
Torsões entre texto e dança: as livros que embalaram a criação de “Fúria”, de Lia Rodrigues
Adriana Pavlova
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-17, abr. 2025
vivências de corpos marginalizados, transformando-as em movimentos
coreográficos.
Diz assim a parte final do aludido conto
A gente combinamos de não morrer
:
Deve haver uma maneira de não morrer tão cedo e de viver uma vida
menos cruel. Vivo implicando com as novelas da minha mãe. Entretanto,
sei que ela separa e separa com violência os dois mundos. Ela sabe que
a verdade da telinha é a da ficção. Minha mãe sempre costurou a vida
com fios de ferro. Tenho fome, outra fome. Meu leite jorra para o alimento
de meu filho e de filhos alheios. Quero contagiar de esperanças outras
bocas. Lindinha e Biunda tiveram filhos também, meninas. Biunda tem o
leite escasso, Lindinha trabalha o dia inteiro. Elas trazem as menininhas
para eu alimentar. Entre Dorvi e os companheiros dele havia o pacto de
não morrer. Eu sei que não morrer, nem sempre, é viver. Deve haver
outros caminhos, saídas mais amenas. Meu filho dorme. Lá fora a sonata
seca continua explodindo balas. Neste momento, corpos caídos no chão
devem estar esvaindo em sangue. Eu aqui escrevo e relembro um verso
que li um dia: “Escrever é uma maneira de sangrar”. Acrescento: e de
muito sangrar, muito e muito... (Evaristo, 2014, p.108-109).
Algumas frases dos escritos de Conceição Evaristo também estão numa
outra parte importantíssima do processo de criação de
Fúria
: a construção coletiva
da coleção de imagens – fotos, desenhos e frases de efeito – recolhidas pela
coreógrafa e bailarinos na
internet
durante os meses de preparação, que hoje
habitam as paredes do Centro de Artes da Maré, num grande mosaico. Imagens
de gentes, de muitas gentes. De mulheres, homens, crianças, velhos. Imagens do
mundo, da África e do Brasil, imagens do presente e do passado, de relações de
poder, imagens de alegria, de dor, de violência, de beleza, de manifestações
políticas. Corpos, muitos corpos, em sua maioria, negros. Uma grande colagem que
toca diretamente nos temas e questões que fizeram o chão para
Fúria
brotar. A
proposta, na sala de ensaios, foi articular as imagens, colocando-as em relação
umas com as outras, e a partir daí os bailarinos irem criando quadros vivos,
situações coreográficas e, enfim, as cenas alegóricas que marcam todo o trabalho.
Durante o processo de criação de
Fúria
, a coreógrafa voltou a ler dois dos
seus livros de cabeceira,
Macunaíma: o herói sem nenhum caráter
e
O tupi e o
alaúde
, análise de Gilda de Mello e Souza da obra máxima de Mário de Andrade,
que a acompanham há décadas. Ambos os livros dizem muito sobre o desenho
estrutural de
Fúria
, mais até pela forma do que pelo conteúdo, um fluxo dinâmico,