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Devaneios e reflexões sobre teatro negro, política
cultural e luta antirracista com Hilton Cobra
Entrevista com Hilton Cabra
Concedida a Dalton Madruga da Silva
Para citar este artigo:
CABRA, Hilton.
Devaneios e reflexões sobre teatro negro,
política cultural e luta antirracista com Hilton Cobra
[entrevista concedida a] Dalton Madruga da Silva.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 1, n. 54, abr. 2025.
DOI: 10.5965/1414573101542025e0502
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Devaneios e reflexões sobre teatro negro, política cultural e luta antirracista com Hilton Cobra
Entrevista com Hilton Cabra - Concedida a Dalton Madruga da Silva
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Devaneios e reflexões sobre teatro negro, política cultural e luta antirracista com
Hilton Cobra1
Entrevista com Hilton Cabra
Concedida a Dalton Madruga da Silva2
Resumo
Em maio de 2024, o ator Hilton Cobra concedeu esta entrevista sobre o seu monólogo,
Traga-
me a cabeça de Lima Barreto
. A peça é uma comemoração aos 40 anos de carreira do ator.
Uma marca de seu trabalho é o combate ao racismo e promoção do teatro como uma
ferramenta epistêmica antirracista. Na entrevista ele comenta os principais motes de criação
da peça, seu trabalho de ator e a parceria entre Onisajé (Fernanda Julia) e Luiz Marfuz. Além
de refletir sobre o teatro negro brasileiro e o cenário cultural brasileiro pós-covid-19.
Palavras-chave
: Teatro negro. Hilton Cobra. Corpo negro. Política cultural.
Daydreams and Reflections on Black Theater, Cultural Politics, and the Anti-Racist Struggle with
Hilton Cobra
Abstract
In May 2024, actor Hilton Cobra gave this interview about his monologue, Bring me the head
of Lima Barreto. The play his is a celebration of the actor's 40th anniversary. A hallmark of
his work is the fight against racism and the promotion of theater as an anti-racist epistemic
tool. In the interview he discusses the main motivations for creating the play, his work as an
actor and the partnership between Onisajé (Fernanda Julia) and Luiz Marfuz. In addition to
reflecting on Brazilian black theater and the Brazilian cultural scene post-covid-19.
Keywords:
Black theater. Hilton Cobra. Black body. Cultural politics.
Devaneos y Reflexiones sobre Teatro Negro, Política Cultural y Lucha Antirracista con Hilton
Cobra
Resumen
En mayo de 2024, el actor Hilton Cobra concedió esta entrevista sobre su monólogo Tráeme
la cabeza de Lima Barreto. La obra es una celebración del 40 aniversario del actor. Una seña
de identidad de su obra es la lucha contra el racismo y la promoción del teatro como
herramienta epistémica antirracista. En la entrevista el comenta las principales motivaciones
para crear la obra, su trabajo como actor y la sociedad entre Onisajé (Fernanda Julia) y Luiz
Marfuz. Además de reflexionar sobre el teatro negro brasileño y la escena cultural brasileña
post-covid-19.
Palabras clave
: Teatro Negro, Hilton Cobra, Cuerpo Negro. Política Cultural.
1 Entrevista concedida pelo ator Hilton Cobra a Dalton Madruga da Silva no Microsoft Teams no 11 de maio de
2024, com início às 11:00 horas e final às 13:00 horas. Realizada no contexto da investigação para a
dissertação intitulada “O Corpo Negro em Cena - Traga-me a Cabeça de Lima Barreto da Cia dos Comuns:
uma encruzilhada entre perspectiva decolonial e política étnico-racial”, uma pesquisa que se desenvolve no
Curso de Mestrado do PPGAC - Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas do CEART - Centro de Artes
da UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina, orientada pela Professora Doutora Fátima Costa de
Lima.
2 Mestrando em Teatro na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Graduação em Teatro pela
UDESC. dalton.madruga@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0064063841345219 https://orcid.org/0009-0003-8192-7261
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Figura 1 - Hilton Cobra3
Hilton Cobra é um artista das artes da cena, em especial do teatro negro.
Iniciou sua carreira em Feira de Santana. Erradicado no Rio de Janeiro, fundou a
Cia dos Comuns em 2001; uma companhia de teatro negro, uma das referencias
nacionais para o combate ao racismo nas artes da cena. Um dos últimos trabalhos
da Cia é a peça
Traga-me a cabeça de Lima Barreto
, com direção de Onisajé
(Fernanda Júlia) e escrita por Luiz Marfuz. Assistida e prestigiada por mais de
35.000 espectadores, angariou diversos prêmios no âmbito teatral - como
Categoria Especial do Prêmio ARCANJO-2020, São Paulo; e Categorias Ator e
Monólogo do Prêmio CENYM-2018, Nacional. A peça está em cartaz há 7 anos. Em
2019, fez parte da programação do Festival Palco Giratório, organizado pelo SESC.
Traga-me a cabeça de Lima Barreto
é estudada pelo ator, diretor e
pesquisador Dalton Madruga da Silva em sua dissertação de Mestrado intitulada
Corpo negro e teatro negro em Traga-me a Cabeça de Lima Barreto: entre diálogos,
3 Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Hilton_Cobra
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dramaturgias e dramaturgias da cena
Além de ser fundador e coordenador da Companhia dos Comuns, Hilton
Cobra foi presidente da Fundação Palmares, de 2013 a 2015. Militante do MNU-
Movimento Negro Unificado, seu trabalho é marcado dentro e fora dos palcos pelo
combate ao racismo. Um exemplo da sua atuação política e artística está presente
na peça
Traga-me a Cabeça de Lima Barreto
, que denuncia o epistemicídio contra
a obra do escritor Lima Barreto, assim como também o apagamento de sua figura
pública, em vida.
Um dos temas centrais da peça é a eugenia, e o modo como ela impactou a
perpetuação de teorias e teses racistas. Na entrevista, Hilton Cobra fala sobre sua
carreira, sobre o processo de criação de seu trabalho e sobre a sua atuação teatral
no contexto da militância política. Discorre sobre políticas culturais e sobre os
impactos da pandemia de Covid-19 sobre o teatro brasileiro.
Figura 2 Hilton Cobra em - Traga-me a cabeça de Lima Barreto4
4 Fonte: https://oquefazernabahia.com/2018/02/26/hilton-cobra-traga-me-a-cabeca-de-lima-barreto/
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Entrevista
Dalton Madruga da Silva - Muito obrigado por estar aqui. É uma honra estar com
você nesta manhã. O primeiro contato que eu tive com o seu trabalho foi em
2019, quando você estava na circulação do Palco Giratório. Fiquei muito
impressionado com a peça, com seu trabalho de ator e a dramaturgia. Desde
então, venho acompanhando a Cia dos Comuns.
Hilton Cobra -
Você viu em Floripa, foi?
Eu vi em Floripa e no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Eu quase não consegui
assistir no Municipal, porque eu estava de
short
e no convite tinha uma
indicação de que não podia, que eu reparei no momento da entrada: pessoas
com roupas com comprimento inferior à altura dos joelhos não podiam entrar.
Não tem o que fazer: não cuidam do teatro e querem esconder pernas
alheias.
Uma herança colonial do teatro brasileiro presente nessas regras elitistas.
Quem pode usar roupas caras? Quem pode acessar essas roupas? O que se
deve vestir? O resultado dessa minha trajetória no Municipal foi que eu inventei
uma saia com uma camiseta que era mais comprida do que o
short
: era abaixo
da altura dos joelhos. Eu falei: “De saia pode, né?” tive que falar com o chefe da
segurança. Era um segurança muito gentil, um cara negro retinto. Ele perguntou
se realmente tinha ido de saia, falei que improvisei, ele disse que não ia
“embaçar” minha entrada por conta da saia. Consegui contornar a situação e te
assisti. Foi belíssima a apresentação.
Foi linda mesmo. A de Floripa também: me lembro bem da apresentação de
Floripa.
Ah foi memorável! Hilton, qual foi seu interesse em falar de Lima Barreto? Eu
sei que na construção da dramaturgia foi utilizado
O cemitério dos vivos
e os
diários pessoais do Lima. Gostaria de saber como foi seu contato com os
escritos, se teve alguma indicação da direção e para além desses dois livros?
As coisas foram se afunilando para esses dois livros, mas não ficaram
concentradas neles. Do ponto de vista da autoria, você podia tentar conversar com
Luiz Marfuz. Do ponto de vista da encenação, você podia tentar falar com Onisajé.
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Porque eu deliro muito, falo muito: eu vou no meu delírio de artista, de produtor e
de militante.
Muito pouco conheci de Lima Barreto, na minha infância e juventude. Luiz
Marfuz foi o cara que me levou para fazer teatro na década de 70: lá em Salvador
me apresentou a profissão e viramos amigos, somos amigos até hoje. Em 2008,
ele me convidou para protagonizar
Policarpo Quaresma,
uma montagem que ele
estava fazendo no Teatro Castro Alves - não no “teatrão”, mas atrás, na sala do
coro. Foi meu primeiro encontro com Lima Barreto: o
Policarpo Quaresma.
Dediquei muito tempo para mergulhar no Policarpo Quaresma sabendo que quem
mergulha nele está mergulhando no próprio Lima - no pai do Lima, vamos dizer
assim. Não me sentia tão defasado, neste sentido. Foi lindo: o espetáculo ganhou
vários prêmios em Salvador, como o prêmio Braskem5, que é o prêmio de lá. Luiz
Marfuz é um cara extremamente respeitado na Bahia e hoje também no Brasil. Eu
voltei pro Rio de Janeiro, estava ali porque estava fazendo espetáculo, porque
[no Rio] eu tinha a Companhia dos Comuns, que eu precisava tocar - a Cia dos
Comuns quem coordenava era eu, quem coordena sou eu.
eu voltei a ter um desejo, àquela época, de fazer um monólogo - um
negócio de que eu tinha muito medo, eu achava que não era capaz: a questão das
coragens. Eu queria, e estava mergulhando no universo da loucura no teatro
com o espetáculo
Silêncio
, que é o único que eu dirigi com a Companhia dos
Comuns, em 2008 - inclusive, eu queria voltar a trabalhar com esse tema. É um
tema que eu não quero perder nunca de vista: a loucura.
Eu tinha uma visão das minhas amigas, mulheres negras, independentes e
inteligentes surtando por conta do sexismo, do racismo, do machismo. Aquilo
sempre ficou uma coisa mal resolvida na minha cabeça, até que eu fui provocado
pelo próprio Marfuz e pela Onisajé: por que eu não faço o Lima Barreto, mergulhar
no universo do Lima Barreto para o monólogo? Então, foi decidido imediatamente:
vamos fazer Lima Barreto. Mas, não é a obra nem a vida de Lima Barreto.
5 O Prêmio Braskem de Teatro é um evento do estado da Bahia, que premia e busca a valorização do fazer
teatral. Atualmente tem o nome Prêmio Bahia Aplaude (PBA), em 2024 completa a sua 30ª edição.
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Essa decisão aconteceu quando?
Em 2016. Levei praticamente oito anos elaborando essa ideia e trabalhando
em outras coisas também. A gente não queria mostrar a vida de Lima, nem a obra
de Lima Barreto. Como bom militante que sou e não vou deixar de ser jamais no
meu ofício, queria trabalhar também a questão do racismo. Então resolvemos que
seria vida e obra de Lima Barreto, uma homenagem a Lima Barreto celebrando 40
anos de carreira de Hilton Cobra e trabalhando, através de Lima, o racismo no
Brasil.
O Luiz Marfuz começa a esboçar o texto ainda em 2016. Eu e a Fernanda
Onisajé elaboramos o projeto. Ganhamos um edital em 2016 para fazer esse
espetáculo:
Traga-me a cabeça de Lima Barreto.
Aí, fui mergulhar na obra e na
vida. Não somente eu, Marfuz e Onisajé, com um objetivo: um espetáculo, um
monólogo. Esse processo de leitura foi extraordinário. Eu não li tudo de Lima,
porque eu acho que é quase que impossível, de tanta coisa que o Lima tem: a
gente não percebia, décadas, que Lima deixou um legado na literatura tão
extraordinário e vasto. Lima foi cronista, romancista, ativista e um dos maiores
poetas, para mim, é o escritor que mais resume o Brasil daquela época e é o mais
atualizado.
Li primeiro a biografia, do Francisco de Assis Barbosa, nos estudos e nas
pesquisas de quem era Lima. A gente está falando de Lima Barreto hoje porque
esse homem, Francisco de Assis Barbosa, chamado de doutor Francisco, se
apaixonou pela vida de Lima, pela obra de Lima Barreto e em 1956, ano que nasci,
lançou essa preciosidade6. A primeira coisa que li foi isso, que inclusive reza como
se deu a morte de Lima Barreto.
Você sabe que a morte de Barreto está no espetáculo: aquele ebó literário
que faço no final. Aquilo ali é como uma extração do desenho, vamos dizer assim,
da morte dele para o nosso espetáculo. Eu acabei de ler este livro, o capítulo que
tem a morte - um dos últimos capítulos - às quatro horas da manhã sozinho, na
minha cama. E o Lima morre na cama, rodeado por livros escritos. Eu acabei de
6 Barbosa, 2017.
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ler esse livro na minha cama, rodeado de livros escritos de Lima Barreto e eu
chorei copiosamente, altíssimo, sozinho na minha madrugada. Foi quando eu vi:
agora sim, eu tenho certeza que eu quero fazer e viver esse homem.
Esse homem que, quando tinha quatro anos de idade, morou na rua em que
eu morei em Santa Teresa. Então, fui buscando todas as coincidências: a minha
letra era horrível, a de Lima Barreto pior (risos). Fui buscando chegar mais perto
dele, da pessoa: o que era coincidência na minha vida e na vida dele. Eu fui um
escriturário, eu fui um cara de contabilidade aos quinze anos de idade, quando
comecei a trabalhar. Ele era amanuense7, exatamente uma figura de escritor.
Nossas vidas se cruzaram: com certa diferença, iniciamos da mesma forma. Neste
sentido, eu absorvi bem este homem, através desse livro.
Passei a ler todos os contos, os romances. Eu fui também à luta na academia,
porque a gente não tinha noção de quantos de vocês estavam pesquisando Lima
Barreto. A academia pesquisou muito esse extraordinário escritor. Então, sobre
essa sua primeira pergunta: eu li quase tudo. E vou dizer para você que eu esqueci
quase tudo, mas é um problema meu: é um problema de memória, que eu estou
perdendo mesmo (risos).
Quais são as encruzilhadas em que você e Lima se encontram e quais são as
nuances? Essa imagem da sua leitura às quatro da manhã rodeado de livros,
para mim é um grande símbolo: para notar a força, a vontade, a gana que
você tem quando está no palco. Se reflete através de seu corpo. Nesse sentido,
onde você se aproxima e onde você se distancia de Lima?
Do ponto de vista prático, eu tenho essa coisa de que o trabalho na minha
vida é importante, como na vida de Lima. E o dinheiro na vida de Lima era
extremamente importante: eu comecei como um escriturário e ele era
amanuense. O amanuense é escriturário e eu ganhei muito dinheiro na minha vida
sendo datilógrafo: meu nome Cobra não é da arte, Cobra porque eu batia muito
rápido a máquina em Feira de Santana: Hilton Cobra vem de lá. Então, essa
semelhança: nós, Lima e eu sempre trabalhamos.
Eu fui pro teatro, Lima foi para a escrita. Ou seja, fomos para o universo das
7 Pessoa que escreve textos à mão.
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artes. Nós fomos buscar entender processos, entender pessoas: no teatro, creio,
eu faço isso, muitas vezes.
A questão da letra pode ser uma bobagem, mas a letra feia foi algo que
sempre me perseguiu e eu sempre queria me fazer entender: quem escreve com
letra de fôrma é aquela figura que quer se fazer entender. Eu escrevia com letra
de forma, porque eu queria me fazer entender e a minha letra é muito ruim. A
letra de Lima Barreto era muito ruim.
Tínhamos diferenças. Se eu for analisar a vida da família de Lima, a minha
família era muito numerosa: sou mais velho de oito, depois eu passei a ser mais
velho de onze. O Lima era o mais velho de quatro filhos. O pai de Lima enlouquece,
o meu nunca enlouqueceu. A mãe de Lima morre cedo, quando ele tinha dez anos,
possivelmente de tuberculose.
Eu acho que uma diferença: ele como escritor, eu como ator. No
espetáculo, eu faço uma correlação de Lima com Machado, é um negócio muito
perigoso. Às vezes eu consigo, às vezes eu não consigo - a depender da plateia ou
de mim mesmo, como eu estou naquele dia, naquele momento de palco. Mas, não
é bacana que o público saia de dizendo que Lima odiava o Machado de Assis.
Porque absolutamente não era isso.
O Lima tinha um ressentimento, porque ele sabia que ele era genial e nunca
galgou o sucesso e a respeitabilidade de Machado. Eu, como ator, nunca vivi isso
na minha vida - guardadas as devidas proporções e os devidos tempos: eu, como
ator, começo na década de 1970. Ele, na década de 1910.
Fundamentalmente, o não reconhecimento que perseguiu a vida de Lima é
muito grave: o Lima passa a beber por conta disso, não consegue dinheiro através
dos seus escritos, somente o Monteiro Lobato. Engraçado: lembrei do Monteiro
Lobato, o grande eugenista, não é? Mas foi o cara que primeiro publicou Lima
Barreto.
Que ironia.
É. Ele era muito poderoso na época, o Monteiro Lobato. Essas diferenças são
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muito importantes na criação de artista, de personagem. Onde estão as diferenças
e como é que você vai balancear e trabalhar essas diferenças na composição de
personagem e na própria interpretação? É maravilhoso você identificar as
diferenças. Mas, eu jamais me senti como Lima Barreto: não reconhecido, naquela
profundidade de falta de reconhecimento daquele homem que era brilhante.
Eu não quero dizer que eu sou um ator brilhante, não sou eu que tenho que
dizer. Não, nunca senti. Mas, como o Lima eu sempre fui irreverente: topo tudo,
brigão, de não abrir concessões. Eu sempre fui isso e eu tenho isso do meu pai.
Meu pai sempre foi um homem muito ousado, foi um homem muito brilhante na
oratória; eu adoro fazer discurso. Então, existe essa diferença entre Lima e eu: eu
fui e continuo sendo mais reconhecido do que o Lima. Uma questão dos tempos.
Foi muito bacana estabelecer dentro da minha vida, desde a infância, quais
os aspectos que me identificam e o que me diferencia desse extraordinário
homem.
A outra coisa é você identificar para nós, militantes do movimento negro, a
militância de Lima na obra dele. A militância como nossa militância antirracista.
No meu teatro, hoje na linha de frente vem a questão da luta antirracista. O Lima,
não. Tanto é que antigamente se dizia que Lima era extraordinário, mas não
militante - entendendo a militância como essa militância de Abdias Nascimento e
do Movimento Negro Unificado, do qual fiz e faço parte. De uma mulher como Lélia
Gonzalez, como Luiza Bairros. A luta antirracista está na frente. Para Lima, não.
Para o Lima era aquela coisa do não reconhecimento, evidentemente por
conta do racismo. Não existem na obra de Lima capítulos dedicados à questão da
eugenia - eugenia no Brasil é da época de Lima. O genial é você identificar na obra
onde é que ele quis falar: onde ele fala de eugenia, onde ele fala de racismo etc.
Porque ele não é muito explícito, é bacana você pegar a obra e identificar, com
outras palavras. Veja bem: é um pouco diferente do Machado de Assis. Eu não
conheço a obra de Machado, nem conheço muito a vida de Machado, mas o
Machado abriu muitas concessões. Lima, não. Machado, por abrir concessões e
pela genialidade que ele era e continua sendo, foi aclamado. Lima, nunca.
Lima, quando não tinha dinheiro, quando precisava reduzir um pouco e ir um
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pouco para a retaguarda, ele escreve Gonzaga - se não me engano, nessa obra
dele que ele mete o pau na imprensa. A imprensa volta, mete o pau nele
evidentemente, e alija ele de todos os processos. ele continua duro, continua
sem reconhecimento. Talvez o Lima não tenha tido uma esperteza. Uma
inteligência emocional, talvez ele não tivesse isso.
O Machado era mais polido, tudo dele está nas entrelinhas, ele nunca foi
direto. A gente pode até relacionar a vida de Machado com uma figura
extraordinária que acabei de ver num filme: a dona Ruth de Souza. As concessões
que a dona Ruth de Souza abriu e as concessões que Machado abriu para serem
aclamados - em épocas diferentes. Tem um momento no filme em que ela diz:
“Eu fui correta.” Ela sofreu tanto racismo na televisão brasileira, no audiovisual,
mas com a inteligência emocional dela ela suplantou tudo isso e morreu dama,
rainha, rainha nossa, importantíssima. O Machado, da mesma forma.
Você sabe que nós queríamos muito colocar no espetáculo que, no atestado
de óbito de Machado, a cor dele era branca. Mas, nós não encontramos o atestado
de óbito. Então tivemos o cuidado de não colocar a - assim como muita gente
acha que o Lima era homossexual: eu acho que sim, mas eu acho. Então, a
gente não quis ser responsável em explicitar essa homossexualidade de Lima, de
uma forma irresponsável. Dada a grandiosidade que é esse homem, a gente não
podia botar dessa forma. Eu sou viado - em Feira de Santana nunca teve
homossexual, só teve viado. Desde quando eu nasci eu descobri que eu era viado,
muito antes de saber que era preto. O Lima se viado fosse, escondeu do mundo
até hoje.
Então tudo isso era muita diferença e tem uma coisa que é extraordinário: é
que a melhor composição de personagem, quando você identifica maiores
diferenças entre você e entre aquela personagem. Então, desse ponto de vista,
não foi difícil criar, muito pelo contrário: isso me ajudou e muito. Isso regeu a minha
trajetória para poder me aproximar desse homem e ao mesmo tempo não ser
esse homem, porque eu não gosto de ser.
Eu gosto de tê-lo ao lado do meu corpo. Durante a encenação, durante a
peça, eu busco ele. Utilizo ele, depois eu boto aqui do lado, sou eu, ali é ele. É
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assim que eu gosto e sempre gostei de trabalhar meu ator: não tem diretor ou
diretora no mundo que diga para mim que isso é errado. São 40 anos, 45 fazendo
isso e dessa forma eu sou muito mais do que qualquer Marília Pêra do mundo -
embora a Marília Pêra seja extraordinária. Eu gosto de estar aqui: é o meu corpo
preto, eu saco você, personagem, a hora que eu quiser ou a hora que a encenação
determina. a gente vai pelas partituras da própria encenação, da própria
narrativa. Então é isso: essas parecenças e essas diferenças.
Falando mais especificamente sobre a peça, me interessa a sua relação,
enquanto ator e personagem, com alguns objetos, dentre eles alguns que eu
vou destacar: a cabaça que guarda os búzios do qual formam um cérebro, o
cesto que guarda alguns livros do Lima e outros autores e autoras negros, e a
cadeira usada como esconderijo, acento e pedestal.
Eu vou começar pelo mais fácil, porque a cabaça é mais difícil: é a cabeça.
Se você conversar com a Fernanda - é sacerdotisa também, é do mundo dos
Santos, do Candomblé -, ela vai falar coisas tão extraordinárias e lindas para você
que o que eu vou falar sobre a cabeça é uma bobagem em relação ao que ela
sabe, o que ela faz e o que ela percebeu. E por que ela botou aquela cabeça, a
cabaça cravada de búzios, ali? Mas a cadeira, a cadeira é por essa coisa humana
do Lima querer ser reconhecido. Uma cadeira de escritor, uma cadeira na
Academia Brasileira de Letras, onde se senta e se pensa, se escreve etc. Então, a
cadeira para mim tem essa coisa de ascensão: o que esse homem realmente quis
foi um reconhecimento. A cadeira simboliza esse reconhecimento.
O cesto, na verdade, o cesto só tinha obras dele, viu? Ele guarda a memória.
Para mim, o cesto que está ali é a guarda da memória desse homem: a guarda das
coisas, da roupa, dos papeis que ele escreve, da escrita. Depois eu jogo esses
papeis, depois eu escrevo, a própria obra dele está ali guardada. Aquilo ali é o local
de memória daquele homem que eu saco dali para ser ele próprio. Ele: o Lima.
A cabaça é uma coisa da ancestralidade. Eu não sei falar sobre o mundo
religioso, embora seja de lá, eu vou fazer com que você fale com Fernanda Júlia:
ela invoca a cabaça. Que é inclusive Mãe Beata, minha linda e querida Mãe Beata,
Mãe de Santo que faleceu um tempo. Ela foi assistir a peça no domingo, logo
na época da estreia, num domingo em que eu passei mal e não terminei a peça.
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Mãe Beata foi muito clara comigo: “Olha, tira esses búzios da cabaça.” E não tem
no mundo quem não respeitaria a Mãe beata: é a mãe de Santo mais pop do Brasil.
Era extraordinária, politizada, militante e Mãe de Santo, do Candomblé, da
Macumba. Fernanda Júlia, que também é sacerdotisa - e a mãe dela também é
de Candomblé - disse: “Cobra, eu não vou tirar, porque eu pesquisei muito e eu
sei que para continuar esses búzios nessa cabaça.” Então, para mim a cabaça
é essa possibilidade dele ver o mundo, analisar esse mundo e do querer dele
realmente de ir para outros mundos. Isso é uma coisa linda!
Eu acho que tem algo muito simples em tudo no espetáculo, inclusive a
própria cabaça, inclusive a própria cabeça. É simples, extraordinário, enorme, cheio
de simbologias, cheio de dizeres, de dúvidas. Aquela cabaça nos deixa realmente
a nos dizer a nossa cabeça, nosso cérebro: de outro ponto de vista, é a questão
ficcional do espetáculo.
A cabaça é um dos grandes pontos da minha pesquisa. Eu estou usando um
conceito que eu peguei do Walter Benjamin chamado “alegoria”. E alegoria para
o Benjamin… Ele vai falar por exemplo: um objeto, um pensamento, ele vai se
relacionar com uma ideia de alegoria que é diferente do símbolo. O símbolo
para o Benjamin é uma ligação direta, é uma mensagem direta daquele objeto
com o significado e o significante que ele possui. Só que ele vai trabalhar com
essa ideia de alegoria com que, por vezes, tal objeto ou pensamento não é uma
ligação direta, não é uma mensagem direta. Então, quando eu olho para a
cabaça, para mim é uma grande alegoria, porque quando eu olho para ela não
consigo ver uma cabaça: pode ser um instrumento musical, poderia ser
tantas outras coisas. E ela está cravejada de búzios. Então, consigo perceber
que ali existe uma camada ancestral, existe uma camada religiosa, como você
colocou, sobre mundos. Então, essa ideia de alegoria do Benjamin, acho que ela
é muito bem-vinda para um instrumento analítico dessa cabaça. Qual a ligação
dos búzios com o ator Hilton e o personagem Lima?
Quem traz o búzio é a Onisajé. Você conhece a Onisajé?
Pessoalmente, não.
Você sabe que Onisajé é uma diretora: uma diretora negra. É uma diretora
que eu digo que tem assinatura: a Onisajé quer e fez espetáculos de teatro
dedicados a três, quatro Orixás. E ela quer fazer um espetáculo de teatro para
cada Orixá. Onisajé no teatro: a assinatura dela é essa busca no Candomblé e em
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homenagem a esses Orixás: esta mulher não pensa o teatro ou qualquer outra
coisa se não for do ponto de vista da vivência dela dentro do religioso. É ela que
traz os búzios, não sou eu e não o Marfuz.
Eu quero puxar uma outra coisa em relação à cabeça no
Traga-me a cabeça
de Lima Barreto
: a questão funcional. Você sabe que o espetáculo é uma conversa,
aquilo ali é meramente uma conversa dentro de uma conferência: existiu uma
conferência.
Essa foi o Primeiro Congresso Universal de Raças? Que teve a exibição do
quadro
A redenção de Cam
, que pregava a ideia de que o Brasil em 100 anos
seria todo branco?
Não. Esta conferência aconteceu aqui em 1913, organizada por Renato Kehl.
Era um seminário para analisar a eugenia no Brasil, dedicado à eugenia. Aí Marfuz
traz aquilo para a morte de Lima: ele busca, antecipa aquilo. E aí, qual é o grande
mote do espetáculo? Os eugenistas dizem: como uma pessoa de cor preta pode
escrever tantas obras geniais - o adjetivo é meu -, tantas obras de tão boa
qualidade?
Estou com o programa da peça aqui onde tem essa fala: “Como um cérebro,
considerado inferior pelos eugenistas da época, poderia ter produzido e
publicado obras literárias de qualidade, se a arte nobre e da boa escrita deveria
ser um privilégio das raças consideradas superiores?” Este aqui eu peguei no
Teatro: eu vi no chão do Municipal e tratei de pegar logo, antes que não
conseguisse outro.
Então está atualizado: se é do Municipal, está atualizado. O texto sofreu
algumas mudanças ao longo do tempo. Veja bem: ele traz nessa obra a exumação
do cadáver de Lima, para que os eugenistas pudessem fazer essa análise. É
brilhante, essa coisa de Marfuz ter trazido essa encantaria: ali o Lima volta ao
mundo e entrega a sua cabeça para ser dissecada.
Acho que é a partir daí que chegam os búzios. É muito importante essa
cabaça, que eu analiso do meu ponto de vista: de ator ou de produtor, e como eu
vivo aquilo. A partir do Candomblé, o que é que aquilo realmente significa eu não
sei dizer para você. As pessoas acham que é um mero cérebro, como os eugenistas
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Entrevista com Hilton Cabra - Concedida a Dalton Madruga da Silva
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analisavam, mediam na época, na peça vem aquele cravejado de búzios. É muito
lindo como Marfuz fez e como Fernanda pôs ali.
Botei como título da pergunta “o corpo enquanto alegoria”. Alegoria: aquele
conceito do Benjamin que eu expliquei brevemente. A peça não usa muitos
dispositivos cénicos, como uma cenografia complexa. Visualmente, ela
apresenta elementos simples. Sendo assim, na minha visão ela é contada a
partir do seu corpo. Qual é a importância do elemento “corpo” para a peça?
Como você entende esse conceito de corpo dentro da peça?
Eu comecei a fazer teatro em 1978. Eu já quis ser bailarino, fiz Vestibular na
UFBA para bailarino e para ator. Eu perdi todos os vestibulares, mas eu mesmo
me reprovaria: eu era mais ousado do que interessante quando eu fiz esses
vestibulares. Mas, eu sempre trabalhei o corpo. Desde o início, eu diria até desde
criança, eu tinha flexibilidade de corpo: eu jogava bola, eu entrava na minha casa
através dos basculantes porque eu era magrinho e parecia cobra. Eu sempre tive
uma coisa de corpo muito forte no teatro.
Eu venho de uma família que é de “pé de valsa”. Eu sempre adorei os meus
tios dançando: eu tinha um tio que dizia que o tango tinha 149 passos e ele sabia
148. Eu venho disso. Como eu fui apaixonado pela Elza Soares, que dançava com
a voz e sambava que era uma coisa, o corpo sempre foi algo extremamente
importante. E não é só importante: a partir dele, eu sabia que eu poderia ser mais
forte nas coisas que eu queria fazer. Eu nunca relaxei na questão de corpo: nem
ensaios nem preparação corporal, em qualquer peça que eu fiz na minha vida.
Eu não sou ator de ficar no centro de palco falando: pode ser o mais maravilhoso
do mundo, não sou eu. Para mim, o ator tem que ser o corpo inteiro no palco.
Quando eu comecei realmente a trabalhar o meu ofício de teatro com as
questões negras, eu dizia para todo mundo que, quando eu subia no palco, subia
eu, subia Grande Otelo, subia dona Fernanda ou dona Ruth, subia a dona Léa -
todo mundo nesse meu corpo de 1 metro e meio. Quando eu ia fazer qualquer que
fosse o espetáculo - Shakespeare, como eu fiz, e tantos outros que não tem nada
a ver com preto - eu, preto, subia ali com todas essas referências. Eu estou falando
de um corpo não é aquele corpo malabarista, aquele corpo flexível que eu
imprimo nas minhas peças e como você viu nesta peça. É também aquele corpo
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negro, que absorve e que traz tantos outros corpos.
A gente fala do corpo negro no teatro. Para mim define-se assim: com quem
eu estou entrando? E o que faço a partir dele? O que foi difícil. Uma das
dificuldades, por exemplo, para fazer o
Traga-me
, foi atualizar meu corpo. Eu
estava sete anos sem fazer teatro, sem entrar no palco. Eu tinha sido gestor,
presidente da Fundação Cultural Palmares: autoridade. Eu gosto de ser gestor
também - ou pelo menos eu gostava. E estava enferrujado, porque corpo de ator
enferruja.
E nem precisa de muito tempo parado.
Não, não precisa. Até hoje eu faço academia, por exemplo. Agora, eu sou
muito indisciplinado na academia, eu preciso do personal: porque se eu tiver que
fazer 10 e faço a 3, ele me exige fazer 12 - para mim está ótimo. Então, não é
nenhuma novidade para mim aquele trabalho de corpo que eu imprimo em
Traga-
me a cabeça de Lima Barreto.
É para as pessoas que assistem, sobretudo se eu
estiver com aquela barba enorme. No [Teatro] Municipal, eu estava saindo de uma
pneumonia. Ninguém percebeu: eu estava tossindo, um mês sem trabalhar corpo
e doente. E o próximo monólogo que for fazer, eu vou exigir mais ainda do meu
corpo: pode ser a última vez que eu possa usufruir desse meu “corpitio” flexível.
Vou fazer 68 anos com corpo de 18. Eu sei que o meu corpo em cena determina
muito de como as pessoas geralmente gostam de me ver em cena: “Ah, você é
um gigante.” É por conta do meu corpo. Quando estou falando do corpo, eu não
estou falando somente da flexibilidade.
Eu estou falando da voz que é corpo, do
olhar que é corpo.
Para contextualizar: quando eu abordo a questão do corpo, não estou falando
do corpo matéria, da flexibilidade. Eu estou entendendo o corpo na minha
pesquisa como esse conjunto de elementos: a voz, a figura do corpo no palco,
a visão social desse corpo. Principalmente do corpo do ator negro no palco.
E principalmente da prontidão, não é? Fernando Santana foi o assistente de
direção, fez a preparação corporal e a coreografia. O desenho de corpo é de
Zebrinha, mas a preparação é de Fernando Santana, que é um ator extraordinário.
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Muito bacana, não somente um ator: é cria de Luiz Marfuz, mas também um
dramaturgo, um autor de teatro e diretor muito interessante. Ele atualizou o meu
corpo com todas as paciências do mundo, e eu creio que na próxima peça buscarei
com que ele também trabalhe comigo nesse sentido de botar o meu corpo ativo,
de botar o meu corpo de prontidão.
Você pode ter um corpo que você quiser dentro de palco, com toda essa
percepção do inteiro que é corpo. Mas, se ele não estiver de prontidão em cena,
ele não funciona. Prontidão é mais uma coisa que está dentro do seu corpo e em
que você tem que buscar ter atenção: a percepção.
Antunes Filho dizia uma coisa: ele chega antes do espetáculo, ele chega nos
camarins e pergunta: “Todos prontos?” Aí, outro: “Falta o figurino”, falta não sei o
que, falta… Ele diz: “Mas, eu não quero saber nada disso. Eu quero saber se vocês
estão inteiros.” O que é a prontidão de você estar em cena: além de você estar
fazendo o seu trabalho de Lima Barreto, você está percebendo inclusive que o
refletor apagou, e você continua. Ou seja, você domina o estar em cena, você
domina tudo e qualquer coisa dentro e você não perde a sua prontidão, não
perde a sua atenção. Isso é um ator inteiro em cena. Isso é um corpo
absolutamente disponível e disponibilizado para o fazer teatral.
O corpo, para mim, é uma das coisas mais importantes em cena. Não é mais
somente saber dominar o assunto, dominar o tema, que é outra coisa importante,
pois quem domina o tema está ali em cérebro e o cérebro é papai do corpo. O
cérebro também é corpo. Não adianta também eu estar de prontidão a serviço
desse ofício, dessa personagem, dessa carpintaria, dessa autoria, dessa encenação
se eu não domino intelectualmente o que direi através de personagens. Se eu
não dominar, não tem corpo inteiro em cena.
Eu não sou um leitor voraz, não sou. Deveria ser, porque eu acredito que um
ator, uma atriz tem que ler. “Ah, tem que assistir”: não, tem que ler tudo e qualquer
coisa. Você precisa, quando convidado para fazer um espetáculo, ir além de sua
técnica: você precisa contribuir para você mesmo, para entender o que é a
narrativa deste autor, os caminhos que busca a direção. Você tem que estar um
pouquinho mais pronto - não posso ficar começando do zero o tempo inteiro.
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Você tem que fazer suas análises de tempo, políticas, raciais, planetárias.
Tenho um amigo muito doido, muito louco, porque ele é das figuras mais
inteligentes que eu conheço no teatro brasileiro, que se chama Ângelo Flávio. O
Ângelo disse: “Cobra, eu sou artista. Entre 220.000.000 de pessoas, eu sou artista,
eu estou no mundo das artes: olha que privilégio o universo me deu. Então, se
você é um artista, prepare-se sempre. Fique sempre atento ao universo das artes,
às análises que você vai ter que fazer da tua vida cotidiana, ressignificar a vida
através da arte, a música, essas coisas, entendeu? Além de comer, além de
passear.” Poxa, eu sou um artista. Quantas são as pessoas no Brasil - nem vou
dizer no Brasil: no mundo - que tentaram e não conseguiram? E eu, num universo
de 220.000.000, tenho que dar atenção a essa coisa. Isso pra mim é tão
significativo, é tão forte que no meu primeiro espetáculo eu estreei, em agosto de
1979, sendo protagonista, na primeira estreia. Protagonista, levando realmente
uma peça. Foi o Marfuz que me botou para fazer teatro, ele era o diretor do
espetáculo.
Eu sempre primei também pela técnica. Todos os dias antes de eu sair de
casa para o espetáculo eu ouvia pelo menos uma música cantada por Elis Regina
e um trecho do disco
Gota D'água
, com a dona Bibi Ferreira. Eu achava, e acho
ainda, que nada no mundo suplanta essas mulheres. Aliás, eu acho que Elis morreu
porque ela não aguentou a própria força dela: a própria vida, o próprio canto, a
própria música. Eu tenho essas duas figuras como exemplo: eu digo que Gil e
Caetano me ajudaram a crescer (risos) e essas duas mulheres, eu não saía para o
espetáculo sem ouvir. Eram as minhas referências de como você tem que estar
no palco inteiro, com técnica etc. E sabe mais o que eu fazia? Eu não andava de
casa para o teatro na ponta da calçada, porque eu poderia ser atropelado a
qualquer momento: eu andava no canto da calçada, porque para eu ser artista era
tão extraordinário que nada, nada podia me tirar daquela trajetória. Nem mesmo
os meus relaxamentos. Isso para mim é muito importante.
Teatro e dança andam lado a lado. Eu reparo muito nesse cuidado com o corpo
que, principalmente, os bailarinos e as bailarinas têm.
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Eu não estou dizendo para você que eu andava no canto da calçada para
não ser atropelado? Em 2001, eu fundei a Companhia dos Comuns, que é de
atores negros e atrizes negras. Entre uma montagem e outra, de um teatro para o
outro, substituiu-se um ator e tal. Um dos atores do espetáculo, nós íamos estrear
no Teatro Carlos Gomes para 700 pessoas, e o cara não chegava. Não chegava e
àquela época não tinha o celular. Aqui no Rio, em 2001, era o espetáculo
A roda do
mundo
e ele não chegava. Não era muito fácil a comunicação na época. Sabe o
que que aconteceu com Fernando Barcellos? Ele simplesmente estava na ponta
da calçada e foi atropelado indo para o teatro. Eu não dou um vacilo desses. Ele
teve que ser substituído de última hora por um dos atores que saiu e voltou
para salvar aquela apresentação lotada de gente: gente preta para ver gente preta
em palco.
E aí tem a questão técnica. Eu nunca tive dinheiro, mas quando eu vim para
o Rio eu aprendi a fazer iluminação. Eu vim para o Rio com um cara chamado
Jorginho de Carvalho, que é o papa da iluminação cênica no Brasil: existe a
profissão de iluminador porque existe Jorginho de Carvalho, meu amigo que me
tirou de Salvador para cá, com o grupo dele. Eu não voltei mais para a Bahia.
Bom, eu nunca tive dinheiro. Mas, por exemplo, eu brinco muito com Debinha
Colker - a Deborah Colker, da Companhia Débora Colker: minha amiga de muitos
anos, eu vi Debinha dançando grávida de Miguel etc. A gente é amigo muitos
anos e eu brinco com ela de que eu fui o primeiro iluminador da companhia dela.
Porque o iluminador mesmo era Jorginho de Carvalho: sempre iluminou os
espetáculos dela, menos agora. Mas, eu fiz uma luz para ela antes dela montar a
companhia. Ela disse: “Eu vou fazer um final de curso de dança na casa,
domingo. Eu queria botar uma luz. Você faz a luz?” Eu disse: “Faço. Troco por aula,
você topa?” [Ela disse:] “Topo”. Ela não tinha dinheiro para pagar e eu não tinha
dinheiro para pagar aula… eu fiz a luz. Eu fui uma permuta, fiz isso com várias
coisas: fiz isso com aula de canto, com dicção, com aula de corpo etc. O que quero
dizer é que tem muitos atores e atrizes que não primam pela técnica. Por que não
tem dinheiro? Não fale isso comigo, porque eu não acredito. Mas também não
quero ficar me comparando a todo mundo: eu sou eu, né? Eu vou trocar minhas
coisas por aquilo que é necessário, que é a atualização sempre do meu corpo para
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o meu ofício. Para o meu ofício eu sempre troquei, sempre permutei esse tipo de
coisa. Então falamos aí do corpo, né?
O tema da eugenia, um dos grandes pontos que me interessa no
Traga-me
.
Trabalhar com esse tema da eugenia era um desejo seu? Veio por parte da
direção, veio pela dramaturgia? Como surgiu o tema na criação da peça? Eu vou
emendar duas perguntas: como surgiu a eugenia na peça e como você os
avanços ou os não avanços dentro do teatro negro brasileiro, dado a sua
experiência desses 40 anos de carreira?
Primeiro: a eugenia não estava na pauta, o racismo estava na pauta. A gente
sabia que não queria ficar fazendo a obra de Lima ou ficar falando sobre a biografia
de Lima. A gente queria ter algo diferente que não sabíamos o que que era, com o
tema do racismo. Eu não sei precisar para você - mas Marfuz saberia - quando a
eugenia entra: ela entra a partir do autor, da provocação do autor. Se quer saber
sobre a eugenia, leia este livro aqui.
Racismo e eugenia no pensamento conservador brasileiro
, de Weber Lopes
Goés.
A grande felicidade da narrativa deste texto é a gente ter descoberto. Eu não
me lembro quando, como e por que veio o tema da eugenia. Até hoje muita gente
do movimento negro não sabe que o racismo é alicerçado no processo eugenista.
A eugenia veio organizar: estávamos na feitura de textos e lendo. Eu lia muita
coisa e sublinhava muita coisa sobre Lima e sobre a obra de Lima. O que era a
minha contribuição na feitura do texto? Ler. E aí Marfuz nos apresenta, a mim e à
Fernanda, uma coisa que é legal para você também: aquele vídeo inicial do nosso
espetáculo, de um documentarista sueco chamado Peter Cohen. Ele tem dois
documentários: o
Homo sapiens 1900
e a
Arquitetura da destruição.
São vídeos
que eu assisti, e quando assistia esses dois vídeos o texto não estava pronto. A
riqueza fundamental do texto é aquilo que nós queríamos: não trabalhar o racismo
como todo mundo tem trabalhado. A [temática da] eugenia nos favoreceu. Saber
que Monteiro Lobato era eugenista, Renato Kehl, Nilo, Nina Rodrigues etc.
Aquilo foi, para mim, uma explosão da necessidade de pesquisar. Pesquisar
enquanto ator. Foi uma felicidade enorme saber que a gente estava construindo
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uma obra muito legal. Eu não tenho nenhum problema de modéstia, eu tenho um
carinho pelas coisas que faço: ninguém precisa dizer se é bom ou ruim, eu sei.
Começamos a discutir a eugenia.
O mote da peça era os eugenistas, como os eugenistas viam a cabeça de
Lima Barreto: “Como era possível?” Olha o tamanho da importância desse
processo: era a época de Lima, aquele quase final de século 19 com início do
século 20, a eugenia no mundo é ali. No
homo sapiens.
O nascedouro do processo
eugenista como suposta ciência - o “suposto” sou eu que coloco.
É uma pseudociência, porque muita coisa conseguimos superar com os estudos
genéticos, apesar da herança eugenista. Ela continua, inclusive dentro do meio
acadêmico científico, não é?
Claro, na vida! Às vezes nos debates eu digo: “Se Hitler tivesse vencido aquela
guerra, eu não estaria aqui. Você, preta, não estaria aqui, viado não estaria aqui,
sapatão, loucos, loucas, deficientes... Porque esses caras buscavam de fato, sem
rodeios - não adianta enfeitar a pílula - a purificação da raça: esses caras queriam
dizimar aquilo que não era próximo deles. O ideal de purificação de raça nada mais
é que a eugenia. Em
Arquitetura da destruição
você vê Hitler, que deve ser aquele
cara no mundo que mais absorveu o processo eugenista para criar sua plataforma
política e sanguinária. Olha o peso que isso deu à montagem, o peso que isso deu
ao texto, não é? Ainda hoje a gente identifica nesse processo racista brasileiro -
para a gente dar um recorte no Brasil - o quanto a eugenia serviu de alicerce para
a segregação, para o racismo, para a exclusão. Vou puxar um pouquinho aqui
para o governo Lula atual.
Você passou por um processo de golpe, por um processo nazifascista e
consegue voltar, a duras penas, com a esquerda ao poder. A esquerda está há um
ano e meio (quase) no poder e você não vê, não ouve, não a pauta racial no
governo Lula. A única pessoa da área social do governo Lula que está apresentando
algo é Margareth Menezes, no Ministério da Cultura. Porque, de uma certa forma,
teve a sabedoria de entender que que o universo da produção cultural e artística
brasileira estava empenada, durante oito anos. Há uma certa sabedoria na gestão
da Margareth, que reconhece a produção represada: solta dinheiro, está pouco,
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mas solta, destrava a Lei Rouanet e vai criando políticas públicas - como é a
questão do sistema único de cultura. Isso tem que ser implantado e
implementado, isso é política pública - se no final dessa gestão Margareth Menezes
conseguir implementar. Não é um sistema único de cultura, mas é como se fosse:
é o Plano Nacional de Cultura. Vai ser um ganho extraordinário. E você ainda tem
duas leis que têm pelo menos 4 bilhões e 800 milhões a serem gastos. Meu único
problema é que ela está tão forte e o presidente, que sabe trabalhar com o
Congresso, não volta à campanha para aumentar a Cultura para 2% do seu
orçamento: é uma burrice histórica, porque o dinheiro acaba e a produção cultural
represada é enorme.
Existe uma defasagem de servidores por falta de dinheiro para fazer
concurso. Existe uma defasagem dos equipamentos. Estou falando na esfera
federal: os equipamentos federais - como teatros da Funarte, museus - cheios de
equipamento sem servidor, porque não tem dinheiro. Os teatros estão sucateados
de equipamentos e de servidores, porque não tem dinheiro, e eles não se
aperceberam de que o momento é esse: de lutar pelos 2% da Cultura. Nós temos
demanda para gastar bilhões, basta criar projetos que não sejam excludentes -
como os editais. Edital é um alicerce eugenista e racista: exclui. E dizem que é
uma política pública: como pode ser? Como é excludente e pode ser uma política
pública?
Você tem uma das coisas mais extraordinárias das últimas décadas, que
foram os Pontos de Cultura: reimplantar, reimplementar, modernizar e você vai ter
em cada canto do Brasil. Eu sei porque eu visitei vários, quando era da [Fundação]
Palmares: gente com suas demandas artísticas e principalmente culturais em cada
esquina, conversando com o povo. É uma possibilidade de você lutar contra o
racismo, contra a excludência, contra a eugenia. Não é ficar dizendo, falando,
jogando - como Brizola falava: “Cuidado com a casca de banana que botam pra
você escorregar.”
Você conhece ou soube de alguém ou notícia de alguém evidentemente
branco, branca, que foi condenado e preso, presa por injúria racial no Brasil? Se
você é branco e você me discrimina, se o racismo está na estrutura você me
discrimina porque você aprendeu através da estrutura. Então, você é tão vítima
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quanto. Há mais: que justiça é essa? A gente acabou de falar das penitenciárias. O
STF está preocupado com a população da penitenciária? Como estão vivendo
aqueles homens e mulheres, na sua maioria pretos, pretas e pobres? Não estão.
Então, você vem para cá dizer que nossa Carta Magna… A nossa Carta Magna está
defendendo a democracia que diz que defende a todos: é mentira. A prática não
é essa.
Eu não acredito em artista que não tem utopia: nós temos as nossas utopias,
talvez seja o nosso melhor alimento. Fora essa utopia, eu não acredito em nenhum
amigo: não para nós, pretos e pobres nesse Brasil, LGBTQ+, índio. Não tem saída.
Eu não sei o que é que Lula quer, mas ele deveria ter feito uma reforma de
Ministério. Eu fico achando que ele é sagaz e está esperando essas eleições
municipais. O que era pra ter feito, sobretudo, na área social: o que é que você
sabe desse Ministério da Educação? Que é que tem apresentado o Ministério da
Educação como política pública, como reforma? Como concerto do desmando de
mais de oito anos? E aquela democracia americana, que povo é aquele pra botar
o Trump? E pra colocar de novo o Trump? E o Biden, quer ser de novo um
presidente e aquela mulher preta, senadora como vice e que por ser vice é
presidente do senado? Por que aquela mulher não foi trabalhada para ser a
candidata? Eu estou falando o que eu gostaria que Lima vivo falasse.
Seria genial, principalmente esses encontros que você citou: Krenak e Lima
numa mesa, juntos.
Olha a riqueza de um Krenak e de um Lima Barreto numa Academia Brasileira
de Letras. Se eu estiver aqui, eu vou na posse da Lilia [Moritz Schwartz] em junho.
Muita gente preta não gosta da Lília, eu acho que ela deve ter os equívocos dela
- quando ela falou da Beyoncé, por exemplo. O Gil foi para e não me convidou,
dona Fernanda não me convidou, Krenak não me convidou… a Lília me convidou.
Eu vou lá: eu quero dar uma olhada naquilo para saber melhor, falar sobre aqueles
fardões. Deveriam, neste momento, pedir audiência com a Ministra da Cultura e
com o Ministro da Educação, para fazer suas defesas de melhoria na educação do
Brasil. Audiência com o Ministério de Comunicação, para defender uma melhor
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qualidade na televisão brasileira, para dizer a essas figuras todas que o BBB da
Rede Globo é a maior contribuição para a atrofia cerebral do povo brasileiro. Como
é que eu sei disso, como é que eu critico isso e aqueles imortais ficam nas inércias
imortais deles? Ora, por favor! Eu não assinei - mas, eu não critico quem assinou
- um documento em defesa da democracia brasileira, das instituições
democráticas brasileiras. Eu estaria assinando um documento em defesa da
democracia brasileira que permitiu o
impeachment
de uma mulher honesta.
Com aprovação do Congresso e tudo.
E não aprovação do Congresso: no pedido de
impeachment
de Dilma a
primeira assinatura da é OAB e do IAB. São instituições democráticas que
permitiram o
impeachment
, que permitiram o golpismo, que permitiram a eleição
- que todo mundo sabia - de um nazifascista, que permitiram a continuidade de
um fascista mesmo depois dele ser responsabilizado pelas mais de 350.000
mortes por conta da falta de vacina. Foi a chamada democracia brasileira que
permitiu a continuidade, enquanto eu quero saber o que a democracia brasileira
tem dito hoje contra o racismo e o sexismo no Brasil. Em tudo isso, estou
invocando Lima Barreto para falar e voltar a dizer que é bem possível.
Aliás, havia um projeto que caiu, que era Lima Barreto no divã de Frantz
Fanon: era uma coisa que eu queria fazer. E seria muito interessante o debate de
Lima com Krenak: para mim, o Ailton Krenak é hoje o mais extraordinário pensador
brasileiro vivo e o Lima o mais instigante e extraordinário pensador brasileiro da
sua época.
para a gente voltar um pouquinho pro teatro. Nesses 40 anos, Hilton, você
fundou a Cia dos Comuns falando sobre as questões étnicas e raciais. Você
acha que a gente avançou?
Avançamos, é óbvio. Nessa trajetória retrocesso, mas você percebe
quando a militar de fato nos movimentos negros que avançamos.
Uma época eu falei de Luiza Bairros, gaúcha décadas na Bahia: escolheu
Salvador como moradia e eu era amigo, íntimo. Esta mulher que me fez homem
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preto, porque essa mulher estava desde o início da minha carreira. O primeiro
espetáculo, inclusive, ela contribuiu na produção, como amiga. Uma vez eu
critiquei, conversando com ela: “Há pouca gente no movimento negro falando
determinada coisa”. Ela: “Pare de falar isto porque teve uma época em que o
Movimento Negro Unificado na Bahia cabia no meu fusca.”
Eu acho que hoje os movimentos não cabem mais em um fusca: tem muita
gente, tem muitos quilombos lutando com suas próprias armas, com suas próprias
forças ou suas próprias consciências. Nós perdemos muitas coisas conquistadas,
com o golpismo e com o nazifascismo. E eu espero que essa esquerda “fofa” que
está entenda que quando faz suas políticas públicas e for transformar em lei,
tem que transformar em lei de uma forma como foi, por exemplo, criada Palmares.
Não é qualquer governo que vai tirar Palmares: ela foi criada como instituição de
Estado. Como o Fomento da Cultura em São Paulo: no município, os vereadores
querem acabar e não conseguem. Então, aprendemos a lição: criem leis fortes e
vigorosas, tecnicamente perfeitas, para que o nazifascismo não acabe com os
nossos direitos.
A gente não pode deixar de perceber que as cotas foram um grande avanço:
uma grande discussão, uma grande implantação, um grande avanço e tem que
continuar em todos os seus aspectos, inclusive na estrutura dos ministérios. Tem
que ter preto, tem que ter preta dentro, tem que ter preta e preta dentro das
instituições. Então as cotas são um grande avanço.
É essa política de descentralização que junta tudo: junta pobre e preto, junta
mulher e índio. E esse caldeirão LGBTQI: pluralidade. Isso é uma conquista e
faz com que essas instituições percebam que tem que descentralizar, tem que
acolher todos e todas, todos os pensamentos culturais e manifestações culturais
tem que ter oportunidade. Todas as linguagens artísticas têm que ter
oportunidade: isso é uma possibilidade. mais gente discutindo as coisas, não
está tendo atitudes.
O povo tem que ir pra rua. A Internet não favorece muito a gente: a Internet
nos deixa aqui conversando por mais de uma hora achando que a gente está
fazendo política: muita gente se basta nesse sentido, na militância. Eu acho que
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está mais que na hora da gente ir para rua. Nós somos muito disciplinados, o
racismo nos deixou muito disciplinados, dentro de casa: temos que ir para a rua.
A gente preta - vou só dar o recorte da gente preta - também pode ir para rua.
Nós não estamos fazendo trepidar as bases do racismo e da segregação. É
exatamente o que o racismo quer, é exatamente o que a elite branca burra quer,
quis e conseguiu: estamos em paz. A gente só discute a democracia, mas a gente
não vai contra a democracia para a rua, se necessário.
Me veio aquela imagem, inclusive do filme que você fez parte, do
Medida
provisória
: no fim, no desfecho, todo mundo vai para a rua. Eu fiquei
devaneando na sua resposta. Me lembrei de 2013, porque as jornadas de 2013 -
para mim, que estava na rua naquele momento - foram uma grande resposta
para a elite e para o conservadorismo. Mas, principalmente para entender que
eles também podem estar na rua. E eles foram pra rua, né?
É um exemplo maravilhoso: junho de 2013, eu estava lá. E eu estava lá como
presidente da Palmares: balançou os alicerces, a estrutura de governo. Todo
mundo, tudo quanto é ministro tinha que pensar naquele ato. Aquilo deve ter sido
o último grande ato brasileiro. Uma coisa digo: onde estão os intelectuais? Onde
está a academia? Onde estão os estudantes? Em 64 e 68, os estudantes brasileiros
foram determinantes. Em junho de 2013, os estudantes foram determinantes.
Cadê eles? Cadê esses professores de esquerda, progressistas, que não insuflam
os estudantes para a conquista de seus direitos, para ir para a rua? Como falta no
movimento negro também botar gente na rua.
Falta gente no teatro?
No teatro tem uma coisa importante: a gente precisa discutir mais de estética
e não somente de política, militância. Se você não toma cuidado, você não cresce
do ponto de vista artístico, você não desenvolve a sua arte na medida em que você
discute política dentro da dramaturgia, mas isso não leva a uma estética.
A Comuns foi criada para dar espaço, abrir espaço para artistas e técnicos
negros. Desenvolveu uma dramaturgia puxada pelo Teatro Experimental do Negro
e na busca de uma tábua estética do fazer teatral preto. É necessário que saiamos
Devaneios e reflexões sobre teatro negro, política cultural e luta antirracista com Hilton Cobra
Entrevista com Hilton Cabra - Concedida a Dalton Madruga da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-27, abr. 2025
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desse vértice em que o racismo nos colocou e passemos a discutir estética: a
nossa arte, o como fazer e como não fazer, eu poder criticar a sua performance e
você poder criticar a minha performance. Eu crescer com a sua performance:
nunca mais a gente fez muito isso.
muito ator genial e atrizes geniais, eu falo isso aos geniais: cuidado,
você entra no palco e em vez de eu te ver como artista estou te vendo como
militante. Você é um militante: em qualquer momento que você entrar no palco
e dedicar sua arte, sua estética, o ativismo está lá dentro de você. Então, criemos
uma dramaturgia onde a gente possa discutir a nossa arte também, porque isso é
política. Luiza disse que o discurso também é trabalho. Discurso também é
política.
As perguntas foram vencidas. Te agradeço imensamente. Me sinto satisfeito.
Satisfeito não, porque a gente sempre tem fome de mais: estou contente com
este encontro e com as ricas respostas que você deu. Então, meu muito
obrigado.
Obrigado, queridão!
Beijo no coração, qualquer coisa eu estou aqui. Beijo,
tchau.
Fico à disposição também. Tchau
.
Referências
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. São Paulo, Rio de Janeiro,
Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
Recebido em: 20/09/2024
Aprovado em: 23/11/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC
Programa de Pós-Graduação em Artes CênicasPPGAC
Centro de Artes, Design e ModaCEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br