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O jogo como ativador de estado
de composição em dança
Marcelo Pires de Araujo
Zilá Muniz
Para citar este artigo:
ARAUJO, Marcelo Pires de; MUNIZ, Zilá. O jogo como
ativador de estado de composição em dança.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 1, n. 54, abr. 2025.
DOI: 10.5965/1414573101542025e202
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O jogo como ativador de estado de composição em dança
Marcelo Pires de Araujo | Zilá Muniz
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-19, abr. 2025
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O jogo como ativador de estado de composição em dança1
Marcelo Pires de Araujo2
Zilá Muniz3
Resumo
Reflete sobre a improvisação na dança, mais especificamente o jogo como a efetivação de
um estado de corpo que dança habilitado para criar. Aborda a natureza do Jogo como um
aspecto da cultura em suas mais variadas formas. A improvisação a que nos referimos aqui
emerge do contexto da dança pós-moderna e se dissemina com ampla gama de
possibilidades metodológicas, constitui-se como processo de composição para gerar
material coreográfico como acontecimento em dança e ou, ainda, como proposta de
performance de composição em tempo real. Pondera sobre a função do coreógrafo e ou
diretor a partir de abordagens de criação de cena.
Palavras-chave:
Cocomposição. Improvisação. Jogo. Dança contemporânea. Proposição.
The game as an activator of compositional state in dance
Abstract
It reflects on improvisation in dance, more specifically the game as the achievement of a
state of the dancing body enabled to create. It addresses the nature of the Game as an
aspect of culture in its most varied forms. The improvisation to which the research refers
emerges from the context of postmodern dance and is disseminated with a wide range of
methodological possibilities. It constitutes a composition process to generate choreographic
material, as an event in dance and/or as a proposal for real-time composition performance.
It considers the role of the choreographer and/or director based on approaches to scene
creation.
Keywords:
Co-composition. Improvisation. Game. Contemporary dance. Proposition.
El juego como activador del estado de composición en la danza
Resumen
Se reflexiona sobre la improvisación en la danza, más concretamente el juego como
realización de un estado del cuerpo danzante capaz de crear. Aborda la naturaleza del Juego
como un aspecto de la cultura en sus más variadas formas. La improvisación a la que se
refiere la investigación surge del contexto de la danza posmoderna y se difunde con un
amplio abanico de posibilidades metodológicas, se constituye como un proceso de
composición para generar material coreográfico, como un evento en la danza y/o incluso
como una propuesta escénica para composición en tiempo real. Considere el papel del
coreógrafo y/o director en función de los enfoques de creación de escenas.
Palabras clave
: Co-composición. Improvisación. Juego. Danza contemporánea. Proposición.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Janete Maria Gheller Graduação em Letras-português
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Caxias do Sul.
ghellerjanete@hotmail.com
2 Mestrando em Artes Cênicas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) com bolsa CAPES. Especialização
em MBA em Gestão Estratégica do Design pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Especialização em
Desenvolvimento de Games pela Universidade Anhembi Morumbi (UAM). Licenciatura em Teatro pela UDESC, com
intercâmbio na Université Clermont-Auvergne em Clermont-Ferrand, França. Bacharelado em Design com Habilitação em
Design Gráfico pela UDESC, com intercâmbio na Concordia University em Montreal, Canadá.
marceloparaujo@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/1662501850134859 https://orcid.org/0009-0008-0533-7880
3 Doutora em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Realizou estágio doutoral na Concordia University em
Montreal, durante o doutorado com bolsa da Capes. Professora Colaboradora na graduação Licenciatura em Teatro -
UDESC desde 2017. zilamuniz@hotmail.com
http://lattes.cnpq.br/5890040270115363 https://orcid.org/0000-0001-5315-0393
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Esta pesquisa acontece a partir do diálogo entre inquietações que fluem para
um mesmo lugar e, por assim dizer, transbordam em um encontro profícuo e cheio
de curiosidades, tornadas perguntas que se pretende serem aprofundadas. Desta
forma, reflete sobre a improvisação na dança, mais especificamente apresenta o
jogo e seus desdobramentos na efetivação de um estado de corpo que dança
habilitado para criar e desenvolver material em tempo real. Evidencia a função do
coreógrafo e ou diretor a partir de abordagens de criação de cena, ou mesmo de
metodologias de ensino em que o jogo se torna o meio de ativação de um
acontecimento em dança. Técnicas de criação que se definirão das necessidades
de cada processo. O jogo como técnica de ativação do evento coreográfico em
cocomposição.
A improvisação a que nos reportamos emerge de um contexto da dança pós-
moderna e se dissemina em uma ampla gama de possibilidades metodológicas e
de sistematização singulares; constitui-se como processo de composição para
gerar material coreográfico, como acontecimento em dança e ou, ainda, como
proposta de performance de cocomposição em tempo real. A improvisação em
dança pode ser aberta, sem nenhuma estrutura ou pode ser estruturada a partir
de distintas formas, como regras, tarefas, partituras dançadas, condutas, são
restrições que tecem o modo de dançar. Vale ressaltar que estes procedimentos,
que aqui denominaremos como proposições, jogo ou proposições-jogo são parte
de um processo em que um fim não está definido, mas que é um caminho de
pesquisa para se chegar a algo. Portanto, o jogo de dançar estas proposições é um
modo de estar corpo em estado de dança e são técnicas de criação que ativam
um potencial artístico, trabalhando a autonomia de quem as pratica.
Como ponto de partida para tecer esta reflexão, faremos uma revisão do
conceito de jogo e seus aspectos constituintes, suas características e aspectos
relevantes, suas mais variadas formas, usando como referência Johan Huizinga
(2019), com o livro
Homo ludens: o jogo como elemento da cultura,
e
Katie Salen
e Eric Zimmerman (2012), com o livro
Regras do jogo: fundamentos do design de
jogos - principais conceitos
.
O Jogo, assim como atividades lúdicas, pode ser percebido entre os animais,
sem que sejam ensinados por humanos e seus fundamentos não podem ser
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descritos como restritos a elementos racionais ou estaria restrito à humanidade
ou a determinados graus civilizatórios, ou seja, jogo não é um mero fenômeno
fisiológico ou reflexo psicológico. O jogo carrega e sempre propõe um sentido,
transborda aspectos biológicos e tem origem em uma vontade. Será que podemos
afirmar que ultrapassa as necessidades básicas da vida?
O pesquisador Huizinga (2019) faz uma análise detalhada sobre o jogo e
destaca o gasto e alimento de energia vital, o impulso pela imitação ou a
necessidade de distensão. O jogo na infância é como um preparo para as tarefas
da vida adulta ou como um indispensável exercício de autocontrole. Já, da
perspectiva do desejo de dominar ou competir, como uma possibilidade de uma
descarga emocional, pela qual o sujeito se liberta do conteúdo afetivo de um
acontecimento passado através da rememoração. Ou um escape para impulsos
que poderiam ser prejudiciais ou até mesmo como uma ficção que se destina a
manter valores pessoais preservados. Estas possibilidades não se excluem e
possuem como hipótese em comum a relação do jogo com algo para além do
próprio jogo. O prazer e o divertimento são aspectos importantes do jogo, assim
como o fato de não ser algo material, de existir para além da realidade física. Ao
observar as possibilidades de brincar entre os animais, percebe-se que não são
seres meramente mecânicos. Temos consciência e percepção de que jogamos e
brincamos, da mesma forma que um artista das artes vivas em situação de
performance, teatro ou dança, também, tem consciência de suas ações e de que
está em estado de jogo.
Segundo Huizinga (2019), mesmo que o jogo esteja para além de uma antítese
entre loucura e sabedoria, muitas correlações podem ser feitas, principalmente
entre loucura e comicidade. Não beleza inerente no jogo, nem como defini-lo
em termos biológicos, lógicos ou estéticos. O jogo é uma função dos seres vivos,
talvez por isso nos sentimos tão vivos enquanto jogamos. Algumas características
podem ser apontadas como próprias do jogo em geral, enquanto outras estão
presentes particularmente nos jogos sociais como a dança, os espetáculos, as
músicas, os torneios e as mascaradas. Uma delas é o caráter voluntário, afinal,
alguém obrigado a jogar transformaria a situação em uma imitação forçada. Outra
poderia ser descrita como liberdade, pois sem ela o jogo perderia sua naturalidade.
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Poder-se-ia dizer que para a criança ou para os animais o jogo acontece por forças
como a necessidade de desenvolvimento ou instinto. Em ambos os casos, a busca
pela brincadeira acontece por conta do divertimento e é neste fato que a liberdade
reside. Falar em instinto ou pensar em uma utilidade para o jogo é uma suposição
impossível de descartar nesses exemplos. A artificialidade do jogo é outra
característica importante, pois não se trata de vida real, cotidiana, e sim uma
evasão dela para uma atividade com caráter temporário e uma orientação própria.
Os jogos normalmente exigem uma resposta rápida, sem tempo para reflexão
ou desperdício de energia com julgamentos, o que favorece a prática de liberdade4,
desejável para que o jogo funcione enquanto quem joga se sente livre para jogar.
Nessa prática de liberdade, o próprio jogo se torna liberdade ou um espaço seguro
para experimentar o que seria fazer escolhas com a proteção da demarcação da
artificialidade temporária do jogo.
Interessa-nos a reflexão sobre processos de criação em dança em que o jogo
é um recurso de criação e, particularmente, nos processos onde a figura do
coreógrafo, assumindo a função de inventar proposições de jogos. Tais
proposições são também compostas por restrições ou regras ou, ainda,
combinações que são acordadas pelos integrantes do coletivo que jogará e
dançará tais combinações. As proposições-jogos potencializam as condições de
emergência que vão se desencadeando à medida em que ativam o potencial
necessário de auto-organização do processo. Em processos colaborativos, o
desafio está na proposição ou jogo com as instruções que não fixem estruturas de
interação previamente.
As combinações acordadas entre os jogadores funcionam como restrições
que possibilitem o desencadeamento de movimentos relacionais, orientando a
atividade sem predeterminar exatamente como ela deveria se desencadear.
Segundo Muniz (2014a), as condições para que a dança aconteça se estabelecem
no campo relacional com a habilitação das proposições, as quais não são
opcionais, pois são as regras, as combinações, as restrições que criam as
4 Michel Foucault (2006) define a prática de liberdade de uma atitude crítica, enquanto formas de resistência
e reações possíveis às formas de sujeição do Biopoder. Tal insubordinação em momentos específicos, mas
fundamentais na configuração do nosso cotidiano, é o que imprime uma ação política na desestabilização
dos saberes hegemônicos.
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condições de liberdade para que cada artista escolha e selecione,
conscientemente, formas de responder coletivamente com soluções e que
compõem o campo relacional.
As proposições de jogo, quando habilitadas, podem ser observadas como um
adversário a ser superado, assim como apresentam Salen e Zimmerman (2012);
um jogo se caracteriza pela disputa entre dois ou mais jogadores, neste caso o
adversário pode ser uma força obstrutiva ou situação que não possui objetivo
próprio. Essa configuração pode resultar em jogos cooperativos onde existe uma
meta em comum entre as pessoas que jogam e devem tomar decisões para atingir
esse objetivo coletivo. O conceito de jogos cooperativos parece apropriado para
nos aproximarmos do trabalho de composição coletiva ou cocomposição, onde a
interação lúdica pode conduzir a manutenção do jogo e a busca por soluções em
grupo para as restrições propostas. Ao colaborar para manter o bom andamento
do jogo, as pessoas participantes desfrutam do divertimento e do prazer do jogo,
que não termina com apenas um vencedor, mas com um ganho coletivo.
Nas práticas de improvisação coletivas um compartilhamento de
responsabilidades, e as escolhas do grupo resultam na composição do
acontecimento dançado. Segundo Muniz (2014a), o compartilhamento da
experiência de dançar junto cria uma memória coletiva que desempenha um papel
importante no processo de improvisação, compondo decisões por meio de trocas
de materiais subjetivos das memórias individuais que se relacionam em uma base
intersubjetiva. Sendo assim, a memória coletiva é intersubjetiva e fundamentada
na experiência relacional dos dançarinos que a compõem, é temporária por meio
do conhecimento corporal que se constitui no tempo presente e compartilhado
na duração do acontecimento dança. Durante o jogo, a memória coletiva estrutural
é o resultado das experiências coletivas vividas anteriormente, ou seja, são as
memórias de cada componente do grupo vividas em outros contextos e neste
outro momento também são presentificadas.
O espaço é constituído por inúmeras camadas de memórias individuais e
coletivas, tanto estruturais como temporárias, que se influenciam mutuamente,
gerando traços e rastros invisíveis, registrando relações entre tempo, espaço,
movimento e são acessados para ativar outras memórias e sensações. Diante de
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um grande número de opções de movimento em potencial, fazemos escolhas a
partir de um estado de atenção e escuta e tornamos o movimento visível no tempo
presente. Na improvisação, o processo de criação é rico e as possibilidades de
experimentação são realizadas conscientemente. A unidade do coletivo se
estabelece quando os “eus” no grupo se potencializam e as vontades individuais
se aglutinam no coletivo.
A liberdade presente na interação lúdica torna o jogo atrativo, instigante e
desafiante. Em processos coletivos de criação essa liberdade fica implícita a partir
dos acordos e na possibilidade de escolha de participação ou não em
determinados momentos do jogo. Em contextos assim, os resultados são
imprevisíveis e as relações são geradas a partir das iniciativas de quem joga,
tornando a incerteza do que pode acontecer uma característica marcante.
A interação lúdica apresenta uma forma de consciência específica que
possibilita a fabulação ou até mesmo a criação de uma realidade alternativa. Nesse
contexto, podem ser observadas atividades como o combate informal e o teatro.
Assim como em um jogo, o teatro pode propor um pacto ficcional, no qual os
participantes aceitam regras que provocam um descolamento da realidade
habitual. Essas interações entre os jogos e as artes da cena podem ser percebidas
menos delimitadas e mais fluídas. É possível conceber a experiência teatral como
um jogo e também sobre o uso dos jogos como cena.
São as regras, as combinações, os acordos que tornam o jogo possível, pois
criam sentido e despertam a atitude lúdica nas pessoas que jogam. Podemos
pensar em um exemplo de tais combinações, num ambiente em que o trabalho
com dança é atualizado a partir das palavras juntar, espalhar e olhar. Dentre as
combinações e protocolos coletivos e individuais que perduram em cada encontro,
também a proposição que é uma forma de combinação entre os praticantes
da proposta. O que interessa é se mover dentro deste campo de forças criado por
todas as possibilidades de existência de criação de movimento a partir de juntar,
espalhar e olhar. Nesse sentido, o pacto ou a aceitação de regras, obstáculos e
tarefas desnecessárias ou inúteis fazem parte da atitude lúdica do jogo.
Assim como no jogo, no fenômeno da improvisação em dança a restrição
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gera interações espontâneas emergentes, inteligentes e em tempo real. A prática
de liberdade pode ser observada no contexto da improvisação social, onde os
movimentos realizados em sociedade (falar, andar, atuar, etc) interagem com
pessoas e instituições e, portanto, lida com restrições históricas relacionadas a
aspectos como gênero, classe, raça, sexualidade, habilidade, etc.
Os jogos sociais apresentam regras que ditam padrões de movimentos
corporais que variam de acordo com a identidade de cada artista ou indivíduo.
Aspectos da identidade como idade, sexualidade, raça, gênero, etnia, etc. estão
ligados às possibilidades e com as restrições das ações no cotidiano e no contexto
da dança. Antes mesmo de ingressarem no ambiente de criação da sala de ensaio
ou mesmo em apresentação para espectadores e, antes de serem apresentadas
as proposições do jogo, os corpos improvisam movimentos a partir, também, de
suas próprias corporeidades. Esta diversidade de corpos singulares que se movem
em relações potencialmente complexas gera camadas relacionais na composição.
A proposição de jogos que incluam a alternância entre personagens (corpos
ficcionais) e os corpos performativos e biográficos do coletivo, pode-se contornar
padrões usuais de movimento e abrir novas possibilidades que promovam a
prática de liberdade para além das restrições individuais durante as
experimentações (Muniz, 2014b
apud
Araujo, 2020).
Partindo da consciência sobre as restrições que são acordadas para que o
jogo possa ser jogado, cada participante faz suas escolhas durante o evento de
improvisação sempre em relação aos outros corpos que se movem e as
configurações do espaço. Esta imagem de que existe um fio condutor que liga
cada integrante do coletivo aos outros e a tessitura destas relações se dão a partir
desta conexão invisível, porém sentida. A cada momento nos vemos diante de um
grande número de opções de movimentos, ações, gestos e inclusive da
concretização destas relações, e vamos compondo constantemente ao
recombinar e reorganizar nossos repertórios. Vale ressaltar que influenciado pela
consciência do todo, o processo de escolha, muitas vezes, é direcionado pela força
do hábito, geralmente conduzindo de forma insistente a repetir e recombinar
movimentações usuais. A decisão consciente, somando-se às combinações
acordadas do jogo, é uma alternativa a fim de criar linhas de fuga na ativação da
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memória para inventar novas combinações de movimento, o que se configura
como um ‘diagrama de construção de forças’ quando esboça eventos relacionais,
unidos pela imaginação.
O jogo em suas diferentes etapas estimula memórias e sentidos, gerando um
fluxo de imagens que cria pensamentos e movimentos durante uma cena
improvisada ou para desenvolver material para cenas específicas de um trabalho
fixado. O pensamento é incorporado a partir de uma ecologia de práticas, não
ocorre primeiro na mente e não depende de um sujeito humano. A mobilidade do
pensamento é recontada, mas não pela mente. Os pensamentos se movem,
movendo o mundo com eles. Os movimentos do pensamento e seu engajamento
no limite imanente, enquanto ainda está presente no ato, são tratados e engajados
pelas práticas coletivas de aprendizagem. (Manning, 2016
apud
Araujo, 2020).
A improvisação é uma prática corporal que desenvolve a consciência interna
dos movimentos e potencializa a noção de se mover, simultaneamente, em uma
complexa rede de possibilidades entre as relações de tempo e espaço. Além disso,
em processos de criação e composição em dança, a improvisação é um elemento
fundamental para inventar novos modelos de geração, organização e percepção
de movimento. Como processo de criação de movimentos espontâneos, a
improvisação engloba diversos procedimentos de pesquisa que possibilitam
desenvolver materiais e explorar criativamente outras corporeidades. Ao
improvisar, a criação e execução acontecem ao mesmo tempo, o movimento é
desencadeado sem planejamento prévio. Com isso, a improvisação é uma prática
corporal que desenvolve corpos inteligentes atentos ao presente para gerar
alternativas de movimentos, textos e cenas; para composição em performance
(instantânea, no momento ou em tempo real). (Muniz, 2014b
apud
Araujo, 2020) O
surgimento de novas cadeias relacionais associativas de movimento pode surgir
para além do repertório usual de habilidades, quando disponibilidade de
improvisar, o que permite novas combinações de movimentos (Banes, 1980
apud
Muniz, 2014b).
Percebe-se, segundo Muniz (2014b) que a improvisação pode ser como um
caminho pelo qual pessoas encontram distintas maneiras de resolução ao
experimentar soluções para restrições, instruções, tarefas e ou um estímulo dado
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a priori. Neste contexto, acontece um fenômeno semelhante ao que pode ser
percebido no círculo do jogo, que é a perda da validade dos costumes e leis da
vida cotidiana; fazemos coisas diferentes, tornamo-nos pessoas diferentes.
Temporariamente, o mundo habitual é suprimido, tanto nas brincadeiras infantis,
quanto já ocorria nos grandes jogos dos povos primitivos. (Huizinga, 2019).
A relação entre o jogo e a improvisação ficam mais perceptíveis quando
observamos a liberdade encontrada para além das restrições das regras desde a
criação. Enquanto improvisamos, imaginamos e inventamos os eventos que vão
acontecendo no momento relacional, transindividual5 e deformador. As situações
dadas vão sendo atualizadas enquanto problemas que surgem a partir da restrição
e são resolvidos como charadas, quebra-cabeças. No equilíbrio entre a criação e a
jogabilidade, na coerência entre a liberdade e a restrição, deparamo-nos, também,
com o desafio de encontrar um espaço próprio de atuação e que passa a ser do
outro pela maneira como a colaboração se dá. São percepções distintas que são
reconhecidas na experiência do compartilhamento, colaboração e respeito pelo
que cada um contribui. O que move essa relação é o efeito dos princípios de
associação constitutiva dos sujeitos, que são capazes de ultrapassar a própria
experiência, suas regras e restrições ao imaginar e inventar coletivamente. Por
meio da inventividade e da imaginação, as restrições e regras são atravessadas,
também, nos jogos por um estado de atenção, escuta e interação que se diferencia
e é separada da vida cotidiana por limites temporais e espaciais.
O jogo se diferencia de outras atividades pela ocupação de um espaço
específico e pela sua duração, sendo jogado até o fim dentro desses limites que
encaminham um sentido próprio em que tudo é movimento, tudo se modifica,
alternando a partir de associações, sucessões e separações. Segundo Huizinga
(2019), o jogo se fixa como um fenômeno cultural, dentro da limitação de um
espaço e tempo. Depois que acaba, um tesouro é preservado pela memória e ao
ser transmitido se torna tradição. Os jogos carregam, ainda, essa característica
importante: a repetibilidade de suas estruturas internas.
A limitação do espaço nos jogos acontece em um campo delimitado de forma
5 Relação transindividual é aquela que ocorre entre realidades pré-individuais e coletivas e não entre indivíduos
constituídos. (Simondon, 1964
apud
Muniz, 2014a, p.100)
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imaginária ou material, espontânea ou deliberada. Para Huizinga (2019),
formalmente não há distinção entre o culto e o jogo, pois tanto o ‘terreno de jogo’
quanto o ‘lugar sagrado’ são locais isolados dos quais determinadas regras são
seguidas, criando mundos temporários em um mundo habitual, onde se pratica
uma atividade específica. As arenas, o palco, a mesa de jogo, o templo, o círculo
mágico, a tela, a quadra de tênis, o tribunal, as manifestações brincantes, etc. têm
forma e função de um território de jogo.
Huizinga (2019) afirma que o jogo pode ser relacionado também com o campo
da estética. Primeiramente pelo vocabulário utilizado para descrever seus
elementos e efeitos da beleza: harmonia, ritmo, equilíbrio, contraste, variação,
compensação, solução, desunião, união e tensão. O jogo por sua natureza de acaso
e incerteza e por exigir um esforço de atenção na sua condução para um desenlace
gera uma tensão, um aspecto importante para pensarmos no estado de jogo em
que nos interessa neste estudo. Com esse esforço e tensão, quem joga pretende
o êxito a partir daquilo que ‘vale’ dentro das regras do mundo temporário do jogo.
É o corpo de quem joga e dança entre as restrições das regras enquanto lida com
tensões e incertezas.
Os jogos possuem o potencial de criar comunidades permanentes, mesmo
após o fim do jogo, conservando as sensações experienciadas para além de sua
duração. Os laços entre jogadores se formam a partir da sensação de estar
‘separadamente juntos’, partilhando algo importante em uma situação excepcional
que se diferencia do restante do mundo ao recusarem, coletivamente, as normas
habituais. Nesse sentido, explica Huizinga (2019), os grupos sociais formados a
partir de jogos tendem a sublinhar sua diferença, rodeando-se de segredos e
disfarces. O secretismo e o caráter diferencial do jogo podem ser exemplificados
pelo costume da mascarada, onde participantes podem se tornar outra pessoa ao
se disfarçarem, misturando alegrias, fantasias, rituais sagrados e até mesmo os
terrores da infância.
Em processos de criação cênica, especialmente na etapa de preparação o do
elenco com pessoas que ainda não se conhecem, os jogos se mostram um recurso
potente de promoção de laços afetivos e de geração de inclusão, integração e
confiança. Em processos de cocomposição, a improvisação impulsionou uma
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maior participação da voz criadora de cada artista participante, por isso é tão
utilizada em contextos colaborativos, o que promove uma maior cadeia associativa
e amplia as possibilidades de conexões e recombinações, proporcionalmente a
todos os envolvidos, gerando maior complexidade ao abrigar subjetividades
diversas. A maneira como cada artista cria a partir de sua percepção do todo gera
uma multiplicidade de olhares e percepções. A combinação dos diferentes pontos
de vista complexifica e imprime na improvisação um processo exploratório de
pesquisa de vocabulário, de técnica de cocomposição ou até como método de
criação de jogo e de cenas. O procedimento sistematizado de experimentação,
escolhas e seleção das proposições pode alternar o papel de coreógrafo, incluindo
cada artista do elenco, que pode rememorar ou abandonar informações do
repertório que vai sendo criado durante os encontros.
A união de um coletivo em torno de acordos que exigem condutas
hierárquicas horizontais, por meio da alternância de funções, combinando com as
atividades em ‘tempo real’ nas tarefas orientadas ou proposições e jogos, favorece
um ambiente mais democrático para o processo de composição. Assim, cada
participante tem oportunidades semelhantes de criação, porque a autonomia
criativa é desenvolvida com a prática da improvisação. A partir daí, pode-se pensar
também nos demais elementos que compõem a cena, como a música e os
objetos, para que não ditem as escolhas e tenham importâncias equilibradas ao
mesmo tempo, no mesmo espaço, gerando uma não-hierarquia inclusive no
pensamento estético. A atuação de cada membro do coletivo em um evento de
improvisação deixa de ser o de fazer o que o diretor pretende.
A maneira como um acontecimento dança se origina parte das relações que
surgem entre todos os elementos que o constituem; é, portanto, no ‘entre’ que
num campo de forças os elementos se conectam para dar sentido. A função do
coreógrafo na composição em colaboração parte de um campo de possibilidades
de emergência cocompositivas como o princípio de agenciamento disparador das
ações executadas e criadas. O coreógrafo neste processo agencia e inventa
possibilidades para ativar a imaginação de colaboradores que atuam no espaço
mediados por estímulos e provocações.
Sendo assim, participar de um processo de criação como coreógrafo,
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também, é compreender todos os elementos que compõem o evento e atuam na
sua formação como uma ecologia, tanto em ensaios como em apresentações ou,
ainda, em eventos de improvisação em tempo real. A criação acontece no encontro
e sobre o efeito dos afetos que incorrem entre todos os participantes ativos do
processo. O que desencadeia a criação pode ser qualquer um dos elementos que
constitui essa ecologia e está circunscrito nas relações entre as relações. Portanto,
o desafio no movimento da criatividade é criar “linhas de fuga” e articular. É agir
no sentido de captar a oportunidade, reconhecer as potências de cada material
que envolve o processo pode conter, evidenciar e criar relações. Inventar e
desenvolver oportunidades para que técnicas sejam aplicadas e adaptadas para
cada situação em questão.
O trabalho de direção deixou de ser o de saber tudo e exigir que outros
artistas adivinhem, traduzam e concretizem a sua visão particular. uma
possibilidade menos restritiva à criatividade, a de descoberta do que pode emergir
da experiência aberta do aprendizado em grupo. (Bogart; Landau, 2017).
Pedagogicamente, pode-se afirmar que a maneira como cada participante de
um processo coletivo se conecta com os elementos que ativam o jogo nesse
contexto se relaciona com a pragmática do inútil6, como nos ensina Manning (2016).
Quando existe tal engajamento, o seu valor é inventado durante a aprendizagem,
não fica decidido previamente o que é útil. Nesse sentido, percebe-se um
ceticismo diante da ideia de que precisamos saber onde o aprendizado deve nos
levar. Não seria possível prever o que terá valor, no sentido do ensino-
aprendizagem em um tempo que ainda não foi inventado. Ter curiosidade pela
descoberta é a chave para criar espaços que potencializam a criação, e o
importante é experienciar o processo e não se preocupar demasiadamente com o
resultado. Da mesma forma, o comprometimento e o envolvimento com o que
está no mundo existem, além da oportunidade de refletir sobre o sentido que se
abre à transformação causada pela força potencializadora da experiência, das
sensações e da mudança de percepção sobre si mesmo e sobre o mundo.
6 “Uma pragmática do inútil é dedicada à inutilidade, a práticas que ainda não foram definidas de acordo com
o valor imposto externamente. Uma pragmática do inútil celebra o fato de que não sabemos aonde um
pensamento pode nos levar. Ela se deleita com o estudo por causa do estudo em si.(Manning, 2016, p. 27
apud
Araujo, 2020, p.65-66)
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Florianópolis, v.1, n.54, p.1-19, abr. 2025
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O jogo abre um campo de potências para o desenvolvimento de habilidades
e descobertas em grupo, provoca instâncias subjetivas pessoais e o envolvimento
necessários à experiência. Em processos de cocomposição em dança desta
natureza, as potencialidades e a espontaneidade de cada artista é trabalhada e
pode ser desencadeada pelas restrições das regras dos jogos. Durante as decisões
criativas tomadas em grupo, ocorre um processo de liberação de energia que
rearranja o todo enquanto resolve problemas. No território das restrições do jogo,
quem joga experimenta a prática de liberdade ao inventar e tomar decisões rumo
a um objetivo. Viola Spolin (2006) explica que a solução aparece a partir da
inventividade e ingenuidade, seja qual for a crise apresentada pelo jogo que fica
subentendido e podemos escolher a maneira pela qual vamos alcançar o objetivo.
Maneiras extraordinárias de jogar são estimuladas e aceitas, desde que estejam de
acordo com as regras combinadas. Para começar a jogar, precisamos nos sentir
livres para acessar o mundo ao redor, sentir, questionar, investigar, rejeitar ou
aceitar. Para isso, Marcelo Araujo (2020) elabora que as regras, restrições e os
objetivos em comum precisam estar bem compreendidos; assim, cada integrante
pode contribuir para o evento sem que uma figura central comande as suas ações,
acontece coletivamente. Os acordos de grupo e o envolvimento de cada
participante são essenciais à interação social em direção ao objetivo e para que o
jogo possa acontecer. Muitas vezes, o objetivo é a experiência de criar territórios
extra cotidianos de inventividade em que a imaginação toma conta e o corpo entra
em modo sensorial de percepção em fluxo com a consciência para a composição.
A presença é exercitada e ampliada por meio do estímulo a todos os nossos
sentidos, para ver não apenas com os olhos e ‘sair’ das nossas cabeças.
Treinamentos como a improvisação em dança, as abordagens somáticas e os
Viewpoints, por exemplo, ampliam a comunicação entre o coletivo a um nível mais
profundo. Além disso, estimula uma escuta ampliada, a consciência sobre os
movimentos e hábitos próprios e habilita respostas mais articuladas e inteligentes.
São aspectos de treinamento, a suavização do olhar para estender o alcance da
percepção, expandindo-o especialmente por meio da visão periférica. O
treinamento para desenvolver o estado de escuta e atenção, assim como para o
foco suavizado cria um estado de relaxamento de forma a permitir que as
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informações cheguem até nós, sem a necessidade de olhar diretamente para algo
ou alguém. Técnicas como essa podem facilitar com que cada artista incorpore
tais acontecimentos, percebendo o grupo como um todo, apreciando movimentos
uníssonos sem que ninguém lidere e sem que ninguém precise de alguém para
liderar, em uma presença coletiva compartilhada por meio da valorização da
atenção ampliada. (Bogart; Landau, 2017
apud
Araujo, 2020).
A prática entre pessoas do coletivo, desta associação de horizontalidade nas
relações, o olhar suavizado, a escuta ampliada, somado aos outros sentidos e
percepção sensorial origina um campo de tensões e estado de jogo nos corpos.
As novidades penetram nossa sensibilidade como uma ‘escuta extraordinária’,
uma ‘escuta com o corpo inteiro’, com ‘todo o nosso ser’, habilidade que poderia
definir o rumo das colaborações em um determinado núcleo criativo. Esse tipo de
sensibilidade alerta, rápida, disponível, aberta ao outro, consciente de que tudo
pode acontecer, é necessária a todo momento em um mundo que está sempre
mudando, sem que se traduza sempre em preocupações. Esse estado de presença
pode ser interessante, também, durante os jogos e pode ser acessado quando não
existe um resultado específico a ser alcançado. Para aproveitar essa ‘escuta
extraordinária’, é preciso abdicar de desenlaces premeditados e dar abertura para
o que surge no momento presente, buscando respostas mais espontâneas para
além das idealizações (Bogart; Landau, 2017
apud
Araujo, 2020).
Quando os jogadores não precisam responder a uma instrução de uma
pessoa externa que define o que fazer, o quando e o como, cada participante pode
livremente fazer suas escolhas e agir com rigor a partir das combinações e regras
do jogo em decisões do grupo com confiança e entusiasmo. Por isso a autonomia
deve ocupar o lugar usual da relação de dependência observável em muitos
ambientes de ensino e trabalho. Para isso, Spolin (2006) nos chama a atenção para
tornar os hábitos conscientes e buscar uma configuração em que as vozes no
coletivo tenham pesos similares. Propor colaborações verdadeiras e potentes
passa por caminhos que envolvem uma condução menos restritiva, priorizando a
escolha de palavras que não remetem a uma relação de superioridade como, por
exemplo, “eu quero” - que poderia pressupor certo e errado. Esse tipo de relação
inibe o processo criativo e amplifica a sensação de julgamento e expectativa. A
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linguagem utilizada durante as aulas ou ensaios na proposição de um jogo tem
influência direta na qualidade percebida nas relações entre o grupo e o tom do
ambiente. É importante estimular artistas em processo de cocomposição a
buscarem escolhas que não estejam restritas à necessidade de aprovação de uma
autoridade absoluta, que esteja acima de nós, mas que se dirijam a expandir rumo
às soluções para aquele momento que estão além de uma ideia única e pré-
determinada. Se alguém lidera o processo, esse alguém dará contorno à estrutura
e um senso de direção; apontar para a descoberta, em lugar de tentar encenar
uma réplica do que decidiu de antemão, perguntará mais do que afirmar.
Ajustes, descobertas, escavações da linguagem, exploração de um tema podem
ser um ato coletivo, com propostas vindas de todas as partes. Artistas livres da
aprovação recebem a responsabilidade de cocompositores do que se cria e, acima
de tudo, do acontecimento como um todo. Assim, cada participante pode buscar
uma razão convincente para fazer parte do processo, investir nele e ser parte dos
resultados. Recursos técnicos e metodológicos como os Viewpoints, que deixam
acontecer ao invés de fazer acontecer, são importantes para processos abertos
de cocomposição, porque ampliam a nossa percepção das limitações que
impomos à nossa prática artística. Ao abandonarmos a habitual autoridade
absoluta, seja o diretor, o texto, etc., podemos perceber que não certo e errado,
bom ou ruim, existem apenas as possibilidades. (Bogart; Landau, 2017
apud
Araujo,
2020).
Lîla
é uma palavra em sânscrito que significa ao mesmo tempo ‘jogo’,
‘brincadeira’ e, também, está ligada às ideias de amor e criatividade. Seria algo
como a ‘brincadeira divina’, ‘jogo da criação, destruição e recriação’. Além disso, a
palavra remete a uma profunda liberdade, o prazer e a delícia do momento
presente e do amor. Esta ideia poderia ser descrita como a coisa mais simples que
existe, espontânea, franca, infantil, um estado mais difícil de se alcançar à medida
que crescemos e a vida se torna mais complexa. Desfrutá-la é como retornar ao
nosso verdadeiro ser. Nossa forma mais espontânea de nos relacionarmos, de
praticar a liberdade criativa, de nos conectarmos com nossa forma mais animal
de brincar, menos racional, apartada do julgamento e das normas de interação
social. O ‘aqui e agora’ gera as dádivas do momento de espontaneidade quando
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estamos livres para nos inter-relacionarmos com o mundo à nossa volta em
constante transformação. Isso nos impulsiona a sermos criativos e usar tudo
aquilo que está disponível - desse contato com o aqui e agora sempre surge algo
(Nachmanovitch, 1993
apud
Bortolus, 2012).
A cultura ocidental desdenha o brincar, mesmo que seja um aspecto central
da vida humana, ao priorizar o sucesso, a competição e ao instrumentalizar
relações e atos. A brincadeira e o amor podem ser vistos como essenciais à vida
e às relações humanas. Amor, ternura e sensualidade seguem juntos, enquanto a
brincadeira se relaciona com a plasticidade do comportamento, o prazer de existir,
como um modo de viver no presente com abertura sensorial. (Maturana; Verda-
Zoller, 2004
apud
Bortolus, 2012).
Desta forma, o estar em consonância, em composição, potencializar as
relações de afetividade, assim como de trabalho fazem parte de uma ética de
colaboração e coletividade que imprimem a cada processo criativo uma
experiência de crescimento e autonomia. Perceber a sutileza de uma relação, na
criação artística, em que se é o melhor de si, vivenciar a vitalidade e organicidade
do poder de se comunicar pela arte e, por fim, de ser autônomo no coletivo é, sem
dúvida, um dos desafios que enfrentamos nestes tempos de mundo digital.
Portanto, o jogo, a brincadeira e a responsabilidade de se manter leal às
combinações é essencial para que coletivos e núcleos de criação sustentem um
trabalho de pesquisa que tenha continuidade e aprofundamento.
Fazer a direção em dança nos processos colaborativos exige uma preparação
e generosidade para que todos os participantes possam criar e trazer ao processo
toda a sua potência artística. Também é fundamental manter o processo acessível
para o que é promovido pelo grupo enquanto existe a escuta atenta. Estar em
posição de direção é ativar a imaginação para que materiais sejam criados,
permitindo que a proposição do outro seja também experimentada; é trazer
estímulos, receber, escutar, responder e estar disponível para adaptar ideias
preconcebidas ao que é originado. Neste contexto é situar-se em um lugar de
agenciamento de afetos, ao instigar e provocar situações de encontros entre o aqui
e agora de cada participante e o aqui e agora do coletivo. Fazer a direção é
perceber e reconhecer potenciais e assentar técnicas de criação para evidenciar
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tais potências. Também é projetar situações para acionar o campo de tensões e
reconhecer as qualidades e intensidades dos materiais que estão no espaço e nas
relações que se desenvolvem.
Ser coreógrafo é antes de tudo um lugar de manutenção das relações, de
ativação da imaginação e de agenciamento dos afetos que incorrem no processo.
A produção de acontecimentos em dança em cocomposição emergente nos
imprime uma experiência, uma experiência encarnada, adicionando uma dimensão
quantitativa de intensidade à qualidade da experiência. Uma desterritorialização
para o domínio dos afetos, que se configura na relação entre experiência,
intensidade e afeto. É imanente, porque é na experiência e não da experiência, está
nela e não a partir dela ou fora dela. A dança como acreditamos neste momento
é explorar as possibilidades de devir, de estar no mundo, é mais sobre experiência
e sobre alargar as fronteiras do que pode ser experimentado e, finalmente, cada
momento vivido por meio da dança são atualizações de possibilidades de vida.
Referências
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de Curso (Licenciatura em Teatro) - Universidade do Estado de Santa Catarina,
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Recebido em: 06/09/2024
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