
Podemos ouvir Sarah Bernhardt? - A armadilha dos arquivos de áudio e a necessidade de protocolos
Marie-Madeleine Mervant-Roux | Tradução: Renata Simões Soares
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
Podemos ouvir os vestígios gravados da história passada, mas não
podemos supor que saibamos exatamente como era ouvir em um
determinado momento ou lugar do passado. Na era da reprodução
tecnológica, podemos às vezes experimentar um passado audível, mas
não podemos fazer mais do que presumir a existência de um passado
auditivo. (Jonathan Sterne)4
Desde o início da pesquisa que inspirou este artigo, intitulada
Intermédialité
et et spectacle vivant. Les technologies sonores et le théâtre (xixe - xxie siècles)
5,
a questão dos documentos de áudio e seu uso para pesquisa ocupou um lugar
central. Duas razões tornaram evidente a importância desses arquivos. A primeira
é pela escolha de tomar como ponto de partida o período em que, em apenas
alguns anos, apareceram as grandes tecnologias de conservação e difusão do som
- o fonógrafo, o microfone, o telefone, o alto-falante -, e que as primeiras
gravações referentes à vida teatral são contemporâneas ao desenvolvimento do
gravador (Edison, 1877), elas o precedem em duas décadas (ainda voltaremos a
isso). A segunda é porque rapidamente nos demos conta de que esses arquivos
foram ignorados pelos pesquisadores especialistas em teatro, com raras exceções.
Essa indiferença nos intrigou e nos incitou a escutá-los. Como nosso grupo
era não só internacional mas também pluridisciplinar, fomos guiados, nos
primeiros passos, pelos historiadores das técnicas, especialistas em canção, rádio,
fonógrafos ou cinema antigo, que nos precederam na coleta e audição desse tipo
de documento (cilindros, discos Pyral6, discos de vinil 33 rotações, fitas
4 O passado audível: origens culturais da reprodução sonora. Introdução do livro de Jonathan Sterne,
The
Audible Past. Cultural Origins of Sound Reproduction
(Durham: Duke University Press, 2003). Tradução de
Virgínia de Almeida Bessa, Giuliana Souza de Lima e Juliana Pérez González, autorizada pela Duke University
Press em 24/01/2020. A tradução é resultado de uma atividade do Laboratório Interdisciplinar do IEB (LabIEB)
da Universidade de São Paulo (USP).
5 Intermidialidade e Artes Cênicas. As tecnologias sonoras e o teatro (séc. XIX - XXI). Esse PICS (Programme
Internationale de Coopération Scientifique, em português Programa Internacional de Cooperação Científica)
do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique, em português Centro Nacional da Pesquisa
Científica), também chamado
Le Son du Théâtre/ Theatre Sound (XIXème - XXIème siècle),
em português O
Son do Teatro (séculos XIX - XXI), codirigido por Marie-Madeleine Mervant-Roux e Jean Marc Larrue
(Universidade de Montreal), é uma parceria entre uma equipe do Laboratório ARIAS (Atelier de recherche sur
l’intermédialité et les arts du spectacle, em português Ateliê de Pesquisa sobre Intermidialidade e Artes da
Cena) e uma equipe do CRI (atualmente CRIalt: Centre de recherche intermédiale sur les arts, les lettres et
les techniques, em português Centro de Pesquisa Intermidial sobre Artes, Letras e Técnicas) de Montreal. A
intermidialidade trata da circulação de meios e de relações entre as mídias (uma mídia é um meio que se
organizou e fixou numa determinada forma institucional - a câmera é um meio, o cinema é uma mídia) e
das implicações históricas, sociológicas, culturais e políticas que decorrem de tais circulações e relações.
6 NdT: Os discos Pyral, cujo nome vem de uma marca famosa da década de 1930, são discos graváveis, feitos