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Poéticas dos corpos pretos, do Brasil a Madri:
reverberações
Marcos Antônio Alexandre
Para citar este artigo:
ALEXANDRE, Marcos Antônio. Poéticas dos corpos pretos, do
Brasil a Madri: reverberações.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 4, n. 53, dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e124
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Poéticas dos corpos pretos, do Brasil a Madri: reverberações
Marcos Antônio Alexandre
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-26, dez. 2024
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Poéticas dos corpos pretos,1 do Brasil a Madri: reverberações2
Marcos Antônio Alexandre3
Resumo
Este ensaio se propõe a discutir as possibilidades de encontro de quatro espetáculos que
foram concebidos em contextos diferentes, Brasil e Espanha, por artistas pretos, a partir de
uma proposição de criação pautada nos teatros negros. Para esta escrita, busquei relacionar
minhas proposições teóricas sobre os teatros negros com os aportes epistemológicos
propostos por Conceição Evaristo, Leda Martins, Onisajé e Soraya Martins Patrocínio, por
acreditar que tais proposições estão presentes nas peças
Macacos
, de Clayton Nascimento;
Infiltrado en Vox
, de Moha Gerehou;
Black man solo
, de Malcolm McCarthy; e
El vuelo del
Hipotálamo
, de José Ramón Hernández.
Palavras-chave
:
Black Man Solo
.
Infiltrados en Vox
.
El vuelo del Hipotálamo
.
Macacos
.
Poéticas dos corpos.
Poetics of black bodies, from Brazil to Madrid: reverberations
Abstract
This essay proposes to discuss the possibilities of meeting for four shows that were
conceived in different contexts, Brazil and Spain, by black artists, based on a creative
proposition based on black theaters. For this writing, I sought to relate my theoretical
propositions about black theaters with the epistemological contributions proposed by
Conceição Evaristo, Leda Martins, Onisajé and Soraya Martins Patrocínio, as I believe that
such propositions, in some way, are present in the plays
Macacos
, by Clayton Nascimento;
Undercover in Vox
, by Moha Gerehou;
Black Man Solo
, by Malcolm McCarthy; and
El vuelo del
Hipotálamo
, by José Ramón Hernández.
Keywords:
Black Man Solo
.
Infiltrado en Vox
.
El vuelo del Hipotalamo.
Macacos
. Poetics of
bodies.
Poéticas de los cuerpos negros, de Brasil a Madrid: reverberaciones
Resumen
Este ensayo se propone discutir las posibilidades de encuentro de cuatro espectáculos que
fueron concebidos en diferentes contextos, Brasil y España, por artistas negros, a partir de
una propuesta creativa basada en los teatros negros. Para este ensayo, busqué relacionar
mis proposiciones teóricas sobre los teatros negros con los aportes epistemológicos
propuestos por Conceição Evaristo, Leda Martins, Onisajé y Soraya Martins Patrocínio, pues
creo que tales proposiciones están presentes en las puestas en escena
Macacos
, de Clayton
Nascimento;
Infiltrado en Vox
, de Moha Gerehou;
Black Man Solo
, de Malcolm McCarthy; y El
vuelo del Hipotálamo, de José Ramón Hernández.
Palabras clave
:
Black Man Solo. Infiltrado en Vox. El vuelo del Hipotálamo. Macacos
. Poéticas
de los cuerpos.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Felipe Cordeiro. Doutor em Estudos
Literários pelo Pós-Lit-FALE pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
2 O presente artigo nasce como um dos resultados do estágio pós-doutoral, realizado no período de março a
julho de 2024, sob a supervisão do prof. Dr. Diego Santos Sánchez, na Universidad Complutense de Madrid.
3 Pós-Doutorado na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pós-Doutorado na Universidad
Complutense de Madrid (UCM), Espanha. Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
(UNIRIO). Pós-Doutorado no Institute of Performing Arts (NYU), Estados Unidos. Pós-Doutorado no Instituto
Superior de Arte (ISA), Cuba. Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (UFBA).
Doutorado e Mestrado em Estudos Literários na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduação
em Licenciatura em Letras Português, Inglês e Espanhol pela UFMG. Professor Titular da Faculdade de Letras
da UFMG. Bolsista do CNPq. marcosxandre@yahoo.com http://lattes.cnpq.br/6660342017209730
https://orcid.org/0000-0002-6441-307X
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Introdução
As poéticas negras se converteram em meus maiores interesses de pesquisa
após a conclusão de meu doutorado, quando, em 2004, defendi a tese
Juan
Radrigán e Plínio Marcos: contextos e textos dramáticos/espetaculares
e,
principalmente, a partir da realização de meu primeiro pós-doutorado
desenvolvido no Instituto Superior de Arte, em Havana, e no Programa de Pós-
Graduação em Artes da UFBA, cujo resultado principal foi a publicação, anos
depois, em 2017, do livro
Teatro negro em perspectiva: dramaturgia e cena negra
no Brasil e em Cuba
. Foi o mesmo ano em que tive a oportunidade de fazer o
segundo pós-doc no Instituto de Performance e Política das Américas e no
Programa de Pós-Graduação da UNIRIO. A partir dessa premissa e diante de um
campo vasto e cada dia mais abrangente de possibilidades de estudo, os teatros
negros vêm se convertendo, diuturnamente, em tema fundante de minhas
produções críticas. Paralelamente, têm se transformado em assuntos principais
nos estudos de outros pesquisadores negros que, como eu, buscam identificar,
estudar, evidenciar e pautar as inúmeras manifestações estéticas produzidas por
artistas pretos e pretas.
Em minhas investigações sobre as produções artísticas negras, por mim
nomeadas como poéticas dos corpos, tenho tido a oportunidade de encontrar uma
diversidade significativa de trabalhos gestados a partir de perspectivas
afrocentradas. Compreendo as poéticas dos corpos como criações textuais que
discutem sobre os lugares em que os sujeito(a)s negro(a)s têm levado suas
discursividades e enunciações, mediadas pela literatura e pelas relações
biográficas e ficcionais possibilitadas pelos teatros negros — textos em que a arte,
a performance e a vida se mesclam. Textos que discutem e refletem as
espacialidades temporais, colocando-as em diálogo e, por sua vez, confrontando
as relações com o presente, o passado e o futuro. Textos que são forjados no
contato com encruzilhadas e que se bifurcam em cenas, dramaturgias, narrativas
e tessituras textuais que representam espaços intervalares que são múltiplos e
polissêmicos. Textos centrados nas corporeidades negras por meio de corpos e
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corpas negros/negras pulsantes (Alexandre, 2017, p. 40). Textos enunciados
articulados, concebidos, criados, produzidos por pessoas pretas e a partir de
suas perspectivas enunciativas e subjetivas. Textos que reivindicam os lugares de
memórias das populações negras, a partir de suas perspectivas múltiplas,
vinculadas às memórias pessoais e coletivas. Textos que retratam personagens
pretas humanizadas. Textos que, em suas construções em forma de dramaturgia,
narrativa, performance, roteiro, rejeitam qualquer tipo de estereotipia relacionada
às pessoas, personas e personagens negras.
A filosofia
ubuntu
tem como fundamento a reivindicação de uma concepção
coletiva de vida, a partir de uma perspectiva de que nos constituímos como
pessoas uns com os outros. Apesar de nossas construções identitárias pessoais,
não existimos em plenitude sem a presença do Outro em nossa vivência. Acredito
que as produções artísticas concebidas a partir das perspectivas estéticas dos
teatros negros apresentam pautas comuns, principalmente, pelo fato de seus
agentes partirem de concepções de mundo em que suas experiências são, muitas
vezes, trazidas para seus textos e, posteriormente, para os corpos dos artistas que
os interpretam. Dentro dessa perspectiva de produção de textualidades
comprometidas com os contextos em que seus executores estão inseridos, no
campo da produção dramatúrgica contemporânea, é comum encontrar textos que
colocam em discussão e refletem sobre as diversas experiências que as pessoas
negras vêm vivenciando socialmente.
Muitos intelectuais têm dedicado suas pesquisas à produção de um
pensamento crítico suleador, voltado para a reflexão sobre as textualidades
afrocentradas em suas diferentes áreas, produzindo, assim, noções
epistemológicas fulcrais que, por sua vez, vêm sendo utilizadas em outras
investigações e na construção das poéticas pretas. Entre uma gama diversificada
e qualificada de pesquisadores, interessa-me, para balizar e validar a escrita deste
ensaio, convocar algumas noções críticas de algumas autoras com as quais tenho
buscado estabelecer diálogos por meio de minhas pesquisas.
A noção de “escrevivência”, de Conceição Evaristo, é um dos conceitos que
atravessa a minha crítica desde o momento em que fui apresentado a ela, quando
pude assistir à autora performatizando o seu texto-ensaio intitulado “Da grafia-
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desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita”, numa
mesa do Seminário Mulher e Literatura.4 Assim como eu fui e continuo sendo
influenciado pelo termo, inúmeros escritores, grupos de teatro e pesquisadores
também têm se inspirado pela escrita de Conceição. Em suas palavras:
[...] Escrevivência, em sua concepção inicial, se realiza como um ato de
escrita de mulheres negras, como uma ação que pretende borrar,
desfazer uma imagem do passado, em que o corpo-voz de mulheres
negras escravizadas tinha sua potência de emissão também sob o
controle dos escravocratas, homens, mulheres e até crianças. E se ontem
nem a voz pertencia às mulheres escravizadas, hoje, a letra, a escrita nos
pertencem também. Pertencem, pois nos apropriamos desses signos
gráficos, do valor da escrita, sem esquecer a pujança da oralidade de
nossas e de nossos ancestrais. Potência de voz, de criação, de
engenhosidade que a casa-grande soube escravizar para o deleite de
seus filhos. E se a voz de nossas ancestrais tinha rumos e funções
demarcadas pela casa-grande, a nossa escrita não. Por isso afirmo:
“nossa escrevivência não é para adormecer os da casa-grande, e sim
acordá-los de seus sonos injustos” (Evaristo, 2020, p. 30).
Com Leda Maria Martins, além da admiração intelectual e de poder dividir
uma fraterna amizade, que foi construída a partir da realização de inúmeras
atividades acadêmicas compartilhadas durantes décadas de trabalho juntos,
partilho a cumplicidade de ter seu pensamento crítico como base formadora de
vários textos que venho produzindo para ler os teatros negros. As atividades que
ela desempenha como poeta, dramaturga, diretora, ensaísta, professora e Rainha
do Reinado de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá alicerçam a sua pesquisa e
justificam o fato de seus escritos serem retomados por pesquisadores não só das
Artes, mas de outras áreas de conhecimento. Entre seus posicionamentos
teóricos, as noções de “encruzilhada” e “oralitura” têm sido, reiteradamente,
citadas em minhas pesquisas sobre as poéticas pretas. Para este texto, tomo de
empréstimo suas concepções sobre “corpo-tela” e “tempo espiralar”. Acerca do
“corpo-tela”, Leda explicita que:
Nessas poéticas, a corporeidade negra como subsídio teórico, conceitual
4 Posteriormente, tive a oportunidade de ver Conceição performando o texto outras vezes em outros eventos
e, anos depois, ela o cedeu para que fosse publicado no livro que organizei, intitulado Representações
Performáticas Brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. No texto, Conceição Evaristo (2007, p. 20)
argumenta que: A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para ‘ninar os da casa grande’ e
sim para incomodá-los em seus sonos injustos.” Este trecho é um dos mais citados em trabalhos
relacionados com a obra de Evaristo e também com a cultura e a literatura afro-brasileira. Em 2020, o
ensaio foi republicado no livro
Escrevivência: a escrita de nós. Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo
,
organizado por Constância Lima Duarte e Isabella Rosado Nunes.
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e performático, como episteme, fecunda as cenas, expandindo os
escopos do corpo como lugar e ambiente de inscrição do conhecimento,
de memória, de afetos e ações. Um corpo pensamento. O corpo, assim
instituído e constituído, faz-se como um corpo-tela, um corpo-imagem,
acervo de um complexo de alusões e repertório de estímulos e de
argumentos, traduzindo certa geopolítica do corpo: corpo-polis, o corpo
das temporalidades e espacialidades, o corpo gentrificado, o corpo
testemunha e de registros (Martins, 2021, p. 162).
Já em relação ao “tempo espiralar”, entre outras considerações, ela aponta:
Espiralar é o que, no meu entendimento, melhor ilustra essa percepção,
concepção e experiência. As composições que se seguem visam
contribuir para a ideia de que o tempo pode ser ontologicamente
experimentado como movimentos de reversibilidade, dilatação e
contenção, não linearidade, descontinuidade, contração e descontração,
simultaneidade das instâncias presente, passado e futuro, como
experiências ontológica e cosmológica que têm como princípio básico do
corpo não o repouso, como em Aristóteles, mas, sim, o movimento. Nas
temporalidades curvas, tempo e memória são imagens que se refletem
(Martins, 2021, p. 23).
Outra pesquisadora que movimenta meus estudos sobre a negritude é
Fernanda Júlia Barbosa, Onisajé, por causa de seu olhar de dentro, profundamente
atrelado à cultura afrodescendente e que produz um teatro negro pautado a partir
de sua vivência como encenadora, diretora, dramaturga, pesquisadora e praticante
de candomblé. Um trabalho marcado pelas questões relacionadas com a
ancestralidade, realizado por uma “sacerdotisa-encenadora-preta”, como ela
mesma se autodeclara. Do pensamento crítico de Onisajé, é imprescindível
recorrer à sua definição de “teatro preto de candomblé”:
o projeto poético Teatro Preto de Candomblé, que para além do emprego
dos elementos sinestésicos, sinergéticos, sonoros, linguísticos,
mitológicos, intelectuais, rituais e plásticos inerentes à ritualidade do axé,
é um teatro que toma como paradigma para a construção da cena a
história de luta, resistência, ressignificação, representação e
reterritorialização construída pelo Candomblé. Objetiva ser um teatro
polissêmico, multilingual, que se apresenta como mais uma possibilidade
poética no vasto campo de possibilidades do Teatro Negro. Como um ebó
(oferenda, presente), ele oferta representatividade e igualdade de
presença negra, criatividade e memória, preserva a existência de um
universo negro, místico, mítico e espiritual na cena teatral atual.
Pretende-se um teatro de reunião de memórias. A memória ritual negra
encontra-se com as memórias ancestrais do teatro e deste encontro
nasce uma trama potente de linguagens, tecidas pela ancestralidade no
terreno das fronteiras identitárias (Onisajé, 2021, p. 35-36).
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A ideia de “fabulação” de Soraya Martins Patrocínio também me parece
fundante para discutir, estética e dramaturgicamente, a produção contemporânea
dos teatros negros. Para Patrocínio (2023, p. 97-98):
Do ato de fissurar pode emergir aquilo que chamamos de Fabulação, a
ficção como possibilidade de construção de um espaço onde negras e
negros possam existir sem amarras, recriar memórias e temporalidades.
Recontar a história. Dedicar-se a um desejo. Fabular é produzir imagens,
olhares e identidades a partir da releitura crítica da história: do passado,
operando no presente e no futuro, através de uma leitura poética do
mundo. Fabular é especular para se produzir rotas de fugas existenciais
e estéticas.
Na discussão sobre as poéticas pretas muito tem sido escrito para conceituar
os teatros negros. Em
Teatro negro em perspectiva: dramaturgia e cena negra no
Brasil e em Cuba
, utilizei o termo “teatro negro” no singular. É interessante
observar que, alguns meses depois da publicação, eu me questionava sobre o
porquê de não ter usado o termo no plural, pois, cada vez mais, o que se tem
comprovado é que os teatros negros são múltiplos e plurais em termos estéticos
e dramatúrgicos. Naquele momento, defendi a perspectiva de que o teatro negro
é aquele teatro em que o negro e a sua cultura são protagonistas. Também discuti
sobre a importância da existência e da presença de uma corporeidade negra em
cena, bem como dissertei sobre a questão do engajamento dentro do teatro negro:
[...] defendo que uma das premissas do teatro negro é ser uma arte engajada e
este engajamento deve ser manifestado em distintos níveis, assumindo
características que vão desde uma arte que seja (por que não?) panfletária até
uma estética que assume vieses que dialogam com outras nuances que
exploram características relacionadas com aspectos políticos e ideológicos que
possam assumir espaços voltados para questões dos afetos e subjetividades,
demonstrando que um vasto campo de atuação do teatro negro e que este,
hoje, não mais se restringe exclusivamente ao caráter da religiosidade (Alexandre,
2017, p. 34).
Hoje, em 2024, reafirmo e mantenho esses posicionamentos. Continuo
defendendo que os teatros negros devem ter os negros e a sua cultura como
protagonistas, devem ser realizados por pessoas pretas e comprometidas com a
divulgação de seus afetos, desejos, identidades, memórias, religiosidade,
subjetividades etc. Não obstante, tenho ciência de que vários outros apontamentos
se somaram às discussões e proposições conceituais sobre os teatros negros e
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isso é extremamente importante: saber que os teatros negros são formas
artísticas plurais e, por isso mesmo, continuam passíveis de novas concepções e
de outros olhares críticos.
Todas essas noções epistemológicas se somam às minhas inquietações
intelectuais e são fundamentais para fomentar a minha discussão sobre os corpos
pretos nas dramaturgias e cenas produzidas por artistas negras. Para este texto,
almejando ampliar o campo de abordagem enunciativa de minhas pesquisas sobre
as poéticas pretas, tomo como estudo de caso quatro propostas espetaculares
contemporâneas realizadas a partir das perspectivas dos teatros negros: uma
produzida no Brasil e as outras concebidas em Madri, Espanha, cidade que escolhi
para desenvolver minha pesquisa de pós-doutorado, intitulada “Poéticas dos
corpos aqui e alhures: afetividades, dramaturgias, narrativas e performances”. Os
trabalhos são
Macacos
, de Clayton Nascimento;
Infiltrado en Vox
, de Moha
Gerehou;
Black man solo
, de Malcolm McCarthy; e
El vuelo del Hipotálamo
, de
José Ramón Hernández.
A escolha dessas peças se deu pelo fato de todas terem sido concebidas
como trabalho solo, cujo protagonista é um homem preto, sendo que também,
em todas, os intérpretes são autores das dramaturgias e desempenharam uma
função direta ou indireta na direção dos espetáculos. Fato que atesta a observação
de que os artistas negros, muitas vezes, assumem diversas funções em suas
montagens, incluindo também outras pessoas pretas na equipe responsável para
a construção espetacular.
Macacos
Dentro do contexto artístico dos trabalhos produzidos no Brasil, eu poderia
escolher inúmeros espetáculos pela diversidade de peças pretas que são
montadas atualmente. No entanto, optei por
Macacos
e justifico que o maior
motivo diz respeito ao fato de que a peça virou uma obsessão nas minhas
pesquisas sobre os teatros negros, sendo que a tomei como exemplo para
corroborar minhas análises em outros textos que venho escrevendo.
Macacos
é o solo concebido por Clayton Nascimento, da Cia do Sol, e vem,
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desde 2015, sendo apresentado e cumprindo temporadas em diferentes teatros,
lotando os espaços por onde é apresentado. Na montagem, Nascimento, além de
atuar, assina a direção e a dramaturgia do trabalho, que recebeu mais de uma
dezena de prêmios, entre eles: “Melhor Ator Prêmio Shell 2023” e “Melhor Ator
Prêmio APCA 2023”. A dramaturgia foi publicada pela editora Cobogó, em 2022,
com o subtítulo de “Monólogo em 9 episódios e um ato” e o texto teve como mote
a situação vivenciada pelo goleiro Aranha que, em 2014, foi ofendido com
xingamentos por parte da torcida tricolor gaúcha. Além da questão do racismo, a
peça de Clayton Nascimento aborda e discute várias situações vividas por pessoas
negras na sociedade brasileira. Como artista-criador, Nascimento cria uma
performance que dialoga com nomes como Elza Soares, Bessie Smith, Machado
de Assis e Dona Maria do Carmo (sua mãe). O texto estimula uma discussão que,
por meio de uma dramaturgia marcada por fatos históricos poucos conhecidos
pela população brasileira, leva para a cena as contradições de nosso tempo,
promovendo um debate sobre os lugares sociais nos quais o racismo atua.
Cada “Episódio” coloca o leitor/espectador diante de fatos que se fazem
presentes nas escrevivências de uma grande parcela da população negra brasileira.
Os “Episódios” extrapolam, em termos de ações, as páginas do texto, implodindo
em cena no corpo pulsante de Clayton de Nascimento. É surpreendente a forma
como o autor reimprime novos olhares sobre a dita história “oficial brasileira”,
exaltando os lugares de pertencimento das sujeitas e dos sujeitos. O texto nos
coloca diante de momentos difíceis, de violências simbólicas, psicológicas, físicas,
mas também traz momentos sublimes para falar de afetividades, das identidades
e das subjetividades pretas.
Se sabemos como tem acabado a vida do negro no Brasil nos últimos
anos, nós sabemos como acabará esta peça. Então avise a todos:
o
macaco chegou
. Mas o macaco antes de ser macaco, ele, pelo menos
aqui nesta peça, o macaco vai escolher quem ele quer ser. Escolher ser.
O macaco então pode se chamar Wellington, Whashington, Jonathan,
Claudia, Cleusa, Clayton, Danielle, Jhonny. Mas o macaco também pode
escolher ser o Betinho, escolher ser o Cadu, ser o Amarildo, a Agatha. Mas
o macaco, ele também pode ser (como numa espécie de ilusão), o
macaco também pode ser uma estrela (Nascimento, 2022, p. 20).
Cada nome citado convocado nos remete a uma história de memória
pessoal e coletiva de pessoas pretas brasileiras.
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Figura 1 Macacos. Clayton Nascimento. Foto: Marcos Alexandre.
Na realização de minha pesquisa de pós-doutorado em Madri assisti a vários
espetáculos, sendo a maioria deles produções que privilegiaram o texto. Muitas
montagens foram construídas a partir de uma perspectiva contemporânea,
trazendo em suas dramaturgias temas voltados para as causas sociais, como o
anticiganismo, e discutindo temáticas relacionadas às questões de gênero, ao
abuso feminino, aos preconceitos de classe e de raça, à aparofobia, ao capacitismo
etc. As peças que aqui trago para discussão, apesar de terem suas dramaturgias
embasadas em um forte apelo à palavra, cenicamente, apresentam um caráter
performativo que as destaca em relação às outras e, por sua vez, as aproxima da
obra de Clayton Nascimento.
Infiltrado en vox
A peça de Moha Gerehou atendeu às minhas expectativas por se tratar de
um trabalho com uma perspectiva negra realizado na cidade de Madri. Foi o
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terceiro espetáculo que assisti na cidade, no dia 6 de abril de 2024, no Teatro del
Barrio, um espaço teatral localizado em Lavapiés, bairro onde residem milhares de
latinos e estrangeiros de vários países. A peça tem dramaturgia do próprio
intérprete, Moha Gerehou, negro com formação em jornalismo; e direção de
Claudia Coelho e Anahi Beholi, ambas mulheres negras e atrizes. Na sinopse
divulgada, encontramos as seguintes informações:
Moha Gerehou es activista, periodista, escritor y experto en redes
sociales. Ha sido presidente de SOS Racismo. Y desde todos esos lugares
ha impulsado la conciencia y el movimiento antirracista. Últimamente lo
preocupa mucho el empoderamiento que sienten bastantes personas
para ser racistas. Un empoderamiento que viene incluso de la esfera
institucional. Fue así como se le ocurrió infiltrarse en VOX. Porque ha
repetido que es español más veces que el mismísimo Santiago Abascal.
Su intención era utilizar las siglas y plataformas del partido como altavoz
para desarticular el mensaje discriminatorio que transmite esta
organización política. También era esencial para él demostrar que en
España el racismo se reconoce solo en las acciones de la entidad, pero
tenemos que mirarnos más el ombligo: el racismo está caladísimo en la
sociedad y lo desplegamos y exhibimos a todas horas. Buscaba, además,
evidenciar cómo la desinformación es un arma esencial de la extrema
derecha. Y analizar qué ocurre cuando una persona que se ha ganado una
credibilidad social defiende causas antagónicas con su visión del mundo.
Moha debuta ahora en el lenguaje escénico para contar esta experiencia.
Tremenda experiencia. No desiste de su tono de siempre: la ironía, el
humor, la crítica. Se apoya en la tecnología
deep fake
, una técnica de
vídeo en pleno auge que permite mostrar imágenes falsas del rostro de
una persona, y de la que aquí se encarga el colectivo United Unknown
.
La inmersión y transformación de Moha ha tenido un coste emocional
para él. Pero es que no ser racista no basta: hay que ser antirracista. […]
(
online
).5
Em cena, utilizando a estrutura de uma palestra-performance, o ator divide
com o espectador a experiência que teve a partir de seu contato como integrante
do Vox, um partido de extrema-direita espanhol fundado em 2013 e que ganhou
destaque a partir das eleições de 2019, assumindo 24 cadeiras no Congresso dos
Deputados. O partido apresenta uma plataforma nacionalista, extremamente
conservadora e eurocêntrica, com um posicionamento contrário à imigração
“ilegal”, ao movimento independentista catalão e às políticas progressistas
relacionadas ao feminismo e aos direitos LGBTQIAPN+. Em termos políticos, a
5 Disponível em: https://teatrodelbarrio.com/infiltrado-en-vox/. Os realizadores do espetáculo comentam
sobre a obra no vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kMCHJS8mJxA&t=90s.
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ascensão do Vox tem produzido debates na Espanha sobre o crescimento do
populismo e da política de extrema-direita na Europa. Não como assistir ao
espetáculo e não pensar nas ações da extrema-direita, que também assolam o
Congresso no Brasil, com pautas tendenciosas, além de ultraconservadoras,
autoritárias, anticomunistas e extremamente nacionalistas.
A montagem é profundamente atual e conversa muito com a situação
sociopolítica brasileira. Esteticamente, além de utilizar as estratégias da palestra-
performance, o ator/jornalista também se apropria das possibilidades
intermidiáticas para a construção espetacular de sua peça, que conta com o uso
de áudios, vídeos, fotografias e slides elementos que integrarão a sua
performance e que contribuirão para o acompanhamento e entendimento do
roteiro das cenas que serão apresentadas. Dramaturgicamente, a peça é dividida
em quadros atos, capítulos que vão sendo apresentados, segundo o
autor/performer, para explicar as etapas utilizadas por ele para se infiltrar no
partido: “El método Gallardo”, “El Contacto”, “El Negro de Vox”, “La llamada con
Abascal”, “El Golpe por España”, “Hagamos antirracismo”, “Vox no existe”, “Epílogo”.
Há, no palco, um quadro com folhas/cartazes, em que estão descritos cada
quadro, e, à medida que eles vão sendo cumpridos como em uma agenda de
compromissos que vão sendo taxados ou melhor, que vão sendo
performatizados cenicamente, o intérprete vai mudando o cartaz — a cena, o ato
passando para a próxima página cena, ato —, dando mais detalhes sobre a
sua “proeza” de ser uma pessoa (negra), que se infiltrou no Vox.
Como homem negro, Gerehou discute sobre sua experiência como pessoa
preta na sociedade espanhola classista e racista. Como procedimentos
performativos, em dois momentos do espetáculo, o ator utiliza das estratégias do
talk show
, como um programa de auditório popular no país, para apresentar o seu
plano de infiltração e, assim, fazer referências ao partido, realizando comentários
e críticas. À medida que os quadros vão sendo apresentados, nomes de políticos
e outras personalidades importantes dentro do contexto espanhol, com suas
respectivas imagens, vão integrando um quadro que o performer cola em outro.
Entre esses nomes estão: Santiago Abascal (presidente do Vox desde 2014),
Manuel Mariscal (jornalista e deputado pelo Vox), Ignacio Garrida (Ignacio Garriga
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Vaz de Concicao, como Gerehou, é negro, dentista, professor universitário e
deputado no Parlamento da Catalunha; atualmente, exerce as funções de
Secretário-Geral e vice-presidente do Vox), Rocío Monasterio San Martín (arquiteta,
empresária e política do Vox), Toni Cantó (Antonio Cantó García del Moral, ator,
político e apresentador) e Ana Rosa Quintana Hortal (jornalista e apresentadora).
Em um dos jogos de
talk show
, o performer apresenta ao público
características pessoais das personalidades políticas locais, cujas ações e
características racistas foram mostradas e/ou discutidas ao longo da peça. A
plateia, por sua vez, quase sempre afiada, responde às afirmações identificando
os nomes relacionados às respectivas pessoas, ao som de risos e aplausos. Devo
destacar que o ator estabelece um ótimo jogo com a plateia, que não o
acompanha nas interações propostas, mas, principalmente, reconhece muito bem
o contexto político e socioeconômico que está sendo discutido por meio da
dramaturgia.
Figura 2 Infiltrado en Vox. Moha Gerehou. Foto:Marcos Alexandre.
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Marcos Antônio Alexandre
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-26, dez. 2024
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Devo evidenciar que, como brasileiro,6 vejo inúmeras referências textuais que
se relacionam com o contexto sociopolítico do Brasil. Entretanto, existem aspectos
tratados no espetáculo para os quais me faltam os contextos necessários para
entender algumas ironias que o público local capta imediatamente e, como
consequência, ri e/ou aplaude quando são trazidas para a performance de Moha
Gerehou; geralmente, são circunstâncias que envolvem situações vivenciadas
pelos políticos filiados ao Vox. É muito interessante observar como a direção se
apropria dos recursos midiáticos, a partir das possibilidades da tecnologia
deep
fake
, para, esteticamente, criar vídeos com as imagens que vão aproximar o ator-
performer das personas dos políticos e das personalidades que serão retratadas
como personagens paralelas da dramaturgia criada por Gerehou.
Devo destacar que o texto dramatúrgico proposto discute vários aspectos
relacionados com a população negra na Espanha, aspectos associados à
conjuntura econômica, à moradia, à imigração e às inúmeras situações de racismo
que a população preta enfrenta cotidianamente. A questão do racismo e do
antirracismo se faz presente no solo de Moha Gerehou, que, de alguma maneira,
traz sua experiência como homem negro, nascido na Espanha e filho de
emigrantes vindos de Gâmbia, que chegaram ao país em busca de melhores
condições de vida, como milhares de outras pessoas. Em seu livro
Qué hace un
negro como en un sitio como este
, Gerehou realiza apontamentos fundamentais
para as reflexões contemporâneas e tais reflexões são o cerne de sua
performance:
Qué hace un negro como en un sitio como este es una de las preguntas
que se esconden tras muchos de esos casos de racismo. Es la
consolidación de un relato en el que siempre somos el “ellos”, los ajenos,
los que nunca seremos de aquí, los que no deberíamos estar en ese lugar,
los que tenemos que justificar nuestra presencia y existencia una y otra
vez. En cierto modo, resume el transitar de mi vida y el de muchas otras.
La pregunta “Qué hace un negro como en un sitio como este?” actúa
como la aguja larga y afiliada de una inyección, dolorosa en su pinchazo
para después descargar en tu cuerpo toda la medicina, que son los siglos
de políticos, teorías, comportamientos y conocimientos destinados a
excluir, discriminar y explotar todo aquel cuerpo que no sea blanco y, en
España, payo. Ahí estamos, poniendo el brazo sin posibilidad de escape
(Gerehou, 2022, p. 27).
6 Assisti ao espetáculo duas vezes e, em ambos os momentos (6 de abril e 28 de junho de 2024), na companhia
de brasileiros que, como eu, sentiram-se impactados pela dramaturgia e performance de Moha Gerehou.
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O corpo negro pulsante de Moha Gerehou, em cena em
Infiltrado en Vox
,
carrega sua presença, que é transportada para além da cena. Suas ações
performativas rompem com as noções de ficção e factualidade, elementos muito
ativos na montagem.
Comparando o espetáculo com produções dos teatros negros realizados no
Brasil, o que fica evidente é que a performance/fabulação de Gerehou apresenta
o caráter didático típico de outras peças pretas. Por meio das cenas e situações
apresentadas, o ator-performer busca despertar nos espectadores a consciência
sobre o racismo e as estruturas que o mantêm nas sociedades contemporâneas.
Por meio de sua performance, Gerehou discute sobre as agruras advindas da
discriminação pela cor de pele, mas também pela classe, cultura, gênero, religião
etc. Ao final do espetáculo, o ator deixa bem claro seu posicionamento ideológico
com a convocação — neste momento como performer e como cidadão espanhol
— HAGAMOS ANTIRACISMO.
Black man solo
O espetáculo é outro monólogo que assisti em Madrid, no dia 21 de abril, no
Teatro del Barrio. A dramaturgia e interpretação é de Malcolm McCarthy, que
codirige o próprio trabalho, neste caso com o diretor branco Xavi Buxeda. Sozinho
em cena, o ator propõe discussões sobre questões associadas ao homem negro
na sociedade espanhola contemporânea. Na sinopse divulgada, estão
disponibilizadas as seguintes informações:
¿Qué hace a un hombre pelear, follar, sostener las lágrimas, ser fuerte?
¿Qué hace a un hombre engañar, amar, alejarse del miedo? Malcolm
McCarth nos propone
Black Man Solo
, es una pieza unipersonal que
indaga en la relación que se establece entre el hombre negro y la
sociedad. Plantea un viaje personal e íntimo que expone algunos de los
detonantes de la masculinidad tóxica, pero también el posible viaje de
redención, de cambio, de esa vulnerabilidad que aparece cuando el
espejo se gira y te vuelves padre, o cuando se distorsiona cuando pierdes
a tu padre. “¿Qué hace a un hombre ser un “hombre”? (
online).
Assim como o espetáculo de Gerehou, a dramaturgia proposta por Malcolm
McCarthy também trata sobre particularidades vivenciadas por negros e negras
nos diversos espaços em que eles circulam no país, evidenciando questões como
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o direito de ir e vir, as possibilidades de acesso ao trabalho e à educação e, em
especial, os temas relacionados ao afeto e às identidades, assinalando aspectos
voltados para as masculinidades e para os lugares e estereótipos aos quais os
homens negros são colocados e/ou vistos socialmente.
Esteticamente, a montagem também é criada se aproveitando das
possibilidades midiáticas com o uso de vídeos e de dispositivos de áudio digitais,
que são incorporados ao trabalho e, tecnicamente, o ator-performer incorpora à
sua atuação elementos das artes marciais, mais especificamente do jujitsu e dos
bailes afro-cubanos. Num cenário como um ringue de luta, o ator-performer revela
partituras corporais muito precisas e que são utilizadas para discutir situações
vivenciadas por pessoas negras no país.
A ideia do corpo do homem preto como uma ameaça também é discutida,
colocando os estereótipos e as violências simbólicas e físicas que esses sujeitos
enfrentam. Por meio de sua dramaturgia, McCarthy, como intérprete e cidadão,
compartilha sua experiência com o objetivo de questionar os papéis de gênero
normativos enfrentados por sua corporeidade, por ele e por outros homens pretos:
levantar, sair pela rua, caminhar, trabalhar, entrar no supermercado, no metrô, no
ônibus, entre outras ações, e receber sempre olhares que o pré-julgam.
A dramaturgia faz referência a outros homens pretos, como Michael Jackson,
que lhe foi apresentado pelo pai e a quem quis igualar-se, assim como muitas
outras crianças e jovens negros. Numa cena específica, o ator discute sobre o
ensino na escola, onde aprendeu sobre os negros escravizados que vieram das
nações de Áfricas. No olhar crítico da criança, os ancestrais de seu pai e dele, que
eram homens e mulheres livres, foram trazidos para a Espanha em outra condição.
Critica o fato de ser hostilizado pelos colegas da escola e o pai o ensina que ele
veio de uma linhagem de reis e rainhas, provocando uma discussão sobre as
atribuições dadas ao seu corpo e ao de outras pessoas negras. Em outra cena, fala
sobre Vini Junior, o jogador de futebol brasileiro que tem sido várias vezes
hostilizado pelas torcidas rivais nos estádios madrilenhos e europeus, sendo
chamado de “macaco” em resposta à sua excelente destreza como esportista e
aos malabarismos e desenvolturas corporais realizados nas partidas de futebol,
deixando os jogadores das equipes adversárias muitas vezes deslocados com seus
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dribles incríveis. “Vinícius Junior es un puto chipanzé rerereré”, repete o grito das
torcidas organizadas e que tanto machucam... Nesse momento do espetáculo,
como espectador com outras referências nesse tipo de situação, imediatamente
fiz a associação com a obra
Macacos
, de Clayton Nascimento.
A performance de Malcolm McCarthy traz outras situações constrangedoras
vivenciadas por pessoas negras, como um momento em que ele dá bom dia para
uma senhora na rua, inúmeras vezes, e, como resposta, teve apenas o silêncio.
Uma situação comum experienciada por milhares de nós, pessoas negras. Nessa
cena, como expectador e como homem preto, pensei nas vezes em que, nos cinco
meses em que estou morando em Madri,7 pedi informação a pessoas na rua e
também tive como resposta o silêncio. E isso não aconteceu uma ou duas vezes...
El vuelo del hipotálamo
Eu tomei conhecimento do espetáculo por meio de um convite de Mercy,
María Mercedes Ruiz Ruiz, uma amiga e professora do ISA — Instituto Superior de
Arte de Havana Cuba, que, de visita a Madri, convidou-me para ver a peça,
encenada por seu ex-aluno, José Ramón Hernandez, e apresentada no dia 2 de
junho, no Réplika Teatro.
Trata-se de coincidências proporcionadas pelas espirais do tempo, pois, ao
chegar no local onde seria a apresentação, assim que fui apresentado ao ator,
antes do início da peça, dei-me conta de que já havia conhecido José quando, em
2020, participei do Mirada Festival de Teatro Latino-Americano, em Santos.
Assim como as outras montagens discutidas neste texto, a sinopse é muito
elucidativa, apresentando vários elementos que despertam o meu interesse em
pensar os teatros negros.
EL VUELO DEL HIPOTÁLAMO
es una ceremonia escénica para las muertas
y los muertos en el mar. La pieza activa un ritual colectivo a partir de la
instalación de un altar escénico en el que se canta, evoca y celebra la
vida. El mito de las muñecas Abayomis (palabra que significa “encuentro
precioso”) se entrecruza con la experiencia de vida de personas
inmigrantes del sur global.
Inspirada en las honras fúnebres, ritual afrocubano de la Regla de Ocha-
7 Cheguei em Madri no dia 3 de março e retorno ao Brasil no dia 31 de julho. O momento em que escrevo
estas linhas e compartilho estas reflexões é o dia 8 de julho de 2024.
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Ifá, una cena entre todas las participantes abre la pieza. De ese comer
juntas,
El vuelo del Hipotálamo
se transforma en un altar escénico de
voces del presente y del pasado. Tejidas con los pelos de los cuerpos que
han atravesado el proceso de creación de esta pieza, las muñecas
Abayomis convidan al público a un canto colectivo, un canto de placer y
de protesta.
La palabra subversiva de la oratoria política se cruza con las memorias y
saberes ancestrales de las cuerpas migrantes.
El vuelo del Hipotálamo
pone en escena artistas, activistas, personas inmigrantes, iyalochas,
babalochas y músicos. Al ritmo de los tambores batá, las participantes
son convocadas a un gesto colectivo de duelo, de reparación poética,
política y escénica (
online
).
Imageticamente, a dramaturgia de Hernández me faz lembrar a peça
La balsa
,
do também dramaturgo cubano Eugenio Hernández Epinosa (1936-2022), um texto
especial do autor, escrito em 1994 e ainda inédito.8
Assistir ao espetáculo é uma experiência performativa e ritualística. Tudo que
acontece em
El voo del Hipotálamo
pode ser lido como um grande rito
espetacular. Como nas concepções dos teatros negros, a montagem, apesar de
ter José como ator/intérprete/performer principal em cena, trata-se de uma
produção que congrega várias vozes: a atuação, concepção e direção é de José
Ramón Hernández, que também assina a dramaturgia com Yohayna Hernández;
conta com a música realizada ao vivo por Juan Ignacio Calderón e Yunieski Gil
Pedraza; e colaboração de Clotilde Monkangere (Congo), Abdel Azis (Camarão),
Elichy Melanie (Costa do Marfin), Adnane Houmirat (Marrocos), Prince Barclay
(Libéria), Saber Er Rossafy (Marrocos), Djovaní Koné (Costa do Marfin) e Ndongo
Dione (Senegal). Os diferentes nomes atestam que José Hernández, a partir de
uma concepção artística pautada no coletivo, cria o seu espetáculo-rito fazendo
com que o público participe de um ritual cênico que durará cerca de três horas e
meia.
Como espectador de
El voo del Hipotálamo
, vivenciei uma experiência única,
pois me senti, de fato, completamente integrado ao ritual performativo proposto.
À medida que o público adentrava o espaço e ia ocupando os seus acentos,
observava que no palco havia uma mesa grande, coberta com um grande forro
branco, com os talheres para o serviço de jantar devidamente distribuídos. Assim
8 Escrevi algumas considerações sobre a peça La balsa no meu livro, já citado (Alexandre, 2017, p. 176-178).
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que entrei no teatro, enquanto procurava o meu acento na plateia, um espaço que
cabia mais de 100 pessoas, fui convidado para ocupar, junto com Mercy, uma lugar
à mesa no palco. Sentamo-nos nas cadeiras que nos foram destinadas e vimos
outras pessoas sendo convidadas pelo ator-performer para ocupar os outros
espaços da mesa, onde estavam assentados os dois músicos e a iluminadora/DJ
responsável pela parte técnica da montagem. Senti-me lisonjeado por ter sido
escolhido para me sentar à mesa, pois todas as pessoas que foram convidadas
para dividir o espaço conosco eram negras, com exceção de minha amiga Mercy e
de um jovem asiático que, como eu, acredito, estava acompanhando os amigos de
José.
Em cena, o público tem a possibilidade de visualizar e presenciar um ato
performativo em que o corpo é presentificado como uma instância de
consagração, por meio de uma cerimônia cênica inspirada nos rituais afro-cubanos
da
santería
e da
Regla de Ocha-Ifá
. Essas características aproximam a proposta
espetacular do conceito de “teatro preto de candomblé”, proposto por Onisajé, no
qual o ator tem um papel fundamental dentro do espetáculo. Segundo a
concepção metodológica de Onisajé (2021, p. 203):
um atuante do Teatro Preto de Candomblé precisa dialogar com a
cenicidade do teatro e do axé, com sua linguagem mítica, mística,
plástica, sensorial, ritualística e sinestésica por meio do manancial
herdado das manifestações performáticas da cultura africana e afro
ameríndia no Brasil. Ao continuum de Fu-kiau, assim como Ligièro,
acrescentei mais um elemento: narrar. Por isso defendo que quem está
em cena precisa narrar-cantar-dançar e tocar; faço a substituição do
batucar por tocar, pois a primeira está ligada diretamente aos
instrumentos de percussão, como os atabaques por exemplo. Necessito
de um atuante que narre-cante-dance e toque variados instrumentos
desde a percussão mais conhecida a outros instrumentos percussivos
como o piano, e harmônicos como violão, flauta etc.
Tendo como experiência sua formação dentro da religião de matriz afro-
cubana, José Hernández apresenta os atributos que são elencados por Onisajé e
o que é presenciado em cena é um corpo-presença que se nutre e é nutrido pelas
possibilidades de sua cultura religiosa, recuperando os elementos dos ritos
religiosos para a cena performativa.
A performance é dividida em três partes. A primeira tem a ver com esse
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espaço de encontro com a plateia. A todas as pessoas presentes no teatro é
servida a refeição (oferenda) completa: para comer,
congris
(o
moros y cristianos”
espanhol), salada e frango, com opção de um prato para quem não comia carne;
e, para beber, água e vinho.
Figura 3 El voo del Hipotálamo. Foto: Marcos Alexandre
É muito interessante observar a congregação das pessoas por meio do ato
da comida coletiva, que alimenta o corpo e o espírito, como nas religiões de matriz
africana em que são oferecidas as comidas para os orixás. Todos, em seu tempo,
comem e bebem. Ao término do momento de partilha do alimento, foram
recolhidas a comida e a bebida não consumidas, e o ator-performer nos convidou
— nós que estávamos sentados à mesa no palco — a ficarmos de pés e, com ele,
segurarmos com firmeza o grande forro (sob o qual estavam os nossos pratos
vazios) levantando-o sobre a cabeça. Com isso, realizou conosco um ritual, no qual
entoou um canto um ponto para um orixá. O grande forro era levantado e
abaixado por nós, enquanto os pratos, em seu interior, deslocavam-se para todos
os lados, como se estivessem enfrentando uma grande tormenta no mar
associação que me fez pensar nos navios negreiros, nos corpos que foram
lançados nos oceanos etc. —, até que, sob o comando do ator-performer, fomos
convidados para deixar o forro repousar no chão as ondas acalmaram e a
sentar nas laterais do palco, metade de nós à direita e a outra metade à esquerda,
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com os outros espectadores à frente. Com essa distribuição, o espaço do teatro
foi transformado em uma semiarena, mantendo a proximidade possível com o
performer e fortalecendo a experiência ritualística que é trabalhada durante todo
o espetáculo.
Ao som dos tambores
batás
, tocados ao vivo na performance por Juan
Ignacio Calderón e Yunieski Gil Pedraza, o segundo momento da performance tem
sequência com uma cena de intensa potência, na qual o performer, sempre
entoando canções (pontos), quebra todos os pratos que se mantiveram no forro,
nos diferentes cantos do espaço, como se estivesse consagrando o lugar dos
encantamentos. Em seguida, José convida pessoas, entre aquelas que
participaram do jantar no palco e algumas pessoas específicas da plateia, para
utilizarem a “palavra subversiva da oratória política que se cruza com as memórias
e saberes ancestrais das corpas migrantes”. Durante o jantar, o performer
selecionou dez de seus convidados — mulheres e homens, todos pretos — e lhes
entregou uma folha, com um texto digitado, que cada um passaria a dividir com
os presentes, a partir do ato da leitura. Desses textos, transcrevo um deles para
conhecimento e para melhor entendimento da linha dramatúrgica proposta pelo
performer:
Antes, en Marruecos, yo iba al colegio como todos los niños. Durante los
meses de verano, trabajaba en una tienda de ropa para ahorrar dinero y
sacar el pasaporte con el objetivo de entrar en Ceuta. No tengo padre, y
mi madre solo trabajaba ocasionalmente. Salía de la escuela al mediodía
para trabajar y ayudar a mi familia. No hay futuro en Marruecos.
Hablé con un amigo que estaba en Ceuta y me dijo: “Lo mejor que puedes
hacer es entrar en Ceuta, cumplir 18 años y sacar tus papeles”. Le conté
a mi madre y le dije. “Madre, quiero hablar contigo de algo”. Ella me
preguntó: “Qué te pasa?” Le respondí: “Quiero entrar en Ceuta para buscar
mi futuro y, después, cuando cumpla 18 años, obtener mis papeles, subir
a España, estudiar, encontrar trabajo y casarme”. Me madre me dijo: “Si
quieres, ve a Ceuta a buscar tu futuro”.
En Marruecos no hay futuro ni nada. Yo quiero trabajar para ayudar a mi
madre, a mi familia y a todas las personas que veo durmiendo en
cartones en la calle. Me duele mucho ver a tantas personas durmiendo
en cartones en el suelo por la noche. Eso me parte el corazón.
En el Centro de menores de Ceuta no hay derechos, solo hay comida y
techo. Si necesitas cualquier cosa, la respuesta es “no hay”. Solo es
comer, ducharse y dormir. En los seis meses que pasé en el centro, nunca
salí a la calle. Me pasé seis meses e en la habitación, bajaba para comer
y subía para dormir.
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Cundo cumples 18 años, te sacan del centro, te compran un billete para
cualquier ciudad de España y se desentienden de ti. Vas directo a la calle.
Si tienes familia, vas con ella, pero si no, vas a la calle a resolver como
puedas.
Totalizando dez textos, à medida que cada um vai sendo lido, a pessoa
homens e mulheres se transforma em atuante, imprimindo a sua voz,
corporeidade, afetividade e emoções em sua interpretação. As palavras são
performatizadas e ganham dimensões para além das memórias e situações que
elas evocam. Os textos são convertidos em corpo-voz-oralitura, em vozes
coletivas de milhares de pessoas que deixam as suas casas e migram para outros
países, em busca de melhores condições de vida para si e para os familiares,
discutindo as realidades socioeconômicas e políticas não da Espanha, mas de
dezenas de outros países europeus e das Américas. As palavras se convertem em
um ato de denúncia e, nas corporeidades das pessoas pretas presentes e do ator-
performer José Ramón Hernández, são consolidadas também como um ato de
resistência.
Dessa forma, os espectadores são convidados a, com José, mergulhar na
ancestralidade, numa busca pessoal e coletivizada pela recuperação de uma mãe
África que seja habilitada para apontar e (re)ler as contradições de nosso tempo.
Hablamos de frontera cuando las personas del sur global no pueden
acceder a un visado.
Hablamos de frontera cuando los acuerdos españoles y europeos
fortalecen el control construyendo caminos de muerte.
Hablamos de frontera en Ceuta, e Melilla, en Canarias, cuando cruzar una
valla se vuelve un prueba de vida o muerte.
Hablamos de frontera cuando se realizan devoluciones en caliente,
negando la humanidad.
Hablamos de frontera con la ley mordaza, silenciando voces y apagando
luchas.
Hablamos de frontera con los rechazos en frontera, convirtiendo a las
personas migrantes en terroristas.
Hablamos de frontera con políticas administrativas, hablamos de
fronteras con la ley de extranjería, que encierra sueños y esperanzas.
[…]
Hablamos de frontera cuando el mar se convierte en tumba, y la tierra
prometida en un espejismo cruel.
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Hablamos de frontera en cada mirada perdida, en cada lágrima no llorada,
en cada historia no contada.
Hablamos de frontera cuando el viaje se torna eterno, y el destino,
incierto.
Hablamos de frontera cuando el alma busca un refugio, y solo encuentra
rechazo.
Hablamos de frontera cuando la vida es un riesgo, y la libertad, un ilusión.
O discurso final do ator-performer evidencia a potência da proposta
ritualística que é trazida para cena. Outras vozes de fronteira podem ser
convocadas.
À medida que os textos são apresentados, o ator-performer transforma todo
o espaço, convertendo-o em uma instalação, num ato litúrgico-performático.
Velas são acesas e distribuídas estrategicamente em todos os cantos do espaço
e as bonecas
abayomis
alusão aos corpos e corpas que resistiram, que
cruzaram os oceanos, que resistiram e resistem aos opressores e aos sistemas de
opressão — também são distribuídas estrategicamente da mesma forma.
Figura 4 El voo del Hipotálamo. Foto: Marcos Alexandre.
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Inaugurando o terceiro momento do ritual performativo, o público é
convidado pelo ator-performer a deixar o assento e, com ele, ocupar todo o
espaço. Assim, José convida seus expectadores para pegar uma vela,
disponibilizada na mesa da iluminadora, e, como em uma oferta, cada pessoa, à
sua maneira, deveria acender a vela e, por meio dela, firmar um ponto um
desejo, um pensamento —, depositando-a ao lado de uma das bonecas
abayomis
que ocupam o chão do teatro. Este vai se transformando em um grande altar, um
chão/mar de oferendas. Tudo isso ao som dos tambores
batás
e de uma música
eletrônica que passa a congregar todos em uma dança coletiva ao final do rito.
Algumas palavras finais
Assistir a esses trabalhos foi fundamental, pois, por meio deles, pude
comprovar a hipótese de minha pesquisa sobre a existências de teatros negros
em outros espaços para além do Brasil. É interessante observar como os quatro
espetáculos, mesmo que tenham sido produzidos em contextos distintos,
dialogam entre si, indiferentemente do idioma e do país, visto que as temáticas e
os elementos simbólicos que os unem são inerentes às poéticas pretas.
Leda Martins, em seu último livro
Performances do tempo espiralar: poéticas
do corpo-tela
(2021), define o corpo negro em performance como
corpo-tela
:
Composto por condensações, volume, relevo e perspectivas, superfície,
fundo e película, intensidades e densidades, o corpo-tela é um corpo-
imagem constituído por uma complexa trança de articulações que se
entrelaçam, onduladas com seus entornos, imantadas por gestos e sons,
vestindo e compondo códigos e sistemas. Engloba movimentos,
sonoridades e vocalidades, coreografias, gestos, linguagem, figurinos,
pigmentos e pigmentações, desenhos na pele e no cabelo, adornos e
adereços, grafismos e grafites, lumes e cromatismos, que grafam esse
corpo/
corpus
, estilisticamente como
locus
e ambiente do saber e da
memória [...] Em seus inúmeros modos de realização, em suas poéticas
e paisagens estéticas, a corporeidade negra, como subsídio teórico,
conceitual e performático, como episteme, fecunda os eventos,
expandindo os enlaces do corpo-tela, como vitrais que irradiam e
refletem experiências, vivências, desejos, nossas percepções e operações
de memória. Um corpo pensamento. Um corpo também de afetos
(Martins, 2021, p. 79).
Esse corpo-tela, vislumbrado por Leda, faz-se presente em todos os
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espetáculos aqui discutidos por meio de seus intérpretes respectivamente,
Clayton Nascimento, Moah Gerehou, Malcolm McCarthy e José Ramón Hernández.
Estes fazem de suas corporeidades “telas” físicas, simbólicas de nossos
tempos, rompendo fronteiras e congregando identidades por meio de suas
palavras proferidas em cenas, de suas ações e partituras físicas, de suas poéticas
que são fabuladas produzindo outras encruzilhadas discursivas. Não tenho dúvidas
de que todas as noções epistemológicas que convoquei ao início dessas reflexões
se fizeram — e se fazem — presentes em cada proposta espetacular.
Em
Macacos
,
Infiltrado en Vox
,
Black Man Solo
e
El voo del Hipotálamo
vemos
as corporeidades dos artistas pulsando em cena e para além dos palcos. Os corpos
dos performers, alegoricamente, ganham dimensão de outros corpos que podem
ser configurados como corpos-encruzilhada (corpo-Exu, corpo-Obaluaiê, corpo-
Ogum, corpo-Xangó), corpos-memória, corpos-quilombo, corpos-resistência,
corpos-território; corpos de movências, cujas pulsações fabulam e transcendem
as espirais do tempo, por meio de uma arte preta comprometida com a nossa
contemporaneidade.
Referências
ALEXANDRE, Marcos Antônio.
Teatro negro em perspectiva
: dramaturgia e cena
negra no Brasil e em Cuba. Rio de Janeiro: Malê, 2017.
ALEXANDRE, Marcos Antônio. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares
de nascimento de minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (org.).
Representações performáticas brasileiras
: teorias, práticas e suas interfaces. Belo
horizonte: Mazza Edições, 2007. p. 16- 21.
EVARISTO, Conceição. A escrevivência e seus subtextos. In: DUARTE, Constância
Lima e NUNES, Isabella Rosado.
Escrevivência
: a escrita de nós. Reflexões sobre a
obra de Conceição Evaristo. Ilustrações Goya Lopes. Rio de Janeiro: Mina
Comunicação e Arte, 2020. p. 26-46.
GEREHOU, Moha.
Qué hace un negro como en un sitio como este.
3. ed.
Barcelona: Penínsola, 2022.
MARTINS, Leda Maria.
Performance do tempo espiralar
: poéticas do corpo-tela. Rio
de Janeiro: Cobogó, 2021.
NASCIMENTO, Clayton.
Macacos
. Monólogo em 9 episódios e 1 ato. Rio de Janeiro:
Cobogó, 2022.
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ONISAJÉ, Fernanda Júlia Barbosa.
Teatro peto de candomblé
: uma construção
ético-poética de encenação e atuação negras. Tese ( Doutorado em Artes Cênicas)
- Universidade Federal da Bahia, 2021. Disponível em:
https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/36704/1/TESE%20VERSAO%20DEPOSITO%
20FINALIZADA.pdf. Acesso em: 13 jun. 2024.
PATROCÍNIO, Soraya Martins.
Teatralidades-aquilombamento
: várias formas de
pensar-ser-estar em cena no mundo. Belo Horizonte: Editora Javali, 2023.
Recebido em: 15/11/2024
Aprovado em: 21/11/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br