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Os olhares poéticos de Narciso e Medusa:
a transformação do real
Sergio Blanco
Tradução: Ricardo Augusto de Lima
Para citar este artigo:
BLANCO, Sergio. Os olhares poéticos de Narciso e Medusa: a
transformação do real. Tradução de Ricardo Augusto Lima.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 1, n. 54, abr. 2025.
DOI: 10.5965/1414573101542025e0701
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Os olhares poéticos de Narciso e Medusa: a transformação do real
Sergio Blanco | Tradução: Ricardo Augusto de Lima
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-9, abr. 2025
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Os olhares poéticos de Narciso e Medusa: a transformação do real1
Sergio Blanco2
Tradução: Ricardo Augusto de Lima3
Resumo
Neste ensaio, fruto de sua participação em um evento sobre o mito e o olhar na cidade de
Liubliana, em 2014, o dramaturgo franco-uruguaio Sergio Blanco (1971-) explora metáforas
presentes nos mitos de Narciso e Medusa para analisar a mirada do artista, pois, segundo
ele, tais mitos apresentam características que se assemelham ao processo de criação
artística. Dentre essas características, Blanco elenca três aspectos fundamentais, a saber: o
jogo entre o eu e o outro, o poder de transformar e a busca pela imortalidade. Assim, é por
meio deles que o artista transforma a realidade e marca seu nome na história do mundo por
meio de uma realidade outra que, antes, não existia.
Palavras-chave
: Narciso. Medusa. Olhar poético. Criação artística. Transformação do real.
The poetic gazes of Narcissus and Medusa: the transformation of the real
Abstract
In this essay, the result of his participation in an event on myth and the gaze in the city of
Ljubljana, in 2014, the French-Uruguayan playwright Sergio Blanco (1971-) explores metaphors
present in the myths of Narcissus and Medusa to analyze the artist's gaze, because, according
to him, such myths have characteristics that resemble the process of artistic creation. Among
these characteristics, Blanco lists three fundamental aspects, namely: the game between the
self and the other, the power to transform and the search for immortality. Thus, it is through
them that the artist transforms reality and marks his name in the history of the world through
another reality that did not exist before.
Keywords:
Narcissus. Medusa. Poetic Gaze. Artistic Creation. Transformation of Real.
Las miradas poéticas de Narciso y Medusa: la transformación de lo real
Resumen
En este ensayo, resultado de su participación en un evento sobre mito y mirada en la ciudad
de Liubliana en 2014, el dramaturgo franco-uruguayo Sergio Blanco (1971-) explora las
metáforas presentes en los mitos de Narciso y Medusa para analizar la mirada del artista,
pues, según él, dichos mitos presentan características que se asemejan al proceso de
creación artística. Entre estas características, Blanco enumera tres aspectos fundamentales,
a saber: el juego entre el yo y el otro, el poder de transformar y la búsqueda de la
inmortalidad. Así, es a través de ellos que el artista transforma la realidad y marca su nombre
en la historia del mundo a través de otra realidad que antes no existía.
Palabras clave
: Narciso. Medusa. Mirada poética. Creación artística. Transformación de lo
real.
1 Este texto foi publicado em: https://journals.uni-lj.si/arshumanitas/article/view/3414/3118. A presente tradução foi revisada
por Kaique Henrique da Silva Araújo. Graduado do curso de Letras com dupla habilitação em Língua Portuguesa e Língua
Inglesa pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). kaiquehsaraujo@gmail.com
2 Professor, dramaturgo e diretor teatral franco-uruguaio nascido em 1971, em Montevidéu, onde viveu até sua
adolescência. Atualmente reside e leciona em Paris. Estudou Filologia Clássica e Direção Teatral na
Comédie-Française
.
Seus espetáculos, que desde 2012 exploram a autoficção, têm recebido diversos prêmios dentre os quais estão os
Prêmio Nacional de Dramaturgia do Uruguai, Prêmio Cidade de Montevidéu de Dramaturgia, Prêmio Fundo Nacional de
Teatro, Prêmio Florencio de Melhor Dramaturgo, Prêmio Internacional Casa de las Américas e Theatre Awards de Melhor
Texto na Grécia , e foram traduzidos e encenados em vários países, como Uruguai, Alemanha, França, Inglaterra,
Espanha, Itália, Grécia, Suíça, Estados Unidos, Brasil e outros países da América Latina, além de Japão e Coreia do Sul. No
Brasil, o volume Autoficções foi publicado em 2023 pela Editora Cousa, com cinco de seus textos:
Kassandra
,
A Ira de
Narciso
,
Tebas Land
,
O Bramido de Dusseldorf e Tráfico
.
3 Pós-doutorado pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) envolvendo a dramaturgia autoficiconal de Sergio Blanco e
a tradução de seu texto Tebas Land. Doutorado e mestrado em Letras pela UEL, ambos em Estudos Literários. Graduação
em Letras Vernáculas pela UEL. Professor Adjunto na Universidade Estadual de Maringá (UEM), atuando enquanto
pesquisador na área das teorias literária e teatral. ralima@uem.br
http://lattes.cnpq.br/6321052286204681 https://orcid.org/0000-0002-5026-6144
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Ao ser diretor tanto acadêmico quanto artístico deste projeto europeu
Crossing Stages, essa dupla condição me leva a falar a partir desses dois lugares,
ou seja, do acadêmico e do artístico. De dois lugares, então, quase antagônicos. A
fala acadêmica responde, de certa forma, a certas máximas de clareza e precisão;
tende a ser um discurso medido, ordenado e equilibrado, que busca um
conhecimento erudito por meio de procedimentos científicos o mais objetivos e
sólidos possíveis. Enquanto a fala artística é exatamente o contrário: é uma palavra
obscura, confusa, hiperbólica, afetada, completamente desmesurada e caótica,
baseada em experiências e caprichos eminentemente subjetivos. Assim, surge a
pergunta: de qual lugar falar? Do acadêmico ou do artístico? Farei, então, a partir
de ambos os lugares, com o que nesta conferência vocês encontrarão uma palavra
híbrida que será permeada pela prudência do acadêmico e pela exaltação do
artístico. Será, portanto, uma palavra que treme, que se arrisca, que hesita, que
nega verdades e afirma mentiras. Uma palavra que sabe e que, ao mesmo tempo,
não sabe. Uma palavra que possibilita o conhecimento e que, ao mesmo tempo, o
suspende. Uma palavra que deve suportar seu saber e desfrutar sua ignorância.
Meu interesse é propor-lhes e compartilhar uma série de reflexões sobre os
olhares de Narciso e Medusa, que, em minha humilde opinião, são uma bela
metáfora para o olhar do artista. Acredito que toda uma série de
correspondências entre os olhares propostos por esses dois mitos e o
procedimento empreendido pelo olhar do artista. E há, em particular, três aspectos
nos olhares tanto de Narciso como de Medusa, sobre os quais me deterei para
estabelecer essas correspondências.
Em primeiro lugar, parece-me importante enfatizar que tanto o olhar de
Narciso como o de Medusa são dois olhares que estabelecem o jogo confuso do
eu
e da
alteridade
. Ou seja, trata-se, em ambos os casos, de dois olhares que se
encontram, isto é, que se refletem Narciso em uma superfície aquosa: lago,
riacho ou fonte; e Medusa em uma superfície metálica: o escudo de Perseu –, mas
que, por sua vez, no exato momento dessa autocontemplação do eu, propõem um
questionamento do
outro
. Poderíamos dizer que Medusa, procurando seu inimigo,
ou seja, sua alteridade, acaba encontrando seu próprio
eu
, e que ao contrário,
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Narciso, vendo-se a si mesmo, ou seja, a seu eu, acaba acreditando que reconhece,
segundo Pausânias, a imagem de sua irmã gêmea morta. No mito da Medusa,
então,
o olhar do outro me leva ao eu
e, de forma oposta, no mito de Narciso,
o
olhar do eu me leva ao outro
.
E esse mecanismo ambíguo que supõe encontrar no outro o eu, e no eu, o
outro essa espécie de reflexos de espelhos que me lembra o final extraordinário
de
A Dama de Xangai
de Orson Welles —, me fala do que, de certa forma, é
também o olhar do artista, o qual, assim como nesses dois mitos, oscila e flutua
permanentemente entre o
eu
e o
outro
.
De alguma forma, todo criador parte sempre de uma experiência vivida,
experiência pessoal, de uma dor profunda ou de uma felicidade suprema, de um
pensamento extraordinário ou de uma dúvida perturbadora, ou seja, no final
sempre parte de si mesmo. No que me diz respeito, meu primeiro material de
trabalho é sempre
eu mesmo
– meu próprio reflexo – mas, assim como acontece
com Narciso ou com Medusa, sempre o faço nessa busca por querer ir além de si
mesmo para poder olhar para o outro: amigo ou inimigo.
E este jogo ambíguo, difuso e equivocado entre um e outro, entre o eu e a
alteridade – este ser
eu mesmo
matéria-prima visual de trabalho para conseguir,
dessa forma, alcançar ao outro deriva e é herdeiro de toda uma poderosa
corrente literária que propõe a partir do conhecimento de si e de uma experiência
própria como desafio estético. Corrente literária que vai atravessar toda a história
poética do Ocidente desde a Antiguidade até os nossos dias e que a meu ver está
fundada por dois grandes pensamentos: o socrático e o paulino. Por um lado,
temos a famosa frase de Sócrates (399 a.C.):
Conhece-te a ti mesmo
”, na qual
podemos encontrar a origem de toda essa corrente estética que fundará esta
utilização do eu como matéria-prima de trabalho: quer dizer, o conhecimento do
eu. E por outro lado, alguns séculos mais tarde, encontraremos o pensamento de
São Paulo (60) que consolidará esta necessidade imperiosa de aproximar-se de
um
eu
que devemos tentar compreender por sua complexidade. Assim como
Sócrates funda a importância do conhecimento de si, São Paulo fundará a
complexidade desse eu que, segundo ele, deve ser desvendado porque é mais
complexo do que pensávamos, como atesta sua famosa afirmação: “
Não há mais
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judeu, nem grego, nem homem, nem mulher, nem escravo, nem homem livre
”.
Nessa frase é claríssimo o nascimento do sujeito moderno em toda a sua
complexidade, ou seja, um eu que existirá por sua identidade e não mais por seu
pertencimento e que, portanto, precisará explorar. De certa forma, São Paulo é
quem inventa o
eu moderno
como entidade complexa que deve ser examinada.
E a partir desses dois pensamentos fundadores que se possibilita a
exploração e especulação de um eu complexo e complicado que pode ser utilizado
como forma de compreender não somente a nós mesmos, mas também o mundo
ao nosso redor, ou seja, o outro. E é aqui que se estabelece o jogo de reflexos
entre o
eu
e o outro que encontramos nos mitos de Narciso e Medusa: olhando
para mim vejo o
outro
e olhando para o outro me vejo
eu
.
Então, desde esse convite para utilizar o eu como forma de compreensão da
experiência humana, haverá toda uma série de escritores que começarão a se
inscrever nessa linha de exploração do eu. A começar por Santo Agostinho (398) e
suas
Confissões
, que implantarão literariamente uma escrita em primeira pessoa,
ou seja, o eu passará do
status
de simples pronome pessoal a ser não apenas um
personagem, mas o protagonista: o herói das
Confissões
é um
eu
que decide se
confessar a partir de suas experiências. Continuando então com Santa Teresa de
Jesus (1565) e seu maravilhoso
Livro da Vida
no qual seu vivido como sugere o
próprio título– será a matéria de exposição. À mesma época, na França,
encontraremos Montaigne (1572) que, no prólogo de seus
Ensaios
, nos diz
claramente: “
Eu sou eu mesmo a matéria de meu livro
”. E alguns anos mais tarde
temos Rousseau (1782) que em suas
Confissões
– já não mais diante de um Deus
como no caso de Santo Agostinho, mas diante de uma audiência secular e cívica
formulará claramente que a dita obra falará dele mesmo:
poderá servir de
comparação para o estudo dos homens
”. Rousseau deixa então bem clara essa
possibilidade ambígua herdeira de Narciso e Medusa que supõe sempre
encontrar no eu o outro e, portanto, no outro o eu, demonstrando que no final
toda escrita de um eu pode conter um outro
. É o que, de maneira mais bela,
Rimbaud formulará um pouco mais tarde ao escrever: “
Je est un autre / Eu é um
outro
”.
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A segunda razão pela qual acredito que os olhares de Narciso e Medusa
operam como metáfora do olhar do artista é porque, assim como essas duas
miradas acabam produzindo uma transformação, o olhar do artista é um olhar que
também transforma o real. Tanto Narciso quanto Medusa acabam, por meio de
seus respectivos olhares, transformando uma coisa em outra: ele vai se
transformar em algo vegetal (a flor que leva seu nome) e ela vai transformar quem
cruzar seu olhar em algo mineral.
E essa capacidade que ambos os olhares têm de transformar, de transmutar,
de converter, de transfigurar uma coisa em outra, é o que eu designo a capacidade
poética com a qual conta o artista, alguém que também vai transformar uma coisa
em outra. Refiro-me àquele mecanismo que também foi designado com o famoso
nome de
quixotismo
e que consiste em ver gigantes onde moinhos, mecanismo
portanto em que o mero exercício do olhar opera uma mudança no real que agora
em diante passará a ser outra coisa: de moinho, doravante será gigante.
E essa transformação de uma coisa em outra é a base epistemológica do que
é o mecanismo da criação artística, isto é, o trabalho do poeta: aquele que leva
adiante o acontecimento da poíesis. Lembremos que o termo grego poíesis
descendente de
poietiké
e do qual derivará a palavra poeta – refere-se ao campo
de ação do fazer, do fabricar, do confeccionar, do compor, do transformar.
Heidegger, ao explicar o que segundo ele seria poíesis, afirma e insiste nessa noção
de transformação, assegurando e enfatizando tratar-se de um procedimento em
que algo se afasta de sua posição inicial para se tornar outra coisa, gerando assim
uma nova entidade. Heidegger, para ilustrar esse procedimento poético no qual
uma coisa se transforma em outra, usará o famoso exemplo da queda de uma
cachoeira que começa a surgir quando a neve começa a derreter. Um
procedimento por excelência de transformação no qual algo se torna uma nova
entidade. Na verdade, tudo isso é o que Heidegger vai designar com o conceito de
estética
.
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Ou seja, assim como acontece nos mitos de Narciso e Medusa, nos quais
ambos os olhares operam uma clara transmutação de uma coisa em outra, o ato
de criação artística, o ato poético, é um ato inegável de transformação, de
transmutação, de conversão de uma coisa em outra.
E, finalmente, a terceira razão pela qual acredito que os olhares de Narciso e
Medusa operam como uma metáfora para o que é o olhar do artista é um aspecto
que me parece fundamental nesses dois mitos e é o fato de que ambos os olhares
não apenas transformam o que está à frente, mas além, o vão imortalizá-lo: isto
é, vão transformá-lo em algo eterno e indestrutível.
No que diz respeito a Narciso, lembremos que ele vai se transformar em uma
flor que, segundo nos diz o mito, deverá renascer em todas as primaveras, ou seja,
uma flor que será imortalizada por essa espécie de permanente renascimento
primaveril. Do ponto de vista botânico, é interessante notar que o narciso é uma
flor que se multiplica indestrutivelmente, como aponta um dos manuais de
botânica ao afirmar: “onde no início havia poucos exemplares, encontraremos
muitos, porque terão se multiplicado por si mesmos”. Estamos então diante de
uma espécie de autorregeneração cíclica e invariável, que faz do narciso uma flor
quase imortal, que não morre nunca.
No mito da Medusa, o procedimento de imortalização é ainda mais evidente,
pois lembremos que cruzar com seu olhar petrificará, ou seja, transformará em
pedra qualquer um que a encare. Transformar alguém em pedra é, sem dúvida,
eliminá-lo, é tirar-lhe a vida, mas é também imortalizá-lo, torná-lo imperecível:
inscrevê-lo e estabelecê-lo no tempo do duradouro. A pedra é indestrutível e,
embora do ponto de vista geológico possa estar exposta à erosão, não se fala
nunca em destruição total das partículas que a compõem.
E esses dois procedimentos de imortalização através de seus olhares operam
para mim como a metáfora perfeita do que é o olhar do artista, do criador, do
poeta, alguém que também vai inscrever sua produção artística sua obra em
um circuito de imortalidade a concebendo assim na eternidade. O artista é então
aquele que de alguma forma também imortaliza.
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Isso me faz pensar no que sustentava Deleuze quando afirmava que a arte é
um ato de resistência, mas não tanto um ato de resistência no sentido político ou
social, mas um ato de resistência metafísica, que, segundo Deleuze, toda obra
de arte resiste à morte ou ao que ele designa como
a ideia da morte
. Em uma de
suas conferências, Deleuze afirmará que basta vermos uma escultura de três mil
anos de nossa era para entender que toda obra de arte resiste à morte, isto é, que
será sempre e infalivelmente um ato de resistência à morte.
Insisto sempre que não é por acaso que o primeiro texto poético, a primeira
obra de arte literária da nossa humanidade – que se inspira em toda uma série de
histórias sumérias aborda como tema central a resistência à morte e a
inquietude pela imortalidade. Com efeito, a
Epopeia de Gilgamesh
, que é a epopeia
mais antiga da humanidade, escrita em cuneiforme nas famosas tábuas de argila,
por volta do ano 1789 a.C. (início do segundo milênio) por um autor supostamente
originário da Babilônia, é uma imensa obra poética sobre o tema da imortalidade:
a busca de seu herói Gilgamesh é justamente conhecer uma suposta fórmula para
resistir à ideia da morte. Gilgamesh não quer morrer e causa-lhe profunda dor
entender que não é da natureza humana o ser imortal:
Terei eu também que
morrer? A angústia invade minhas entranhas...
”, lamenta Gilgamesh na nona tábua.
Isso me mostra que, desde sua própria fundação ancestral, a escrita literária
colocou o desafio da imortalidade: a resistência à morte por meio da história
escrita, ou seja, da produção literária.
Acredito que em todo gesto de criação uma busca por esse resistir à
morte. Acredito que todo poeta tem um enorme medo da morte e que esse medo
é uma das forças que nos leva a criar como uma forma de resistir à mortalidade.
Como Gilgamesh, não queremos morrer, não queremos aceitar nossa condição de
mortais. E então, com nossos olhares, assim como fazem Narciso ou Medusa,
tentamos imortalizar, tornar resistentes à morte os objetos que criamos.
E acho que isso também explica a necessidade antropológica que tem toda
comunidade de se convocar e se reunir em torno da arte: uma forma de derrotar
também como receptores, ao menos por um instante, a morte. Porque não apenas
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os poetas têm medo da morte, todos nós compartilhamos esse medo. Estou
convencido de que justamente uma das funções da arte é evacuar tanto no criador
quanto no receptor, pelo menos por alguns momentos, esse medo de morrer que
todos nós temos e que, no fim, é o que nos torna belamente humanos.
Esses três aspectos, portanto, dos olhares nos mitos de Narciso e Medusa –
o jogo ambíguo do eu e do outro, o poder poético de transformar e a capacidade
de imortalizar são o que me permitem afirmar que a criação é esse jogo de
olhares poéticos entre o eu e o outro e que, buscando intervir e transformar o
mundo, produzem por fim sistemas de resistência à morte.
Recebido em: 22/10/2024
Aprovado em: 23/02/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
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