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Editorial
Dossiê Temático:
Teatralidades negras, africanas e afrodiaspóricas
Imagem da Capa
Projeto Gráfico
: Marcelo Pires de Araújo
Espetáculo
: Revista Íntima
Direção
: Vicente Concílio
Foto
: Caio Cesar
Para citar este Editorial:
DESS, Conrado; OLIVEIRA, Erico José Souza de; LIMA, Evani Tavares;
ALEXANDRE, Marcos Antônio; ONISAJÉ, Fernanda Júlia Barbosa; LAICE,
Nilza Gomes de Oliveira. Editorial Dossiê: Teatralidades negras,
africanas e afrodiaspóricas.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 4, n. 53, p. 1-4, dez. 2024.
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Editorial
Dossiês Temático: Teatralidades negras, africanas e afrodiaspóricas
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-7, dez. 2024
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Comitê Editorial
O Comitê Editorial proponente deste Dossiê
Temático foi composto pelas/os professoras/es:
Conrado Dess
(Coordenador USP);
Érico José Souza de Oliveira
(UnB);
Evani Tavares
Lima
(UFBA);
Marcos Antônio Alexandre
(UFMG);
Onisajé,
Fernanda Júlia
Barbosa (UFBA);
Nilza Gomes de Oliveira Laice
(Universidade Eduardo
Mondlane Moçambique).
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Dossiês Temático: Teatralidades negras, africanas e afrodiaspóricas
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-7, dez. 2024
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Editorial Dossiê: Teatralidades negras, africanas e afrodiaspóricas
Pensar a presença negra nas artes da cena é um desafio que tem mobilizado
artistas e pesquisadores de forma significativa nos últimos anos. Diante de um
campo de estudos ainda edificado sobre pilares brancos e eurocêntricos, como é
o caso da pesquisa em artes cênicas, torna-se urgente que as investidas práticas
e teóricas voltadas à fratura desse alicerce colonial ocupem, de maneira crescente
e renovadora, os meios e espaços que o sustentam. Seja nas universidades
brasileiras, onde os currículos e quadros docentes permanecem amplamente
marcados pela branquitude; nos periódicos acadêmicos da área, ainda
concentrados sob a hegemonia de comissões editoriais e publicações de autoria
branca; ou nos palcos e demais espaços de criação e fruição artística, que, embora
cada vez mais ocupados por artistas negros, ainda não refletem a pluralidade
racial, étnica e cultural da população brasileira, o desafio que se impõe é a
ampliação contínua dos esforços que buscam desestabilizar o legado colonial e
escravocrata que atravessa nossa sociedade e cujas marcas ainda moldam, de
maneira persistente, profunda e indelével, as dinâmicas sociais do presente.
A publicação do dossiê
Teatralidades negras, africanas e afrodiaspóricas
pela revista Urdimento configura-se justamente como uma tentativa de
estabelecer e consolidar um espaço fecundo para a reflexão intelectual, o diálogo
acadêmico e a valorização das especificidades e implicações de uma imersão
qualificada. Trata-se, sobretudo, de um esforço para evidenciar a produção de
discursos poéticos e estéticos elaborados por artistas e pesquisadores negros e
negras, fundamentados nas culturas negras e no campo das artes cênicas. Nesse
contexto, os artigos que integram a publicação abrangem uma variedade de temas
e abordagens que revelam parte da riqueza e complexidade das formas edificadas
pelas produções e práticas cênicas negras ao longo da história recente.
De maneira explícita, este dossiê recorre ao conceito de "teatralidades" como
uma possível noção integradora, que designa um fenômeno gerado por corpos que
se colocam em performance. A proposta consiste em examinar as particularidades
desse processo quando atravessado pelas dinâmicas da negridade, convocando
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um repertório estético e cultural negro originário tanto da Diáspora quanto da
África pré-colonial. Enquanto processos que ultrapassam os arranjos formais
delineados pela teoria das artes cênicas, essas teatralidades negras não se
restringem ao teatro, mas abrangem também as danças, performances e práticas
culturais que se materializam por meio da cena. Dada a dificuldade da teoria em
capturar a complexidade intrínseca às práticas mobilizadas, é importante
reconhecer que, embora abrangente, este conceito talvez não seja capaz de
abarcar completamente a multiplicidade de temas e formas que os pesquisadores
e pesquisadoras deste dossiê exploram.
Em
Teatralidades negras
, artigo de abertura da publicação, Conrado Dess
(USP) examina o fenômeno da teatralidade negra, adotando uma abordagem que
tensiona a construção histórica do conceito de teatralidade com perspectivas
históricas, sociais e filosóficas que atravessam e moldam a existência negra.
Referenciando pensadores como Fred Moten, Zora Neale Hurston, Josette Féral e
Cedric Robinson, o autor discute a ideia de teatralidades negras, ressaltando as
múltiplas complexidades e camadas de significação que atravessam a noção. Por
fim, são analisadas formas de teatralidade negra produzidas pelos
drag balls
e
pelo
voguing
e explorados modos como tais expressões são articuladas no
espetáculo sul-africano
Nkoli - The Vogue Opera
.
No texto seguinte, é a noção de performatividade negra que é colocada em
debate.
Em Performatividades das Negruras: em busca de um conceito de
Teatro Negro Performativo
, Altemar Di Monteiro (UFMG) parte de autores como
Leda Maria Martins e Richard Schechner para propor uma conceitualização dos
teatros negros performativos como eventos que se integram à vida, ao abordar as
experiências e formas de expressão das populações negridadiaspóricas. Nesse
contexto, a força vital das negruras, ou axé, assume um papel central,
configurando-se como um elemento essencial na criação de espaços de liberdade,
identidade e resistência nas práticas cênicas contemporâneas.
Na sequência, o artigo
Encruza: metafísica yorùbá para uma epistemologia
da dança negro-brasileira
, de Maicom Souza e Silva (UNB), investiga a estética da
dança negro-brasileira a partir de filosofias afrodiaspóricas e das epistemologias
do mito, do corpo e da ancestralidade. Adotando uma perspectiva crítica e
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afrorreferenciada, o autor exalta a história e a filosofia Yorùbá ao analisar o
espetáculo Encruza, obra que celebra a ancestralidade e a resistência da cultura
negra, ao mesmo tempo em que propõe reflexões sobre a emancipação estética
e sobre a criação de vocabulários artísticos próprios.
Em
Linhagens de dança afro na cidade do Rio de Janeiro: panorama plural
,
Laís Salgueiro Garcez (UNIRIO) explora as continuidades e ressignificações da
dança negrorreferenciada no Rio de Janeiro, centrando-se nas heranças artísticas
de Mercedes Baptista, Gilberto de Assis e Edilson Fernandes (Xerife). Por meio de
entrevistas com artistas da dança, como Charles Nelson, Valéria Monã e Carmen
Luz, o texto constrói um diálogo que revitaliza uma prática de tradição através do
corpo que dança, consolidando uma importante genealogia da dança negra na
capital fluminense.
Os dois artigos seguintes ampliam a abrangência do dossiê ao trazer uma
perspectiva internacional. Em
A cena moçambicana: o teatro e a dança na cidade
de Maputo
, Mariana Conde Rhormens Lopes (UNICAMP) traça um panorama
histórico do teatro moçambicano, destacando sua trajetória e evolução, além de
oferecer uma análise criteriosa da cena atual e das possibilidades futuras. No
texto, a autora busca iluminar a cena cultural de Maputo, com especial atenção às
produções de teatro e dança realizadas na cidade.
no ensaio “Poéticas dos corpos pretos, do Brasil a Madri: reverberações”,
Marcos Antônio Alexandre (UFMG) propõe uma discussão sobre as possibilidades
de encontro de quatro espetáculos que foram concebidos por artistas pretos nos
contextos do Brasil e da Espanha, a partir de uma proposição de criação
dramatúrgica e estética pautada nas poéticas dos teatros negros.
No artigo,
Máscaras e mímicas no teatro brasileiro: uma decolonização da
prática artística?
, de Erico José Souza de Oliveira (UNB), a reflexão sobre a herança
europeia, sobretudo, francesa das pedagogias com máscaras e mímicas, serve
para uma discussão crítica sobre as hierarquias e subserviências reforçadas pela
noção de decolonialidade, tão em voga nas pesquisas artístico-acadêmicas sobre
as artes da cena e suas relações com as culturas afro-brasileiras.
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Em
Narrativas contra-hegemônicas: das conferências-concerto às peças-
palestra
, Marcos Nogueira Gomes (UNICAMP) analisa as conferências-concerto
promovidas pelo movimento abolicionista brasileiro no século XIX, que integravam
teatro, música e discursos políticos para engajar o público na luta pela abolição.
Relacionando esse formato às peças-palestra contemporâneas, marcadas pela
incorporação de questões políticas e biográficas na cena, o autor investiga como
artistas como Rafael Cristiano e Clayton Nascimento reelaboram a estrutura de
conferência a partir de uma perspectiva afrocentrada. Ao estabelecer diálogos
entre passado e presente, o artigo examina de que maneira essas práticas
artísticas desafiam a hegemonia cultural e expandem as possibilidades do teatro
como espaço de resistência e produção de reflexão política.
No artigo
Ancestralidade como princípio filosófico de uma cena
encruzilhada: processo criativo do espetáculo Sobretudo Amor
, Monica Pereira
de Santana (UFBA) explora o processo de criação de seu solo autoral
Sobretudo
Amor
(2021), que adotou a ancestralidade, a partir da cosmopercepção negro-
africana, como princípio filosófico. No texto, Santana analisa aspectos desse
processo, destacando estratégias empregadas, implicações, interlocuções e
descobertas geradas por essa articulação. A autora fundamenta sua reflexão em
um referencial teórico que inclui autores e autoras como Eduardo Oliveira, Leda
Maria Martins e Diana Taylor, entre outros.
O último dos artigos do dossiê,
Tradições Afro-Brasileiras e Afro-Indígenas
nas dobras do tempo
, de Irani Cippiciani (UNICAMP), examina os conceitos de
ancestralidade, memória e corpo, relacionando-os às tradições afro-brasileiras e
afro-indígenas. Com enfoque nas Congadas, a autora evidencia táticas de
resistência que desafiam a linearidade temporal, valorizam cosmovisões não
eurocêntricas e reafirmam narrativas marginalizadas. O artigo também apresenta
exemplos de práticas pedagógicas e políticas, debatendo a incorporação de
saberes tradicionais nas universidades por meio de metodologias que preservem
suas particularidades. Por fim, ressalta a necessidade de evitar apropriações
culturais e adotar padrões éticos como base para a construção de futuros
coletivos sustentados pela pluralidade de saberes e pela resistência cultural.
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Na seção de relatos, o texto
Uma poética da kizomba: um olhar sobre a
macumba cênica da Semente Cia. de Teatro
, de Valdeci Moreira de Souza
(UDESC), examina o trabalho da Semente Cia. de Teatro, coletivo que integra
elementos do Candomblé em sua proposta de Teatro de Terreiro. Com sede no
Espaço Semente, na periferia de Brasília, a companhia reconceitua o teatro como
um espaço sagrado, fundamentado em uma ética quilombola e uma estética
afrocentrada. Por fim, o dossiê se encerra com o texto teatral “Não corre, menino!”,
de Leandro da Silva Batista (UDESC). Na obra, o dramaturgo apresenta um retrato
comovente do impacto do racismo e da violência policial nas infâncias negras das
periferias brasileiras, denunciando as dinâmicas de desumanização e brutalidade
que permeiam a sociedade.
Em suma, as contribuições reunidas no dossiê
Teatralidades negras,
africanas e afrodiaspóricas
refletem um compromisso com uma perspectiva
crítica e afrocentrada. Por meio do que se reúne aqui, propõe-se um diálogo que
não apenas interroga as bases coloniais que estruturam o campo das artes
cênicas, mas também destaca as potencialidades criativas e epistêmicas advindas
das artes negras. Tal abordagem revela-se essencial para a formulação de novas
perspectivas e para a ampliação dos modos de conceber a cena. Mais do que um
panorama reflexivo, apresenta-se aqui um convite ao aprofundamento do debate
e à expansão dos horizontes teóricos e criativos das artes cênicas. Desejamos uma
boa leitura.
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br