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Está se sentindo melhor agora, Sr. Schmitt?
Carminda Mendes André
Para citar este artigo:
ANDRÉ, Carminda Mendes Está se sentindo melhor
agora, Sr. Schmitt? Urdimento Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 54, abr. 2025.
DOI: 10.5965/1414573101542025e111
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Florianópolis, v.1, n.54, p.1-17, abr. 2025
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Está se sentindo melhor agora, Sr. Schmitt?1
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Resumo
Contextualizou-se o teatro épico de Bertolt Brecht como teatro moderno. Desse
modo, perguntou-se: o teatro épico de Brecht ainda dialoga com o tempo presente?
Como caminho metodológico, adotou-se a sugestão de Walter Benjamin de retornar
ao passado em leitura a contrapelo. Ao se retornar aos fundamentos do teatro
moderno ocidental, especificamente o modelo épico de teatro, encontraram-se
procedimentos ainda ressoantes para a cena da atualidade.
Palavras-chave: Teatro moderno. Modelo épico. Ruptura.
Are you feeling better now, Mr. Schmitt?
Abstract
Bertolt Brecht's epic theater was contextualized as modern theater. In this way, the
question was asked: does Brecht's epic theater still dialogue with the present time?
As a methodological path, Walter Benjamin's suggestion of returning to the past in a
backward reading was adopted. When returning to the foundations of modern.
Western theater, specifically the epic theater model, we found procedures that are
still resonant for today's scene.
Keywords: Modern theater. Epic model. Rupture.
¿Se siente mejor ahora, señor Schmitt?
Resumen
El teatro épico de Bertolt Brecht fue contextualizado como teatro moderno. De esta
manera, se planteó la pregunta: ¿el teatro épico de Brecht todavía dialoga con la
actualidad? Como camino metodológico se adoptó la sugerencia de Walter Benjamín
de regresar al pasado en una lectura retrospectiva. Al volver a los fundamentos del
teatro occidental moderno, específicamente al modelo de teatro épico, se
encontraran procedimientos que todavía resuenan en la escena actual.
Palabras clave: Teatro moderno. Modelo épico. Ruptura.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Ana Maria Teixeira. Doutorado em
Educação e Linguagem pela Universidade de São Paulo (USP). Graduação em Língua Portuguesa e Literatura
Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
2 Pós-doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Doutorado em Educação
pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em Filosofia pela USP. Graduação- Bacharelado em Teatro
pela USP. Docente da graduação e pós-graduação na Universidade Estadual Paulista (UNESP).
mendes.andre@unesp.br
http://lattes.cnpq.br/0337663798764526 https://orcid.org/0000-0002-0727-5766
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Introdução
Dedico este texto à Ingrid Koudela que me
ensinou tudo sobre o teatro de Brecht.
Este ensaio parte da questão: o que, do teatro épico de Bertolt Brecht, ainda
dialoga com o tempo presente 2025?
*
Terceiro Inquérito.
O LÍDER DO CORO dirigindo-se à Multidão:
- Observem o nosso mero de palhaços, no qual Homens ajudam um
homem!
Três palhaços de circo sobem ao estrado; um deles, chamado Sr. Schmitt,
é um gigante. Eles falam em voz muito alta.
PRIMEIRO - Uma bela noite esta, não é Sr. Schmitt?
SEGUNDO - O que o senhor diz da noite, senhor Schmitt?
SR. SCHMITT - Não acho bonita.
(todos os fragmentos\intervenção no texto são da peça didática Baden-
Baden Sobre o Acordo de B. Brecht)
*
Muitos analistas afirmam que estamos vivendo a mudança de paradigma, e
que a crise ambiental, a ascensão da extrema direita no Ocidente e a crise
humanitária podem ser sintomas desta mudança. Como uma pessoa que nasceu
no início dos anos 60; que viveu a juventude debaixo de uma ditadura e sabia do
horror que a envolvia; que viveu a euforia da abertura democrática e de três
mandatos do partido progressista mais organizado do país; que viveu para ver
uma mulher, ex-guerrilheira, subir à presidência e instaurar a Comissão da Verdade
para investigar crimes de violação de direitos humanos no período da ditadura
militar; mas que a viu ser arrancada de sua cadeira de presidenta pelas garras de
políticos, religiosos e militares fascistas; depois de assistir a esse movimento de
avanços e retrocessos históricos e a incapacidade atual de reação dos
movimentos sociais progressistas, nenhum pensador me foi mais certeiro do que
o velho Marx ao afirmar: “tudo [na História] que é sólido desmancha-se no ar”. O
reconhecimento da impermanência da História – física, cultural, política seria o
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que poderíamos chamar de fato histórico? O que fazer diante de tal percepção?
“O amanhã é uma possibilidade que precisamos de trabalhar e porque, sobretudo,
temos de lutar para construir. O que ocorre hoje não produz inevitavelmente o
amanhã” (Freire, 2021, p. 42).
O que nos ensina Marx e Freire, senão, que a luta é permanente? Não lugar
de chegada quando se trata de vida e valores humanos. Como, no entanto, manter
a chama da luta e a esperança nas mudanças diante do vai e vem da História?
Com a vontade enfraquecida, a resistência frágil, a identidade posta em
dúvida, a autoestima esfarrapada, não se pode lutar. [...] Como não se
pode lutar, por faltar coragem, vontade, rebeldia, se não se tem amanhã,
se não se tem esperança (Freire, 2021, p. 23).
Freire acreditava na falta de projetos de futuro aos ‘esfarrapados do mundo’
do mesmo modo que falta ‘amanhã’ aos subjugados pelas drogas (metáforas do
autor). Hoje, ao olhar para a sociedade brasileira, para seu conservadorismo em
todas as classes sociais em que este se manifesta, encontro, em sua maioria, a
aposta em um futuro sob a “proteção” do capital, da política do Estado mínimo e
em um Deus bíblico. Estaria Walter Benjamin (2013) certo ao afirmar que o
capitalismo é uma espécie de religião? Não sei realmente se falta algo para essa
gente ou se não é mais realista admitir que grande parcela da sociedade brasileira,
do pobre ao rico, é conservadora? É preciso descobrir para pensar em um teatro
político para a atualidade, teatro que dialogue com esses valores para não cairmos
na armadilha do “discursar para nós mesmos”.
algo que me parece interessante observar: a extrema direita – seja de que
classe social pertença, insisto ao afirmar os valores do capital atrelado ao
fanatismo religioso parece ter-se incomodado com as mudanças operadas no
mundo. Os conservadores caçam, a todo custo, direitos conquistados de minorias
bem como continuam a violar modos de produção não capitalista e direitos
humanos dos revoltosos.
O que se afigura, portanto, para muitos analistas é que vivemos a colonização
por outros meios (Santos, 2002). Do ponto de vista das práticas sociais
progressistas, encontramos palavras como: descolonizar, sulear, empretecer.
Descolonizar, decolonizar, sulear, empretecer poderiam ser modos atualizados
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para a emancipação social? Até quanto o teatro da conscientização política do
autor alemão pode deslocar-se para tornar-se ferramenta de descolonização,
suleação, empretejamento do pensamento e dos hábitos no presente?
Brecht, como Freire, ao lutarem pela liberdade, apostaram na educação e na
politização das gentes. Aquele, por meio do teatro, este por meio da escola. Ambos
traçam um projeto político-pedagógico para a emancipação coletiva. E o teatro
político brasileiro, de norte a sul, trabalha por algum tipo de emancipação social?
Ou são outros seus propósitos diante de um mundo em mudanças?
A aposta da emancipação a encontramos em Kant (1974) para pensar a
modernidade de seu tempo. Emancipação é um conceito moderno, portanto. A
pergunta se repete: ainda somos modernos? Ou a crise que enfrentamos, para
aqueles que a percebem, indica que jamais fomos modernos?
*
SR. SCHMITT - Sabe, eu acho que o meu esquerdo está me doendo
um pouco.
PRIMEIRO - Dói muito?
SR. SCHMITT com dor - Como?
PRIMEIRO - Dói muito?
SR. SCHMITT - Sim, dói bastante.
SEGUNDO - É de ficar em pé.
SR. SCHMITT- Bem, será que eu devo me sentar?
PRIMEIRO - Não, de jeito nenhum. Isso nós temos que evitar.
SEGUNDO - Se o seu pé esquerdo está doendo, só tem um remédio: fora
com o pé esquerdo.
PRIMEIRO - E quanto mais rápido, melhor.
SR. SCHMITT - Bem, se vocês acham. . .
SEGUNDO - Claro.
Serram-lhe o pé esquerdo.
SR. SCHMITT - Uma bengala, por favor.
*
Michel Foucault (2000), na tentativa de estudar e definir o nosso presente,
encontra no pensamento kantiano o germe de uma maneira de se aproximar do
presente que ainda perduraria entre nós. Kant (1974), em um breve texto em que
responde aos sujeitos de sua época “o que é o iluminismo, ou seja, o que seria seu
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presente”, diagnostica a condição humana de seus contemporâneos em estado de
“menoridade”. Por “menoridade” entende “a incapacidade do indivíduo de fazer uso
de seu entendimento sem a direção de outro”. Segundo o filósofo iluminista, essa
situação é culpa do próprio indivíduo que não possui o entendimento necessário
para sua emancipação ou a coragem para fazer uso de sua razão. Kant apresenta
o “Esclarecimento” como “saída” para a menoridade da humanidade. Desta
perspectiva, penso que não seria incorreto compreender que um dos fundamentos
do teatro épico de Brecht aposta no uso da razão crítica como ferramenta de
emancipação coletiva. Brecht tinha um inimigo concreto: o III Reich. E nós, qual
nosso inimigo real?
Foucault, nosso contemporâneo, volta-se ao passado e observa, no
pensamento de Kant, uma atitude que lhe parece perdurar nas lutas sociais dos
anos 60-70-80 do século passado. Por atitude Foucault compreende “uma
maneira de pensar e de sentir, uma maneira também de agir e de se conduzir que,
tudo ao mesmo tempo, marca uma pertinência e se apresenta como uma tarefa”.
A “atitude de modernidade” retirada do pensamento kantiano passa por uma ética,
um modo de relação consigo mesmo, atitude voluntária de não aceitar a condição
humana tal como ela se apresenta no momento – uma atitude de crítica sobre o
ser histórico indicando um modo de subjetivação em que o indivíduo moderno
passa a tomar para si a tarefa de elaborar a si mesmo. Se interpretarmos este ‘si’
como coletividade, detectar e desmontar tal procedimento pode nos ajudar a
compreender “o que fazemos” e “como fazemos” (Foucault, 2000). Ora, não seria
este o propósito, ou um deles, do efeito de distanciamento do teatro épico?
O que diferencia a “atitude moderna”, que Foucault retira de Kant (1974), de
formas anteriores de conceber o presente é ser ela uma intervenção no presente
imediato, uma tarefa que teremos que realizar em nossas práticas. A ideia de uma
microfísica do poder, defendida por Foucault, se anuncia. O combate se faz nas
relações cotidianas. Foucault me parece encaminhar a ação na chave da
imanência. A “saída” não está na origem dos tempos no resgate do passado –,
não está na ruptura com o passado, nem em um futuro a ser conquistado. A
“saída” é o próprio presente. Boaventura de Souza Santos, ao lutar por uma ciência
das emergências, propõe, como caminho metodológico, uma ecologia dos saberes
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que reitera epistemologias inviabilizadas ou que produzam práticas sociais para
dilatar o presente (Santos, 2002). Walter Benjamin propõe consultar o passado
para, a contrapelo, verificar o que de ressonância dele ainda vivo no presente.
Ambos, em meu entendimento, se complementam.
Para mim, o convite deste número voltado a Bertolt Brecht acendeu o desejo
de colocar em prática os exercícios benjaminiano e de Santos. Retornar ao teatro
de Brecht, um passado recente, seus pensamentos e procedimentos de criação e
politização, pode nos oferecer ressonâncias em nosso teatro político atual
dilatando nosso presente? A atitude crítica que nos aponta Foucault e que
observamos ressonância no teatro brechtiano ainda funciona como ferramenta de
emancipação para nossas plateias?
Mesmo sem prometer qualquer resposta, este texto é um esforço por realizar
revisão histórica do teatro moderno para ver se encontro algum rastro para nossa
caminhada presente. Quiçá este número dedicado a Brecht poderá nos trazer
observações e reflexões sobre o teatro político que é possível e necessário hoje.
*
SR. SCHMITT - Eu não queria incomodar vocês mais do que o necessário,
mas sem a bengala eu não posso me arranjar.
SEGUNDO ·- Em vez de pegarmos a bengala, faríamos melhor em serrar
a outra perna, que lhe dói tanto.
SR. SCHMITT - É. Talvez melhore assim.
Serram a outra perna. Senhor Schmitt cai.
*
As reflexões que trago sobre o teatro brechtiano são parte da pesquisa que
desenvolvi em meu doutorado defendido em 2007. Estaria já em desuso? Está ai,
leitores e leitoras, um trabalho que lhes convido a avaliar. Naquela ocasião, ao
refletir sobre o conceito de representação, resumi o teatro moderno em três
modelos teatrais. Uma das hipóteses que defendi foi que todos os três modelos
teatrais eram propostas de práxis emancipatórias. Eu os chamei de modelos
justamente por compreender tratar-se de propostas teatrais cuja finalidade é criar
imagens de realidade; representação da realidade. O conceito de representações
operado na tese associa-se à crença em uma totalidade – o real – contêm o todo
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de onde emerge. A representação funciona como uma foto tirada desse todo que
não é possível apreender em sua totalidade, mas que se deixa ver por imagens.
Nessa perspectiva, todo espetáculo é uma imagem em que podemos contemplar
a totalidade.
Quais são os modelos? São eles: o processo artístico-pedagógico
desenvolvido por Stanislavski o teatro dramático (modelo dramático)
trabalhando sobre a ética; as práticas políticas desenvolvidas por Brecht o teatro
épico (modelo épico) trabalhando sobre a política; e o processo artístico-
pedagógico apresentado por Grotowski o teatro mítico (modelo mítico)
trabalhando sobre os saberes ancestrais. A hipótese era de que os modelos
teatrais, juntos, formavam o projeto do teatro moderno ocidental. Não posso dizer
que cheguei à sua comprovação, mas, o que pude observar na época era que cada
um dos modos estudados de fazer teatro mostrou-me seus limites, o que
interpretei como limites do moderno no teatro ocidental. Ao analisar os processos
teatrais a contrapelo, me dei conta não de seus transbordamentos, mas
também germes de outros modos de fazer, deixados à margem de seus processos.
Walter Benjamin estava certo, sua metodologia funciona.
Na época chamei o que vi de teatro pós-moderno. Havia entrado em contato
com a tese de Hans-Thies Lehmann sobre o teatro pós-dramático. Não sei se para
Lehmann, mas para mim renderam muitos cancelamentos. O termo foi
demonizado, como se estivéssemos decretando a morte do teatro dramático. Mas
para quem leu minha tese, e mesmo a do professor alemão, entendeu apenas que
buscávamos nomear o tempo presente. Em nenhum momento defendi o pós-
moderno como a superação do moderno.
*
O mar da modernidade veio e arrastou tudo o que tinha na praia e retornou
ao mar: muitos artistas que estavam na praia os neo-vanguardistas brasileiros
olharam para aqueles destroços deixados pelo arrastão histórico e, a modo de
Duchamp, deram outros sentidos para tudo aquilo. Ao que chamei de arte pós-
moderna. (não se trata de citação, mas de uma intervenção no texto)
*
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Tentei mostrar que as três propostas de teatro seriam motivadas pela mesma
intencionalidade: emancipar o sujeito, individual ou coletivo. Busquei observar o
funcionamento de tais processos sob três prismas: o do ator, o da dramaturgia e
o da cenografia. Não vou me aprofundar, citarei resumidamente.
No método de preparação do ator stanislavskiano, observamos a práxis de
uma ética em busca da transformação do indivíduo-ator em sujeito emancipado.
O limite desta proposta produziria a substituição da noção de ‘sujeito clássico’ – o
herói, pela do ‘eu’ – o indivíduo.
A técnica de criação do ator/atriz épicos, sua meia-máscara, funcionaria
como exercício de conscientização política. Tanto o ator se diferenciava do
personagem, como o espectador se diferenciava do personagem e do ator. Brecht
trabalha na formação do sujeito político. Aposta na capacidade humana de intervir
nas relações de opressão, colocando em cena a microfísica do poder.
a técnica pessoal do ator “desmascarado” do teatro mítico de Grotowski
apontaria para uma terapêutica capaz de trazer à tona conteúdos inconscientes
reprimidos o que ficou às margens da História –, colocando em cena o sujeito
ancestral. Em seus limites, tanto o modelo épico como o modelo mítico acenam
para um teatro sem espectadores, cada qual por razões diferentes.
*
SR. SCHMITT - Você não pode calar a boca?
SEGUNDO Não, senhor Schmitt. Mas eu posso desatarraxar a sua orelha
para que assim o senhor não me ouça quando eu disser que o senhor
não consegue se Ievantar.
SR. SCHMITT - Talvez seja melhor.
Eles desatarraxam sua orelha esquerda.
*
Para contextualizar o que pretendia defender, esforcei-me por traçar
paralelos entre o acontecido nas artes visuais e no espaço cênico teatral até os
anos 60-70, quando se deu, em meu entender, o “extravasamento dos limites do
jogo teatral moderno”.
Veja como fiz a leitura da história moderna das artes visuais: observei, junto
com meu orientador, o processo da dissolução da imagem realista e de qualquer
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vestígio da representação de uma totalidade. Na pintura, atitudes como a de
Magritte, ao conceber o quadro “Isto não é um cachimbo”, deslocam o olhar do
espectador antes no referencial da representação do real para a própria
pintura e desta para o imaginário. Imanência! É o que me soou nos ouvidos quando
estudei Magritte. Os cubistas se incumbiram de dar o golpe de misericórdia no
mimetismo com sua figuração geométrica que, mais uma vez, desloca o olhar – a
experiência estética do espectador para dentro da pintura e desta para o
imaginário de quem olha. Os abstracionistas chegariam ao limite da pintura tinta
sobre tela – no exemplo de Malevitch quando concebe seu quadrado “preto sobre
fundo branco” dissolvendo também o figurativismo cubista. Neste momento da
pesquisa, já estava madura a diferença entre representação – referencial na razão
universalista –, e interpretação referencial na historicidade. Concluí que a arte
moderna havia chegado ao seu limite quando se tornou metalinguagem.
Mas, e no teatro, poderíamos observar semelhante processo?
Levei para o campo do jogo cênico ator-texto-espectador a verificação.
A pergunta que fazia era: também poderia constatar a dissolução da imagem
realista no jogo teatral? Vou me referir somente a alguns neste texto, apenas a
título de exemplo. No modelo dramático, os limites da dramaturgia afiguraram-se
na forma do melodrama expressionista. À maneira dos cubistas, os dramaturgos
do expressionismo ‘geometrizaram’ a representação da narrativa até que o
acontecimento e os comportamentos dos personagens perdessem seus
contornos. No modelo épico, Brecht, ao fragmentar a narrativa, chama a atenção
do espectador para a presença do autor, atores e atrizes, anteriormente
camuflados. Em meu olhar, o gesto do dramaturgo alemão corresponderia ao
gesto dos impressionistas quando iniciam a desconstrução da representação.
Brecht apresenta uma cena inacabada, onde vemos os urdimentos e a preparação
dos atores como se nos dissessem “isto não é realidade” querendo dizer “isto é
teatro”. Esta atitude chamaria a atenção do público para o próprio fazer teatral tal
como na pintura do cachimbo de Magritte. O modelo épico chegaria ao seu limite
no teatro didático brechtiano que, para mim, é, de todas as formas
experimentadas pelo autor, a mais radical, posto que dissolve a função expectante,
anunciando um teatro sem espectadores, com a intenção de metaforizar uma
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sociedade sem classes. Será no teatro didático que encontramos a violência como
procedimento estético e também um modelo de ação sugerido pelo autor? (André,
2011)
Os limites do modelo mítico seriam prenunciados por Artaud com sua
sugestão de colocar o público no centro de um espaço cênico circular. Mas me
detive nas propostas de Grotowski que desloca o espectador para dentro do
espaço cênico, eliminando a máscara do ator. Quando Grotowski coloca o
espectador dentro da cena, oferece-lhe uma função dentro da moldura cênica e
anuncia um teatro sem espectadores. O teatro mítico faria desaparecer o espaço
da plateia transformando todo o espaço em jogo de cena. Isto parecia ser a morte
do teatro, seu limite.
Concluí que a percepção da morte indicaria uma ruptura no jogo cênico. E,
desse modo, impossibilitava o espectador de contemplar uma obra de arte,
fechada e totalizadora. Agora, era preciso que o espectador trabalhasse com os
sentidos dos projetos artísticos expostos; para o novo jogo, uma nova expectação:
a do participante e coautor dos objetos e eventos artísticos.
Nessa época, analisava as produções artísticas de mãos dadas com a tese da
deslegitimação das metanarrativas defendida por J-F Lyotard em seu livro A
condição pós-moderna (2009). Interpretei os modelos teatrais como
metanarrativas que sofriam golpes históricos da arte pós-guerra e do neo-
vanguarda com suas artes participativas: performance, artes populares,
intervenções de rua.
*
Põem no seu colo todos os membros que lhe foram arrancados. O Sr.
Schmitt os observa.
SR. SCHMITT- É estranho, estou com uns pensamentos tão desagradáveis
na cabeça. Por favor - ao Primeiro -, diga-me alguma coisa agradável.
PRIMEIRO - Com prazer, senhor Schmitt, o senhor quer ouvir uma
história? Dois homens saem de uma taberna. Aí, eles começam a brigar
e a atirar bosta de cavalo um no outro. Um deles acerta com a bosta na
boca do outro, ao que este diz: "Pois bem, esta vai ficar aqui, até a polícia
chegar".
O Segundo ri, mas o senhor Schmitt não ri.
SR. SCHMITT - Esta não é uma história bonita. Você não podia me contar
uma história bonita? Como eu disse, estou com uns pensamentos
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desagradáveis na cabeça.
PRIMERO - Não, senhor Schmitt, infelizmente, fora essa história eu não
sei contar mais nenhuma.
SEGUNDO - Ora, a gente podia era serrar logo a sua cabeça, que o
senhor está com pensamentos esquisitos dentro dela.
SR. SCHMITT - Sim, por favor, talvez isso ajude.
Eles lhe serram a parte superior da cabeça.
*
A leitura da História humana segue muitos caminhos. No Determinismo, foi
compreendida como regida por leis naturais imutáveis. Nesta perspectiva, a
humanidade segue, em evolução, para um futuro, um destino, determinado. O que
se chamou ‘realidade’ constituía-se por uma potência em fluxo contínuo seguido
por uma finalidade. As teorias evolucionistas impregnam o espírito dos cidadãos
modernos do sentimento de fazer parte de uma humanidade em evolução. Por
este ângulo, o drama moderno representou a realidade do determinismo; a
estrutura dramática que o compõe representou a natureza em seu fluxo unívoco.
Caminhando em ritmo continuum, a narrativa do drama não pode ser interrompida
tal como a percepção de continuidade retirada do cotidiano. A beleza do drama
centrou-se na contemplação do uno em que as junções das partes não são vistas,
um todo sem fissuras. Nesta estrutura, a retirada de qualquer parte desestabiliza
a veracidade e compreensão do todo. O mecanismo dramático representou a
História como um continuum evolutivo e sem interrupção. Ao desejar a conciliação
entre a compreensão intelectual e a experiência emocional, o modelo dramático,
por meio do efeito de identificação, proporciona a experiência do mergulho
catártico no continuum do universal. É o mergulho na interioridade do Ser. Ao se
reconhecer na vontade do herói, o efeito de identificação levaria o espectador a
contemplar a si mesmo. (Rosenfeld, 1985).
A História como continuum não permite interferência. Brecht, na esteira do
materialismo dialético, irá questionar o determinismo histórico criando uma
dramaturgia em que o fluxo da História é interrompido. Mostrará que ela não
carrega uma finalidade transcendente, transferindo para os seres humanos a
responsabilidade de sua feitura.
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Flávio Desgranges (2003) é quem nos mostrou a aproximação possível do
pensamento de Brecht à concepção de História de Walter Benjamin. O pesquisador
brasileiro esclarece que Benjamin impõe ao historiador a tarefa de paralisar o
tempo presente para, refletindo sobre o passado, resgatar os sonhos coletivos
perdidos nas margens deste rio continuum. Para Benjamin, a cadeia da História
não se estabelece "pela sucessão de fatos, mas pela sucessão de ideias, desejos,
sonhos, necessidades". A linearidade seria interrompida pela provocação. Aparece
uma outra imagem da História: simultaneamente ao fundo continuum, formam-se
"fragmentos descontínuos de agoras", mônadas que conteriam o todo (Desgranges,
2003). Propõe-se uma nova forma de ordenar a produção cultural do presente: a
dialética concreta. Nesta perspectiva, a transformação se daria por saltos.
Ao se deslocar tal ideia para a estrutura épica, entende-se que a tensão entre
presente e passado cria o choque, de modo que a ação seja jogada para fora do
continuum histórico provocando o acontecimento da mudança de direção. A
aposta é que este procedimento provoque uma interrupção abrupta no percurso
da continuidade e, ao paralisar o movimento, processa-se o que Benjamin chamou
de refluxo. Esta parada possibilitaria àquele que reflete resgatar os sonhos
coletivos frustrados revitalizando seu "potencial transformador". “Os sonhos de
porvir, sonhados e sufocados no passado, vêm à tona e, a plenos pulmões, gritam
seus desejos e anseios reprimidos, buscando ressonância na voz do presente”
(Desgranges, 2003, p. 110)
A estrutura narrativa épica é composta por cenas que não se ligam
necessariamente por uma lógica causal. Uma outra maneira de se fazer a História
se apresenta. O real se torna alterável a partir de golpes, de choques. As leis
naturais existem, o continuum existe, no entanto, em diálogo com as intervenções
humanas. Ao trazer o poder revolucionário do não realizado, dos sonhos deixados
à margem, outros comportamentos, outras relações de poder aparecem para
transformar o presente. Brecht revela e denuncia. Por ser uma natureza
montável e desmontável, o ser humano não consciente dessa realidade fica
exposto à manipulação das forças dos poderosos, tornando-se um objeto deles.
Novamente podemos observar a aposta na “atitude de modernidade” operando no
teatro brechtiano.
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*
SR. SCHMlTT - Agora eu me sinto muito mais aliviado. Só que estou com
muito frio na cabeça.
(...)
SEGUNDO - E se nós desatarraxássemos a sua cabeça?
(…)
Desatarraxam-lhe a cabeça. O senhor Schmitt cai de costas.
SR. SCHMITT - Esperem! Um de vocês precisa por a mão na minha testa.
PRIMEIRO - Onde?
SR. SCHMlTT - Um de vocês precisa segurar minha mão.
PRlMEIRO - Onde?
SEGUNDO - O senhor agora se sente mais aliviado, senhor Schmitt?
SR. SCHMITT - Não. O problema é que estou deitado de costas sobre uma
pedra.
SEGUNDO - Ora, senhor Schmitt, também não se pode ter tudo.
Os dois riem ruidosamente. Fim do número de palhaço.
*
Brecht é um apaixonado pelo 'desenvolvimento moderno'. Orgulha-se de ser
'filho de uma época científica'. Crê na razão crítica como caminho capaz de
promover a justiça. Aposta no avanço tecnológico socializado como caminho para
melhorar a existência dos seres humanos. Perante um rio, ela [a ciência] consiste
em regularizar o seu curso; perante uma árvore frutífera, em enxertá-la; perante a
locomoção, em construir veículos de terra e de ar; perante a sociedade, em fazer
uma revolução” (Brecht, 1978, p. 108).
A produção artística dos 'filhos da era científica' e seu prazer estético passam
por uma "atitude produtiva" que significa a 'paixão' pela transformação:
Precisamos de um teatro que não nos proporcione somente as
sensações, as ideias e os impulsos que são permitidos pelo respectivo
contexto histórico das relações humanas (o contexto em que as ações
se realizam), mas, sim, que empregue e suscite pensamentos e
sentimentos que desempenhem um papel na modificação desse
contexto (Brecht, 1978, p.113)
Ao apostar na capacidade crítica para propor mudanças e, motivado pelas
ideias marxistas, Brecht nos apresenta uma ideia não linear de História e indica a
realização de mudança brusca em seu curso. Sua estratégia estaria embasada no
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acirramento das contradições e o possível salto. É pela ruptura com as relações
de opressão que o sujeito social alcançaria sua emancipação. É pelo rompimento
radical.
Ao tentar compreender o sujeito histórico, Brecht nos apresenta uma
inovadora forma de investigação: determinar os comportamentos em sua
historicidade – os gestus
Cada pessoa reage, na realidade, de maneira diversa, conforme os
tempos que correm e a classe a que pertence; quer tenha vivido noutra
época, quer não tenha ainda vivido tanto tempo como outra, quer viva já
no ocaso da vida, a reação é, sempre, infalivelmente, diversa, mas
igualmente precisa e idêntica à de qualquer pessoa que se encontre na
mesma situação e na mesma época; e será que tudo isso não nos leva a
perguntar se não haverá, ainda, outras diferenças possíveis de reação?
(Brecht, 1978, p.114-115).
A conservação do status quo se sustenta na repetição dos gestus que o
compõem. Ao modificar o gestus de uma das partes da relação, aposta ele na
mudança.
Brecht desejou representar os homens como eles poderiam agir. O ator não
mais "encarna" o personagem; retira parcialmente sua máscara. "Ocupa o lugar do
outro" mostrando tratar-se de dois: o ator e o personagem, que não se confundem;
são colocados um diante do outro. O ator épico "veste-se” diante do público. Não
mais "interpreta", mas, sim, "monta e desmonta" as personagens diante do público.
Se a identificação com o personagem nos ensina sobre o que sentem seus lados
bom e mau; seus recalques; as motivações psíquicas – nos levando à experiência
de ser outro, o distanciamento nos ensina como agir.
Para o encenador alemão, o teatro épico estaria a serviço da revolução. Seu
teatro engajado se oferece como espaço de aprendizagem, de formação política.
Rejeita a concepção de arte autônoma e desinteressada da vida cotidiana. Aos
olhos de Brecht nada é natural.
*
Diante da crescente ascensão das forças conservadoras no mundo do
ocidente; diante das guerras e genocídios constantes do poder imperialista sobre
populações vulneráveis; da violação de direitos humanos; diante da catástrofe
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ambiental que se agiganta, o teatro épico nos oferece ferramenta preciosa de
transformação ao nos convidar a olhar para o passado buscando o que brilha em
suas margens. Brecht, Benjamin, Santos precisam ser recolocados nas bibliografias
dos cursos de teatro.
Diante da fragmentação das lutas populares minoritárias, da incapacidade
desses movimentos de realizar pautas únicas sem perder as pautas específicas, o
teatro didático e seus modelos de ação podem revigorar a aposta na coletividade;
nos mostrar quem é o inimigo.
Diante do discurso do capital que transforma vida humana e não humana em
“recursos exploratórios”, o teatro épico de Brecht está repleto de narrativas com
discussão aprofundada sobre o assunto. No entanto, fica no ar a pergunta: temos
um teatro de resistência na atualidade brasileira que nos incite a encarar a
violência como vimos nos fragmentos da peça didático de Baden-Baden Sobre o
Acordo? Não seria interessante pensar no “didático” para além das aulas para
crianças e escolares?
*
A multidão grita - O homem não ajuda o homem.
O LÍDER DO CORO - Devemos rasgar o travesseiro?
A Multidão - Sim.
O LÍDER DO CORO - Devemos jogar fora a água?
A Multidão - Sim.
Fim do terceiro inquérito.
*
Referências
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estudos sobre as condições do ensino do Teatro. Ed. Unesp, 2011.
BENJAMIN, Walter. Capitalismo como religião. Trad: Nélio Schncider. São Paulo:
Boitempo, 2013.
BRECHT, Bertolt. Pequeno Organon para o Teatro. in Brandão, F. Pais (org.) Estudos
sobre o Teatro. Trad: Fiama Pais Brandão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
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BRECHT, Bertolt. Teatro Completo 3. ed. Trad. Fernando Peixoto. Paz e Terra,
1990.
DESGRANGES, Flávio. A Pedagogia do Espectador. São Paulo: Hucitec, 2003.
FOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? in Ditos e Escritos. Trad. Tradução de Maria
Thereza da C. Albuquerque. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação. 7ª ed. Paz e Terra, 2021.
KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: que é “Esclarecimento”? In BUZZI,
Arcângelo R.; BOFF, LEONARDO (Org.). Textos seletos. Trad. Raimundo Vier e
Floriano de Sousa Fernandes. Petrópolis, Vozes, 1974.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-modema. Tradução: Ricardo Corrêa
Barbosa, 12a. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo, Perspectiva, 1985.
SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra o desperdício
da experiência. Para um novo senso comum. Vol. 1. 4ª. ed. São Paulo: Cortez, 2002.
Recebido em: 01/02/2025
Aprovado em: 22/03/2025
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