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Pesquisa em artes da cena: os dilemas do método, os
desafios da escritura e a relação arte e dor na dança
Rafael Henrique Viana Sertori
Para citar este artigo:
SERTORI, Rafael Henrique Viana. Pesquisa em artes da cena:
os dilemas do método, os desafios da escritura e a relação
arte e dor na dança.
Urdimento
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 54, abr. 2025.
DOI: 10.5965/1414573101542025e123
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Rafael Henrique Viana Sertori
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-24, abr. 2025
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Pesquisa em artes da cena1: os dilemas do método, os desafios da escritura e a relação
arte e dor na dança2
Rafael Henrique Viana Sertori3
Resumo
Tratou-se de pensar e refletir sobre o campo configurado pelas pesquisas
acadêmicas em artes cênicas na atualidade, partindo-se de três perspectivas; a
saber: os dilemas enfrentados por pesquisadores e pesquisadoras em relação às
diretrizes metodológicas que, por vezes, refletem as dificuldades enfrentadas na
produção e mobilização do dito conhecimento científico no campo das artes, o
embate diante dos paradigmas escolásticos que, até hoje, permeiam a construção
dos saberes nas universidades e, por último, os desafios impostos pelo exercício
doloroso de se tentar escrever sobre o corpo na arte da dança.
Palavras-chave
: Dança. Método. Corpo. Arte e dor. Escrita da dança.
Research in performing arts: the dilemmas of method, the challenges of writing and
the relationship between art and pain in dance
Abstract
This work aimed to think and reflect on the field shaped by academic research in
performing arts today, from three perspectives: the dilemmas faced by researchers
regarding methodological guidelines, which sometimes reflect the difficulties in
producing and mobilizing so-called scientific knowledge in the arts field; the clash
with scholastic paradigms that still permeate the construction of knowledge in
universities; and finally, the challenges posed by the painful exercise of attempting
to write about the body in the art of dance.
Keywords:
Dance. Method. Body. Art and pain. Dance writing.
Investigación en artes escénicas: los dilemas del método, los desafíos de la escritura
y la relación entre arte y dolor en la danza
Resumen
Se trató de pensar y reflexionar sobre el campo configurado por la investigación
académica en las artes escénicas en la actualidad, desde tres perspectivas: los
dilemas que enfrentan los investigadores en relación con las directrices
metodológicas, que a veces reflejan las dificultades para producir y movilizar el
llamado conocimiento científico en el campo de las artes; el enfrentamiento con los
paradigmas escolásticos que aún hoy impregnan la construcción del conocimiento
en las universidades; y, por último, los desafíos impuestos por el doloroso ejercicio
de intentar escribir sobre el cuerpo en el arte de la danza.
Palabras clave
: Danza. Método. Cuerpo. Arte y dolor. Escritura de la danza.
1 Boa parte desse artigo é resultado das reflexões apresentadas na tese de doutorado de Rafael Henrique
Viana Sertori, denominada: “Dança, corpo e dor”, defendida na Universidade de São Paulo em 2024.
2 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Guilherme William Udo Santos.
Doutorado em Artes pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em Comunicação pela Universidade
Paulista (UNIP).
3 Doutorado em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrado e Licenciatura em
Artes Cênicas pela USP. Professor no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.
rafael.sertori@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/9624724264905648 https://orcid.org/0009-0004-0916-1238
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Introdução
A princípio, este artigo foi pensado partindo-se de um desejo de contribuir
com a instauração de novas maneiras que a arte da dança possui para interrogar
e revelar a dinâmica de reinvenção interminável que é o corpo. Nesse sentido,
desde que iniciei meus estudos e pesquisas no campo das artes, em meados de
2010, sempre me interessaram os modos pelos quais a arte da dança é capaz de
interpelar a si mesma como manifestação artística e estética, por meio do seu
fazer e do seu pensar, além de colocar em suspensão os sentidos do gesto e do
movimento como signos poéticos, ultrapassando os regimes da linguagem verbal
e da comunicação. Se olharmos por essa perspectiva, a arte da dança passa a
emergir como campo potencialmente micropolítico, agenciador de novas formas
de trabalharmos e mobilizarmos materialmente o espírito e espiritualmente a
matéria –, ampliando as possibilidades de manifestação, de construção (poética e
expressiva) e de reelaboração do corpo e do humano.
Acredito que a reflexão e o exercício contínuo de tentar formular uma escrita
teórico-crítica no interior de tal campo podem contribuir significativamente com
a produção de novas estratégias para pensarmos as relações entre arte, vida e
política, bem como de novas maneiras de sentirmos ativamente as afecções
suscitadas por uma experiência estética, por exemplo. Afinal, o interesse aqui é
tentar perceber como essas relações e operações instauradas pelas artes podem
ser capazes de agir nas estruturas arraigadas dos processos de subjetivação que
se tornaram dominantes, desestabilizando-os e levando nossa percepção e nossa
estrutura sensível a pensar e a manifestar o impensado, isto é, aquilo que ainda
há por pensar ou por fazer (Sertori, 2024).
E, no que diz respeito à arte da dança, acredito que ainda há muito por fazer
e por pensar, sobretudo porque o corpo tem sido, atualmente, um dos maiores
lugares onde disputas, de todas as ordens, têm acontecido de maneira acirrada e
irrefreável. Porém, como escrever sobre a dança e o corpo sem reduzi-los às
teorias e às regras acadêmicas consagradas? Como realizar pesquisas em um
campo que nos lança diretamente para um terreno tão movediço, oscilante e
continuamente em transformação, permeado por uma ambiguidade
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insolucionável e misteriosa que nos é aberta todas as vezes que nos colocamos
diante do corpo?
Logo, antes de tratarmos detidamente dessas questões específicas, iniciarei
expondo algumas reflexões sobre os sentidos das palavras
método
e
pesquisa
em
campo artístico, pois penso que esses são assuntos que merecem nossa atenção,
sobretudo quando consideramos que “o método nunca está completamente
separado do contexto em que opera e, mais ainda, que não existem métodos
válidos em qualquer domínio” (Fernandes, 2024, p. 3), da mesma forma que a
condição de possibilidade de uma pesquisa nada mais é do que “a história das
formações discursivas, dos saberes e das práticas, ou seja, um determinado
campo epistemológico” (Fernandes, 2024, p. 3).
Para pensarmos novamente a questão do método na pesquisa
em artes
Em 1963, a artista brasileira Lygia Clark cria e propõe uma obra radicalmente
inovadora no campo das artes (mas sem ficar restrita a ele), provocando uma
verdadeira expansão em vários aspectos que envolvem o fazer artístico: desde os
nossos modos de percebermos as obras de arte, seus regimes formais, poéticos
e estéticos, suas condições de produção mediante os contextos de instauração,
até as maneiras pelas quais as práticas coletivas e colaborativas se deram no
interior das manifestações artísticas até hoje, abrindo caminhos para que o diálogo
com a realidade cotidiana, social e política efetivamente passasse a se estabelecer.
Nessa perspectiva, a obra à qual faço referência chama-se
Caminhando
,
constituída materialmente apenas por uma tira de papel, uma tesoura e o corpo
de quem se disponibiliza a interagir com ela.
De modo geral, a obra é constituída por uma fita de
Moebius
que surge ao se
juntar uma das faces da tira de papel ao avesso da outra, fazendo emergir uma
superfície topológica ambígua, pois não se pode distinguir, com ela em mãos, qual
das faces é o lado direito e qual delas é o avesso. Nesse sentido, essa superfície
topológica passa a se apresentar como um espaço caracterizado pela
indeterminação, assim como pela indiscernibilidade. A partir daí, e com a tesoura
em mãos, escolhe-se um lugar para iniciar um corte longitudinal sobre a fita. Após
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feita a primeira incisão, a proposta é que a pessoa permaneça “caminhando”,
agindo sobre o papel sobre a constituição da obra e finalize a cesura quando
não houver mais superfície por onde a tesoura possa deslizar livremente, ou
seja, o corte deve ocorrer continuamente sem encontrar-se com nenhum dos
pontos escolhidos anteriormente. Diante dessa premissa, tanto a forma quanto a
experiência se multiplicam “numa variação contínua que somente se esgota
quando já não resta superfície alguma para recortar. A obra se efetua na repetição
do ato criador de diferença e nele se encerra” (Rolnik, 2018, p. 44).
Em outras palavras, em
Caminhando,
Lygia Clark (1964) propõe a dissolução
da crença de que o objeto artístico estático é imprescindível para haver obra de
arte e a obra, propriamente dita, acontece, existe e passa a se constituir através
do corpo, durante o próprio ato de cortar; ou seja, a obra em si efetiva-se por meio
da concretização da própria experiência realizada pelo “espectador-agente”, e
instaura-se mediante a preservação das condições para a sua realização. Com
isso, além da artista brasileira “ativar a potência clínico-política da arte, sua
potência micropolítica, então debilitada por sua neutralização no sistema da arte”
(Rolnik, 2018, p. 40) durante os anos 1960 e 1970, acredito que
Caminhando
ainda
reverbere muito em nossos dias ao evidenciar-nos, também, a importância de algo
que acredito ser profundamente caro e indispensável no contexto da pesquisa em
artes, a saber, a experiência do
processo criativo
e potencialmente criador de
diferença, bem como aquilo que ele demonstra acerca dos sistemas de
pensamento que constituem artistas, pesquisadores e pesquisadoras, todos eles
inseridos e emaranhados num determinado contexto social, cultural e num
determinado tempo histórico.
Tendo isso em vista, acredito que a riqueza de podermos observar os
detalhes e de sabermos ler a potência que emerge de um
processo
consiste, entre
outras coisas, em reconhecermos que o que configura, ou melhor, o que constitui
aquilo que chamamos de
método
na pesquisa em campo artístico poderia ser
entendido a partir de vários ângulos, sendo alguns deles, por exemplo, a maneira
pela qual uma pessoa organiza, registra e estrutura seu sistema de pensamento
no desenvolvimento de seu estudo; as escolhas que realiza para a criação e
formulação poética de algo; o modo como sua autonomia é exercida nas
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dinâmicas de elaboração e organização do conhecimento; sua postura crítica e sua
ação criadora diante dos diversos desafios e saberes abertos pela pesquisa; as
condições materiais e subjetivas existentes para que algo seja feito ou
concretizado no mundo; a malha de relações e de sentidos que se constitui a partir
de uma obra, por ela e em torno dela etc.
Neste momento, contudo, é importante ressaltar que a possibilidade de
aceitarmos afirmações como estas emerge com a “recém-entrada” das Artes no
universo acadêmico e científico, inserção esta que fez com que nos deparássemos
com vários desafios. Dentre eles, destaco uma situação que é, no mínimo,
paradoxal: de um lado, o pensamento que nos diz que as maneiras pelas quais as
Artes produzem, organizam e mobilizam os conhecimentos devem ser autônomas
e independentes, afastando-se ao máximo das exigências metodológicas que
estruturam, prescrevem e definem o que é considerado e legitimado como
“conhecimento científico”. De outro, nos confrontamos com os modos de
“investigação que exigem posturas e métodos acadêmicos capazes de garantir que
a nossa pesquisa se vinculará à seriedade e à confiabilidade garantida pelas
fórmulas consagradas de fazer Ciência” (Velardi, 2018, p. 44).
Diante desse contexto paradoxal, o que passamos a notar e a perceber mais
intensamente foi que, para além de uma profunda transformação que começou a
ser instaurada nas maneiras tradicionais de compreendermos o que podem ser
métodos e metodologias de pesquisa no contexto das Artes, “houve também um
abalo irreversível provocado nos modos hegemônicos do pensamento se constituir
e se difundir, exigindo de nós coragem para instaurarmos novas dinâmicas de
produção do conhecimento e novas formas de pensar” (Sertori, 2024, p. 102). No
entanto, vale dizer que o surgimento destas transformações não aponta para um
abandono indiscriminado da escrita, tampouco sugere que a forma de organização
e articulação teórica dos resultados de uma pesquisa em artes não seja válida e
legítima. O professor de
Teoria da Pesquisa nas Artes
, Henk Borgdorff, também
pesquisador da Universidade de Leiden, na Holanda, nos diz que
No debate sobre a pesquisa nas artes, um desacordo sobre o que ou
até onde os produtos artísticos da pesquisa [...] devem ser
discursivamente abordados ou seja, acompanhados de uma
contextualização, um aporte teórico, uma interpretação ou reconstrução
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da documentação gerada no processo de investigação. Esse é um dos
tópicos que demarcam o debate fundacional. Defendo que a translação
discursiva é necessária. [...] Renunciar a isso implicaria em um
desligamento com a academia. [
Porém
], as formas discursivas nas quais
essas abordagens podem ser feitas são altamente variáveis. Elas não se
confinam ao discurso acadêmico convencional (Borgdorff
apud
Velardi,
2018, p. 45).
Com isso, constantemente as Artes nos convidam a caminhar em direção à
reformulação dos conhecimentos produzidos e, igualmente, nos impulsionam
rumo aos novos horizontes que se abrem a partir da realização de uma pesquisa
em campo artístico, pois “a arte não busca replicar formas acabadas e
estabelecidas, seja enquanto imagens na mente ou objetos no mundo. Ela busca
se unir às forças que trazem à tona a forma” (Ingold, 2012, p. 26). Nessa perspectiva,
penso que conhecer o
método
que estrutura e que circunscreve a realização de
uma pesquisa em Artes não significa simplesmente conhecer uma determinada
técnica eficaz de elaboração do conhecimento ou uma forma específica de se
reproduzir algo estabelecido, mas, sim, significa ter acesso e desenvolver
maneiras de se aproximar das forças que deram início ao processo de sua
formação.
A partir daí, antes de relacionarmos o que chamamos de
método
a uma
técnica usual ou a uma determinada prática que tenha sido consagrada
no meio acadêmico as quais, inclusive, serviriam apenas para serem
replicadas com a finalidade de reproduzirem resultados tradicionalmente
aceitos , deveríamos compreendê-lo e relacioná-lo, primeiramente, a
uma
forma de pensamento
, a partir da qual forças e fluxos emergem
para instaurarem e darem forma ao impensado, ao desconhecido, ao
enigmático (Sertori, 2024, p. 103).
Aqui, é evidente que essa forma de pensamento também se fundamenta em
determinadas práticas e ações, as quais são possíveis quando se consideram
as condições sociais, culturais e históricas que caracterizam a sua produção e
realização. Nessa medida, ao considerarmos o processo de configuração e
“escolha” de um
método
para se fazer uma pesquisa como parte estruturante de
uma maneira de agir, de criar, de sentir e de pensar, seria muito mais proveitoso,
instigante e desafiador se, ao invés de agirmos como quem vai ao supermercado
selecionar um produto que já foi criado, comercializado e certificado como válido,
nos fizéssemos as seguintes questões:
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como nós pensamos? Como o nosso pensamento sobre as coisas foi
construído e se construindo ao longo da nossa biografia? [...] Como dizem
para eu pensar? Rompo ou aceito? E quando penso, observo e descrevo
um processo artístico ou pedagógico que estou (vi)vendo, como descrevo
e escrevo? Atuo na escrita? (Velardi, 2018, p. 48).
Além disso, também não deveríamos nos indagar a respeito do que constitui
nossos sentimentos e de como nós sentimos? Como nós construímos
conhecimento a partir daquilo que sentimos? Quem pensa e sente em nós quando
pensamos e sentimos algo? Dito de outra maneira, antes de recorrermos aos
métodos e às metodologias de pesquisa preexistentes e consagradas, seria
melhor nos abrirmos para o desconhecido e “seguirmos as provocações que vêm
de toda parte no desafio que é viver e escrever” (Velardi, 2018, p. 51). Neste
momento, parafraseando o filósofo Merleau-Ponty (2013), diria que
é oferecendo
seu corpo ao mundo que o pesquisador transforma o mundo em conhecimento
4
,
isto é, entrelaçando-se com ele e não se separando inadvertidamente dele para
depois torná-lo sua propriedade, pois, “imerso no visível por seu corpo, ele próprio
visível, o vidente não se apropria do que vê; apenas se aproxima dele pelo olhar,
se abre ao mundo” (Merleau-Ponty, 2013, p. 19), instituindo a visão como abertura,
e não como consumo indiscriminado.
Crise e crítica dos velhos paradigmas nas formas da escrita
acadêmica
Contudo, neste momento poderíamos nos perguntar como é possível
realizarmos um trabalho acadêmico ou dialogarmos com a produção do
conhecimento feito no contexto do ensino superior sem recorrermos aos
métodos científicos tradicionais e consagrados, os quais vêm sendo
historicamente considerados como critérios imprescindíveis na realização de uma
pesquisa? Em outras palavras, como poderíamos tensionar e problematizar a
subordinação do pensamento ao dito discurso lógico, científico, universalmente
válido? Como questionarmos aquilo que é classificado como uso correto da
técnica formal do conhecimento, isto é, o justo emprego das formas e métodos
4 A conhecida afirmação de Merleau-Ponty encontra-se no ensaio O olho e o espírito, originalmente assim
formulada: “É oferecendo seu corpo ao mundo que o pintor transforma o mundo em pintura” (Merleau-
Ponty, 2013, p. 18).
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que produzem o dito rigor científico na realização de uma pesquisa acadêmica?
À luz dessas questões, não seria equivocado considerarmos que as
universidades ocidentalizadas têm nos ensinado, bastante tempo, a fazer
pesquisas de determinadas maneiras
método-logicamente
padronizadas, as quais
estão estruturadas a fim de dificultarem o aparecimento de algo novo e
provocador embora seja inegável e considerável o aumento das produções
universitárias e acadêmicas no Brasil, sobretudo nas últimas duas décadas. No
entanto, cabe a pergunta: “não estaremos assistindo a uma timidez muito grande
no modo como os jovens pesquisadores abordam seus temas?” (Ribeiro, 1999b, p.
189). Penso que, como humanidade, avançamos a passos lentos em nossas formas
de tentar buscar e construir um mundo novo pois, por um lado, para os jovens
pesquisadores, o medo de enfrentar a autoridade acadêmica pode ser, por vezes,
paralisante e espantoso. Por outro, além de nossa realidade social nos impulsionar
a viver incessantemente buscando a pretensa estabilidade oferecida pelo hábito,
pelo
status-quo
e pelas formas tradicionais da linguagem, ela paradoxalmente
também não cansa de nos surpreender com acontecimentos e desafios
complexos, exigindo daquelas pessoas que tentam pensá-la de maneira crítica e
implicada para além de criatividade –, cada vez mais tempo, escuta e trabalho
do pensamento (Sertori, 2024).
Todavia, é isso o que estamos, de fato, conseguindo praticar em nossos
modos atuais de se fazer pesquisa? Não estaria ocorrendo “um esvaziamento do
desejo de pensar? A Universidade não deveria incentivar, nos alunos, o espírito de
risco, em vez do anseio de acomodação?” (Ribeiro, 1999b, p. 189). E não seria
exatamente isto aquilo que aproximaria, em certa medida, o fazer científico do
fazer artístico? Na paixão pelo saber, se somos colocados diante daquilo que nos
causa, a um tempo, temor, espanto e pavor, por um lado, e atração, desejo e
encanto por outro, quase sempre tendemos a procurar por terra firme e por
terreno conhecido, supostamente oferecidos a nós por métodos que parecem
eficazes, esclarecedores, seguros e libertadores, nos livrando da agonia do
desconhecido. “Mas será correto, será, sobretudo,
enriquecedor,
esvaziar de pronto
o temor, a dificuldade, a ansiedade que um tema em nós suscita?” (Ribeiro, 1999b,
p.190).
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De maneira geral, sabe-se que aquilo que constitui boa parte dos repertórios
acadêmicos e universitários de jovens pesquisadores são ensinamentos e
conhecimentos transmitidos por fórmulas e métodos que devem ser,
incansavelmente, seguidos e reproduzidos por quem deseja ingressar no universo
científico. O fato é que, ao se reproduzir e replicar tais métodos, quase sempre
chegamos aos mesmos lugares instaurados e construídos de antemão pelas
fórmulas ensinadas. Outro fator agravante que dificulta a saída dessa lógica é que
o conhecimento intuitivo, ancestral e perceptivo, assim como os modos de acesso
a eles, foram historicamente negados, suprimidos e radicalmente deslegitimados
no contexto da produção científica e acadêmica. E nós sabemos qual foi o destino
que esse conhecimento teve no Ocidente. Em outras palavras, tal destino, por
exemplo, foi “a perseguição e a morte de bruxas, adivinhos e alquimistas na Idade
Média; a segregação da loucura a partir da Idade Clássica; o fuzilamento de poetas,
artistas e anarquistas nos regimes comunistas” (Avelino, 2013, p. 27).
Se, por um lado, o que resulta disso, hoje, é uma possível limitação e um
acanhamento tanto dos meios de produção do conhecimento quanto dos
processos de criação de novas linguagens e de novos saberes, por outro,
poderíamos pensar que, potencialmente, deve haver uma força que empurra o
conhecimento para fora dos diversos limites que o cerceiam, fazendo com que o
pensamento tenha que abandonar os mecanismos e procedimentos que não
deixam de reproduzir o passado, avançando para áreas, ambientes e direções
misteriosas e ainda desconhecidas (Sertori, 2024). Com isso, claro que não se
espera de ninguém que reinvente a roda: os autores que nos precederam deram
passos formidáveis, e deles nos devemos valer para avançar. Mas é preciso que
eles sejam ajudas, e não muletas” (Ribeiro, 1999b, p. 190). Além disso, também é
preciso que eles sejam pares, e não autoridades amedrontadoras e intocáveis.
A respeito dessa discussão, o professor da Universidade Federal da Paraíba,
Nildo Avelino, elaborou uma interessante reflexão acerca daquilo que ele chamou
de “feudalismo acadêmico”. Recorrendo ao comportamento e ao vínculo de
“obediência terrivelmente voluntária e pessoal” do vassalo em relação ao senhor
feudal, em seu texto, cujo título é justamente
Feudalismo Acadêmico,
Avelino
(2013) irá nos mostrar como a relação estabelecida com o saber e com a produção
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do conhecimento, desde as origens da Universidade na Idade Média, sempre
esteve vinculada não a uma organização corporativa do saber simplesmente, mas,
sobretudo, a “uma operação no pensamento, um tipo de funcionamento da razão,
um tipo de prática específica do saber” (Avelino, 2013, p. 25) que nos condiciona a
obedecer (voluntariamente) certa normatização do intelecto e a descartar tudo
aquilo que não for produzido por um discurso dito científico, ou seja, tudo aquilo
que for considerado como discurso retórico ou poético. Tal prática específica da
razão ou operação metodológica do pensamento é, precisamente, a
lógica,
isto é,
uma maneira de proceder que herdamos inteiramente da Escolástica5, a qual
instituiu métodos, regras e técnicas que invariavelmente deveriam ser seguidas e
cumpridas, a fim de organizarem e sistematizarem a produção de um saber
universitário fechado sobre si mesmo. Nesse sentido,
A Escolástica fez da lógica o princípio diretor, o princípio de autoridade
que impõe práticas de submissão, de respeito, de veneração, de
reverência. Em outras palavras, a lógica impõe práticas de vassalagem
toda vez que se estiver frente a certos textos, a certos autores, a certos
discursos, a certas verdades por ela consagradas. [...] toda vez que a
verdade estiver consagrada pela lógica, pelo método, seja quem for que
a sustente, o fará a partir de uma relação de vassalagem (Avelino, 2013,
p. 27).
No que diz respeito a essas práticas de submissão, de respeito, veneração e
reverência, ou seja, um modo específico, cultural, ideológica e historicamente
construído de lidarmos com o ambiente acadêmico e universitário, tenho
percebido, tanto como pesquisador quanto como professor, que o
medo
e o
excesso de receio têm sido afetos constantes na realização de novas pesquisas e
no exercício com a produção do conhecimento afetos esses, aliás, muito difíceis
de serem enfrentados e superados nas mais diversas instâncias. Isso aparece nos
estudantes, por exemplo, como medo de errar, medo de pensar, como receio das
auctoritates,
receio de sentir-se convocado demais à atividade do pensamento e
5 De modo geral, “[...] a Escolástica é o exercício da atividade racional (ou, na prática, o uso de alguma filosofia
determinada, neoplatônica ou aristotélica) com vistas ao acesso à verdade religiosa, à sua demonstração ou
ao seu esclarecimento nos limites em que isso é possível, apresentando um arsenal defensivo contra a
incredulidade e as heresias. A Escolástica, portanto, não é uma filosofia autônoma, como, p. ex., a filosofia
grega: seu dado ou sua limitação é o ensinamento religioso, o dogma. Para exercer essa tarefa, não confia
apenas nas forças da razão, mas chama em seu socorro a tradição religiosa ou filosófica, recorrendo às
chamadas auctoritates. Auctoritas é a decisão de um concílio, uma máxima bíblica, a sententia de um padre
da Igreja ou mesmo de um grande filósofo pagão, árabe ou judaico. O recurso à autoridade é a manifestação
típica do caráter comum e supraindividual da investigação Escolástica, em que cada pensador quer sentir-
se apoiado pela responsabilidade coletiva da tradição eclesiástica.” (Abbagnano, 2007, p. 344).
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de errar ou paralisar, medo de não se sentir convidado ou adequado ao trabalho
de reflexão e, simplesmente, abandoná-lo etc.
Se, por um lado, poderíamos pensar que esse “medo” pode até ocasionar um
suposto aprofundamento no processo de estudo, bem como gerar um
compromisso e um envolvimento maiores com o trabalho de pesquisa – por mais
que haja vários outros caminhos, muito mais saudáveis e inventivos, para se
desenvolver esse estado de comprometimento –, por outro, ele tem condicionado
um sem-número de (jovens) estudantes e pesquisadores a abandonarem seus
impulsos inventivos e a se enquadrarem ou limitarem-se às regras, às
normatizações acadêmicas e ao modo de pensar tradicionalmente considerado
como “correto” –, ainda que, atualmente, esteja crescendo o número de
professores, de professoras, de pessoas inquietas, críticas e questionadoras do
modelo escolástico que têm pesquisado e orientado o desenvolvimento de novos
estudos, pesquisas e investigações, fora dos padrões “coercitivos”6.
Em vista disso, se é mesmo a inovação, a criatividade e a descoberta de novos
caminhos aquilo que configura o que temos tentado construir no trabalho
universitário, “a via do enquadramento e da normatização de nossos estudantes
não é a mais adequada. Ela serve para torná-los sérios, cedo demais e esse peso,
essa gravidade, essa ponderação de
seniores
precoces se nota com tristeza”
(Ribeiro, 1999b, p. 193). Em contrapartida, penso que o que deveríamos estar nos
perguntando, constantemente, é apenas uma coisa: “como aproveitar o que a
pesquisa traz de bom, de inovador”? (Ribeiro, 1999b, p. 193). Imersos na lógica,
haverá perspicácia, intuição e inteligência suficientes para percebermos quando
algo novo aponta no horizonte? Logo, ainda com Renato Janine Ribeiro (1999b, p.
191), podemos pensar que
[...] a ruptura com a autoridade não precisa ocorrer depois de um
interminável rol de ritos de iniciação e ascensão acadêmica, isto é, não é
6 Como exemplo, destaco todas as pessoas que têm estruturado e empreendido estudos e investigações
acadêmicas no campo configurado pelas
Pesquisas Radicalmente Qualitativas
ou pelas chamadas
Arts
Based Research
, por exemplo, do qual fazem parte, entre outros, a expoente Escola de Chicago, o
International Institute of Qualitative Inquiry,
da Universidade de Illinois, o Grupo de Estudo e Pesquisa ECOAR,
da EACH/USP, coordenado pela Profa. Dra. Marilia Velardi, e os professores e pesquisadores Norman K.
Denzin, Tim Ingold, Brad Haseman e Svend Brinkmann. Além desses, também destacaria os trabalhos de
bell hooks, Donna Haraway, Anna Tsing e Isabelle Stengers, por exemplo, no que diz respeito aos seus modos
revolucionários de escreverem e de produzirem conhecimento, integrando e conectando as contradições e
os seres que fazem vida no mundo, muito mais do que separando-os ou segregando-os.
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preciso primeiro fazer a iniciação científica, em seguida as teses, os
concursos, para, depois de bem cooptado pelo sistema, de bem
legitimado em sua trajetória, de bem normatizado em suas condutas e
mesmo nos modos de sentir, o pesquisador se perceber autorizado a
ousar. Porque quem nunca se atreveu pode ter dificuldades de, em algum
momento, começar a ousar.
É claro que, com isso, não estou querendo desconsiderar a validade e a
relevância dos longos e necessários processos de formação universitária ou dizer
que o letramento e o domínio das técnicas do fazer científico não sejam
importantes até mesmo porque é preciso conhecer algumas técnicas, os modos
de colocá-las em prática, bem como os regimes de racionalidade engendrados por
elas, para conseguirmos ultrapassar os limites do pensamento hegemônico,
ensaiar a criação de outros conceitos e imaginar novos modos de interpretarmos
um mundo que “não cessa de não se escrever” (Lacan, 1985, p. 127). Contudo, no
caso das pesquisas em Artes e em Ciências Humanas, este
fazer
e esta
prática
se
dão muito mais no sentido da
práxis
e, portanto, ação dos homens sobre si
mesmos do que
techné
, ou seja, ação dos homens sobre as coisas” (Ribeiro,
1999a, p. 14), revelando-nos que é mesmo constante e interminável, nesses casos,
o nosso inacabamento e nossa mutabilidade enquanto modos de ser e de estar
no mundo. Com isso, acredito que alguns caminhos passam a ser criados em
direção à reinvenção do trabalho de reflexão acerca da cultura e da história, ainda
que incertos, duvidosos ou tateantes.
Uma outra característica interessante no contexto do trabalho com as
humanidades é a maneira como determinadas particularidades e, sobretudo,
como necessidades específicas dos campos investigados devem ser levadas em
consideração na produção do conhecimento. Dito de outro modo, é inegável que
o próprio campo é que apresenta as ferramentas e estratégias necessárias para
melhor compreendê-lo e estudá-lo, exigindo das pessoas que o pesquisam
disponibilidade para escutá-lo e para se abrir ao desconhecido. Em suma, se
compreendermos que, quando se pesquisa, estuda e investiga nesta área do
conhecimento, o que se cria e se produz é, em última instância, o próprio ser
humano e, ainda,
[...] que o grande desafio ao conhecimento, em nossos dias, reside na
reflexão, no conhecimento que o homem tenha de si, e nas ações que
isso implique - então, o papel das Humanas, longe de confinar-se na
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defesa de procedimentos tradicionais ou na preservação de algum
espaço ameaçado, deverá ser cada vez mais positivo, definindo novas
agendas para a comunidade científica enquanto tal e também para a
sociedade como um todo (Ribeiro, 1999a, p. 15).
Entretanto, aqui cabe a pergunta: as condições de possibilidade para a
realização de pesquisas em Ciências Humanas, de maneira geral, e nas Artes, de
modo específico, têm sido favoráveis à criação, ao surgimento e à instauração de
novas perspectivas epistemológicas que estejam à altura dos problemas
enfrentados por nós na atualidade? E, por mais que existam tentativas louváveis
e necessárias sendo empreendidas nas últimas décadas, sobretudo no que diz
respeito aos conhecimentos vindos das mais diversas matrizes culturais e
cosmologias indígenas, por exemplo, as crises epistêmica, social, cultural, psíquica,
econômica e ambiental que temos enfrentado parecem nos evidenciar que nossas
formas tradicionais de pensar a realidade, até então, não têm dado conta de
ampliar a diversidade da vida e de instaurar o novo (Sertori, 2024).
É nesse sentido que vale pensarmos, ensaiarmos e praticarmos, cada vez
mais, a pluralidade de possibilidades que a pesquisa em Artes nos abre em relação
a esses desafios. Mas isso não significa que essa seja uma tarefa fácil e isenta de
dilemas e de contradições. Como exemplo disto, a partir de agora aprofundarei a
reflexão sobre alguns dos paradoxos que a escrita acadêmica no campo da dança
pode fazer emergir, assim como alguns conflitos que podem ser colocados diante
de nós pelo exercício de se praticar o trabalho de reflexão por meio da dança. Para
tanto, trarei à tona uma questão que é inerente a essa prática artística, mas pouco
comentada, a saber, a questão da dor.
Desafios da escrita na pesquisa em dança
Quando conseguimos ultrapassar a relação com a dança que se estabelece
desde sua dimensão espetacular, vista apenas como forma de lazer ou
entretenimento, e passamos a encará-la como área de conhecimento e, ainda,
como uma prática capaz de instaurar outros modos de existência, não habituais
ou desconhecidos, é possível nos defrontarmos com a necessidade ou com a
urgência de se criarem aberturas e ampliações nos campos da epistemologia e da
ontologia. Por conta disso, podemos nos perguntar: o que vem a ser a arte da
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dança? Qual mundo pode ser aberto, diante de nós, através do ato de dançar?
Qual a natureza e o sentido do corpo que a dança revela e que passa a existir, seja
através de sua prática ou por meio de sua fruição? Talvez, por último, como
interpretar e garantir que os conhecimentos apresentados, construídos e
produzidos pelo corpo que dança tenham existência no mundo material?
A princípio, querer enfrentar o desafio de se debruçar sobre tais perguntas
pode parecer muito ambicioso, sobretudo quando levamos em consideração a
complexidade inerente ao universo misterioso e enigmático proposto e
apresentado por elas. Além disso, caso a reflexão seja construída de maneira
apressada, caso ela esteja fundamentada em métodos rígidos demais ou, ainda,
caso esteja pautada na busca por respostas deterministas e tão somente factuais,
corre-se o risco de se produzir formulações generalistas, que se pretendem
universais, o que irá corroborar a propagação de conhecimentos ideológicos e
elaborações teóricas reducionistas.
Para evitar tais problemas, muitos podem pensar que bastaria optar por
explicar e analisar, dentre muitos, apenas um ou outro aspecto suscitado pela arte
da dança como, por exemplo, o pensamento envolvido em uma determinada
composição coreográfica; ou os meios e modos engendrados em um processo de
criação; ou as técnicas desempenhadas e realizadas pelos corpos dançantes; ou
os elementos que constituem e organizam o trabalho da encenação; ou, ainda, o
funcionamento dos signos contidos em uma obra etc. –, acreditando que, com
isso, a partir do recorte operado pelo pensamento analítico e pelo sujeito do
conhecimento científico, teríamos a produção de uma parte facilmente analisável
e decifrável. Algo como uma amostra de onde tiraríamos dados passíveis de
estudo e observação científica, conduzindo-nos a uma pretensa representação e
compreensão do todo.
Contudo, opções fundamentadas neste raciocínio dificilmente escapam ou
resistem à "tentação do ambíguo" (Frayze-Pereira, 1984). Por um lado, poderíamos
empreender uma análise minuciosa do funcionamento anatômico do corpo, por
exemplo, procurando entender como cada um dos segmentos associa-se à
configuração e participa da estruturação do organismo humano, como cada grupo
muscular sustenta a estrutura óssea e age na movimentação corporal, ou como o
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funcionamento das articulações, cada uma com seus nervos, ligamentos e fluidos
particulares, possibilita a relação dinâmica entre as diferentes seções de cada
membro, conferindo mobilidade e flexibilidade ao conjunto de partes que organiza
a totalidade biológica e material do corpo.
Num estudo dessa natureza, a corporeidade mobilizada pela dança poderia
facilmente sucumbir ao objetivismo científico, reduzindo-se a uma visão externa
do corpo como um conjunto de partes sem interioridade, como uma simples
ferramenta ou instrumento a ser utilizado por uma mente na criação coreográfica
e, o movimento, à mecânica dos ossos e das articulações ou à biomecânica
presente na fisioterapia, na osteopatia ou na fisiologia, por exemplo, sendo visto
como mera consequência física e natural de uma ação externa exercida sobre um
"frágil acúmulo de geleia viva" (Merleau-Ponty, 2014, p. 27).
Por outro lado, poderíamos optar por deixar as investigações anatômicas do
corpo de lado e mergulharmos nas possibilidades interpretativas dos conteúdos
subjetivos mobilizados pelo gesto dançado, pelo movimento, pelos elementos,
adereços e objetos empregados na criação cenográfica e na encenação de uma
obra, recorrendo a uma análise descritiva e explicativa de como cada aspecto e
cada elemento contido na indumentária compõem e instauram um suposto
sentido dramatúrgico e semântico geral, o qual não estaria nas coisas
propriamente ditas, mas, sim, no interior de um sujeito, de uma mente e de um
regime de racionalidade doador de significados previamente instituídos e
elaborados. Nesse caso, o que teríamos seria a redução do corpo e do mundo da
dança à representação subjetiva que uma consciência totalmente presente a si
mesma poderia fazer deles, e o movimento seria visto apenas como decorrente
de um impulso interno ocasionado no corpo físico pelas necessidades, vontades
ou desejos da mente.
Como se sabe, o que está na base de uma concepção dessa natureza é a
redução do sujeito ao objeto ou do objeto ao sujeito, o que nos leva à tradição da
ciência moderna e de uma forma de conhecimento que historicamente separou
sujeito e objeto, provocando uma cisão radical entre corpo e mente, matéria e
espírito, mundo e consciência, fato e ideia, natureza e cultura. A partir da redução
de um termo ao outro, a constituição do real e da realidade seria instaurada por
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meio de uma representação de ambos, fomentados e instituídos por um
pensamento de sobrevoo e, assim, “a ciência começou excluindo todos os
predicados atribuídos às coisas por nosso encontro com elas” (Merleau-Ponty,
2014, p. 27). Nessa perspectiva, o sujeito do conhecimento deveria estar fora do
real para poder melhor dominá-lo, explicá-lo e manipulá-lo, e habitar as coisas,
para esta ciência, seria um modo de não se chegar a nenhum conhecimento
verdadeiro ou válido para o campo científico. Entretanto, assim como nos ensina
o professor e filósofo Renato Janine Ribeiro (1999b, p. 193),
[...] é preciso que o jovem pesquisador se exponha mais a seu objeto de
trabalho. Lembre-se que, nas Humanas,
nada é apenas objeto
porque
sempre, de alguma forma, tem a ver intimamente com o sujeito que o
está estudando. Daí que, em vez de marcar essa exterioridade mecânica
do sujeito ao objeto, seja melhor mergulhar fundo, submeter-se ao que
meu
corpus
(palavra melhor, esta, que aliás um tom
físico
ao que
estaremos fazendo) me trouxer de sugestivo. Muito vai surgir de errado,
mas algo pode aparecer de novo e enriquecedor. Em suma, é preciso
partir para o corpo-a
-corpus,
se me permitem essa expressão.
No entanto, nesse momento alguém pode estar se perguntando se essa
questão ou problema ainda é relevante para ser debatido atualmente; se, de fato,
merece nossa atenção; ou, ainda, se possui importância quando estamos no
campo configurado pelas pesquisas fundamentadas nas artes e na dança,
acreditando que, nestes espaços e contextos, essa dicotomia – aparentemente –
estaria totalmente resolvida e solucionada. Diante de tais questionamentos,
apresento não mais que alguns outros como, por exemplo, como pensarmos a
negligência, a desconsideração ou a inobservância da dor que perturba e ainda
atinge tantos corpos dançantes? Se tal negligência ocorrer no universo da dança,
o que ela é capaz de produzir nos modos de nos relacionarmos com o corpo? E,
além disso, como a dor vem sendo historicamente tratada no interior do mundo
da dança e até onde o seu enfrentamento (ou a falta dele) pode nos levar?
Consequentemente, não seria estranho se, querendo pensar a partir dessas
perguntas, logo recorrêssemos às áreas da medicina e da saúde, sejam elas a
ortopedia ou a fisioterapia, como se a dor, para ser decifrada, tivesse que ser
instantaneamente direcionada e circunscrita apenas ao corpo físico; como se suas
causas fossem exclusivamente materiais e mecânicas; como se sua cura ou alívio
estivessem imediatamente relacionados ao restabelecimento biológico, fisiológico
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ou anatômico do corpo. Presumo ser precipitado demais acreditar que é raro ou
ocasional, atualmente, tratarem a dor, como temática e problema inerentes ao
universo da dança, por meio de escolhas e concepções dessa natureza (Sertori,
2024).
Historicamente, na arte da dança é bastante conhecida uma determinada
perspectiva, não totalmente declarada e nomeada, mas profundamente praticada,
que na pessoa que coreografa ou que dirige um espetáculo cênico, por um lado,
a figura do
sujeito
o qual ficaria responsável por dizer, conceber e determinar
como (e o quê) o corpo dançante irá desempenhar e realizar e, no corpo que
dança, por outro, a figura do
objeto,
destinado a executar, da maneira mais precisa
e refinada possível, aquilo que foi determinado pelo sujeito.
Por muito tempo, essa perspectiva foi difundida e perpetuada ao longo dos
diversos processos de ensino, aprendizagem e recepção da dança, produzindo
mecanismos de entendimento, de prática e de reprodução desta linguagem
artística difíceis de serem desfeitos e superados. Além disso, essa lógica de
compreensão, de comportamento e ordenação, assim como esse modelo de
criação, também foram responsáveis por uma verdadeira divisão ontológica
provocada no interior da arte da dança, divisão esta que separou a
pessoa
que
era considerada a detentora da concepção e da idealização geral da obra –, da
coisa
, isto é, o corpo, o instrumento ou a ferramenta que estaria à disposição para
a criação artística.
Nessa perspectiva, à pessoa que coreografava e que dirigia um
espetáculo de dança ficavam destinadas, entre outras, as funções de
definir a obra estruturalmente, organizar poeticamente os diversos
elementos e momentos cênicos, pensar a sua ordenação espacial e
temporal e buscar as condições necessárias para a sua criação e
realização (Sertori, 2024, p. 42).
Na obra resultante desse processo, portanto, encontraríamos a pretensa
liberdade de criação e a expressão poética e artística da mente do sujeito que a
concebeu. Por outro lado, o corpo dos bailarinos e bailarinas, inteiramente
disponível para concretizar os desejos do sujeito, seria visto como uma
coisa
empregada, usada e trabalhada em favor da criação da obra, coisa essa que, em
última instância, após condicionada, treinada e reconfigurada tecnicamente (a
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partir das escolhas e determinações poéticas do sujeito, detentor da ideia
estruturante da obra), poderia ser alçada à condição de
obra
, isto é, superfície,
lugar ou
substância
onde a dança se dava, acontecia e se manifestava enquanto
obra coreográfica.
Em meio aos vários problemas e consequências que podem derivar de uma
visão como essa, vale dizer que também vem daí a histórica distinção valorativa
e econômica – entre coreógrafos e bailarinos, estes mais facilmente substituíveis
do que aqueles, cuja poética própria adquiria e guardava maior valor. A distinção,
ainda, também poderia ocorrer no interior de uma pessoa, a qual, muitas vezes,
deixava sua
substância
pensante “adormecida” renunciando a pensar sobre
aquilo que fazia –, para que o corpo (a
coisa
) pudesse responder, da maneira mais
adequada e ajustada possível, às exigências técnicas do movimento coreográfico.
Portanto, quando associada à dor, uma reflexão que nos apresenta problemas
dessa natureza também nos conduz a outros pontos interessantes, alguns dos
quais passo a trazer à tona neste momento.
Tomados pela lógica neoliberal na qual estamos imersos, e considerando os
vários aspectos problemáticos que envolvem o mundo do trabalho atualmente
tais como a falta de tempo para pensar, para criar e para desenvolver um projeto
artístico, a falta de condições necessárias para se manter financeiramente uma
equipe de artistas implicados com a pesquisa e com a criação artística, a ausência
de tempo necessário para se estabelecer uma gramática comum que organize o
campo e as possibilidades do que para ser experimentado, produzido e
agenciado etc. –, não é de se estranhar que, ao menor sinal de dor física emergente
no corpo (que, no contexto neoliberal, é tomado como ferramenta, objeto ou
instrumento para a criação de uma obra de dança), o que quase sempre acontece
e é exigido para a continuação e concretização do trabalho é uma profunda
desimplicação deste corpo em relação à natureza agora vista, neste momento
doloroso, como hostil e ameaçadora –, bem como um intenso processo de
desafecção deste ser vivente, justamente para que ele possa retornar ao seu lugar
de objeto e à sua condição de executor dos movimentos que constituem a obra.
Ou seja, até as práticas que poderiam nos apresentar possibilidades de saída de
uma lógica dominante, expropriadora e neoliberal ficam reduzidas a esta
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“metafísica” dicotômica que organiza nossas formas de vida, perpetuando a divisão
ontológica entre corpo e mente, pessoas e coisas.
No entanto, ainda que seja possível pensarmos que esse processo não deve
ocorrer nessa medida, isto é, de maneira contínua e intransigente, sem
dificuldades e sem resistência, parece ser insistente a crença de algumas pessoas
de que o sofrimento corporal será banido ou amenizado se nos pautarmos pela
visão de que um trabalho muito bem realizado e executado sobre o caráter natural
do corpo, ou que um desenvolvimento cada vez mais técnico e que um
aprimoramento contínuo de suas qualidades "naturais" como alongamento,
extensão, ampliação da musculatura, da resistência física e da força, por exemplo
–, terão a capacidade de domesticá-lo e bem ordená-lo às exigências e
prescrições técnicas da obra coreográfica.
Diante dessa crença, devo dizer que o "progresso" da dança não se
encontra aí, tampouco no pretenso domínio e controle do corpo físico,
do mesmo modo como, igualmente, constatamos que a noção de
“progresso”, por muito tempo difundida em nossa realidade social,
política e econômica, fundamentada na dominação da natureza, na
acumulação de riquezas e na separação entre pessoas e coisas, só gerou
catástrofe, empobrecimento e escassez generalizadas (Sertori, 2024, p.
44).
Muito poderia ser pensado e desenvolvido nesse sentido, sobretudo porque
a maneira como a dança se desenvolveu e se estabeleceu como linguagem
artística no Brasil e no mundo foi, por muito tempo, solidária a essa lógica e a essa
estrutura de criação, fundamentadas nesta espécie de divisão ontológica do corpo
(do sujeito), e das funções artísticas no interior dessa arte7.
Contudo, também um outro aspecto que torna essa questão ainda mais
interessante de ser analisada, ou seja, o paradoxo insolucionável inerente ao corpo
e à dança. Esse paradoxo pode ser acessado ou compreendido, por exemplo,
7 No caso do Brasil, podemos dizer que somente a partir da década de 1990, pelo menos numa cidade como
São Paulo, por exemplo, é que alguns setores da política cultural fundamentaram um solo propício para que
houvesse o surgimento de novos artistas e, com isso, de novas propostas de dança e de outras maneiras
de se pensar, praticar, experimentar e desenvolver a criação em dança. Na cidade de São Paulo, vale ressaltar
que em 2005, por força de alguns setores da sociedade, sobretudo da classe artística, houve a criação e a
promulgação da Lei Municipal do Fomento à Dança (Lei Municipal n. 14.071/2005), a qual desempenhou um
papel fundamental para que novas práticas de dança, de relação com o corpo e de criação artística
pudessem ser investigadas, experimentadas e efetivadas, levando-se em consideração as inquietudes
sentidas por alguns artistas da época no que tange às normatizações e ordenações que prescreviam a arte
da dança naquele momento.
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quando voltamos nossa atenção à natureza psicofísica do corpo. No que diz
respeito a essa linguagem artística em particular, o trabalho de estruturação e
investigação poética e o processo criativo (quase sempre) exigem dos artistas um
profundo mergulho no exercício de reelaboração e reconfiguração da estrutura
corporal, tanto em relação às suas maneiras de constituir-se fisicamente no
tempo e no espaço (maneiras estas que evidenciam as formações estéticas que
se dão a partir do gesto e do movimento, por exemplo), quanto em relação aos
vários aspectos que organizam as condições e possibilidades para que novas
experiências possam surgir, apresentando caminhos para a realização de práticas
que visam à sua transformação, reordenação, reformulação e ressignificação.
Nesse sentido, observa-se que toda atividade (seja ela artística ou não),
desenvolvida e constituída majoritariamente por meio do corpo, desempenhada
com intensidade, com rigor técnico, com precisão e com uma frequência
significativa, inquestionavelmente contribuirá para que o desgaste natural e
material do corpo se de maneira intensiva, o que pode provocar o aparecimento
de algumas dores (de diversas ordens, físicas e psíquicas), localizadas ou
generalizadas, crônicas ou passageiras, simples de serem resolvidas ou mais
complexas, a depender do tipo de acontecimento, degradação, lesão, fratura,
enfraquecimento ou contusão.
No caso da dança, as dores que podem ser geradas pela prática repetitiva e
intensa muitas vezes colocam em risco o nosso próprio desejo de
autoconservação, fazendo-nos temer a dor da mesma maneira como fomos
ensinados a temer o contingente, o que nos ameaça, o que não controlamos, o
que nos ultrapassa em termos de força, forma e sentido. Mas, se tentamos
controlar ou assegurar a nosso desejo por autopreservação, acreditando que, com
isso, obteremos êxito e inovação, nós criamos um afastamento inevitável da arte
da dança ou, até mesmo, o seu próprio desaparecimento e enfraquecimento
(poético, artístico e estético).
Ora, levando isso em consideração, o que é intrigante nessa jornada
especulativa é que a arte da dança parece ter que provocar, pouco a pouco, a
destruição gradual daquilo que é estritamente necessário para que ela mesma
possa existir e se realizar enquanto arte, ou seja, o corpo. Isso nos faz pensar que,
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pela destruição progressiva e involuntária do corpo (de um determinado modo de
ser e de existir como corpo), a dança cria e se institui como arte; pela
destrutividade da corporeidade própria a uma determinada realidade social
capitalista, violenta e expropriadora –, a dança produz, experimenta e faz emergir
novos regimes de corpo e novas gramáticas de movimento capazes de desarticular
os sistemas de afetos e os mecanismos de reprodução material engendrados por
essa mesma realidade (Sertori, 2024).
Neste momento, é importante ressaltar que essa destruição se dá, pelo
menos, em dois níveis – um no campo material e, outro, num campo simbólico –
, cuja correlação é evidente. Em outras palavras, é certo que alguns tipos e estilos
de dança podem levar um corpo físico à sua deterioração biológica, óssea,
muscular ou estrutural, provocando dores derivadas desse processo. No entanto,
a destruição material evocada aqui ocorre neste campo ou nesta dimensão porque
acredito que a dança possui capacidades específicas de desarticular,
primeiramente num nível sensível, simbólico e psíquico, certos mecanismos e
dispositivos que nos estruturam por meio da microfísica do poder (Foucault, 2022)
que organiza as sociedades capitalistas, os quais acabam contribuindo
paulatinamente com a reprodução material de um determinado tipo de corpo
(social, cultural, político etc.) e, portanto, com a reprodução material da realidade
social vigente.
Então, a partir da desarticulação de determinadas estruturas de poder
enraizadas subjetivamente em nossa corporeidade psicofísica desarticulação
essa igualmente dolorosa –, bem como da destruição de determinadas formas de
vida que exploram a natureza e buscam o progresso a qualquer custo, a dança
abre caminhos para que novos corpos possam surgir, para que novas maneiras de
nos relacionarmos com o corpo possam se instaurar, mais plurais, diversas e
menos substancialistas. Quem sabe isso provoque a transformação material da
vida por meio das alterações geradas em nossos modos de ser, existir e agir
cultural e politicamente – como corpo sensível no mundo.
Nessa perspectiva, quando consegue provocar a aceleração desse processo
de desarticulação da normatização corporal e de rompimento daquilo que
aprisiona e limita a potência criadora e inventiva do corpo, a dança age como força
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crítica e analítica da realidade social vigente, abrindo o presente e operando como
campo privilegiado para ensaiarmos novas práticas de configuração de
corporeidades, novos regimes de sensibilidade e de produção de afetos,
conduzindo-nos às experiências de emancipação que podemos realizar através
das artes, ou seja, à construção de uma linguagem em comum, capaz de fazer
circular aquilo que ainda desconhecemos ou aquilo que ainda não sabemos que
queremos, como organização social, política e cultural. Em outras palavras, uma
prática artística capaz de “nos fazer passar da impotência ao impossível” (Safatle,
2015, p.44).
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Recebido em: 20/09/2024
Aprovado em: 23/11/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
PPGAC
Centro de Artes, Design e ModaCEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br