedagogia do Teatro,
como caminho para ampliar sua capacidade dialógica diante da pluralidade
corporal, sensorial e subjetiva que compõem a sociedade. Pela sua
indissociabilidade com o Ensino e a Pesquisa, a Extensão emergiu como um eixo
essencial do processo de Drama aqui discutido, viabilizando um lócus de interação
e articulação de saberes entre discentes do ensino superior e as pessoas DEF,
historicamente excluídas dos ambientes acadêmicos, conforme apontam os
dados do Inep (Brasil, 2020).
Dessa forma, a experiência aqui analisada não apenas confirma a pertinência
do Drama como abordagem pedagógico-criativa acessível, mas também aponta
caminhos para que as Artes Cênicas avancem na desconstrução de paradigmas
excludentes, abrindo-se a novas epistemologias e práticas formativas, criativas e
fruitivas que reconheçam diferentes modos de ser, perceber, significar e se
relacionar com o mundo. Afinal, como demonstraram os Aventureiros-Alquimistas,
agora também Mestres Perfumistas, a acessibilidade, aqui, não foi um ponto de
chegada ou um adereço técnico. Ela se tornou a própria via de criação e
experimentação teatral, instaurando uma outra poética fundada na escuta, na
partilha e na presença plural dos corpos e dos sentidos.
Referências
BELARMINO, Joana.
Aspectos comunicativos da percepção tátil
: a escrita em
relevo como mecanismo semiótico da cultura. Tese (Doutorado) - Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2004.
BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência.
Rev.
Bras. Educ
. [
online
], 2002, n.19, p.20-28.
BRASIL.
INEP
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira. Censo da Educação Superior 2019. Brasília: MEC, 2020.
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
31
CABRAL, Beatriz.
Drama como método de ensino
. São Paulo: Hucitec, 2006.
CABRAL, Beatriz. O teatro no espaço da cidade O lugar praticado.
Revista
Percevejo
, Rio de Janeiro, v.1, n.1, 2009.
CARMO, Carlos Eduardo Oliveira do.
Vocês, bípedes, me cansam! Modos de aleijar
a dança como contra narrativa à bipedia compulsória
. Tese (Doutorado em Difusão
do Conhecimento) – Universidade do Estado da Bahia, 2023.
CUNHA, Marlíria Flávia Coelho da.
Em busca da expressividade
. 108fls. Dissertação
(Mestrado em Diversidade e Inclusão) – Universidade Federal Fluminense, Niterói,
2017.
DESGRANGES, Flávio.
Pedagogia do Teatro
: provocação e dialogismo. São Paulo:
Hucitec, 2006
JANIASKI, Flávia; PEROBELLI, Mariene; MENEGAZ, Wellington.
Drama através do
espelho
: processos artísticos e pedagógicos em ambiente digital. Jundiaí: Paco
Editorial, 2023.
LAPPONI, Estela.
Corpo intruso
: uma investigação cênica, visual e conceitual. São
Paulo: Editora Crib Tanaka, 2023.
LARROSA, Jorge. Experiência e alteridade em Educação.
Reflexão e Ação
, v. 19, n.
2, 04-27, 5 jul. 2011.
LISPECTOR, Clarice.
Aprendendo a viver
. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004.
MORAES, Marcia. PesquisarCOM, Política Ontológica e deficiência visual In Moraes,
M. 7 Kastrup, V. (org.).
O Exercício de ver e não ver
. Rio de Janeiro: Nau, 2010, p. 26
-51.
PEREIRA, Diego de Medeiros.
Drama na Educação Infantil
: experimentos teatrais
com crianças de 02 a 06 anos. 2015. 296 f. Tese (Doutorado em Teatro) -
Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.
PINHEIRO, Lucas de Almeida; MARTINS, Lúcia Helena. Estímulo composto como
estratégia de ensino-aprendizagem teatral com jovens cegos.
Pitágoras 500
,
Campinas, v. 12, 1-12, 2022.
PINHEIRO, Lucas de Almeida.
Teatros e artistas com deficiência visua
l: poéticas do
acesso à cena. Campinas: Editora da Unicamp, 2024.
RABÊLLO, Roberto Sanches.
Teatro-educação
: uma experiência com jovens cegos.
Salvador: EDUFBA, 2011.
A Boutique do Mestre Perfumista
: Drama e sua acessibilidade a pessoas cegas e com baixa visão
Lucas de Almeida Pinheiro
Florianópolis, v.2, n.55, p.1-32, ago. 2025
32
SOMERS, John. Narrativa, Drama e Estímulo Composto. Trad. Beatriz A. V. Cabral.
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, n. 17, 175-185,
2011.
SPOLIN, Viola.
Jogos Teatrais
: o fichário de Viola Spolin. Trad. Ingrid Koudela. São
Paulo: Perspectiva, 2001.
Recebido em: 04/02/25
Aprovado em: 20/07/25
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
PPGAC
Centro de Arte, Design e ModaCEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br