
Devaneios e reflexões sobre teatro negro, política cultural e luta antirracista com Hilton Cobra
Entrevista com Hilton Cabra - Concedida a Dalton Madruga da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-27, abr. 2025
assim que eu gosto e sempre gostei de trabalhar meu ator: não tem diretor ou
diretora no mundo que diga para mim que isso é errado. São 40 anos, 45 fazendo
isso e dessa forma eu sou muito mais do que qualquer Marília Pêra do mundo -
embora a Marília Pêra seja extraordinária. Eu gosto de estar aqui: é o meu corpo
preto, eu saco você, personagem, a hora que eu quiser ou a hora que a encenação
determina. Aí a gente vai pelas partituras da própria encenação, da própria
narrativa. Então é isso: essas parecenças e essas diferenças.
Falando mais especificamente sobre a peça, me interessa a sua relação,
enquanto ator e personagem, com alguns objetos, dentre eles alguns que eu
vou destacar: a cabaça que guarda os búzios do qual formam um cérebro, o
cesto que guarda alguns livros do Lima e outros autores e autoras negros, e a
cadeira usada como esconderijo, acento e pedestal.
Eu vou começar pelo mais fácil, porque a cabaça é mais difícil: é a cabeça.
Se você conversar com a Fernanda - é sacerdotisa também, é do mundo dos
Santos, do Candomblé -, ela vai falar coisas tão extraordinárias e lindas para você
que o que eu vou falar sobre a cabeça é uma bobagem em relação ao que ela
sabe, o que ela faz e o que ela percebeu. E por que ela botou aquela cabeça, a
cabaça cravada de búzios, ali? Mas a cadeira, a cadeira é por essa coisa humana
do Lima querer ser reconhecido. Uma cadeira de escritor, uma cadeira na
Academia Brasileira de Letras, onde se senta e se pensa, se escreve etc. Então, a
cadeira para mim tem essa coisa de ascensão: o que esse homem realmente quis
foi um reconhecimento. A cadeira simboliza esse reconhecimento.
O cesto, na verdade, o cesto só tinha obras dele, viu? Ele guarda a memória.
Para mim, o cesto que está ali é a guarda da memória desse homem: a guarda das
coisas, da roupa, dos papeis que ele escreve, da escrita. Depois eu jogo esses
papeis, depois eu escrevo, a própria obra dele está ali guardada. Aquilo ali é o local
de memória daquele homem que eu saco dali para ser ele próprio. Ele: o Lima.
A cabaça é uma coisa da ancestralidade. Eu não sei falar sobre o mundo
religioso, embora seja de lá, eu vou fazer com que você fale com Fernanda Júlia:
ela invoca a cabaça. Que é inclusive Mãe Beata, minha linda e querida Mãe Beata,
Mãe de Santo que faleceu há um tempo. Ela foi assistir a peça no domingo, logo
na época da estreia, num domingo em que eu passei mal e não terminei a peça.