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Torsões entre texto e dança: as livros que
embalaram a criação de “Fúria”, de Lia Rodrigues
Adriana Pavlova
Para citar este artigo:
PAVLOVA, Adriana. Torsões entre texto e dança: as livros
que embalaram a criação de “Fúria”, de Lia Rodrigues.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 1, n. 54, abr. 2025.
DOI: 10.5965/1414573101542025e301
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Torsões1 entre texto e dança2: as livros que embalaram a criação de “Fúria”, de Lia
Rodrigues3
Adriana Pavlova4
Resumo
Este artigo tem como proposta apresentar o conjunto de livros e de autores que serviram como
disparadores do processo de criação de
Fúria
, obra de 2018, da Lia Rodrigues Companhia de
Danças, e a relação entre dança e texto que se nas criações da coreógrafa. São analisadas
cenas da peça e suas conexões com obras de autores ligados à cultura afro-brasileira e
afrodiaspórica, como Achille Mbembe, Ana Maria Gonçalves e Conceição Evaristo. Discute-se
ainda a influência de
Macunaíma: o herói sem nenhum caráter
, de Mário de Andrade, no ritmo em
fluxo contínuo do trabalho coreográfico.
Palavras-chave
: Dança. Texto. Criação coreográfica. Lia Rodrigues.
Twists and turns between text and dance: the books that shaped the creation of “Fúria”, by Lia
Rodrigues
Abstract
This article aims to present the set of books and authors that served as triggers for the creation
process of
Fúria
, a 2018 piece by Lia Rodrigues Companhia de Danças, and the relationship
between dance and text that occurs in the choreographer's creations. Scenes from the piece and
their connections with works by authors linked to Afro-Brazilian and Afro-diasporic culture, such
as Achille Mbembe, Ana Maria Gonçalves and Conceição Evaristo, are analyzed. The influence of
Mário de Andrade's
Macunaíma: o herói sem nenhum caráter
(
Macunaíma: the hero without any
character
) on the choreographic work's continuous flow rhythm is also discussed.
Keywords:
Dance. Text. Choreographic creation. Lia Rodrigues.
Torsiones entre texto y danza: los libros que dieron forma a la creación de «Fúria», de Lia Rodrigues
Resumen
Este artículo pretende presentar el conjunto de libros y autores que sirvieron como
desencadenantes del proceso de creación de
Fúria
, pieza de 2018 de Lia Rodrigues Companhia de
Danças, y la relación entre danza y texto que se da en las creaciones de la coreógrafa. Se analizan
escenas de la pieza y sus conexiones con obras de autores vinculados a la cultura afrobrasileña
y afrodiaspórica, como Achille Mbembe, Ana Maria Gonçalves y Conceição Evaristo. También se
discute la influencia de la obra de Mário de Andrade
Macunaíma: o herói sem nenhum caráter
(
Macunaíma: el héroe sin ningún personaje
) en el ritmo de flujo continuo de la obra coreográfica.
Palabras clave
: Danza. Texto. Creación coreográfica. Lia Rodrigues.
1 Este artigo resulta em 75% de partes de tese de doutorado de Adriana Pavlova denominada:
Em Fúria na Maré do diverso
ao singular e vice-versa
: arquivos que compõem a obra de Lia Rodrigues. Tese (Doutorado em Literatura, Cultura e
Contemporaneidade) Pontifica Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2021.
2 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Leonor Werneck dos Santos, professora titular de
Língua Portuguesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
3 Este artigo é fruto de pesquisa realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
Brasil (Capes).
4 Pós-doutoranda em Dança na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutorado em Literatura, cultura e
contemporaneidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Mestrado em Programa de Pós-
Graduação em Artes da Cena pela UFRJ. Graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
adripavlova@gmail.com
https://lattes.cnpq.br/0100711332820288 https://orcid.org/0000-0002-3559-2291
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Obra de 2018 da Lia Rodrigues Companhia de Danças5,
Fúria
é o nono trabalho
criado pela coreógrafa e bailarinos do seu grupo depois da chegada deles ao
Conjunto de Favelas da Maré6, Zona Norte do Rio de Janeiro, em 2004.
Fúria
é uma
obra-resumo da história de Lia Rodrigues como artista contemporânea, cujo corpo
é afetado pelas forças do presente (Rolnik, 2009, p. 100): nesta peça, ela articula,
com ainda mais profundidade e intensidade, os arquivos que fazem parte da sua
história, como também os temas que percorre décadas. As perguntas, questões
e inquietações persistentes e antigas, aquelas que sobrevivem mesmo sem
respostas, voltam nesse trabalho que aborda o ser e o estar no mundo, as dores
do viver, as violências que cercam os corpos periféricos, mas também a poesia
possível em meio ao caos e as formas de resistir dançando.
Fúria
começou a ser gestada meses antes do início dos ensaios da companhia
no Centro de Artes da Maré. No início de 2018, inverno europeu, Lia Rodrigues
passou uma temporada em Berlim, na Alemanha, dando aulas na Freie Universität
Berlin. E assim como faz em toda a nova criação, levou na bagagem uma série de
leituras. Desta vez, o foco eram os autores ligados à cultura afro-brasileira e
afrodiaspórica. Leu dois livros do filósofo camaronês Achille Mbembe,
Sair da
grande noite Ensaio sobre a África descolonizada
e
Crítica da razão negra
, e a
saga
Um defeito de cor
, de Ana Maria Gonçalves.
A partir daí se seguiram outras leituras que marcaram de forma incontornável
o processo de criação de maio a novembro de 2018, formando uma lista de cerca
de 30 obras. O ponto em comum da extensa seleção parece ser a vontade de
refletir dentro da cena sobre formas de poder, dominações, colonialismo,
desigualdade, racismo, machismo. Violências históricas que ganharam
materialidade numa dança certeira, capaz de fazer pensar sobre o redesenho de
nossos corpos e papéis no mundo. O grupo dos livros incluiu teóricos brasileiros e
estrangeiros como Frantz Fanon, Gayatri Spivak, Djamila Ribeiro, Lélia Gonzalez,
5 Em 2024, a Lia Rodrigues Companhia de Dança (http://www.liarodrigues.com) completa 34 anos existência.
Os últimos 20 anos foram passados no Conjunto de Favelas da Maré, na zona periférica do Rio de Janeiro,
para onde o grupo se mudou para uma residência em 2004 e, desde então, criou todos seus trabalhos ali,
ajudando a fundar o Centro de Artes da Maré (2009) e a Escola Livre de Dança da Maré (2011), ambos frutos
da parceria com a Redes da Maré (https://www.redesdamare.org.br/).
6 A Maré é um conjunto de 16 favelas onde habitam cerca de 140 mil pessoas, distribuídas ao longo do trecho
que vai do Caju até Ramos, pela Avenida Brasil, via de circulação que une o Centro e as áreas periféricas da
Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro” (Silva, 2012, p. 61).
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Sueli Carneiro, bell hooks, Aimé Césaire, James Baldwin, Harriet Ann Jacobs, e o
citado Mbembe. E também uma literatura feita por e sobre corpos negros, de
autores como Conceição Evaristo, Toni Morrison, Chimamanda Ngozi Adichie e
Carolina Maria de Jesus, além de Ana Maria Gonçalves. As maneiras de a
coreógrafa se relacionar e ler cada uma das obras não seguiram uma regra, como
é sua marca:
Eu li um livro do Achille Mbembe [
Crítica da razão negra
]
e eu fui
anotando todas as palavras que de alguma forma me tocavam, a gente
trabalhou em cima das palavras e não do texto. Dessa literatura,
Um
defeito de cor
foi um livro que me acompanhou. todo um mergulho
neste universo [afrodiaspórico] que este livro trouxe com tanta força. A
gente nunca acaba de aprender.7
É possível traçar conexões mais diretas das cenas de
Fúria
com muitos dos
livros lidos por Lia. Num olhar apressado, a coreógrafa parece ter escolhido uma
representação mimética crua, nada nuançada, altamente ilustrativa, com imagens
alegóricas explícitas. Trata-se, no entanto, de uma camada primeira, que vai sendo
esgarçada, subvertida, ao longo dos 80 minutos de apresentação, evidenciando a
leitura rizomática, com articulações e torsões muito mais complexas entre texto
e dança.
Na base de cada criação da coreógrafa, textos literários, filosóficos e de
antropologia, alimentando e provocando o laboratório criativo junto aos bailarinos.
“Eu parto sempre da literatura para o meu trabalho. Preciso ler muito para estar
num estado de criação, num estado de poesia”, disse a artista num depoimento
em outubro de 2019.8 Numa entrevista anterior, em 2016, Rodrigues me falou de
seu método com os livros:
Eu tenho uma relação muito livre com a leitura, sem técnica, vou me
interessando por um tema, um livro puxa o outro. É minha forma de me
inspirar, de me alimentar, não é nada objetivo, é uma leitura livre, por
pedaços. A literatura me alimenta de forma direta e indireta, surgem
imagens, pensamentos novos, revejo minha forma de ver o mundo. 9
7 Anatomia da Dança Espetáculo Fúria, Porto das Artes.
8https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/10/conceicao-evaristo-foi-farol-que-me-deixou-mais-
sensivel-diz-lia-rodrigues.shtml. Acesso em: 20 out. 2019.
9 Entrevista à autora em 18 nov. 2016.
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Nas cenas de
Fúria
, abundam embates de homens com mulheres, de
mulheres com mulheres, de homens com homens. Dominam, depois são
dominados e voltam a dominar. Uma hora são rainhas, reis, nobres, orixás, outras
são escravizados, serviçais, súditos, subalternos. Surgem vestidos com lençóis
brancos
à la
Ku Klux Klan10. Num outro momento, erguem os punhos tal qual os
Panteras Negras11, como se avisassem com um gesto que “vai ter luta”. Tem raiva,
mas também tem humor e deboche, como quando bailarinos com roupas de
mulheres, abaixam e levantam os vestidos rapidamente, para mostrar seus pênis,
ou ainda quando bailarinas se refrescam em tom escrachado jogando água em
seus rostos. Peles negras, brancas e pardas rindo, gritando, brincando, brigando e
tremendo.
Cenas que poderiam ter saído diretamente de trechos de livros lidos pela
coreógrafa, como a saga da africana Kehinde, retratada por Ana Maria Gonçalves
nas quase mil páginas de
Um defeito de cor
. São oito décadas perpassando a
história reveladora de muitas dores e lutas dos corpos escravizados no Brasil do
século 19, entre Bahia, Maranhão, Rio de Janeiro e São Paulo, até voltar à África.
Eis uma amostra que encontra paralelos na dramaturgia de
Fúria
:
O sinhô José Carlos perguntou se eu achava que ia conseguir escapar e
nada respondi [...] ele conseguiu ser muito mais vingativo do que eu
poderia imaginar, ao entrar no quarto e dizer que a virgindade das pretas
que ele comprava pertencia a ele, e que não seria um preto sujo qualquer
metido a valentão que ira privá-lo desse direito [...] Quando percebeu a
minha presença, o Lourenço ergueu os olhos, e o que pude ver foi a
sombra dele, os olhos vazios mostrando o que tinha por dentro: nada.
Enquanto que, por fora, tinha a pele preta toda nua e coberta por crostas
de sangue e cortes feitos pelo fio da chibata. Senti vontade de pegar o
Lourenço no colo e cantar para ele a noite inteira. [...] Eles estavam
mortos os olhos do Lourenço observando a raiva com o que o sinhô José
Carlos me derrubou na esteira, com um tapa no rosto, e depois pulou em
cima de mim com o membro já duro e escapando pela abertura da calça,
que ele nem se deu ao trabalho de tirar. Eu encarava os olhos mortos do
Lourenço enquanto o sinhô levantava a minha saia e me abria as pernas
com todo o peso do seu corpo, para depois se enfiar dentro da minha
racha como se estivesse sangrando um carneiro (Gonçalves, 2018, p.170-
171).
10 Organização terrorista formada por supremacistas brancos surgida nos Estados Unidos após a Guerra Civil
Americana, no século 19, e que até hoje é símbolo de violência contra os afro-estadunidenses.
11 Partido político surgido nos Estados Unidos na década de 1960 com foco na luta dos direitos civis da
população afro-estadunidense. O punho cerrado foi e é até os nossos dias símbolo do
black power
(poder
negro).
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em
A crítica da razão negra
, Mbembe (2018) faz uma panorama histórico
sobre as relações raciais no Ocidente e a colonialidade, a partir do século 16,
refletindo de forma profunda sobre raça, racismo, conexões raciais entre África e
Europa e suas implicações nas Américas, até chegar às políticas neoliberais dos
nossos dias e seus impactos nefastos nos corpos racializados. E assim obrigando
a pensar sobre o semelhante e o dessemelhante. Uma obra de efeito sobre o
corpo negro, “único de todos os humanos cuja carne foi transformada em coisa e
o espírito em mercadoria – a cripta viva do capital” (Mbembe, 2018, p.21). Diz um
trecho do livro, cujas palavras inspiraram
Fúria
:
Ao reduzir o corpo e o ser vivo a uma questão de aparência, de pele e de
cor, outorgando à pele e à cor estatuto de uma ficção de cariz biológico,
os mundos euro-americanos em particular fizeram do negro e da raça
duas versões de uma única e mesma figura: a da loucura codificada.
Funcionando simultaneamente como categoria originária, material e
fantasmática, a raça esteve, no decorrer dos séculos precedentes, na
origem de inúmeras catástrofes, tendo sido causa de devastações
psíquicas assombrosas e de incalculáveis crimes e massacres (Mbembe,
2018, p. 13).
Vejo as escolhas de leituras que moveram
Fúria
como desdobramentos
complexos das reflexões de Lia sobre o corpo na favela. Pensar os corpos na favela
no Rio de Janeiro ou no Brasil onde a maioria dos corpos é negra, significa
buscar entender o processo histórico que transformou a sociedade brasileira
numa sociedade racista escondida atrás do mito da democracia racial. Processo
que se atualiza numa verdadeira hierarquização dos corpos e do valor da vida:
fazendo com que os corpos negros valham muito pouco, e os das mulheres negras
ainda menos. Essa perversão histórica não poderia não ser afrontada pela
coreógrafa, cuja estética-política do chão encontra-se no seio da zona onde esses
conflitos se atualizam todos os dias a favela da Maré. É entre a vivência e a
leitura que explicita suas motivações:
Faz alguns anos que senti uma falha na minha formação: conhecia muito
pouco de literatura africana e afro-brasileira. Então me dediquei a
estudar, para mim mesma, para me desenvolver melhor como ser
humano, como brasileira e como artista. [...] Meu trabalho é olhar para o
mundo como ele é, nesse Brasil tão terrivelmente racista e desigual, do
qual eu sou parte da elite como uma mulher branca de classe média,
estou num lugar de muito privilégio. Nós temos que estar mais do que
atentos, acordados para a desigualdade e o racismo no Brasil. Quando
passam helicópteros atirando na favela, de que cor são as crianças que
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morrem? E de que cor é a mulher que chora a morte delas?12
Lia mergulhou tão vertiginosamente na bibliografia construída para
Fúria
que
até mesmo a dramaturgista Silvia Soter, parceira desde 2001, reconhece que dessa
vez a dramaturgia ficou a cargo da própria coreógrafa. “Foi um trabalho que a Lia
maturou, gestou, praticamente sozinha [...]. A Lia é uma grande leitora, é uma
artista intelectual, muito aplicada [...] Lia mergulhou numa literatura que foi um
túnel na vida dela e quando ela voltou, esse lugar de dramaturgista era dela, era
totalmente dela”, disse Silvia Soter13 num encontro em 2020. No entanto, a
dinâmica diferente não afastou Silvia dos ensaios, sempre com seu olhar e opinião
precisos, tão necessários também à preparação final para a estreia mundial no
Théâtre de Chaillot, em Paris, em dezembro de 2018, contribuindo fortemente para
o formato final da obra.
Fúria
foi criada por Lia ao lado da assistente Amália Lima e cocriação dos
nove bailarinos que estão em cena: Leonardo Nunes, Felipe Vian, Clara Cavalcante,
Carolina Repetto, Valentina Fittipaldi, Andrey Silva, Karoll Silva, Larissa Lima e
Ricardo Xavier. Desses, cinco têm origem nas favelas da Maré. Cinco corpos negros
favelados. E isso diz muito sobre o que se em cena e sobre a própria escolha
dos livros que serviram como disparadores da obra. Dos cinco, quatro passaram
pelo Núcleo 2, projeto de formação continuada da Escola Livre de Dança da Maré,
idealizado por Lia Rodrigues e Silvia Soter. O quinto
mareense
é Leonardo Nunes,
responsável pela cena do epílogo, na qual encarna diferentes possibilidades de
fúria do corpo negro ontem e hoje.
Fato é que acontecimentos e experiências cotidianas vividas pela coreógrafa
e bailarinos na favela foram empurrando Lia e sua equipe para os temas e as
questões que ecoam freneticamente nos corpos dos bailarinos transformados na
cena em verdadeiras caixas de reverberação.
Um dos gatilhos assumidos é o
desdobramento, no Centro de Artes da Maré, da exposição
Ocupação Conceição
12 https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/10/conceicao-evaristo-foi-farol-que-me-deixou-mais-
sensivel-diz-lia-rodrigues.shtml.
13 Trecho da conversa de Silvia Soter com a coreógrafa Carmen Luz, durante o projeto Janelas Abertas,
organizado pelo Núcleo Experimental de Performance do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da
ECO-UFRJ, realizada em 30 jun. 2020.
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Evaristo
, realizada ali no segundo semestre de 2017, depois de sua estreia no Itaú
Cultural, em São Paulo, naquele mesmo ano. A exposição sobre a trajetória da
escritora mineira radicada no Rio, maior símbolo contemporâneo da literatura de
inspiração negra no Brasil, fez parte do dia a dia da companhia, impactando
fortemente na criação de
Fúria. “
Usamos alguns trechos de livros da escritora em
nossas improvisações. A literatura é um grande laboratório a partir do qual
fazemos experimentos”, disse Lia numa entrevista14. Num outro depoimento, a
coreógrafa aprofundou a ligação com Evaristo:
Li quase todos os livros que pude encontrar da Conceição, de poesia a
contos. Sua escrita é de um refinamento, de uma sobriedade. Ela fez uma
exposição no Centro de Artes da Maré [...] A obra da Conceição ficou um
tempo exposta lá. Como eu vou àquele lugar todos os dias, entrei na
exposição todos os dias. Mais do que isso, os alunos da escola de dança
fizeram uma performance em torno da mostra em exibição. Montaram
um grande mural com trechos, fragmentos e imagens, e improvisaram
bastante em cima do trabalho dela. Tem um texto em que Conceição fala
sobre fazer moldes com o barro, por exemplo. Uma das bailarinas
escolheu esse trecho e criou uma performance com as mãos.15
“A gente combinamos de não morrer”, frase que título a um dos contos
do livro
Olhos d’água
, de Evaristo, funcionou como um emblema das muitas
conversas que fizeram parte da criação de
Fúria
, me contaram dois intérpretes-
criadores. O livro de contos lançado em 2014 oferece uma variedade de
personagens que habitam um mundo árido de pobreza, violência, solidão e
injustiça. Evaristo revela com destreza questões existenciais e sociais nada fáceis
de encarar. Uma literatura das margens, de corpos relegados às periferias, às
favelas, aos morros, ao submundo. Sobressaem nessas escritas os corpos de
mulheres negras que lutam para sobreviver, mães de família, mães de muitos
filhos, avós, mendigas, meninas, empregadas domésticas, mulheres invisíveis.
Mulheres que poderiam estar na Maré. O “
Outro
do
Outro
” (grifo da autora), como
diz Grada Kilomba, citada por Djamila Ribeiro, numa referência aos estudos de
Simone de Beauvoir.16 Kilomba afirma que as mulheres negras têm uma carência
14 https://www.sescsp.org.br/online/artigo/compartilhar/14681_TERRITORIOS+DA+DANCA
15 https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/10/conceicao-evaristo-foi-farol-que-me-deixou-mais-
sensivel-diz-lia-rodrigues.shtml
16 A intelectual francesa mostra, em seu percurso filosófico sobre a categoria de gênero, que a mulher não é
definida em si mesma mas em relação ao homem e através do olhar do homem. [...] A mulher foi constituída
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dupla por serem
“a antítese de branquitude e masculinidade (Ribeiro; 2017, p. 39).
É desse lugar que Conceição Evaristo elabora, fala e escreve. Lugar de quem
nasceu numa favela de Belo Horizonte e para estudar teve que trabalhar como
empregada doméstica. “Minha literatura traz a marca de uma mulher negra, a
subjetividade de uma mulher negra na sociedade brasileira”, disse a escritora num
evento17 em outubro de 2019, celebrando o lançamento de traduções de seus livros
em francês. A literatura da “escrevivência”, ou seja, são escritos que brotam de
suas vivências e das vivências de uma parcela da população marginalizada pela
história dos dominantes. A escrevivência que hoje já se tornou objeto e referência
acadêmica é, segundo a autora, um termo operador, um modelo de processo de
escrita, a partir do qual escreve-se pela memória da pele do sujeito negro18. Trata-
se de dar voz à experiência do sujeito negro em busca de seu pertencimento. É
uma escrita coletiva, que se faz
no
e
com
o coletivo de experiências.
É também uma literatura-vingança, como Evaristo definiu. “Sou vingativa
através da literatura. É o lugar que achei para me colocar no mundo, um lugar que
o mundo não esperava”19. Uma literatura-rebelião, feita em homenagem às
ancestrais escravas. “Minha autoria não é ditada por ninguém, não é para
adormecer a casa grande”20, disse ela referindo-se à prática, na época colonial, de
as escravas serem obrigadas a contar histórias para as crianças brancas dormirem.
Encontro paralelos entre a literatura de Conceição Evaristo e a dança criada
por Lia Rodrigues, no que a escritora chama de literatura de convocação, que,
segundo ela, é a experiência de criação capaz de convocar as pessoas em suas
humanidades. Na minha tradução, é a arte capaz de mover, de fazer com que a
experiência da fruição traga novas perspectivas de mundo, mexa com corpos,
amplie horizontes. Outra aproximação é na escrevivência, na forma de expor as
como o Outro, pois é vista como objeto. [...] De forma simples, seria pensar na mulher como algo que possui
uma função. (Ribeiro; 2017, p. 36-37).
17 O evento
A poética de Conceição Evaristo
foi realizado em 29 out. 2019, na BiblioMaison do Consulado da
França, no Rio de Janeiro.
18 Fala da escritora durante a aula inaugural do Departamento de Letras da PUC-Rio em 15 set. 2020.
19 Fala da escritora no evento
A poética de Conceição Evaristo
.
20 Fala da escritora no evento
A poética de Conceição Evaristo
.
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vivências de corpos marginalizados, transformando-as em movimentos
coreográficos.
Diz assim a parte final do aludido conto
A gente combinamos de não morrer
:
Deve haver uma maneira de não morrer tão cedo e de viver uma vida
menos cruel. Vivo implicando com as novelas da minha mãe. Entretanto,
sei que ela separa e separa com violência os dois mundos. Ela sabe que
a verdade da telinha é a da ficção. Minha mãe sempre costurou a vida
com fios de ferro. Tenho fome, outra fome. Meu leite jorra para o alimento
de meu filho e de filhos alheios. Quero contagiar de esperanças outras
bocas. Lindinha e Biunda tiveram filhos também, meninas. Biunda tem o
leite escasso, Lindinha trabalha o dia inteiro. Elas trazem as menininhas
para eu alimentar. Entre Dorvi e os companheiros dele havia o pacto de
não morrer. Eu sei que não morrer, nem sempre, é viver. Deve haver
outros caminhos, saídas mais amenas. Meu filho dorme. Lá fora a sonata
seca continua explodindo balas. Neste momento, corpos caídos no chão
devem estar esvaindo em sangue. Eu aqui escrevo e relembro um verso
que li um dia: “Escrever é uma maneira de sangrar”. Acrescento: e de
muito sangrar, muito e muito... (Evaristo, 2014, p.108-109).
Algumas frases dos escritos de Conceição Evaristo também estão numa
outra parte importantíssima do processo de criação de
Fúria
: a construção coletiva
da coleção de imagens fotos, desenhos e frases de efeito recolhidas pela
coreógrafa e bailarinos na
internet
durante os meses de preparação, que hoje
habitam as paredes do Centro de Artes da Maré, num grande mosaico. Imagens
de gentes, de muitas gentes. De mulheres, homens, crianças, velhos. Imagens do
mundo, da África e do Brasil, imagens do presente e do passado, de relações de
poder, imagens de alegria, de dor, de violência, de beleza, de manifestações
políticas. Corpos, muitos corpos, em sua maioria, negros. Uma grande colagem que
toca diretamente nos temas e questões que fizeram o chão para
Fúria
brotar. A
proposta, na sala de ensaios, foi articular as imagens, colocando-as em relação
umas com as outras, e a partir daí os bailarinos irem criando quadros vivos,
situações coreográficas e, enfim, as cenas alegóricas que marcam todo o trabalho.
Durante o processo de criação de
Fúria
, a coreógrafa voltou a ler dois dos
seus livros de cabeceira,
Macunaíma: o herói sem nenhum caráter
e
O tupi e o
alaúde
, análise de Gilda de Mello e Souza da obra máxima de Mário de Andrade,
que a acompanham décadas. Ambos os livros dizem muito sobre o desenho
estrutural de
Fúria
, mais até pela forma do que pelo conteúdo, um fluxo dinâmico,
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multissensorial em cena, que acaba por revelar as múltiplas tensões e
movimentos do texto. Assim como o herói sem nenhum caráter vai se
metamorfoseando em sua irrefreável saga épico-poética-folclórica pelo Brasil em
busca de seu amuleto perdido,
Fúria
também tem um ritmo alucinante, em fluxo
contínuo. O fluxo da dança segue o fluxo do livro. São quadros que se fazem e
desfazem num piscar de olhos, capazes de carregar os corpos de quem para
uma viagem de imagens que, apesar de extremamente reconhecíveis, catapultam
o espectador para um tempo e espaço desvencilhados do real. Uma dança-
vertigem, passada em
fast-forward
, ao som de um trecho frenético da música
percussiva das
Danses des Kanaks
, da Nova Caledônia, que se repete, repete,
repete em looping durante a maior parte da apresentação. Para Lia Rodrigues,
Macunaíma
é, antes de mais nada, um livro deflagrador de sensações, porque não
entrega certezas. “É como quando você o
Macunaíma
e não sabe o que é. Às
vezes é bicho, às vezes é gente, às vezes é mágico, às vezes é um deus, um
moleque”21, disse ela numa entrevista de 2010.
Como em
Macunaíma
,
Fúria
não lugar à passividade. Se as contradições,
mortes e ressurreições de herói amoral deixam seus leitores, no mínimo, perplexos
(Jaffe, 2001, p.14), a dança de
Fúria
empurra o corpo do espectador para o centro
da cena, numa avalanche sensorial capaz de desencadear um curto-circuito
cognitivo em quem está na plateia. Uma plateia, é importante dizer, dessa vez
distante fisicamente da obra, num teatro em formato italiano. Há, ali, uma sintonia
rara do corpo do intérprete com o corpo do espectador, que tem seu clímax com
os nove bailarinos protagonizando uma tremedeira convulsiva, um chacoalhar
arrebatador e catártico, sem nenhuma economia de gestos.
Outra aproximação possível entre o livro e a dança é o humor. Em meio às
imagens amargas de dominação e violência de raça e gênero, que compõem
Fúria
,
surgem momentos de escape, de uma jocosidade irônica capaz de bagunçar
certezas, assim como é a narrativa da aventura rocambolesca do contraditório
Macunaíma na busca do seu muiraquitã. “Um riso que pode libertar ou até
desalienar o leitor”, sustenta Noemi Jaffe (2001, p. 51), referindo-se ao humor
contido na obra de Mário de Andrade, mas que também poderia se encaixar num
21 https://www.publico.pt/2010/04/07/culturaipsilon/noticia/lia-rodrigues-quer-nos-aqui-dentro-254118
Torsões entre texto e dança: as livros que embalaram a criação de “Fúria”, de Lia Rodrigues
Adriana Pavlova
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-17, abr. 2025
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comentário sobre dança de Lia Rodrigues.
É justamente com uma análise ancorada em suas próprias experiências
sensórias e físicas que o filósofo Patrick Pessoa constrói o artigo
As vísceras da
crítica
, em que une observações sobre
Fúria
e
Para que o céu não caia22
. Partindo
da crítica sobre
Fúria
escrita para o jornal
O Globo
em 2019, Pessoa não esconde
o engajamento físico e sensório de seu corpo, frisando a capacidade de a
coreógrafa “criar uma relação eminentemente corporal, sinestésica, entre palco e
plateia” (Pessoa, 2021). Conta que se na obra inspirada nos escritos de Kopenawa
foi completamente capturado pela cena dos olhos nos olhos entre performer e
público, em
Fúria
sua máquina de construir sentidos foi desestabilizada pela
música em
looping
:
aquela música de apenas um minuto tocada em looping num volume
altíssimo me ensinou foi que o som pode vencer a distância. Se a peça
como um todo, pela movimentação dos corpos em cena e pelo cinema
pobre inspirado em Portinari, produzia imagens talvez figurativas demais,
imagens de dominação e exploração do “homem pelo homem”,
construindo uma espécie de representação que poderia dar margem a
interpretações políticas tendencialmente criticas (dada a reiteração em
cena de velhas violências coloniais), a música restituía tudo ao seu justo
lugar. Como um demiurgo capaz de desfazer as dolorosas composições
imagéticas em cena, a música permitia viajar, divagar, delirar (Pessoa,
2021).
Adentrar na cultura afro-diaspórica traduzida criativamente por Lia Rodrigues
é penetrar em possibilidades outras de relacionamento com os saberes do corpo,
que vão muito além do modo de pensar e agir da cultura ocidental: uma
construção histórico-conceitual que foi alojando o corpo numa relação de
oposição ao imaterial, como alerta Kiffer (2016, p.14). O discurso ocidental é
marcado pela oposição binária entre corpo e mente, como ressalta Oyèrónké
Oyemùmí (2002, p. 400), no texto
Visualizando o corpo: Teorias ocidentais e
sujeitos africanos
, no qual mostra como a “ausência do corpo” é uma pré-condição
para o pensamento racional. “O tão falado dualismo cartesiano era apenas uma
afirmação de uma tradição na qual o corpo era visto como uma armadilha da qual
qualquer pessoa racional deveria escapar.” (Oyèrónké Oyemùmí, 2002, p. 407). Se
22 Trabalho da Lia Rodrigues Companhia de Danças que teve estreia em 2016 e cuja leitura disparadora foi
A
Queda do Céu
:
Palavras de um Xamã Yanomani
, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, de 2015.
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para o homem branco ocidental tudo que vem da carne é entendido como
fraqueza, nada mais natural do que usar a visão como o principal sentido para
perceber a realidade que o cerca.
De forma oposta, as culturas africanas (incluindo a iorubá estudada por
Oyèrónké Oyemùmí em seu texto) usam uma combinação de sentidos para
perceber o mundo, engajando todo o corpo e não a visão. Em vez do olhar
passivo, o corpo é convocado em todos os seus sentidos. “Um foco na visão como
o principal modo de compreender a realidade eleva o que pode ser visto sobre o
que não é aparente aos olhos; perde os outros níveis e as nuances da existência
(Oyèrónké Oyemùmí, 2002, p.409). É justamente essa experiência que vai além da
visualidade uma das camadas mais fortes de
Fúria
: ao abrir as portas da percepção
de seu público, faz com que o encantamento seja vivenciado de forma física, um
corpo imerso em diferentes paisagens de sensações, ligando-se,
indiscutivelmente, à herança africana, que está na origem da obra. Nas palavras
de Patrick Pessoa, a coreógrafa nos permite “sonhar carnalmente outros mundos
possíveis, mais integrados, íntegros, integrais” (Pessoa, 2021), oferecendo assim
novas experiências subjetivas.
Voltando às leituras que ajudaram a erguer
Fúria
, coincidência ou não, assim
como o fio sonoro puxado por Pessoa em seu ensaio, a questão musical é o ponto
central do estudo de Gilda de Mello e Souza sobre
Macunaíma
, que tanto encantou
e ainda encanta Lia Rodrigues. Em
O tupi e o alaúde
, a pesquisadora defende a
tese de que a preparação do livro marco do modernismo brasileiro está
intimamente ligada à profunda experiência musical de Mário de Andrade,
sobretudo como estudioso de música popular. Em vez de técnica de mosaico ou
exercício de bricolagem defendida por muitos estudiosos23, a chave do modelo
compositivo tão celebrado de
Macunaíma
seria o processo criador de música
popular:
23
Macunaíma
é, segundo pontos de vista distintos, uma colagem, uma bricolagem, um mosaico ou uma
rapsódia, como diz o autor. O certo é que se trata de uma montagem intencionalmente confusa de inúmeras
fontes pessoais e alheias, eruditas e populares, nacionais e estrangeiras, o que termina por estabelecer uma
língua brasileira e uma leitura crítica do Brasil, uma mitologia contemporânea, carregada de significações
linguísticas, psicanalíticas e antropológicas. (Jaffe, 2001, p. 18-19).
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É minha convicção que, ao elaborar o seu livro, Mário de Andrade não
utilizou processos literários correntes, mas transpôs duas formas básicas
de musical ocidental, comuns tanto à música erudita quanto à música
popular: a que se baseia no sentido rapsódico da
suíte
[grifo da autora]
cujo exemplo popular mais perfeito podia ser encontrado no bailado
nordestino de
Bumba-meu-Boi
e a que se baseia no princípio da
variação
[grifo da autora], presente no improviso do cantador nordestino
(Souza, 2003, p.12).
Souza apresenta ainda uma leitura muito peculiar de
Macunaíma
, que se liga
de forma inequívoca ao entendimento de Lia Rodrigues sobre a arte,
especialmente sobre a experiência de fruição de uma obra artística.
Macunaíma
,
segundo a pesquisadora, seria um território de incertezas, uma obra ambivalente
e indeterminada, como o próprio autor teria escrito num dos prefácios, no qual
destacou o aspecto sem compromisso do livro. Mário de Andrade (Andrade apud
Souza, 2003, p.84) afirma que o livro seria fruto de uma época de transição social,
com o momento em que foi escrito definido como uma “neblina vasta”, o que
impediria de “tirar dele uma fórmula normativa”. No parágrafo final de
O tupi e o
alaúde
, Souza diz que
Macunaíma
é “antes o campo nevoento de um debate, que
o marco definitivo de uma certeza” (2003, p.95). Vejo tanto
Fúria
como toda a obra
de Lia Rodrigues como um vasto campo de muitas perguntas sem tantas
respostas. Um convite à liberdade, como diz a coreógrafa:
Quando você vai ver um trabalho de arte [...] não é sobre isso ou sobre
aquilo. Cada pessoa vai lá, isso é o que é maravilhoso da arte, [...] e pode
ser livre. Você vai lá, você tem uma experiência e essa experiência pode
ser tão diversa para você do que pro outro, pro outro e pro outro. E essa
diversidade é maravilhosa. Essa liberdade de você se sensibilizar de
forma diferente com uma obra de arte é uma das coisas bonitas que
ainda têm no mundo.24
Finalmente, se as leituras que acompanham o cotidiano estético de Lia
Rodrigues transmutam-se em variadas danças, este arsenal bibliográfico também
é vital na pavimentação de seus caminhos fora da cena,
na
e
com
a Maré. E aqui
escolho um comentário da coreógrafa sobre o livro
É isto um homem?
, doloroso
relato do escritor italiano Primo Levi sobre sua experiência como prisioneiro no
campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, na Segunda Guerra. Lia
comprou o livro impactada com a visita a outro campo de concentração,
24 https://www.youtube.com/watch?v=E9ugY6-C8Hs.
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Buchenwald, na Alemanha. De novo, como em muitos outros exemplos, a artista
me parece ter procurado se aproximar de histórias humanas, capazes de revelar
o melhor e o pior dos homens e mulheres.
Ele fala do ser humano, de tudo que a gente pode vir a ser. [...] A existência
desse livro e o jeito que ele relata já é uma afirmação de vida. [...] Fala de
ética, de sobrevivência, de tantos assuntos tão vitais. Tantas perguntas
vitais [...] tem que fazer delas talvez um motor para continuar. o fato
de, às vezes, algumas perguntas você se perguntar ou perguntar para a
vida, já faz você agir de uma maneira ou de outra, fazer escolhas de um
modo diferente.25
E esta artista-leitora obstinada segue lendo e se fazendo perguntas, cujas
respostas se transformam em dança e em ações, que, diante da plateia,
novamente se convertem em novas perguntas, num ciclo poderoso de devires em
que todos os envolvidos têm a chance de se transformarem juntos. Um processo
nem sempre fácil em que os livros são aliados seguros, como Lia Rodrigues contou
na conversa com a coreógrafa Andrea Bardawil sobre
Fúria
em 2020:
tem alguns anos que eu venho me dedicando a ler e a estudar autores
negros, afrodescendentes, da diáspora. Nestes últimos longos quatro,
cinco anos, tenho aprendido muito com essas leituras que têm feito com
que o meu universo tenha se expandido e eu tenha outros olhos para
olhar o mundo. Para tentar olhar o mundo de outra forma, tentar escutar
o mundo de outra forma, tentar trabalhar de outra forma, mas é um
processo. Claro que o livro do Kopenawa [
A queda do céu
] me
acompanha sempre, tanta sabedoria, tudo que fala tão poderoso, uma
voz que a gente não escuta normalmente. Todas essas vozes que são
silenciadas como são importantes de serem escutadas e praticadas de
certa forma. O que a gente pratica a partir desta escuta? Como a gente
chega mais perto do nosso discurso com a nossa prática? Como é que
tudo isso que eu li vira carne ao mesmo tempo na parte de criação
artística? Nas minhas ações na Maré, junto com a Redes da Maré [...]
nunca é uma coisa tranquila, nunca é uma coisa fixa, é um caos delicioso
e terrível. [Como] andar na beira do caos, como surfar nestas ondas? E
os livros estão lá surfando e eu me agarro em alguns.26
Referências
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Lia Rodrigues conversa
com Andréa Bardawill. Ago. 2020. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=irEDOzCAWR4. Acesso em: 30 ago. 2020.
25 Livros que amei. Programa de televisão, episódio 8, Canal Futura.
26
Anatomia da Dança
Espetáculo
Fúria
, Porto das Artes.
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Rio
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Rio de Janeiro: Record, 2018.
JAFFE, NOEMI.
A Folha Explica – Macunaíma.
São Paulo: Publifolha, 2001.
Janelas Abertas – Silvia Soter e Carmen Luz.
Conversa exibida no youtube, dentro
do projeto organizado pelo Núcleo Experimental de Performance do Programa de
Pós-Graduação em Artes da Cena da ECO-UFRJ, realizada em 30 jun. 2020.
KIFFER, Ana.
Um ou vários corpos?
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, Kiffer, Ana (org.). Rio de
Janeiro, 7 Letras, 2016.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce.
A queda do céu Palavras de um xamã
yanomani.
São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Lia Rodrigues– Curta! Dança.
Canal Curta! 6 set. 2016. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=E9ugY6-C8Hs. Acesso em 19 jun. 2020.
Livros que amei.
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Recebido em: 20/09/2024
Aprovado em: 23/11/2024
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