1
Pena: balé possível
enquanto
desdobramento poético
Silvia Susana Wolff
Flávio Campos
Para citar este artigo:
WOLFF, Silvia Susana; CAMPOS, Flávio.
Pena
:
balé
possível
enquanto desdobramento poético.
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 4, n. 53, dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e204
Este artigo passou pelo
Plagiarism Detection Software
| iThenticate
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Pena
:
balé possível
enquanto desdobramento poético
Silvia Susana Wolff | Flávio Campos
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-15, dez. 2024
2
Pena: balé possível
enquanto desdobramento poético1
Silvia Susana Wolff2
Flávio Campos3
Resumo
Apresenta-se relato sobre uma trajetória, que inclui estudos e atuação profissional em nível
internacional. Ao abordar relações entre dança clássica, deficiência e poética a partir da
ocorrência de um Acidente Vascular Cerebral, chega-se à exposição do
Balé Possível
,
investigação na forma de um pós-doutorado que assumiu a
prática como pesquisa
para o
viés metodológico. Uma proposta de prática corporal a partir dos princípios de movimento
do balé para, em atos de improvisação, chegar a processos de criação cênica. Aborda-se a
criação da obra
Pena
, que trouxe questões encontradas em autores da atualidade que
escrevem sobre dança e deficiência, técnica e criação do balé.
Palavras-chave: Balé. Deficiência. Criação. Pesquisa em dança.
Feather/Pity: possible
ballet as poetic unfolding
Abstract
This is a report on a trajectory that includes studies and professional performance at an
international level. By addressing the relationship between classical dance, disability and
poetics from the occurrence of a stroke. One arrives at the exposition of
Possible Ballet
, an
investigation in the form of a post-doctorate that took
practice based research
for the
methodological bias. A body practice proposal based on the principles of ballet movement
in order to arrive at processes of scenic creation through improvisation. The creation of the
work
Feather/Pity
is addressed, which brought up issues found in current authors who write
about dance and disability, ballet technique and creation.
Keywords: Ballet. Disability. Creation. Dance research.
Pena: ballet posible
como desarrollo poético
Resumen
Este es el relato de una trayectoria que incluye estudios y trabajo profesional a nivel
internacional. Al abordar la relación entre danza clásica, discapacidad y poética tras un
accidente cerebrovascular, se llega a la exposición de
Ballet Posible
, una investigación en
forma de postdoctorado que asumió la práctica como investigación por veis metodológico.
Se trata de una propuesta de práctica corporal basada en los principios del movimiento del
ballet para llegar a procesos de creación escénica a través de la improvisación. Aborda la
creación de la obra
Pena
, que plantea cuestiones discutidas por autores contemporáneos
que escriben sobre danza, discapacidad, técnica y creación del balé.
Palabras clave: Ballet. Discapacidad. Creación. Investigación de danza.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Gabrieli Dorigon Herold. Mestranda em
Letras da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Graduação em Letras Português em UFSM.
2 Pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutorado em Artes da Cena pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestrado em Artes/Dança pela New York University (NYU),
Estados Unidos. Graduação em Comunicação Social pela Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUC-RS). Profa. Adjunta na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). silviawolff72@gmail.com
https://lattes.cnpq.br/1811043984016846 https://orcid.org/0000-0003-0470-5270
3 Doutorado e Mestrado em Artes da Cena pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Graduação
Bacharelado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Prof. Adjunto
na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). flavio.campos-braga@ufsm.br
http://lattes.cnpq.br/4955177148424582 https://orcid.org/0000-0002-6206-1728
Pena
:
balé possível
enquanto desdobramento poético
Silvia Susana Wolff | Flávio Campos
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-15, dez. 2024
3
Introdução
Este texto aborda o ensino e a prática do balé a partir das experiências de
uma das autoras com essa técnica e as relações que estabelecemos entre a
dança, os estudos da deficiência e a poética cênica. O resultado disso é o que
denominamos
Balé Possível
, uma proposta de aula de improvisação através de
processos de tradução, adaptação e reinvenção de movimentos a partir dos
princípios de movimento dessa técnica. A proposta está em investigação por um
projeto de pós-doutorado em desenvolvimento ao longo de 2024 junto à
Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, sob supervisão da
professora doutora Elisabete Monteiro.
Inicialmente, para uma compreensão acerca de como chegamos a essa
proposta, vale ressaltar a profunda relação que uma das autoras do texto vem
estabelecendo com o balé em sua trajetória como artista docente no campo da
dança. Essa trajetória inclui escolas relevantes, como
School of American Ballet
e
Joffrey Ballet School
, ambas em Nova Iorque, e a atuação profissional junto a
companhias como
Berlin
Opera Ballet
e
Pennsylvannia Ballet
. Tais instituições se
encaixam nas premissas que Albright (1997) chama de “uma estética habilista para
a dança”, isto é, a estética do belo, do perfeito e do ideal, que hoje tanto
questionamos. A partir dessa trajetória profissional, a autora pôde dar continuidade
à sua relação com o balé por meio de investigações acadêmicas em nível de
mestrado (
New York University
) e doutorado (
Universidade Estadual de Campinas),
através das quais entrou em contato com o campo da Educação Somática e veio
a questionar-se acerca da presença e pertinência do balé na contemporaneidade.
Dessa forma,
Balé Possível
apresenta-se como uma opção para dar
seguimento às investigações acerca dessa técnica no contexto atual. A
multiplicidade de experiências com as mais diversas abordagens do balé também
possibilitam uma compreensão acerca da complexidade envolvida em seu estudo.
O título surgiu da participação de uma das autoras na banca do Trabalho de
Conclusão de Curso de uma aluna da primeira turma do Curso de Dança
Bacharelado da UFSM, onde houve menção às disciplinas de dança clássica
ministradas por esta autora nos primeiros semestres do curso em que ela usou a
Pena
:
balé possível
enquanto desdobramento poético
Silvia Susana Wolff | Flávio Campos
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-15, dez. 2024
4
expressão “balé possível”.
Um balé que não precisa ser necessariamente executado nas premissas do
belo, do perfeito e do ideal tradicionalmente proposto, mas está predisposto a ser
relido e reconfigurado de acordo com a maneira como cada indivíduo aborda seus
princípios, conceitos e sensações. Assim surgia a proposta do
Balé Possível
enquanto uma ideia de prática aberta para que cada indivíduo pudesse se
aproximar dessa técnica a partir de suas possibilidades e interesses. Nesse
sentido, encontramos suporte no conceito de aula técnica de dança enquanto
Laboratório (Stanton, 2011), onde o enfoque nos princípios de movimento, em lugar
do movimento codificado, permite que os participantes experimentem movimento
em contextos diversos, compreendam a origem do código e estabeleçam uma
relação com a sua própria atualidade.
Ao refletir sobre essa trajetória e sobre a proposta de um
balé possível
através de conexões entre ensino, prática, criação em dança e experiências com
os estudos da deficiência, identificamos a chance de explorar diversas questões
fundamentais na prática da dança, que presenciamos nos processos instaurados
junto a discentes de graduação ou mesmo em eventos e/ou grupos de pesquisa.
Surgem, portanto, questões referentes a como denominar a dança gerada na
proposta do
balé possível
e qual sua contribuição para processos criativos em
dança.
Ainda que um aprofundamento maior sobre as contribuições deste estudo
para o ensino fuja do recorte escolhido para o texto, vale questionar sobre a que
estética cênica essa abordagem de prática pode levar. Assim, buscamos atender
ao alerta de Ritenburg (2010) para a necessidade de inovação estética no balé e
assumimos, também, a pergunta de Morris (2010, p. 19): “Como podemos mudar
os olhos culturalmente condicionados de quem pratica?4Ou, ainda, como mudar
os olhos não de quem pratica, mas também de quem assiste, quem ensina e
quem cria?
Ao refletirmos sobre inovação estética ou mesmo sobre uma possibilidade
de reinvenção, importa lembrar que ainda que as experiências de uma das autoras
4 How can the culturally conditioned eyes of practitioners be changed? (Tradução nossa).
Pena
:
balé possível
enquanto desdobramento poético
Silvia Susana Wolff | Flávio Campos
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-15, dez. 2024
5
tenham ocorrido a partir de uma abordagem tradicional do balé, ela teve a
oportunidade de experienciar alternativas mais flexíveis, como as permeadas pelo
campo da Educação Somática.5 Através da sua atuação acadêmica e do impacto
que vivenciar um acidente vascular cerebral (AVC) teve em suas pesquisas, entrou
em contato com os estudos da deficiência e com outros artistas que atuam no
contexto da diferença. Nesses contatos, foi encontrando outras possibilidades de
dança e seguiu reforçando a escolha pela dança cênica como eixo essencial de
vida.
De um desejo de defender propostas para uso da dança como reabilitação
neurológica, surgiu o solo
Neue Schwan
(Zurique, 2009), e de uma tentativa de
reconhecer e validar novos conceitos estéticos para a dança cênica, nasceu
Luto
(Campinas, 2010), que resultou na obra
Em Meio a Este Luto Eu Luto
(Porto Alegre,
2012), entre outras. Em cada um desses projetos, ela teve a chance de rever modos
de fazer/ensinar dança e foi sentindo cada vez mais vontade e potencialidade no
estar em cena. Esta potência tem relação com a possibilidade de reexaminar
preconceitos habilistas no mundo da dança.
Dentre as experiências de uma das autoras deste texto com elencos mistos
de pessoas com e sem deficiências, vale mencionar sua participação semanal, ao
longo de 2020, de aulas online promovidas pela
CIM Cia de Dança
,6 que ela teve a
oportunidade de conhecer presencialmente em Portugal, antes do início da
pandemia. Em Agosto de 2020, a convite da Companhia para ministrar uma aula
ao grupo, foi oferecida uma aula de
Balé Possível
e mais uma vez podemos
perceber as potencialidades da proposta.
Em 2021, por meio da participação em uma performance online da
CIM
,7 ela
deparou-se com mais um rico processo de trabalho junto a um elenco misto de
5 Campo de conhecimento definido por Fortin (1999) como a arte e a ciência de um processo relacional interno
entre a consciência, o biológico e o meio ambiente, estes três fatores sendo vistos como um todo agente
em sinergia.
6 Criada em 2007, tem promovido uma abordagem pioneira da criação artística face à inclusão, através da
dança e imagem. A CIM procura a diversidade de caminhos e um constante enriquecimento através de
experiências, onde a multidisciplinaridade surge como impulso de novos métodos e respostas à produção
e exploração artísticas. Disponível em: https://www.voarte.com/pt/prodvoarte/cim/apresentacao. Acesso
em: 11 jul. 2021.
7 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Jz8b_VL2P88&t=495s
Pena
:
balé possível
enquanto desdobramento poético
Silvia Susana Wolff | Flávio Campos
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-15, dez. 2024
6
pessoas com e sem deficiências. na chegada ao momento da estreia, pôde
observar que, dessa vez, a opção de estar em cena havia se transformado: o belo,
o perfeito e o ideal haviam sido ressignificados por uma sensação de
pertencimento como bailarina.
Estudos recentes apresentam atualizações sobre esses conceitos que se
mostram interessantes para o que propomos. Jackson (2005) escreve, a partir de
sua própria experiência com o balé, que seu professor sugeria: “Você tem o corpo
ideal para a sua própria dança e a sua própria dança refina o seu corpo ideal”
(Jackson, 2005, p. 25)8. A autora propõe ainda que se pense o ensino e prática da
dança a partir da perspectiva de quem dança e não de quem assiste. Além disso,
atenta ao fato de que no ensino atual do balé o desejo de dançar é menos
enfatizado do que a potência corporal. Desse modo, a vivência online da primeira
autora deste texto com a
CIM Cia de Dança
foi transformadora, principalmente por
ela voltar a ter contato com o desejo de que fala Jackson.
Bresnahan e Deckard (2019) propõem reconsiderar a ideia de beleza de forma
a ampliá-la para além da noção inicialmente proposta pelo balé tradicional (
ballet
).
Essa noção, segundo Homans (2010), determina o modelo apolíneo de harmonia,
proporção e verticalidade como o padrão para a dança teatral do Ocidente,
contexto no qual uma das autoras deste texto sempre esteve bem enquadrada.
Em uma proposta de revisão de conceitos, Bresnahan e Deckard (2019)
sugerem um
standard
alternativo de beleza, que chamam de “beleza-na-
experiência”9, onde a beleza é percebida na experiência qualitativa de bailarinos
com e sem deficiências se movendo juntos em uma dança. Os autores partem do
modelo perceptivo de Edmund Burke (1730-1797), onde perfeição e proporção não
são necessárias para a beleza, mas sim uma qualidade social, onde indivíduos nos
causam uma sensação de prazer em contemplá-los, “nos inspirando sentimentos
de ternura e afeto por suas pessoas” (Burke, apud Bresnahan e Deckard, 2019, p.
195).10
8 you have the ideal body for your danceand your dance refines your ideal body. (Tradução nossa).
9 Beauty-in-Experience. (Tradução nossa).
10 inspire us with sentiments of tenderness and affection towards their persons. (Tradução nossa).
Pena
:
balé possível
enquanto desdobramento poético
Silvia Susana Wolff | Flávio Campos
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-15, dez. 2024
7
Após a apresentação online do trabalho com a
CIM
, chegaram diversos
feedbacks
de pessoas que haviam assistido à obra. Muitos dos relatos
expressavam que haviam se emocionado com o que viram. O sentimento
mobilizado pela obra tinha relação com olhar direcionado àquelas pessoas tão
diferentes dançando juntas, ainda que cada uma estivesse em seu quadradinho
do
Zoom
. Em tempos de isolamento social, a imagem lembrava de quando era
possível estarmos juntos, presencialmente a dançar. Estava sendo vivenciado o
modelo contemplativo de Burke, que percebemos também em outros projetos de
dança com elencos mistos dos quais participamos.
Sobre estes tantos reencontros com a cena após o AVC, vale mencionar a
fala de uma das autoras para um grande amigo e pesquisador. Talvez por
perceber-se repentinamente excluída da estética habilista que envolve o balé,
chegou a mencionar que não mais voltaria à cena para dançar se fosse para validar
esse referencial estético, mas sim e apenas se encontrasse motivações maiores
para estar em cena. Essa motivação surgiu em 2010, a pedido da fisioterapeuta
chefe do Centro de Reabilitação Neurológica de Zurique enquanto desenvolvia
parte de seu doutorado. Assim como outros convites para estar em cena, a
oportunidade causou um misto de sentimentos como medo, desejo e
responsabilidade em relação ao potencial da presença cênica. É preciso lembrar,
segundo Teixeira (2011, p. 111), o papel social que o artista com deficiência
“desempenha em seu fazer artístico, assim, como nas formas de compreensão do
espaço cênico enquanto lugar de proposições”.
Ao sentir-se responsável por esse fazer e por esse espaço, surge a proposta
de criação da obra cênica intitulada
Pena.
O título é remanescente de uma
experiência vivida junto ao mesmo amigo a quem havia mencionado que não
mais voltaria à cena. Certa vez, quando ambos chegavam ao teatro para assistir a
um espetáculo de dança, encontraram uma amiga de infância de uma das autoras
deste texto. Ao vê-la caminhando com as dificuldades pós AVC, a amiga exclamou:
“Que pena, né? Tu eras tão bonita!”.
Pena
surge, então, enquanto ideia para uma
criação cênica que possa lidar com a estética habilista desse belo, perfeito e ideal
tão específicos do contexto do balé, não pela pluralidade de significados da
palavra, como também por sua relação com a figura do Cisne, muito presente na
Pena
:
balé possível
enquanto desdobramento poético
Silvia Susana Wolff | Flávio Campos
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-15, dez. 2024
8
trajetória profissional da autora em questão.
Ao refletir sobre a natureza das relações que podemos estabelecer com o
passado, ressaltamos que lidar com a tradição do balé implica uma série de
reflexões. Enquanto herdeiros de anos de contato com a técnica, cuja história
carregamos no corpo e na mente, é preciso questionar as possíveis relações que
estamos estabelecendo com essa herança. Neste sentido, encontramos
pertinência nas lindas palavras de Adrienne Rich (
apud
Midgelow, 2007, p. 6):
“Precisamos conhecer a escrita do passado e conhecê-la de maneira diferente de
como jamais a conhecemos; não para transmitir uma tradição, mas para quebrar
seu domínio sobre nós”11. Pensamos que a proposta do
Balé Possível,
enquanto
dispositivo de criação da obr
a Pena,
seja, em si, uma tentativa de, frente ao
estabelecido, encontrar o novo, o diferente, no sentido trazido por Monteiro (1999,
p. 188), ao mencionar que:
todo balé, quando assim se autodenomina, está implicitamente
reconhecendo-se como herdeiro de uma tradição [...] que vive e revive
em compromisso estreito com o passado, embora sempre renovado [...]
com uma lógica que dá conta tanto da continuidade, quanto da ruptura.
Trata-se não de vilanizar o balé, mas de contribuir para a reflexão acerca de
sua presença na atualidade, pois, de acordo com Alten (2014 p. 49), enquanto
alguns o consideram ultrapassado, outros seguem acreditando que seja o sistema
de treinamento definitivo para professores e bailarinos. Mesmo lidando com o
peso da tradição e a falta de habilidade de muitos em encarar mudanças, devemos
reafirmar que “apontar os limites da técnica de
ballet
não descarta o seu valor”12.
Pensamos que essa criação possa se enquadrar naquilo que Midgelow chama
de
reworking13
, que difere de termos como remontagem, reconstrução, recriação,
restauração, revisão, entre outros, porque enquanto essas outras reconstruções
no balé tendem a garantir a tradição, o termo
reworking
refere-se a reelaborações
que se engajam em um diálogo com a tradição, muitas vezes desafiando premissas
11 We need to know the writing of the past, and know it differently than we have ever known it; not to pass on
a tradition but to break its hold over us. (Tradução nossa).
12 Pointing out the limits of ballet technique doesn’t discard its value. (Tradução nossa).
13 A tradução literal da palavra para o Português seria retrabalho. Gostamos muito do termo releitura, pela
relação que estabelece com a dança enquanto texto. Por enquanto, optamos também por manter a palavra
em inglês.
Pena
:
balé possível
enquanto desdobramento poético
Silvia Susana Wolff | Flávio Campos
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-15, dez. 2024
9
estabelecidas. O que se assemelha, nesse conjunto de termos, é o prefixo 're'.
Todos descrevem danças que têm um texto de dança pré-existente, como uma
fonte que revisitam de várias maneiras. Dessa forma, o texto-fonte é, no mínimo,
um ponto de referência significativo para o novo trabalho.
A relação entre o(s) texto(s) de origem e o texto recém-construído é
importante, pois distingue um modo de revisitar de outro. A ênfase aqui, no uso
do termo
reworking
está na chance de alterar substancialmente o balé para criar
um novo trabalho que tenha uma ressonância significativamente diferente. No
caso de
Pena
, vemos a possibilidade de referência tanto ao
Lago dos Cisnes,
como
também à
Morte do Cisne.
Vemos, ainda, na criação de
Pena
, mais uma oportunidade para rever e
refazer a mais crucial das opções de uma vida que é a de continuar a fazer da
dança o centro de uma existência. Em
Pena
retomamos o desejo viabilizado em
obras anteriores de recolocar essa opção em prática, de escolher continuar
vivendo e dançando, de voltar ao palco e encarar a si mesma e ao público. Um
exercício de reconhecer e aceitar corpo e existência, de redefinir tempo, espaço e
identidade, de lidar com a história de uma dança que se carrega no corpo, de
abordar questões de diferença, de lidar com o que foi perdido e descobrir o que
ainda está por vir.
Desenvolvimento
Na medida em que o processo de criação de
Pena
avançava, era possível
perceber que, diferentemente de outros processos experienciados, essa vivência,
enquanto parte de uma investigação maior, implicava lidar com o peso da estética
habilista em cena e posicionar-se criticamente em relação a ela. As cenas criadas,
até o momento, colocam na prática de corpo e mente tudo aquilo que vem sendo
investigado em teoria na linguagem escrita. É preciso deixar que a escrita do corpo
em prática de criação não comente, como transforme aquilo que foi lido ou
escrito em teoria. O misto de sentimentos de desejo, medo, prazer e
responsabilidade com a cena é acrescido da dificuldade de enfrentar o passado
com a possibilidade de corpo e mente do presente, para, com isso, descobrir o
futuro.
Pena
:
balé possível
enquanto desdobramento poético
Silvia Susana Wolff | Flávio Campos
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-15, dez. 2024
10
Ainda que por vezes catártico, o processo pode ser um tanto doloroso, mas
com o passar do tempo vamos percebendo sua potência. Ao mesmo tempo que
antigas questões retornam, por exemplo, a pergunta sobre beleza, onde
frequentemente nos percebemos a perguntar “Está bom?” Está bonito?” “É
suficiente?”, também percebemos que nosso próprio olhar se transforma. Logo, a
falta de uma opção de movimento ou posição corporal aponta um outro caminho
ou uma outra solução criativa, que passa a mostrar que outros valores existem,
entre outros belos e outros ideais. Ou, ainda, que o ideal é ressignificado no
possível.
Ao expandir o olhar para o mundo, podemos encontrar beleza na deficiência
e considerar a possibilidade de outros corpos para a dança. Kuppers aborda a
relação entre corpos perfeitos, estética do balé e o encontro entre dança e
deficiência como referência para afirmar que a
concepção de perfeição, centrada nas conquistas do bailarino como
ícone cultural, pode ser frutiferamente questionada por meio da atenção
às diferenças específicas que outros corpos e seu uso do espaço
representam para a estética do balé (Kuppers, 2010, p. 123)14.
Propomos que essas possibilidades de transformação e ressignificação não
de perfeição, como também de beleza e ideais corporais, são prioritárias para
revermos conceitos de dança, cena e poética na contemporaneidade. Esperamos
que a criação e a apresentação de
Pena
possam configurar a obra numa dessas
possibilidades. Ainda, que possa se posicionar não em referência ao balé na
atualidade, mas também à deficiência em cena. Nesse sentido, devemos
confrontar os significados simbólicos e ideológicos do corpo deficiente em nossa
cultura, uma vez que, de acordo com Albright (2001, p. 58), “ao ver corpos
deficientes dançando podemos perceber que, embora uma apresentação de
dança seja baseada nas capacidades físicas de um bailarino, ela não é limitada por
estas”15.
14 conception of perfection, focused on the achievements of the ballet dancer as cultural icon, can be fruitfully
questioned through close attention to the specific differences that other bodies and their use of space pose
to ballet’s aesthetic. (Tradução nossa).
15 while a dance performance is grounded in the physical capacities of a dancer, it is not limited by them.
(Tradução nossa).
Pena
:
balé possível
enquanto desdobramento poético
Silvia Susana Wolff | Flávio Campos
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-15, dez. 2024
11
Aqui é possível falarmos também da estruturação dos processos criativos
como um todo. Enquanto os processos de cena tradicionais do balé são pautados
em (e reforçam) relações que colocam no olhar do outro (diretor, professor,
coreógrafo como único detentor do conhecimento) o poder de decisão do que
vai para a cena, no processo de
Pena
essa relação diretor-bailarino se transforma,
pois a decisão ou ainda, a ideia de poder sobre o que vai para a cena é pensada
a partir do compartilhamento dessa hierarquia.
Por vezes, percebemos a falta que o exercício da autonomia pode fazer em
uma formação tradicional de balé (Clements & Nordin-Bates, 2022), mas, ao longo
das práticas aqui propostas, o compartilhamento se fez cada vez mais presente e
possibilitou o encontro da autonomia necessária para a tomada de decisões por
conta da bailarina intérprete-criadora. Em poucas semanas de ausência do olhar
de fora, quando o diretor precisou se afastar, foi possível perceber a dicotomia
mencionada por Jackson (2005) ao propor o balé como um estudo somático, de
forma a advertir sobre as implicações da abordagem dessa prática a partir de uma
perspectiva puramente de terceira pessoa, o que reforça a predominância de
noções de ideais de corpo e distancia o bailarino de suas motivações mais internas.
Em
Pena
, o olhar a partir da primeira pessoa fez-se cada vez mais presente, a
ponto de tornar-se imprescindível a autonomia da bailarina para perceber que
obra desejava criar e apresentar ao escrever com seu corpo em cena.
Ainda falando sobre essa autonomia, é possível reforçar alguns aspectos
processuais e metodológicos que fomos elencando no desenrolar da nossa
prática. A parceria entre a bailarina e o diretor foi sendo estabelecida pela troca
de experiências, ao mesmo tempo em que buscávamos justapor as nossas
ferramentas e conhecimentos da cena. O trabalho laboratorial, embasado pela
proposta de testar o
Balé Possível
como procedimento para a criação, junta-se
com algumas ferramentas e práticas advindas da experiência e formação do
diretor no método BPI (Bailarino-Pesquisador-Intérprete)16. Não havia aqui a
pretensão de criar uma trilha formativa fiel ao Processo BPI, mas sim lançar mão
16 O método Bailarino-Pesquisador-Intérprete (BPI), criado e desenvolvido por Graziela Rodrigues, desde a
década de 1980, hoje com sede na UNICAMP e com uma extensão da UFSM. Trata-se de um método pensado
para a formação e criação em artes da cena. Para maiores informações vide https://www.bailarino-
pesquisador-interprete.com/
Pena
:
balé possível
enquanto desdobramento poético
Silvia Susana Wolff | Flávio Campos
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-15, dez. 2024
12
de alguns aspectos adaptados desse método para, acima de tudo, viabilizar a
instauração de um ambiente seguro e propício para a criação.
A proposta viabilizou a segurança necessária para que a bailarina pudesse
transitar, dando continência e consciência, por conteúdos de ordem mais pessoal
e íntima durante o processo. Destacamos aqui, principalmente, o trabalho com
uma livre adaptação da estrutura dos laboratórios dirigidos, do esquema de
registro e do fluxo dos sentidos a partir da técnica dos sentidos do BPI17. A partir
dessas ferramentas foi possível elaborar corpos que, ao longo do processo de
criação do
Pena
, foram cruciais para elaboração da sua dramaturgia.
Ainda que os estudos da deficiência não sejam o foco principal desse texto,
algumas investigações sobre práticas de dança com pessoas com deficiência são
relevantes tanto para o processo em questão, quanto para suas reflexões.
Ressaltamos que tradução, adaptação e reinvenção são aspectos cruciais para a
estruturação do processo de
Pena
, mas também refletem as nossas
compreensões e nossas estratégias para pensar o ensino, a aprendizagem e a
criação em Dança. Dito isso, vale reforçar também que essa abordagem vem
sendo aplicada por nós para os mais diversos públicos, ou seja, pessoas com e
sem deficiências, como também artistas da dança vinculados ou não à
universidade, de forma animadora.
Considerações finais
A partir do processo de criação de
Pena
e levantamento de leituras
atualizadas, percebemos o potencial dessa proposta em contribuir para as
discussões relacionadas ao “como” e ao “porque” da presença do balé nos
processos criativos em dança. Nesse sentido, vemos relevância na evolução do
conceito de balé contemporâneo que é apresentado em uma primeira coletânea
de textos organizada por Farrugia-Kriel, K., & Jensen, J. N. em 2015. Sulcas (
apud
Alterowitz, 2015, p. 22), que faz uma crítica ao uso do coreógrafo William Forsythe
como referência do balé contemporâneo, defendendo que esse conceito deveria
17 Essas ferramentas foram definidas por Rodrigues (2010) e discutidas dentro do processo formativo e de
criação do BPI em Rodrigues et al… (2016).
Pena
:
balé possível
enquanto desdobramento poético
Silvia Susana Wolff | Flávio Campos
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-15, dez. 2024
13
estar para além de "sobrepor passos acadêmicos com pés flexionados, pernas
paralelas e flexões ocasionais para trás que não fazem parte do léxico do balé”18.
o
Oxford Handbook of Contemporary Ballet,
organizado também por
Farrugia-Kriel & Jensen, em 2021, aponta que falar em balé contemporâneo implica
no entendimento de que estamos em um novo momento da sua história, que ele
pode ser reconhecido como um campo à parte em que bailarinos e criadores, na
maioria das vezes, nos levam
a celebrar o que poderia ser considerado vulnerável, reconstruindo ideais
de perfeição, problematizando a dicotomia marginalizado/mainstream,
aproximando os espectadores para observar esta arte enquanto
experiência em vez de um objeto distante preciosamente guardado fora
de alcance” (Farrugia-Kriel, K., & Jensen, J. N, K., & Jensen, 2021, p 1-2)19.
Com
Pena
, esperamos trazer um novo olhar para a diferença no campo do
balé, pois buscamos propor novos conceitos sobre o corpo que dança e reforçar
que esse corpo “precisa ser considerado para além do nexo binário
masculino/feminino, homo/hétero, sujeito/objeto e eu/outro” (Midgelow, 2007, p.
6).20
Finalmente, esperamos que
Pena
possa não oportunizar um convite à
possibilidade de experiência contemporânea, como também aliviar o peso da
tradição e rever a presença do balé e da deficiência nas práticas e nos processos
de criação em dança na contemporaneidade.
Referências
ALTEN, Anna. Ballet in transition: why classical ballet technique is no longer
sacrosanct. In: Brown, Derrick (Org.),
Ballet, Why and How?:
on the role of classical
ballet in dance education. Arnhem: ArtEZ Press, 2014, p. 447-52.
18 too often... means overlaying academic steps with flexed feet, parallel legs and the occasional backbend
that aren’t part of the ballet lexicon. (Tradução nossa).
19 by celebrating what could be deemed vulnerabilities, reconstructing ideals of perfection, problematizing the
marginalized/mainstream dichotomy, bringing viewers closer in to observe, and letting the art become an
experience rather than a distant object preciously guarded out of reach. (Tradução nossa).
20 needs to be considered beyond the binary nexus of male/female, homo/ hetero, subject/object and
self/other. (Tradução nossa).
Pena
:
balé possível
enquanto desdobramento poético
Silvia Susana Wolff | Flávio Campos
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-15, dez. 2024
14
ALBRIGHT, Ann Cooper. Strategic abilities: negotiating the disabled body in dance,
In: Dils, Ann & Albright, Ann Cooper (Ed)
Moving history/dance cultures:
a dance
history reader
.
Middletown: Wesleyan University Press, 2001, p. 56-66.
ALBRIGHT, Ann Cooper.
Choreographing Difference
: the body and identity in
contemporary dance
.
Middletown:
Wesleyan University Press, 1997.
ALTEROWITZ, Gretchen. Contemporary Ballet: Inhabiting the Past While Engaging
the Future. In: Farrugia-kriel, K e jensen, J. N. (ed),
Conversations across the field
of dance studies:
Network of Pointes. Society of Dance History Scholars, 2015, vol.
XXXV, p. 20-23.
BRESNAHAN, Aili and DECKARD, Michael. Beauty in Disability: An Aesthetics for
Dance and for Life. In: In Karen Bond (ed.)
Dance and Quality of Life, Social
Indicators research series.
Netherlands: Springer, Vol. 73, 2019, p. 185-206.
CLEMENTS, Lucie & NORDIN-BATES, Sanna M. Inspired or Inhibited?
Choreographers’ Views on How Classical Ballet Training Shaped Their Creativity,
Journal of Dance Education
, Taylor & Francis 22:1, 2022, p. 1-12.
FARRUGIA-KRIEL, Kathrina & JENSEN, Jill Nunes (ed).
The Oxford Handbook of
Contemporary Ballet
Nova Iorque: Oxford University Press, 2021.
FARRUGIA-KRIEL, Kathrina & JENSEN, Jill Nunes.
Conversations across the field of
dance studies: Network of Pointes
. Society of Dance History Scholars, 2015, vol.
XXXV.
FORTIN, Sylvie. Educação Somática: novo ingrediente da formação prática em
dança, In:
Cadernos do Cepe-Cit
Salvador: UFBA, n, 2, p.40-55, 1999.
HOMANS, Jennifer.
Apollo’s angels
:
A history of ballet
.
Nova Iorque: Random House,
2010.
JACKSON, Jennifer. My dance and the ideal body: looking at ballet practice from
the inside out,
Research in Dance Education
.
Taylor & Francis, 6(1-2), 2005, p. 25-
40.
KUPPERS, Petra. Accessible Education: Aesthetics, bodies and disability,
Research
in Dance Education
. Taylor & Francis, 1:2, 2010, p. 119-131. Disponível em:
https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/713694266 Acesso em: 20 out.
2024.
MIDGELOW, Vida L.
Reworking the ballet
:
counter-narratives and alternative
bodies
.
Nova Iorque: Routledge, 2007.
MONTEIRO, Mariana. Balé, tradição e ruptura.
In: Pereira, R., Soter, S. & Aragão, V.
(org.),
Lições de dança 1
. Rio de Janeiro: UniverCidade, 1999, p. 169-190.
Pena
:
balé possível
enquanto desdobramento poético
Silvia Susana Wolff | Flávio Campos
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-15, dez. 2024
15
MORRIS, Geraldine.
Problems with Ballet: Steps, style and training
,
Research in
Dance Education
. Taylor & Francis 4:1, 2010, p. 17-30. Disponível em:
https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14647890308308 Acesso em: 20
out. 2024.
RITENBURG, Heather Margaret. Frozen landscapes: a Foucauldian genealogy of the
ideal ballet dancer’s body,
Research in Dance Education.
Taylor & Francis, 11:1, 2010,
p. 71-85.
RODRIGUES, Graziela Estela Fonseca; et al. Corpos em Expansão: a arte do
encontro no método Bailarino- Pesquisador-Intérprete (BPI).
Revista Brasileira de
Estudos da Presença,
Porto Alegre, v. 6, n. 3, p. 551–577, 2016. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/index.php/presenca/article/view/65010. Acesso em: 20 set. 2024.
RODRIGUES, Graziela Estela Fonseca. As Ferramentas do BPI (Bailarino-
Pesquisador-Intérprete). In: I Simpósio internacional e congresso brasileiro de
imagem corporal, 2010,
Anais do I Simpósio Internacional e Congresso Brasileiro
de imagem Corporal.
Campinas, 2010, p 1-4. Disponível
em:http://www.fef.unicamp.br/fef/sites/uploads/congressos/imagemcorporal2010/trabalhos/portugues/area3/IC3-28.pdf
Acesso em: 20 set. 2024.
STANTON, E. Doing, re-doing and undoing: practice, repetition and critical
evaluation as mechanisms for learning in a dance technique class ‘laboratory’,
Theatre, Dance and Performance Training
. Taylor & Francis, 2:1, 2011, p. 86-98.
TEIXEIRA, Carolina.
Deficiência em cena
.
João Pessoa: Ideia, 2011.
Recebido em: 20/09/2024
Aprovado em: 23/11/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br