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23 fragmentos distópicos
Jean Carlos Gonçalves
Sônia Machado de Azevedo
Para citar este artigo:
GONÇALVES, Jean Carlos; AZEVEDO, Sônia Machado
de.
23 fragmentos distópicos.
Urdimento
Revista
de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 54,
abr. 2025.
DOI: 10.5965/1414573101542025e602
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23 fragmentos distópicos1
Jean Carlos Gonçalves2
Sonia Machado de Azevedo3
Resumo
Dramaturgia autoficcional criada a partir de exercícios experimentais dos autores em
suas buscas pelo entrelaçamento entre corpo e escrita. Vinculado aos projetos de
pesquisa Educação e Artes do Corpo: outras presenças para outros tempos e Discurso
Teatral: ressonâncias dialógicas em tela (Apoio CNPq), o texto se configura enquanto
uma proposição que explora e suscita articulações com diferentes dimensões verbais,
visuais e verbo-visuais, ao mesmo tempo em que mobiliza a noção de discurso teatral
buscando investigar o funcionamento de suas ressonâncias discursivas na
contemporaneidade.
Palavras-chave
: Autoficção. Discurso Teatral. Experimentação. Distopia.
23 dystopian fragments
Abstract
Autoficcional dramaturgy created from experimental exercises of the authors in their
search for the intertwining between body and writing. Linked to research projects
Education and Arts of the Body: other presences for other times and The theatrical
discourse: dialogical resonances on screen (CNPq Support), this text is configured as a
proposition that explores and raises articulations with different verbal, visual and verbal-
visual dimensions, while mobilizing the notion of theatrical discourse seeking to
investigate the functioning of its discursive resonances in contemporaneity.
Keywords
: Autofiction. Theatrical Discourse. Experimentation. Dystopia.
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Resumen
Dramaturgia autoficcional creada a partir de ejercicios experimentales de los autores en
su búsqueda del entrelazamiento entre cuerpo y escritura. Vinculado a los proyectos de
investigación Educación y Artes del cuerpo: otras presencias para otros tiempos y
Discurso teatral: resonancias dialógicas en pantalla (CNPq Apoyo), este texto se configura
como una propuesta que explora y plantea articulaciones con diferentes dimensiones
verbales, visuales y verbal-visuales, a la vez que moviliza la noción de discurso teatral
buscando indagar en el funcionamiento de sus resonancias discursivas en la
contemporaneidad.
Palabras clave
: Autoficción. Discurso teatral. Experimentación. Distopía.
1 Trabalho realizado com o apoio do CNPq
2 Pós-doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP/CNPq). Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestrado em Educação pela Universidade
Regional de Blumenau (FURB/CAPES). Licenciatura e Bacharelado em Teatro pela FURB. Professor do Departamento de
Teoria e Prática de Ensino da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atua no Programa de Pós-Graduação em Educação
(PPGE/UFPR) e no Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGLetras/UFPR). Pesquisador com bolsa de Produtividade em
Pesquisa do CNPq. jeancarllosgoncalves@gmal.com
http://lattes.cnpq.br/8274122800491884 https://orcid.org/0000-0003-2826-3366
3 Doutorado em Artes pela Universidade de São Paulo (ECA/USP). Mestrado e Bacharelado em Artes pela Universidade de
São Paulo (ECA/USP). Professora titular de Práticas Corporais na Escola Superior de Artes Célia Helena (ESCH) - São Paulo.
Atua no Programa do Mestrado Profissional em Artes da Cena da ESCH, onde coordena o Núcleo de Pesquisa da Presença
- NPP. sonia_azevedo@yahoo.com
http://lattes.cnpq.br/1405528811552078 https://orcid.org/0000-0003-3135-3442
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Notas sobre 23 fragmentos distópicos
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, texto assinado a quatro mãos, se constitui
enquanto uma experimentação dramatúrgica dos autores em mais um projeto
interessado nas relações entre corpo e escrita, tema do dossiê
Corpos que
escrevem
. Durante a pandemia de COVID-19, especificamente no ano de 2021, Jean
e Sônia escreveram quatro livros nos quais um conjunto de ensaios-conversa vai
acompanhando ao longo de mil páginas as quatro estações do ano, a saber:
O
abismo de rosas azuis: conversas de verão, O brilho de mil horizontes: conversas
de outono, Tatuagem sobre o oceano: conversas de inverno e Estrelas
incandescentes: conversas de primavera
, todos publicados na Coleção Estações,
da Hucitec Editora.
O presente texto nasce, assim, de um encontro literário anterior e, também,
de uma amizade cultivada por seus autores uns bons anos. Dessa vez, no
entanto, Jean e Sônia buscam, juntos, zonas limítrofes entre o real e o ficcional,
borrando, recriando e inventando, com e nos seus próprios corpos, memórias de
passado e de futuro, submergindo em algum cronotopo indefinido, incerto,
inacabado, imprevisível.
Assumindo a ideia de que os
Corpos que escrevem
o fazem por uma
perspectiva artesanal e manufaturada, os autores criaram a presente dramaturgia
inteiramente por aplicativo de mensagens, no celular, ou seja, com um aparelho
tecnológico nas mãos, atravessando de vários modos uma escrita feita com o
próprio corpo, em sua forma radicalmente conectada aos novos tempos e
bastante distante do que se concebe tradicionalmente como cenário ideal para o
exercício da escrita. Enquanto escreviam, os autores estavam em pé, sentados,
deitados, caminhando, correndo, malhando, em casa, no trabalho, em espaços ao
ar livre, utilizando-se de intervalos do dia e da noite, cercados ora por silêncio ora
por barulhos extremos, o que pode, talvez, ser notado no ritmo das palavras que
transitam entre tons frenéticos e contemplação.
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Sugerimos, para a leitura e/ou encenação de
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, a
atenção a alguns aspectos que constituem essa dramaturgia: a) O texto não possui
uma quantidade de personagens definida; quem fala pode ser uma personagem,
ou muitas, que compartilham ou não o mesmo espaço-tempo das ações; b) a(s)
personagem(ns) não possui(em) gênero definido; c) o manuscrito não apresenta
qualquer pontuação ortográfica, cabendo ao leitores e/ou encenadores o trabalho
de realização de seus próprios exercícios de pausa, respiração e outros aspectos
envolvidos na leitura e/ou encenação de uma dramaturgia erguida sobre alicerces
movediços entre corpo e escrita.
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23/05 16:15 - fragmento 1
para talvez um amanhã
era a lua eu sabia que era ela porque iluminando tudo a sua volta ela me dizia que
talvez fosse bom se ter um pouco de esperança tudo muito escuro um silêncio
assombroso mas eu não sentia nenhum medo eu vi a lua e o céu imenso coalhado
de estrelas fazia frio muito frio e eu percebi então que a toda minha volta nada
existia eu estava no deserto eu estava num deserto silencioso e gelado
do meu corpo eu nada sabia penso agora que talvez nesse momento eu nem
tivesse um corpo ou alguma coisa parecida com o corpo que em algum momento
em algum outro lugar em alguma outra vida eu teria possuído sido tido agora não
agora talvez eu fosse areia areia talvez eu não visse a lua eu sentisse a presença
da sua luz branca fria que tantas vezes eu olhei pela janela de alguma coisa que
eu não lembro bem de alguma vida que eu não sei se eu vivi
eu acho que não tem ninguém perto de mim eu penso em gritar mas esse silêncio
me amordaça me impede me diz que talvez seja melhor continuar assim em
quietude mas eu queria saber se há alguém por perto se há alguém com quem eu
possa falar se alguém que me escuta alguém que me alguém que talvez se
pergunte se há alguém se há mais alguém
há algo não sei se alguém restos talvez cacos de coisas quebradas que ainda não
se colaram nem se juntaram pra reviver há algo alguma coisa de mim sobre mim
que não sou eu na minha inteireza pedaços de vento estilhaçados jogados em
vários cantos de um nós quem sabe um eu de outrora que nunca pôde existir mas
agora se encontra no limbo entre um desejo de ser sair nascer dançar e nunca
morrer um eterno vai e vem falemos então aqui mesmo em qualquer lugar se é
que existe algum lugar ainda e alguém
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23/05 18:16 - fragmento 2
ir embora
era neve eu sabia neve funda onde eu deitava ou algo como era eu não sei não sei
estava muito gelado escuro silencioso era um mundo assim eu pensei eu pensei
nisso que era eu e que não era eu e que era no meio da densa escuridão no
meio da neve mais funda pensei em gritar mas não tinha voz aliás eu não eu não
era eu não tinha eu nem tenho nenhuma lembrança de que haveria havido um eu
ou um mundo no meio da neve no meio do escuro no meio da noite no meio do
nada
tem alguém aí eu pensei eu queria falar mas eu não disse eu pensei tem alguém
aí depois eu disse para mim sim para mim aí aonde aí na neve na noite na lua no
frio da madrugada no tempo
que tempo mas se houver alguém que possa me escutar ou ler meus
pensamentos ou ler o que eu gostaria de estar escrevendo por favor entre em
contato fale com isto que eu acho que sou eu diga alguma coisa por favor apenas
diga ou pense ou escreva
23/05 18:16 - fragmento 3
vitrola
espero
só e sempre espero
talvez não seja mais o momento de se aventurar no tempo cansa demais é
confuso tudo opaco mesmo que a esperança esteja aqui junto com a sensação de
um fim esperado e quieto será que eternidade é uma farsa queria mais queria
dizer tudo mas acho que nem aqui não consigo justamente por não saber quem
me ouve me sente me espia não sei afinal uma desinteligência aterrorizou
naquela época em que tudo parecia demasiado infernal e estranho estranhamente
vigiados sempre reféns da farsa de dias comuns corriqueiros gente comum
mentira gente comum é uma mentira será que sou gente pergunto então
incomuns talvez sejamos todos nunca em harmonia nunca o horizonte algo
sempre à espreita líquidos proibidos jorram por toda a parte posso vê-los daqui
mas minha visão é um tanto turva e duvidosa não sei não vejo direito ou sei mas
não quero ver não sei se jorram eles mesmos os líquidos ou se estou diante de
uma aurora indefinida queria sentir o gosto de tudo o gosto daqui e de alguém
sempre alguém sempre os encontros espero e anseio por encontros vãos torpes
sujos quietos molhados encontros corpos sangue o tempo dirá
o que é o tempo pergunto então
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23/05 19:17 - fragmento 4
telegrama
porque não consigo me mover nem olhar nem ouvir nem sentir tudo está seco por
dentro me reviro do avesso o avesso é meu limite o meu avesso a escuridão cresce
algo em mim diminui se esconde se esfrega no chão no gelo na neve abra os olhos
abro muito meus olhos mas não enxergo se existe alguma coisa parece muito
longe de mim e eu fico aqui pensando quanto tempo estou aqui quanto mais
tempo eu ficarei por aqui e por fim em exaustão me respondo o que é então a
distância
talvez nunca amanheça
23/05 19:29 - fragmento 5
tailândia
um lugar uma pessoa um objeto de decoração um letreiro um pôr do sol tranquilo
mas não muito feliz um corpo uma música carros movimento e o som de repente
do nada tailândia e eu talvez em uma sintonia nunca antes sentida vista imaginada
sem interferências sem interrupções apenas respiração alguma ofegante até que
a ameaça faz do fluxo uma luta um escape possível insegurança medo um golpe
tão bobo apenas por que o corpo pede deseja pulsa inflama
tailândia e seus perigos especialmente ao anoitecer dos fins das coisas que uma
vez se chamavam dias mas ao entardecer ao entardecer alguém vinha alguém
pergunto eu e se for uma lembrança ou algo como um corpo que caminhava
por uma região desértica assim sem tempo em distâncias infinitas que caminhava
para longe de mim porque existiu uma vez alguém que caminhava no deserto
alguém sem história que se perdeu nas brumas do meu pensamento que se
afogou em mim que me afogou é isso eu me lembro agora caminhava a passos
largos para longe de mim em distâncias que eu desconheço em outros países
onde ainda nem escureceu
será que existe ainda algum lugar no mundo em que não exista mais essa
escuridão gelada será uma bola de vôlei cruza os céus entre retas curvas alturas
e linhas de chegada e partida assim como as curvas alturas e linhas do corpo que
digita um oi com os mesmos dedos que tocam a bola oi você está por onde por
aqui saindo daqui a pouco para algum lugar quem sabe teus braços caso não
estejam cansados exaustos do saque um tanto amador que fez voar objetos
olhares mundos e planos de expressão ainda não vividos saudade
fragrância química e três mil e poucos dias de oscilação sim isso é uma profecia
ou seja jamais acontecerá mais uma visão turva uma alternativa para suportar
estados como esse meu de suor fadiga e desespero por não saber de nada
simplesmente não saber
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23/05 21:11 - fragmento 6
origami
simplesmente não saber
vez por outra essa escuridão me desnorteia me desespera e o silêncio ainda mais
penso gostaria de saber onde estou o que está me acontecendo afinal mas depois
um calafrio me percorre eu me misturo com a neve e penso alguma coisa em mim
pensa alguma coisa que escorre por um corpo que eu não tenho os contornos que
eu não conheço que eu não sei qual é alguma coisa me diz saber talvez e eu
misturando isso que sou eu ou não sou eu ao frio terrível sei que não é bom saber
não é bom saber nada do que nos acontecerá é terrível saber o futuro porque
inevitavelmente inevitavelmente inevitalvemente essa palavra tão terrível porque
inevitavelmente não sei
sei da tarde sei da chuva sei que alguém perdido na escuridão alguém
com frio alguém rolando o rosto no asfalto alguém que de repente desmaiou
alguém sujo alguém de quem todos tem nojo existe esse alguém ou existiu ou
existirá no meu caminho muito bom não saber
para nunca saber
24/05 15:39 - fragmento 7
café
pequeno aconchegante em algum canto quase esquecido por todo mundo
escadas azuis que podem nos levar a pensamentos impublicáveis sim
pensamentos que não devem sair do lugar não devem virar escrita nem fala nem
música nem pintura pensamentos que devem permanecer como são apenas
pensamentos presos no tecido lilás do sofá que decora o ambiente o cheiro de
café moído na hora a paisagem não muito bonita que se da janela prédios casas
velhas nuvens árvores de outono chuva pequena e gelada o gelo que não combina
com o café quente o sofá e seu conforto que não combina com a turbulência dos
pensamentos que nunca virarão qualquer outra coisa outro experimento
filtros filtram o que não deveria e nem precisaria ser filtrado mas os pensamentos
insistentes não conseguem se aventurar em um lampejo de transgressão
totalmente sem filtro o café está pronto ou estará mais à frente em algum tempo
vindouro um prenúncio de paz no espaço fora dentro acontecerá algo acontecerá
fareja a noite fareja bem de mansinho pensando em folhas macias chão fofo de
folhas podres em cheiro de jabuticaba amassada onde as moscas pousam e se
saciam a noite chegou com uma lua enorme de novo sempre a lua a noite chegou
com um cheiro com muito cheiros misturados que como um bicho fareja tentando
discernir o que o que o que é que cheira cheira um desejo de chafurdar se afundar
na lama entre as folhas secas mortas desejo de rastejar como cobra de seguir em
frente desenhando caminhos macios no vão quente da terra ela tem vontade de
ser cobra ela tem vontade de ser um bicho pequenino que corre pelo meio das
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folhas em busca do que pergunto
hoje então ouviu o sabiá cantando no meio de uma avenida barulhenta na única
árvore no meio da avenida ouviu de verdade não foi um sonho o pobrezinho
cantando desesperado no meio do barulho dos carros dos ônibus das motos do
barulho estranho da cidade e então parou e nesse momento o ar tinha cheiro de
gasolina o cheiro podre dos escapamentos das motos mas o sabiá cantando
tão cheio de esperança tão sozinho tão completamente abandonado no barulho
da cidade quem poderia saber ouvir seu canto quem poderia no meio de todo esse
ruído ouvir seu chamado
24/05 20:51 - fragmento 8
frisson
por dentro
algo como lamber e receber lambidas até que todos os pelos do corpo se
esgueirem sobre uma montanha de pele ainda não tocada ainda não
experimentada algo como saliva escorrendo sobre o corpo abrindo caminhos entre
o suor que lava todos os percursos aeróbicos e de força muscular realizados
hoje hoje hoje indago quando mesmo começamos a existir desse modo onde tudo
é possível e tudo se realiza onde todos os pensamentos se transformam em
palavras músicas pinturas gestos abraços beijos sons canções assovios sopros
respirações trêmulas e histórias devassas religiosas interrogações e respostas que
não dão conta de descrever um toque sequer
uma pele rasgando outra pele com ira fúria e erupção ao devorar outro corpo me
solto de mim perco o controle por alguns segundos sou eu quase que inteiramente
quase em completude ainda não em inteireza ainda não em completude e não
consigo saber ainda nada nem sobre mim nem sobre alguém uma pessoa uma
coisa um lugar nada sobre nada estendo meus braços à procura do teu corpo mas
isso parece que foi milhões de anos atrás quando eu tinha um corpo e você
você era um corpo que escorria sobre o meu como lava como riacho profundo e
nós misturávamos as nossas águas incessantemente com fúria e medo que medo
era esse eu penso agora era um medo de que o tempo passasse rápido demais e
nós nos perdêssemos de nós era medo medo de uma solidão adivinhada de
braços procurando no escuro o que não existe mais no tempo infinito
no tempo desgarrado às vezes no escuro como agora eu me pergunto onde você
estará esse você que talvez nem exista mais que talvez os tempos tenham tragado
levado teu corpo pálido e forte e singelo que me atormentava as noites e que me
trazia tanta paz talvez penso agora você nunca tenha existido talvez eu precisasse
ter te criado no meio da banalidade da vida talvez que essas criações se façam
para que a precariedade dos dias noites e horas sem fim seja esquecida
amortecer
por fim
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24/05 21:12 - fragmento 9
sorte
o começo de tudo
queima aqui um grito um grito preso um grito ardente um fogo que me consome
grita em mim tudo que eu não consigo tudo o que eu não posso tudo que não me
deixam grita em mim um desejo de me espalhar pelo mundo pelo mundo afora
pelo mundo inteiro grita em mim esse desejo de me repartir me doar me
transcender da minha própria carne me partir despedaçar em mil pedaços um
fetiche ser pó de estrelas mortas que no entanto brilham grita em mim
uma adolescência eterna um ódio um ódio a todos aqueles que vivem suas vidas
sozinhas medíocres pequenas econômicas entre as quatro paredes olhando pela
janela e julgando os que passam nas ruas batidas de sol e varridas de vento me
espalhar experimentar tudo que ainda não consegui e se isso significar a minha
morte que seja pouco importa porque no meio da escuridão em que estou sem
conseguir ainda ver saída alguma a imobilidade me sufoca quero dançar uma
dança que vai explodir numa fúria incontrolável de viver de viver intensamente
intensamente
25/05 10:47 - fragmento 10
pó de estrelas
a água escorre lenta e tranquila posso sentir as gotas quentes percorrendo um
caminho que parece infinito desce depois de molhar todo o corpo e encontra o
ralo dali pra frente tudo é festa não há compromisso algum trabalho alguma coisa
qualquer não é necessário lavar nada nem ser potável nem servir pra alguma
coisa uma liberdade para simplesmente escoar entre canos sujeira lama e
liberdade para transitar até que em algum lugar esteja o oceano esperando aberto
receptivo e seguro todas as águas da terra chegam ali todo sabor toda amêndoa
mordida que produz saliva vira líquido depois água talvez rio e depois oceano
algum deles banhando algum continente algum país quem sabe eu esteja hoje no
sul da china e possa me entrecortar por tristezas e melancolias nostálgicas então
a água que escorre devagar e sorrateira me salva me diz que estou sou existo
que preciso seguir seguir seguir a estreia está próxima não sei como lidar serei
alguém que nunca fui não lembro exatamente como vou precisar ser precisar
existir um esboço um rascunho uma voz narrativa talvez que no momento certo
chegará e dirá haja luz e tudo começará a fazer sentido
algum sentido necessito que faça algum sentido o menor que seja não consigo
falar exatamente o que quero nem sei se estou falando ou escrevendo ou
pensando apenas sei que minha língua não é a mesma meu idioma minha
compreensão não sei do que gosto ou devo gostar ou me ensinaram a gostar o
que eu quero não sei mais querer salivo engulo com alguma dificuldade um
nos grandes desertos que antes foram mares o vento corre livre solto sem amarras
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25/05 11:58 – fragmento 11
faixa de gaza
nos grandes desertos quentes que antes foram mares o céu é tão estrelado não
há nada nada que ofusque o brilho das estrelas nesse desertos por baixo da areia
na aridez da areia a vida vive a vida se aquieta treme delira soluça a vida escorre
como se existisse a água mas por dentro por baixo lá no fundo do desertos corre
o gelo de neves longínquas corre o das estrelas que muito deixou a superfície
da terra algo em mim pensa esses desertos quase áridos que parecem áridos que
parecem muito antigos que são antigos penso nesse tempo que não existe no
deserto penso na imensidão estrelada
penso nas sombras que as pedras fazem no chão da areia no escuro da noite na
pessoa viajante que vem com cansaço que vem de longe nos vermes que rastejam
nas cobras na superfície da areia penso na neve que cai sim porque neva no
deserto algo em mim pensa os cavalos selvagens que correm livres pela imensidão
no fundo se trata disso o vento correndo solto correndo livre por dentro e por fora
de alguma coisa que um dia talvez eu possa chamar de eu
sigo caminhando caminho fora do tempo porque nunca amanhece então também
não vai anoitecer a estrada é fechada sinto a presença das árvores e das pedras
mas não vejo nada o chão é frio e eu sigo em muitos lugares
01/06 06:32 - fragmento 12
febre
resignar
alguém muito longe daqui assiste ao pôr do sol alguém agora acabou de morrer
alguém acabou de nascer e outro alguém conheceu o amor longe mais longe
alguém conheceu o inferno do desencanto a perversidade e a dor muitos estão
nesse momento agora morrendo morrendo morrendo eu sigo o chão é gelado a
escuridão me envolve mas eu não tenho mais medo agora em algum lugar muito
longe daqui talvez uma pequenina flor nasça numa brecha no fundo do asfalto ou
seja esmagada pelos pneus velozes dos carros
acho que é onde estou hoje ou deveria estar nesse futuro que não consigo tocar
ainda havia uma promessa eu ouvia uma promessa de que no futuro os céus se
abririam a luz raiaria como sinal de novos tempos novos dia novos formatos de
vida e existência talvez mas tudo isso seria no futuro esse no qual estou agora
cercado por muros cinzas e cenários de uma guerra distante imaginária mas que
aconteceu aconteceu mesmo de verdade eu era integrante da equipe de guerra
fiquei com o corpo cheio de feridas corpo encharcado de sangue mas podia sentir
que beijava meus pés beijava suavemente cada parte entre meus dedos deixando-
me no chão entregue entre sangue e vontade sangue e saliva morrendo sentindo
a sensação de morrer deve ser isso uma sensação de desfalecer por completo de
me jogar ao acaso e deixar que ele aconteça morangos nos pratos da mesma cor
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do sangue morangos dos campos dos desertos das imaginações que enchiam a
mesma boca que me tocava e tudo aqui ou não sei bem não consigo levantar
nem me mexer mas sinto ainda vive cada parte de mim ainda vive
13/06 21:38 - fragmento 13
um sim
um lugar sem lugar onde estou entre os galhos das árvores altas passam fios de
luar que chegam até a terra fria onde me deito onde caminho onde paro e olho
para o céu de novo está ela a lua é meu único guia não sei onde estou não sei
para onde vou mas o frio me cerca como um amigo o frio envolve a minha pele
deixando na medida mesmo de quem sou essa pessoa pacificada sem sonhos
nem desejos uma pessoa viva apenas que como um bicho sabe ser noite de lua
cheia
sabe ter cuidado ao andar na floresta sabe que talvez um dia possa clarear
nenhum som nenhum a noite é tremulamente silenciosa a noite é trêmula a
noite é incessante a noite eterna a noite acaricia os troncos das árvores e as
minhas pernas nuas é isso uma lua imensa no céu que vaza por entre os ramos
das árvores altas e chega até os meus pés descalços como continuo sem saber
não me interessa mais saber é noite alta só isso e eu um bicho um bicho trêmulo
um bicho que cansa de caminhar um bicho que para e uiva um bicho que canta
me espera um bicho pessoa ninguém
espero depois da espera depois do fim de tudo espero ainda aguardo a passagem
do tempo como se eu pudesse ser a eternidade se pudesse reviver das cinzas
espero
16/06 12:46 - fragmento 14
relicário
o tempo parece um rio parado um rio largo parecido com o mar mas que tem
uma direção olhando de longe não se o movimento um rio parado mas por
baixo lá no fundo as águas escorrem em alta velocidade rumo rumo a onde rumo
a que rumo porquê ando sem rumo ainda mas o rio corre o tempo passa tenho
medo do tempo passando sem parar desconfio por isso não posso dormir eu
imagino que nunca mais vou dormir porque no sono eu me sinto sem proteção
uma pessoa frágil à mercê tudo qualquer coisa pode acontecer com quem dorme
eu não posso dormir eu tenho que velar velar por mim pela segurança que eu
tenho que ter que eu preciso ter enquanto a noite escura me segue me cerca e
cerceia nunca mais nunca mais vou dormir nunca mais vou me abandonar a
nenhum sono a nenhum sonho e no entanto sigo de vez em quando olhando a lua
imensa no céu eu não sou uma personagem pelo contrário eu escrevi e dancei
esse texto
sou parte de mim aqui um das muitas partes que sou que posso ser que poderia
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ter sido que serei e é estranho não saber qual delas sou eu que quero que um sol
quente e veloz queime minha pele transformando-a em um inferno de chamas
alaranjadas que o suor escorra por todas as partes desse corpo que também sou
eu qual corpo pergunto de quem sou eu não sou uma personagem mas às vezes
não sei onde está o meu corpo alguém que se prende numa matéria sem a qual
não existo
na prisão de um turbilhão de letras e palavras que inundam um planeta
escondendo todo pedaço de terra mesmo que pequeno e invisível eu sou a própria
criação tudo aqui sou eu embora não seja exatamente eu quem esteja aqui eu sei
que não estou falando de uma farsa sou mesmo uma farsa então isso uma farsa
uma mentira uma estratégia um equívoco um erro perdoem-me perdoem-me por
estas coisas que não queria dizer agora vocês descobriram enfim vocês
descobriram enfim que eu não existo
19/06 22:31 - fragmento 15
moradia
essa tarde de sexta-feira porque é uma sexta-feira eu sei pela mata eu vejo as
pessoas abandonadas são milhares elas andam a esmo descalças com as vestes
rasgadas o corpo ensanguentado são crianças que seguem para lugar nenhum não
quem as ampare não há quem as sustente a noite cai tudo esfria no ar no chão
elas andam a esmo de onde eu vejo as crianças passando eu que não sei onde
estou são centenas são milhares o que é que se pode fazer fechar os olhos
seguem de cabeça baixa olhando o chão frio e não se veem
fico pensando aqui se já morreram se são fantasmas que a chegada da noite criou
se não morreram estão prestes a não sei mais não sei mais nada não espero nada
eu ouço o riso de gente velha barriguda de roupa social de bem levantam os dedos
apontam e acusam e acusam e acusam a tarde cai é uma sexta-feira por onde
andarão crianças assim ensanguentadas quem as deixou assim tão em desamparo
e tão sozinhas são abusadores os que se sentam à mesa de todos os bares e
erguem brindes com suas mãos sujas de sangue tudo está contaminado
contaminação por toda parte e eu já sei que é assim
será meu fim entre medo e pavor entre terror e cegueira sem te alcançar e com
o peito em chamas assim será meu fim entre partículas que até parecem
inofensivas mas vão aos poucos me destruindo e destruindo a gente o que
seríamos num futuro sonhado dói bastante está doendo agora quero ser
inexperiente cada vez mais quando a noite é escura como agora muito escura o
medo vem mais forte como é que eu vou te explicar
22/06 08:17 – fragmento 16
acalanto
o medo é uma sensação que ronda em volta do corpo de cada uma das partes do
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corpo como alguém que assassina pessoa boazinha louca com uma gilete como
um ser que se apaixona pela morte quando o escuro vem como agora a gente
sente o medo escorrendo pelas pernas nuas a gente sente o cheiro do medo a
gente ouve o som do medo e é nessas horas na calada da noite muito longe ainda
do dia chegar é que a gente se vira de um lado para o outro no chão no frio no
gelo na água então o medo começa a se tornar uma amizade próxima companhia
amante nesse momento o medo é amante cruel mas amante
meu corpo é um labirinto de rocha crua um labirinto de peixes uma correnteza de
água escura entre margens desbotadas pela chuva meu corpo é um labirinto velho
desconhecido de mim desconhecido de tudo e enquanto penso em quem por mim
passou tento entender o porquê tenta imaginar o que é que procuravam nessa
terra inóspita que eu chamo de eu nesse pedaço de chão perecível finito estreito
pontiagudo absurdo nessa hora que o inverno chega penso o que procuram e
procuravam em mim aqueles que me tomaram que pensaram me possuir porque
no fundo eu sei ser impossível
e a pessoa que eu sou no escuro silencia
silenciamos nós no silêncio na escuridão do quase abismo a tarde escorre o desejo
vaga pelas ruas desejo de que afinal desejo de alguém mas que alguém quem
silêncio o silêncio envolve tudo na ausência do ar frio do frio que não chega de um
inverno quente em que se acorda na madrugada com o corpo empapado de suor
entre um corpo nu empapado de suor pede amor pelas madrugadas o mundo
silenciou nos silenciamos apenas falamos sobre a nossa dor que dor que dor é
essa que afinal não passa que desejo é esse insaciável que quanto mais tem mais
quer
eu só queria ser o vento correndo o mundo sem descanso resvalando pelo corpo
das coisas de todas as coisas troncos de árvore pedras pessoas um vento que
deslizasse pela escuridão sem nenhum temor um vento que não sofresse nem de
amores nem de males o vento que não fosse triste apenas resvalasse a superfície
das coisas sem desejo nenhuma necessidade
22/06 18:30 - fragmento 17
entre o silêncio e o pôr do sol
essa manhã eu vi a morte no rosto de alguém que passou passou e foi seguindo
o seu caminho e eu olhando o seu corpo prestes a desfalecer não me pergunte
porquê desde criança isso uma pessoa que via que não devia ser vista e sabia o
que não era para saber que desconfiava de alguma coisa e estava certa no final
não é loucura não uma pessoa habitada pela morte próxima é pesada de energia
pouca pele macilenta de onde toda luz e toda alegria escaparam é isso a pessoa
habitada pela morte próxima deixou escapar a alegria e caminha pelas ruas como
se simplesmente caminhasse como um zumbi morte adentro vivo alguém sem
expressão alguém que não se comunica mais com o céu com o frio com o mar
com um passarinho que pousou bem ali na frente uma casca de fruta jogada no
chão
23 fragmentos distópicos
Jean Carlos Gonçalves | Sonia Machado de Azevedo
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-17, abr. 2025
14
essa manhã eu vi a morte passando no rosto de alguém e esse alguém me disse
bom dia e eu respondi bom dia mas por dentro o frio me correu pelos ossos como
um grito
frio a morte traz na sua absoluta imobilidade no seu para sempre estranho o
clima o vento o norte a manga seca fora de época e o pneu furado no meio do
caminho estranho tempos de queda fracasso choro tristeza e vento e frio meias
nos pés gelo na alma tremor sensação de sufocamento estranho amanhã talvez
o fim esse fim que já passou afinal já é depois do fim agora
01/07 19:02 - fragmento 18
making-of
bem depois do fim mochila nas costas aventura subidas cajado e histeria é o fim
que passou e essa é a dor talvez de não saber se haverá a oportunidade de um
novo fim enquanto aqui estranho o silêncio enorme da mata eu farejo a
temperatura de bicho grande
chegando de manso devagarinho planejando ataque sem fazer barulho pressinto
farejo o risco a chegada do perigo de todos os perigos de qualquer perigo em
tempos sem tempo de natureza desvairada de árvores e céus desentendidos
quando chove fora de hora quando esfria no verão quando esquenta no inverno
as mãos estão sempre geladas mas os dias seguem mansos serenos como se
tudo estivesse na mais pura ordem mas para quem pressente o caos dos anos
sucessivos não há nenhuma possibilidade de engano
um fim se aproxima instante a instante apenas um fim
13/07 17:00 - fragmento 19
petricor
todas as palavras ditas ano após ano século após século em todas as línguas as
conhecidas e as não conhecidas dissolvem-se no ar desaparecem todas elas as
ditas nas conversas nos diálogos as ditas em solidão as cantadas as gritadas cada
uma junta ou separada das outras seus sons se perdem em pleno ar e mesmo
que eu conheça seus sentidos nada poderei fazer para recuperá-las sumiram e
nunca mais serão ouvidas por ninguém que triste agora tanto afeto desprendido
solto na imensidão
na imensidão do mundo sem chance de qualquer recuperação mas os livros esses
mesmos que espalham suas folhas ao relento mesmo que rasgadas ou sujas essas
palavras o sentido dessas coisas que um dia foram pensadas e escritas ficarão por
aí à mercê das horas e do tempo para que um dia alguém em algum lugar
é preciso que haja festa que haja luzes que haja canto e que haja dança é preciso
que haja vinho e todas as coisas que possam espantar as sombras que teimam e
teimam em aparecer é preciso dançar é preciso cantar é preciso se deixar iluminar
23 fragmentos distópicos
Jean Carlos Gonçalves | Sonia Machado de Azevedo
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-17, abr. 2025
15
pela lua cheia é preciso deixar que todas as luzes rompam desvirginem a escuridão
da vida do mundo escuro que nos envolve muita luz muita cor muito vinho muito
prazer muito prazer muito prazer é preciso antes que a escuridão se abata sobre
nós em um para sempre sempre inesperado
10/08 18:42 - fragmento 20
máscara
corpos suados quentes encostam-se derretem-se almas desnudas por completo
não apenas corpos não apenas desejos uma pausa voltar ao início de tudo talvez
talvez nascer no teu corpo alma talvez navegar para muito longe de ti pensar em
festas de infância quando tudo era ternura e solidão deixar que o calor escorra
corpo afora e o frio aprisione de vez o amor derramado deixar assim que tudo
aconteça como um fio frágil que pode se romper de repente ou se contaminar de
futuro
aprisione aconteça
que do imenso e conturbado caos nasça a paz dos encontros impossíveis a tepidez
das faces coradas pelo vento cortante das manhãs dos desaparecidos dos ainda
não encontrados dos nãos de todos os nãos e de todas as proibições
os olhos se fixam por um instante eterno os pelos arrepiam é hora de entrar uma
fila uma escada onde vamos vamos juntos ficaremos juntos pergunto essa
pergunta é para o futuro ou para o agora a quem interessa saber o espetáculo
começa mas quem liga estamos eu e você quentes talvez borbulhando em
chamas mas ainda sem saber o que será o que acontecerá
braços se encostam um abraço livre um sinal de que é possível seguir de novo o
olhar o sorriso entreaberto e tímido música dança com palavras no palco as
palavras inundam o espaço nunca vazio mãos se entrelaçam um pouco
escondidas sapatos tirados dos pés um rito nem sagrado nem profano um rito de
silêncio profundo cortado por sussurros precisos milimetricamente calculados
música
13/08 18:53 – fragmento 21
escorpião
panos rasgados jovens dançando óculos de sol luzes que quando se apagam viram
alívio queimar agora em outro recinto em uma cápsula borrada de ar de todas as
gentes que poderiam estar aqui adentrar interromper segundos de fúria e paz o
portal poderá se abrir a qualquer momento para um tempo incerto insano o que
será de nós de nossa força brutalidade raiva medo histórias a serem vividas e
quem sabe nunca contadas a ninguém
contar sem cortes nem interrupções falar sem censura deixar que os
pensamentos escorram pela pele seca ávida de sereno de outras peles de dias
23 fragmentos distópicos
Jean Carlos Gonçalves | Sonia Machado de Azevedo
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-17, abr. 2025
16
simplesmente vividos talvez a canção
tudo depois é sonho o silêncio o gesto o encontro a desconfiança o cheiro
impregnado o abraço apertado os passos incertos a caminhada o posto de gasolina
o convite a espera a entrada o elevador e tudo o que acontece ainda depois do
que se imagina que seja o depois de novo o olhar o toque o arrepio a vontade de
repetição repetir voltar lembrar detalhar sofrer com lembranças
querer de novo como um filme não como teatro que sempre é diferente mas
como um filme que se repete exatamente igual a fila a escada o ambiente as mãos
nas pernas o ar trêmulo quase sufocante declamam o texto a banda tocando mas
não estamos e sim aqui a experimentar devorar canibalizar até que possamos
virar texto
tudo de virar texto todo desejo toda palavra não dita tudo que corrói a alma
por dentro buscando brechas entre os poros da pele tudo sempre de virar texto
em cada janela iluminada dos prédios à distância estou em cada esquina em cada
mesa de bar nos vagões cheios dos metrôs me encontro sento e com o olhar vago
procuro olhares que não olham olhos que não compreendem esse pedido amargo
de socorro de uma vida que escorre e se esvai como um corte sangrando sem
sutura
escorro
sem sutura
20/08 15:07 - fragmento 22
veludo
as palavras vão precisar escorrer pelas pernas enquanto os braços se ocupam
num último abraço mas as despedidas são leves e descontraídas quando não se
sabe que serão para sempre enquanto o coração dispara como se cometêssemos
um ato perigoso e proibido como se mil olhos nos observassem nas frestas das
coisas e do tempo até que não houvesse mais palavras até que a pele sangrasse
pingo a pingo por causa dos desejos indecentes disseram que eram indecentes
mas elas as palavras pequenas e grandes vão se formando do nada da nossa
insensatez como bolhas ou flocos de neve pequenos que mal chegam ao chão se
desfazem como o amor
pingo a pingo
pingo a pingo
engolir não dizer dizer para dentro jogar pra dentro deixar de falar silenciar
emudecer chorar engolir o que deveria ser vomitado ao mundo sentir o gosto do
vazio o gosto do nada o gosto da solidão e do segredo não basta o olhar nem o
jogo nem a vontade porque o que resta é o que resta é não sei bem não sei se
resta alguma coisa
23 fragmentos distópicos
Jean Carlos Gonçalves | Sonia Machado de Azevedo
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-17, abr. 2025
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28/08 19:15 - fragmento 23
a imaginação
houve um tempo em que era preciso vomitar palavras elas subiam assanhadas
pela garganta acima raspando tudo machucando a carne e depois pulavam boca
afora escancarando tudo era preciso dizer a verdade nunca dita era preciso rasgar
as roupas e a própria pele era preciso rasgar os papéis rasgar as normas desafiar
as leis e só então as palavras poderiam ser felizes não precisavam ser vomitadas
saiam da boca em frases claras meticulosamente organizadas em sua calma
destruíam tudo como coquetel molotov e depois disso podíamos sair pelas ruas
livres gritando cantando muito longe as palavras transformadas em desejos fáceis
de realizar todos os desejos do mundo
o desejo de soprar a poeira e ver cada grão de poeira como se fosse possível ver
cada grão de poeira dançar no vento como se estivesse diante de uma plateia
mostrando seu saber dançar a um público sedento ávido por alguma novidade
algo que nunca foi feito um ineditismo calcado no que de mais original um grão
de poeira que dança e quem são essas pessoas interessadas em vê-lo em
acompanhar seus movimentos seu trajeto quem quer saber o que se passa com
um grão de poeira ao vento menor ainda que um grão de areia que simplesmente
deixa que o vento o leve até cair até voltar ao chão e quem sabe ficar ali para
sempre quem sabe porque nunca se sabe eu queria ter esse tempo um tempo
para poder soprar a poeira
Recebido em: 23/11/2024
Aprovado em: 26/02/2025
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Revista de Estudos em Artes Cênicas
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