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A poética dos cacos
Maciej Rozalski
Para citar este artigo:
ROZALSKI, Maciej. A poética dos cacos. Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 4,
n. 53, dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e301
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A poética dos cacos
Maciej Rozalski
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-25, dez. 2024
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A poética dos cacos1
Maciej Rozalski2
Resumo
O autor desse texto reflete sobre o processo criativo do espetáculo “Erradicação”,
realizado por ele sob a direção de Naomi Silman (Lume Teatro) em 2024. Esta
análise permite também uma reflexão sobre a questão da memória, da autoficção
e dos métodos alternativos de escrita científica, que permitem uma relação entre
o criador e o pesquisador num processo de arte/pesquisa. A obra oscila entre
os elementos biográficos do autor-errante, autoficção inspirada nos passos do seu
caminho erradicado entre as culturas e diferentes estados sociais. Esse texto é
constituído pelas memórias viajantes, os relatos de desfragmentação e as
estratégias de reescrita de si pelo processo artístico.
Palavras-chave
: Artes cênicas. Autoficção. Arte/pesquisa. Escrita performativa.
The poetics of shards
Abstract
The author of this text reflects on the creative process of the show “Erradicação”,
directed by Naomi Silman (Lume Teatro) in 2024. This analysis also allows for a
reflection on the issue of memory, autofiction and alternative methods of scientific
writing, which allow for a relationship between the creator and the researcher in a
single process of art/research. The work oscillates between the biographical
elements of the wandering author, autofiction inspired by the steps of his
eradicated path between cultures and different social states. This text is made up
of traveling memories, accounts of defragmentation and strategies for rewriting
oneself through the artistic process.
Keywords
: Performing arts. Autofiction. Art/research. Performative writing.
La poética de los pedazos
Resumen
El autor de este texto reflexiona sobre el proceso creativo del espectáculo
"Erradicação", realizado por él bajo la dirección de Naomi Silman (Lume Teatro) en
2024. Este análisis permite también reflexionar sobre la cuestión de la memoria, la
autoficción y los métodos alternativos de escritura científica, que permiten una
relación entre el creador y el investigador en un único proceso arte/investigación.
La obra oscila entre elementos biográficos del autor errante, autoficción inspirada
en los pasos de su camino erradicados entre culturas y distintos estados sociales.
Este texto se compone de memorias de viaje, relatos de desfragmentación y
estrategias de reescritura de uno mismo a través del proceso artístico.
Palabras clave
: Artes escénicas. Autoficción. Arte/investigación. Escritura
performativa.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Prof. Dr. Rubens da Cunha da
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
2 Pós-doutorado em Linguística, Letras e Artes na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pós-
doutorado na Academia das Ciências da Polônia, ISPAN, Polônia. Doutorado em Antropologia e Teoria de
Arte pelo Instituto de Arte, Academia das Ciências da Polônia. Mestrado em Filosofia Instituto de Filosofia,
IFUW, Polônia. Centre of Theatre Practices Gardzienice, Polônia. Professor Adjunto da Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia (UFRB), na área de Design de Espetáculo. Antropólogo e artista cênico polonês
criado e morando no Brasil. maciekroz@ufrb.edu.br
http://lattes.cnpq.br/4319792183820485 https://orcid.org/0000-0002-1582-9984
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“Entre” lugares
...Um estranho andarilho viaja com uma mala na mão. O que ele está
procurando? Aonde ele quer chegar? Muitas figuras semelhantes
permanecem à margem da vida cotidiana. Aprendemos a não reparar
nelas nas suas formas nômades e híbridas. Quais são as histórias que
elas carregam nas malas? O que nos dizem sobre as crenças de bem-
estar de nossa própria identidade?...3
Figura 1 - Ator Maciej Rozalski, Espetáculo “Erradicação”.
Lume teatro 2024. Foto: Alessandro Poeta Soave
É assim que inicia a sinopse do espetáculo “Erradicação”, que estreou no
Lume Teatro em maio de 2024, sob a direção da atriz-pesquisadora, amiga e
mestra Naomi Silman. Gostaria de expressar a minha gratidão pela sua amizade,
pela confiança e pelos meses de ensaios na sala-laboratório de Lume Teatro que
passei com ela. Além disso, gostaria de expressar minha gratidão à mestra, Ana
Cristina Colla (Lume teatro), que, durante as nossas conversas e práticas de pós-
3 Um tipo alternativo de notação é proposto no texto. O texto em itálico foi utilizado para documentar a
experiência individual do autor. Esse tipo de registro performativo da experiência tem sido utilizado por
diversos pesquisadores, como Ana Cristina Colla (2013) ou Eleonora Fabião (2010), para evidenciar a relação
entre a pesquisa científica e o processo criativo nas chamadas metodologias da pesquisa em arte.
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doutorado,4 mostrou-me o mundo da escrita acadêmica que é sensível e permite
o encontro de arte, experiência pessoal e pesquisa.
No seguinte texto, pretendo refletir sobre o caminho que me levou para a
realização da mencionada obra “Erradicação”, mas também analisar algumas
figuras retóricas que vivenciam as margens e fronteiras de escrita de si (de se
reescrever) e confluem com a errância da personagem do espetáculo. A obra
oscila entre os elementos biográficos do autor-errante, autoficção inspirada nos
passos do seu caminho fragmentado e erradicado entre as culturas e diferentes
estados sociais. Esse texto é constituído pelas memórias viajantes, os relatos de
desfragmentação e as estratégias de reescrita de si a partir da lógica dos cacos,
fragmentos e reconstituição da integridade entrelaçada pelo processo artístico e
biográfico. O central dessa escrita ocupa o existencial lugar de fala sem lugar.
Encontro nesse caminho os errantes, as personagens hibridas que oscilam nas
bordas e zonas fronteiriças das identidades confirmadas pelas suas raízes.
Pergunto-me sobre as ontologias, as epistemologias e as poéticas desses vários
lugares “entre”. Empresto o conceito de “entre lugar” de obra de Silviano Santiago
(2000, p.26):
Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a
submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre
a assimilação e a expressão - ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu
tempo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o ritual antropófago
da literatura latino-americana.
Como suas existências questionam os clássicos conceitos de centro,
periferia, linhas demarcadoras das diferenças e as suas noções de
pertencimento. Para os seres que habitam os lugares “entre” e buscam encontro
com si, dediquei meu espetáculo-vida e dedico a esta escrita. Quero nesse texto
transcrever as vivências, reencontrar as pessoas e os lugares, que permeiam nas
finas lâminas da autopercepção, sem atribuição de uma identidade específica.
...Pelourinho (chamado pelos moradores Pelô) é um bairro turístico,
antiga parte da cidade de Salvador da Bahia de todos os Santos.
4 Este texto foi escrito durante as aulas ministradas pela professora Ana Cristina Colla e pelo professor
Conrado Federici "Escrita cartográfica e performativa em jogo" na pós-graduação de Instituto de Artes e
Lume Teatro - cleo interdisciplinar de pesquisas teatrais da UNICAMP, . Gostaria de agradecer a ambos
os professores por abrirem para mim as portas para uma compreensão diferente da relação entre arte e
ciência.
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Antigamente foi criado como um bairro de nobreza. Com o tempo e
desenvolvimento da cidade no início do século XX, degradou seu status,
virando um lugar da pobreza. Ainda nos anos 1980, foi reconhecido
especialmente pelas casas da prostituição, carregando a marca de
perigo e desejo. No mesmo momento, Pelourinho sempre se encontrava
como centro dos encontros informais, boemias e o berço de vários
movimentos artísticos alternativos. Os subsequentes governos tentaram
gentrificar e “civilizar” o Pelourinho. Esses esforços resultaram em uma
estranha mistura, uma encruzilhada onde elegantes hotéis e boutiques
competem com ruas escuras, cheias de recantos e bares, em que,
numa forma única, se misturam os turistas, pobres, moradores de rua,
moradores do bairro, os artistas, os intelectuais e diversos agentes dos
negócios noturnos. Em 2012, após finalizar pós-doutorado realizado na
Universidade Federal da Bahia, decidi ficar no Brasil. De dia para noite,
fiquei sem emprego. O Pelourinho virou minha casa por muitos anos. Eu
morava nos becos desta cidade. Eu me apoiei em tudo o que pude.
Conheci e virei parte de outro avesso de Pelô. Este lugar foi testemunha
das minhas quedas. Nessas ruas, a consolidada identidade de
intelectual polonês no processo de pesquisa se quebrou em cacos. A
sensação de identidade firme se diluindo lentamente entre os não-
reconhecimentos, viradas bruscas de existência e entre-lugares de si.
Nessas ruas, cheguei, no entanto, para encontros inesperados de
esperança: reencontros com o mosaico de si colado com pedaços
dessa identidade em nova inesperada configuração. A vida brutalmente
desnudou um artista e pesquisador na sua ilusão identitária. E criou
outro, criou outra forma de vida e arte.
Figura 2 - Bar do Carmo, vista para Ladeira do Carmo.
Uma noite dessas, bem tarde da noite.5
5 Não tenho nenhuma fotografia particular do período que estou descrevendo. As fotos abaixo foram obtidas
em sites disponíveis na internet. Correspondem à atmosfera das memórias do autor. Acesso:
https://www.alamy.com/stock-photo-people-the-street-at-largo-de-pelourinho-salvador-bahia-brazil-31050316.html
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Mudando uma realidade para outra, me erradico e caio de paraquedas no
mundo dos outros
. Quais são os elementos desse complexo processo? O que
acontece com as raízes retiradas das terras e as árvores que me formaram?
Primeiro tudo parecia realmente um sonho (nem percebendo no seu conforto
um lado de pesadelo6). Mas quando o “carne-vale”7 acaba, chega a ressaca. Nos
olhares dos outros, começo perceber a mudança de status. Os detalhes da
diferença se revelam. Quem é essa estranha figura pendurada no meio de
Pelourinho depois do fim de carnaval? “Menino, o carnaval acabou. O que você
está ainda fazendo aqui?” Logo depois, chegaram as expectativas e projeções
recíprocas que não eu conseguia cumprir. Não sou mais observador com objetivo
de captar os dados, os objetos. Quem sou eu?
O silêncio. Estou sozinho num
grande e silencioso território “entre” quase aqui e nunca mais lá. O barco de
volta para casa se foi e eu fiquei à beira do porto.
...O velho mundo vira sombra. Algo que, lentamente e imperceptível, se
desencadeia do meu corpo e minha memória. Continuo um processo
desesperado de salvar os restos dos objetos e as práticas de cotidiano.
Começo a criar minha nova casa com os elementos, os fragmentos, as
similaridades e os entulhos dados e trocados com esses que me
encontram no caminho. Noção de entulho, os fragmentos salvos das
diferentes deslocações, os restos revelados pela maré baixa são as
metáforas principais desse processo. Criei uma espécie de jangada
colada das velhas e novas memórias, que me permite navegar pelos
mares cujas correntes subaquáticas não consigo reconhecer...
Comecei minha jornada no Brasil mais de treze anos. Em 2012, decidi, por
vários motivos existenciais, buscar meu outro centro e outras raízes. Nem
imaginava no início, o tempo atrás, a complexidade do processo de perder e
reconstituir sua própria identidade.
Sempre nesse caminho me acompanhava
uma efêmera sensação de incompletude, que até certo momento não sabia
nomear.
6 Tudo depende se a sua errância foi efeito de um processo forçado ou escolhido. O contexto circum-
Atlântico, como chama Joseph Roach (1996), carrega inúmeras narrativas de errância. A maioria delas foi
causada pelo perverso e devastador processo colonial e escravocrata. Outras contam as translocações de
fugitivos das guerras mundiais, emigrações e buscas de si. Entretanto todas elas se encontram no “caos-
mundo” das figuras de errância nômade que Edouard Glissant chama os “nômades circulares”. Essas
errâncias tem diferentes fontes e tenho consciência que os contextos delas também são diferentes.
Entretanto todas elas se encontram nos “entre-lugares”, contando em fluxo contínuo, uma pra outra, suas
histórias.
7 A palavra carnaval contém em sua etimologia um duplo sentido
carne-vale
festa de carne. Um
momento sensual e de êxtase, mas também momento devorador, um acontecimento sem regras onde o
sangue se mistura com o desejo de excesso.
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Sou um ator de teatro físico. Então, essa jornada sempre foi marcada por
elementos de experiência adquirida no processo de encontro com diversos
métodos, escolas e mestres da expressão corporal. Meu corpo e sua
gestualidade tornaram-se uma espécie de veículo transcultural. Nesse sentido, a
história individual virou também uma busca do método formal e a prática do
corpo em constante transformação. Talvez essa âncora corporal tenha virado
minha salvação. Contando desde minhas práticas na Polônia e passando pelos
diferentes grupos teatrais, encontrei muitos métodos e conceitos; muitas
práticas acolheram e transformaram meu corpo e meu modo de “fazer meu
corpo”. Mas preciso dizer que nunca foi uma experiência completa, uma técnica
afinada para seus últimos detalhes, transmitida por um mestre específico. Não
sei se é um símbolo dos tempos sem mestres? Sem completude das técnicas?
Ou simplesmente, a história individual não me liberou esse conforto de ser
completo numa técnica. Demorou um tempo para meu corpo entender que a
sensação de incompletude, que me acompanhava, foi estimulada pela
fragmentação nas experiências e conhecimentos, que foram incorporados e
erradicados dentro de mim pelas mudanças do lugar de viver, pelas culturas e
línguas diferentes e pela mudança continua das técnicas de atuação. Passei por
várias técnicas e métodos, mas nunca consegui aprofundar suficientemente
nenhuma delas. Nunca consegui virar o herdeiro de um específico conceito de
arte e vida. Mudanças foram tão drásticas que uma invisibilizava a outra.
Comecei até me denominar um momento como uma espécie de vira-lata. E esse
momento foi um dos momentos em que fiquei mais perdido e deslocado na
minha jornada
. Provavelmente para não enlouquecer, atribulado pela quantidade
dos entulhos das diferentes formas de ser, comecei colar uma gambiarra delas.
Enfrentei a pergunta - como aceitar e valorizar minha própria incompletude
como valor metodológico e existencial? Da perspectiva do tempo, não sei dizer
se foi um azar ou uma bênção. Vejo que essa história de perda de enraizamento
em método se encaixou simultaneamente com algumas crises de
representatividade e de integridade dos grandes métodos e centros artísticos.
Talvez essa história individual fique mais interessante nessa entrelaçada relação
da crise de si com a crise do método.
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...Pelourinho está situado nas colinas acima do antigo porto, hoje
chamado Comércio. O famoso Bar do Carmo” está localizado num
lugar específico do Pelourinho, numa represa entre duas colinas que
carregam pendurados, por todos os lados, os velhos cortiços. As ruas
mais altas do Pelourinho estão fantasticamente decoradas. Tem lojas
turísticas e caras, praças para as festas públicas, casas de samba e
elegantes pousadas coloniais. Por baixo dessas elegâncias coladas, se
rastejam as sombras, o labirinto das ruas que juntam Pelourinho e
Comércio. O “Bar do Carmo”: velho amigo das nossas perambulações
noturnas! Todo mundo, ao fim das contas, se encontrava aqui. Quando
as casas de festas, no iluminado Pelourinho, fechavam, quando as
festas de ruas acabavam, o último que nos restava para nos salvar era o
“Bar do Carmo”: os professores, os mendigos, os enlouquecidos poetas,
os drogados playboys da cidade alta, prostitutas, fumadores de crack,
desatentos amantes, os turistas procurando uma aventura entre os
perigos. Os significados e normas se misturavam nesse lugar de
verdadeiro carne-vale...
Figura 3 - Bar do Carmo, uma das noites dessas
Passei cinco anos na Escola de teatro físico polonês "Gardzienice". E essa
profunda e complexa experiência sempre foi uma espécie de base, um norteador
para as futuras experiências. Não posso e nunca negarei a profundidade das
experiências e uma sensação de habitar a casa ancestral que me acompanhou
por esse período. Deixei, entretanto, minha casa simbólica em pânico.
...Talvez
essa quebra do vaso de minha integralidade e um lento processo de colagem
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dos elementos se iniciou lá, nesse berço artístico...
O teatro físico revelou, nas
últimas décadas, uma profunda crise de abuso de poder. Os grupos do teatro
físico e as técnicas desenvolvidas por esses grupos foram criadas a partir do
paradigma da liberdade pessoal e resistência contra sistêmica das contraculturas
e reação para violência da Segunda Guerra Mundial e tirania do comunismo na
Europa Oriental. No entanto, a figura do mestre nesses grupos, em muitos casos,
se corrompeu. Nós, artistas de teatros físicos, presenciamos uma estranha
mistura dos saberes de arte de sensível e abuso desses poderes para os inflados
egos dos nossos guias. Presenciei os abusos da hierarquia absoluta do mestre da
comunidade de teatro “Gardzienice”.8 Não conseguia fechar os olhos para
variadas formas de violência e abuso de poder. Não podia, no entanto, aceitar
que as formas de arte do sensível precisassem ser canceladas junto com a figura
do mestre. Na época, não tinha força de enfrentar meu antigo mestre e nem
consciência da gravidade dessa contraditória situação. Fugi para o Brasil
buscando, na riqueza das culturas corporais afroatlânticas outra resposta.
Encontrei outro mestre, Augusto Omolu. Ele estava propondo uma fusão
fascinante de dança afro-moderna, simbologia dos Orixás e as técnicas de teatro
físico Odin Teatret. Comecei a me aproximar da técnica dele na Escola de Dança
da Fundação Cultural da Bahia e, indiretamente, dos métodos de atuação de
Odin Teatret. Conheci alguns antigos mestres de teatro físico e de dança: Jan
Ferslev de Odin, Mestre King de Pelourinho, Augusto Omolu, que juntava esses
dois mundos, salvo vocês! A proposta de Omolu me dava a chance de criar uma
nova síntese do teatro físico, mas sem necessidade de aguentar as patologias do
poder. E quando pareceu que encontrei outra casa, meu mestre foi brutalmente
assassinado.
Fiquei órfão de novo.
...Oh! Bar do Carmo”! Quantas vezes você me salvou na minha
embriaguez? Quantas vezes você segurou nas suas mesas os restos de
nós, agarrados às suas bordas como os náufragos da carnavalesca
flotilha de desfile do Pelourinho. Aqui amei, brinquei e repensei a mim
8 Nos últimos anos, muitas comunidades de teatro físico passaram por uma profunda crise identitária. As
estruturas hierárquicas dos mestres dos saberes que constituiu muitos teatros físicos revelou uma
armadilha: os mestres absolutos frequentemente ultrapassaram os limites de poder e cometeram durante
os anos uma serie dos abusos de diferentes maneiras. Esse tema necessita uma análise independente.
Nesse momento, posso apontar que esses teatros (isso foi também o caso de Gardzienice)
continuaram sua vivência durante muitos anos, misturando as práticas poderosas e transformadoras de
teatro físico e as práticas de abuso e violência aceitas em nome de um bem maior. Um estranho entrelaço
de liberdade e violento sufoco no fundo de coração.
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mesmo. E aqui caí nos piores momentos da desgraça. Quantos
morreram e renasceram aqui? Lembro alguns amigos que acabaram
sua vida nesse bar. Lembro esses que subiram nas mesas para levantar
o grito de liberdade. Tudo misturado, o bem se encontra com o mal, o
sagrado com a banalidade de sobrevivência, o medo com a esperança.
Mas o que dominava principalmente foi uma sensação de
indeterminação e de não atribuição...
Figura 4 - Ator Maciej Rozalski, Espetáculo “Erradicação”, 2024.
Foto: Alessandro Poeta Soave
Continuei na Bahia os estudos em dança e teatro. Trabalhei nesse período
em vários lugares. Tornei-me professor de inglês para garçons dos bares,
vigilância noturna da pousada, guia turístico. Mas o que verdadeiramente me
salvou foi a Escola de Dança FUNCEB. Todos os dias estava lá. Sem um centavo,
praticamente mendigando participação nas aulas de dança e nas outras técnicas.
Nessa época, recebi o apelido
gringo fugido
. E todos os dias recebia junto com
os alunos da escola um almoço gratuito. Essa, muitas vezes, foi a única
verdadeira refeição para mim. Colava a gambiarra de tudo que conhecia e
aprendia. No caminho encontrei outros/as mestres/as e outras técnicas. Treinei
treze anos capoeira angola com o amado mestre Poloca, do grupo Nzinga.
Nossos caminhos se desencadearam, mas ele até hoje é para mim uma das
maiores personalidades dessa caminhada. Na escola de dança UFBA, conheci o
cuidado sutil da dança somática e o contato improvisação. Procurava os cursos
de teatro e os workshops gratuitos fundados pelos festivais de arte. Todas elas
se juntam a uma história de treze anos de busca por um possível enraizamento.
A técnica reescreveu meu corpo.
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...O “Bar do Carmo” está situado na encruzilhada, na parte mais baixa do
Pelourinho. Quem quer descer da parte turística do Pelô e subir pela
ladeira do Carmo para o festejante distrito Santo Antonio, precisa
passar por essa encruzilhada. Quem caminha por lá, à noite, tenta, o
mais rápido possível, passar as partes mais escuras da rua. O lugar é
potencialmente perigoso. A rua que desce na direção do Comércio se
transforma, durante a noite, no lugar do tráfico. Ocupam também as
pessoas de rua pedindo ou exigindo dinheiro. Nesse ponto crítico, a
prefeitura colocou policiamento. Sempre ficam na esquina da
encruzilhada, garantindo a passagem dos turistas. Mas às vezes ele vai
embora. Nesses dias, ninguém passa por lá. As ruas ficam vazias e
silenciosas, nas suas sombras.
Mas o “Bar do Carmo” permanecia aberto. A regra não escrita doe lugar
era que ninguém tocava os clientes do bar. Até quando você
permanecia como um náufrago agarrado na mesa, você estava seguro.
E todo mundo, de vários lugares de Pelô, mais ou menos rápido, descia
para lá. Era como uma rede de pesca, o “Bar do Carmo” nos acolhia na
sua enorme barriga, quando fechavam os outros bares. Nesse tempo da
noite, as regras sociais se invertiam. Os sobreviventes tiravam suas
máscaras. Ficavam e se misturavam na embriaguez da estranha
liberdade do lugar “entre” as colinas do Pelô. Sua identidade se diluía. E
não foi devido à cachaça. Parecia que as velhas paredes soltavam as
memórias do passado. Você participava num ritual noturno de dança
das sombras. As sombras falavam com você entre os próximos copos
da cerveja barata. De alguma forma, você tocava nesses momentos
sombrios a própria pulsação da vida - em sua crua e cruel forma...
Figura 5 - A encruzilhada das ruas na frente do Bar do Carmo
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Por fim, chegaram as experiências que possibilitaram negociar a complexa
encruzilhada que tento descrever. Nove anos atrás, me tornei professor de artes
cênicas na Universidade Federal de Recôncavo da Bahia.
O complexo, libertador
e desafiador encontro com a terra das tradições afro-brasileiras
. A prática
pedagógica com os alunos do Recôncavo, o conhecimento dos mestres e das
mestras de cultura tradicional me moldaram e definiram os novos caminhos.
Essa raiz que plantei nas terras do Recôncavo deu, por fim, o fruto na minha
iniciação em candomblé. Conheci meu pai Gilson, dono da casa Ilê Axé Omorodé
Loni Omorodé Oluayê e encontrei o dono da minha cabeça, o orixá Logun Edé.
Por fim, encontrei minha casa artística Lume Teatro. que me possibilitou voltar
para o teatro físico. Nove anos de aprofundamento na vasta técnica do corpo
sensível, que propõe o Lume, me possibilitou simbolicamente voltar para casa e
redesenhar essa casa.
Essas experiências e práticas, hoje em dia, representam minha nova, outra e
colada com variáveis elementos, ontológica jangada em fluxo. Hoje, entendo que
nenhuma delas é suficiente, mas elas andam juntas e juntas criam uma
poderosa forma da vida. Negociam nas encruzilhadas e nos encontros
fronteiriços. É um lugar “entre”. Ele nunca é completo, mas seus fragmentos e
entulhos da vida criam alguma nova esfera na qual habito e tento entender
como uma casa em fluxo. Ela tem várias raízes que, rizomaticamente, se
entrelaçam em encontro com os outros. Até um momento interpretava esse
lugar como falta, incompletude. Hoje, quero propor a apologia dessa gambiarra
criada dos fragmentos.
...O lugar de encontro, meu “Bar do Carmo” saudades das suas velhas
paredes e as mesas do plástico embutidas nas pedras da memória.
Hoje em dia, entendo seus ensinamentos. Suas mesas/náufragos
acolhiam muitos e não diferenciavam nenhum de nós. aprendi a
dançar os passos da minha vida e como ela chegou para mim em toda
sua completude...
...Na manhã de hoje, passei três horas treinando na sala de Lume
Teatro. Quando estou sozinho na sala, caminho bastante. Circulo pela
sala. Reflito sobre esse ato repetitivo, quando retorno ao processo de
criação individual. Na improvisação, temas emergem no corpo, como as
linhas de escritura. As palavras soltas vibram e circulam pelos avessos
do corpo. Quando despertados por um ato de atenção e repetição
intensa ao corpo, eles/as começam a assumir formas reais e se
comunicar comigo (se inscrever). Às vezes, eles/as permanecem por um
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período limitado. Às vezes, exigem para permanecer mais tempo com
eles/as. A questão é como convidá-las a permanecer, evitando se
perder na paisagem solta das variadas escrituras...
Transatlântico volta para casa
O poeta e dramaturgo polonês Witold Gombrowicz viveu 25 anos na
Argentina. O fragmento da história desse artista, que quero aqui trazer, acontece
quando, depois deste longo período de errância, finalmente ele volta para casa.
Ele é convidado para uma bolsa financiada pela Fundação Ford, que decidiu
homenagear o escritor de renome mundial e trazê-lo de volta à Europa.
Gombrowicz tem na sua bagagem uma longa história de pobreza e lenta
caminhada para esse reconhecimento que finalmente aconteceu. Convido
Gombrowicz para essa escrita para refletir um momento sobre a experiência
dele que deu o impulso primário para o espetáculo “Erradicação”. Um curto
momento de deslize “entre lugares” na sua tão cuidadosamente construída
biografia.
Ele sai da Argentina e não tem previsão de retorno. O fragmento de seu
“Diário”, de 1963, é um testemunho deste percurso, uma forma de despedida e
de abertura para as novas perspectivas. É um registo do pensamento e dos
dilemas existenciais de um homem em processo de transformação, que está
ligado ao caminho rumo à esperada Europa. Parecia, portanto, que o texto
deveria ser um testemunho do triunfo. Um reconhecido escritor emigrante volta
para casa. Afinal, ele lutou por esse reconhecimento durante grande parte da sua
vida! No entanto, quando Gombrowicz embarca no navio, ele fica apavorado. O
texto testemunha a ansiedade e o conflito, uma luta com o próprio conceito de
consciência, identidade e origem.
Senti uma necessidade absolutamente tirânica de chegar a este
passado, de captá-lo, aqui, no barulho e na agitação do mar, na
inquietação das águas, na vasta e ensurdecedora vastidão, com a
minha partida no Atlântico - e se eu realmente fosse apenas um
murmúrio de caos, como estão essas ondas? Uma coisa ficou clara para
mim: não era nem uma questão de consciência, era apenas uma
questão de paixão (Gombrowicz, 2013).
No fragmento dos “Diários”, dedicado à viagem, o autor praticamente não se
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detém nas questões políticas e nos planos relacionados com a sua volta para
Europa. Ele vagueia pelo convés do navio, analisando sua identidade em estado
de evaporação nas águas Atlânticas. A poética de “O Diário” tem caráter de
tratado filosófico mesclado com (caraterísticas para escrita dele) formas
grotescas e descrições surreais.
Embriagado com o convés escorregando sob meus pés em todas as
direções, agarrado à grade, cambaleando, confuso, estupefato pelo
vento - ao meu redor rostos verdes, olhares monótonos, figuras
agachadas - eu me afasto do lado, fazendo milagres de equilíbrio, eu
vou... de repente olho para algo caído ali na tábua do convés, algo
pequeno. O olho humano. Estava vazio, exceto por um marinheiro
mascando chiclete a caminho do convés superior. Eu perguntei a ele.
- De quem é esse olho? (Gombrowicz, 2013).
Ele compara sua identidade a uma máscara, uma fantasia. "América. O que é
esta América?” ele pergunta. E o que mais o assusta é que não encontra a
resposta, nem aquela outra identidade original de antes da emigração. Por
ocasião do seu grande regresso, terá de vestir uma máscara diferente, a máscara
de um grande escritor, de um emigrante, de um intelectual europeu que pode
finalmente regressar. Mas voltar para quê? Voltar com o quê?
Com o que você está voltando? Quem é você agora?... e eu responderei
com um gesto tímido de mãos vazias, um encolher de ombros... e talvez
uma espécie de bocejo: 'ah, não sei, me deixe em paz!' O balanço, o
vento, o barulho, o enorme amontoado e confusão que se funde no
horizonte com o céu imóvel, imortalizando a fluidez, e ao longe a costa
americana surge à esquerda, como uma introdução a uma memória.
Não posso dar uma resposta diferente? Argentina! Argentina! O que
Argentina? E eu... o que é agora, sou eu? (Gombrowicz, 2013).
Gombrowicz constantemente se faz essa pergunta. O que está acontecendo
com Gombrowicz? Parece tratar-se de algo mais do que os dilemas de um
emigrante perdido num país estrangeiro que regressa ao ponto de partida
desejado/original. Para compreender esta perda, seria necessário atravessar o
Atlântico. Perder-se e encontrar-se, seguindo Gombrowicz, na realidade do
mundo pós-colonial, em que a questão da identidade é uma das mais incertas e,
ao mesmo tempo, a mais crucial. Seria importante para esta pesquisa seguir os
vestígios de biografias, reportagens, fotografias antigas e objetos pertencentes a
artistas e escritores que vivem e se movimentam nas realidades da chamada
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Maciej Rozalski
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emigração nas Américas Atlânticas. Quando lemos os testemunhos de Witold
Gombrowicz, Julian Tuwim, Sławomir Mrożek e muitos outros, ficamos surpresos
ao encontrar questões semelhantes e dilemas semelhantes, que estão
claramente desligados do discurso romântico do desejo de emigração. A terra
dos ancestrais parece cada vez mais irreal, distante e bidimensional. Permanece
como uma figura de saudade, mas é meio secundária. frustração, incerteza,
perda de identidade, mas também caos, intoxicação e intensidade de
experiência. As memórias viram as formas grotescas, superficiais e
desordenadas. Trago essa experiência de Gombrowicz como uma das mais
significativas, alguma forma explicando para mim mesmo meu estado de
desintegração e busca de nova ordem. Como lembrar? Como não se desintegrar
no balbucio de caos de oceano?
...Cozinho meu corpo. Meu corpo está esquentando. Memória crua se
diluí em algas de maré. Somente ao atingir uma temperatura certa, as
qualidades e os significados começam a se manifestar. Começam a
conversar e a responder. O treinamento físico aumenta o calor do meu
corpo. Experimento imagens, formas e as palavras. Na improvisação,
rasgo e uno fragmentos de algo estranho, brutal e disforme. Um
monstro de se esquecer. Às vezes, sinto que, se algo não tomar forma,
eu mesmo estarei devorado. Encontro um sentimento de medo, mas
também de prazer e lascívia nesse risco. Para evitar ser comido, apego-
me ao método. Eu sigo o ritual de repetição para continuar a ouvir as
vozes escondidas sob a superfície da pele. Na carne crua.
Às vezes, acredito que o trabalho na sala de treinamento seja uma
forma de lutar contra o avanço do tempo e o caos das narrativas.
Procuro maneiras de manter os temas, inspirações e memórias que vivi
por mais tempo. Pode ser que, com o decorrer do tempo, eles tenham
se tornado companheiros em uma jornada criativa. O treinamento físico
requer pausas. O corpo tem seus limites. Além disso, em determinados
momentos, os exercícios que você realiza deixam de ser atuais. Nesses
períodos de transição, surgem possíveis micro-crises no trabalho.
Tornam-se possíveis momentos de perda de contato com o material de
treinamento. Em tempos de crise, eu volto a usar a estratégia de
circular e reescrever. Tudo para não esquecer. Este é um momento de
diálogo e de síntese da experiência. reflexão, mas também
possibilidade de sintetizar esses encontros afetivos, dando-lhes o
devido tempo e buscando conexões com outros elementos do trabalho.
Para mim, circular é uma forma ética de encontro entre o sensível e as
formas de se transcrever...
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Erradicação espetáculo “entre”
“Erradicação” foi criado numa forma de teatro-performance solo. A
dramaturgia funciona de forma aberta à interação com a imaginação do público.
Naomi Silman9, diretora de espetáculo, repetia todo tempo “Não me interessa
mais a ilusão, quero chegar para o corpo do outro!” É uma autoficção baseada
nas minhas próprias memórias de artista polonês e naturalizado brasileiro,
perdido e reencontrado na América do Sul. Sob a direção de Naomi, permeio, no
aprofundamento do “lugar entre”, as diferentes identidades e máscaras do
cotidiano. A primeira inspiração para o espetáculo foi a leitura de texto de
Gombrowicz. Fascinou-me a situação de uma pessoa em uma transformação
radical da sua identidade e que o leva à beira de esquecer completamente de si.
É um ritual, uma dança de se lembrar, mas não é isso: Gombrowicz parece
travado no tempo e espaço. Ele não vai mais para a Europa. No diário de 1963,
ele está eternamente parado no lugar “entre” os conceitos, planos e pontos de
chegada. Lembrou-me, de alguma forma, minhas eternas horas no “Bar do
Carmo”. Fez-me perguntar: o que nossas próprias memórias contêm? Elementos
inúteis, fragmentos de memórias e histórias inacabadas criam a maioria das
provisórias identidades sociais.
O espetáculo “Erradicação” segue mesclando, de uma forma grotesca10 e
nostálgica, uma piada e um tremor existencial. Isso pegamos de Gombrowicz,
mas não é uma encenação. Chegamos a esse efêmero travado por outros
caminhos. Além do tempo e do espaço, uma eterna, grotesca e nostálgica
viagem de si. Enfrentamos o conceito de integridade da memória, perguntando-
nos – o que permanece como as imagens mais importantes de si?
9 Naomi Silman - Atriz-pesquisadora colaboradora do LUME Teatro grupo brasileiro de referência na
pesquisa da arte de ator e vencedor do Prêmio Shell 2013 em pesquisa continuada - palhaça e diretora,
nascida em Londres e radicada no Brasil desde 1997.
10 O conceito de grotesco, interpreto aqui na sua contradição entre risada e algo ridículo. Uma mistura
contraditória possibilita incluir as formas contraditórias como beleza e feiura, engraçado e triste ou trágico
e cômico, em um fenômeno só.
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Figura 6 - Ator Maciej Rozalski, Espetáculo “Erradicação”, 2024.
Foto: Alessandro Poeta Soave
A proposta de espetáculo é mostrar os padrões e as máscaras sociais como
elementos inventados que constroem os seres comuns da sociedade e
normalizam atitudes superficiais, violência e preconceitos. O personagem
principal do espetáculo é um homem comum. Apresenta-se de forma cômica,
mas também perturbadora. A partir dos objetos inúteis retirados de mala de
viajem e falas inventadas, começa construir seu estado cênico. Numa forma
grotesca, repete nesse processo os padrões e preconceitos sociais. Mistura as
risadas com as formas violentas de ser. As ações dele mostram a
superficialidade dos padrões sociais.
Permeio nessa peça na perspectiva de ser sempre longe da casa, e nunca de
verdade chegar para outro lugar. O que resta nessa perda e encontro da
memória pessoal em relação ao desencontro, permanência e à aculturação em
processo de constante deslocamento?
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Figura 7 - Ator Maciej Rozalski, Espetáculo “Erradicação”, 2024.
Foto: Alessandro Poeta Soave
Nesse "lugar entre" acredito que chegamos em outro lugar diferente daquele
de Gombrowicz. Ele foge para o grotesco para não enfrentar um ser relativo. É
uma esfera híbrida que mexe e questiona os significados do pertencimento,
construído a partir das fronteiras e das raízes verticais. O que contem nossas
próprias memórias? Os elementos inúteis, os fragmentos de memórias e
histórias inacabadas constituem nossas identidades pela superfície. Mas o que
permanece nesse “balbucio de caos”? O que constitui as mais básicas imagens
de existência, quando você tira todas as máscaras de si? Uma pergunta perigosa
porque traz o risco de se afundar nela. Em longo processo de laboratório físico,
começamos a dançar esses cacos. Os fragmentos, as fotografias, as imagens que
começaram aparecer desvinculadas de uma forma linear. Por que a pessoa com
Alzheimer até o fim lembra algumas imagens? Por que lembra como voltar para
casa da infância? O gosto dos sorvetes ou as balinhas de cereja?
Largamos toda ordem e começamos a dançar e mergulhar nas imagens. A
fotografia da minha mãe na praia, um cheiro do mar, bala de cereja que minha
avó chupava, uma memória de trem para a cidade de infância. Mais e mais fundo
com único gancho das efêmeras imagens. Nessa viajem acompanha-o uma
fotografia da mãe do artista. Desde o início, a trágica e autoficcional história da
mãe está presente no palco e, de forma sutil, mas definida, toma posse da ação
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cênica. A personagem da mãe começa a interferir no superficial e grosso
imaginário do viajante, levando-o à queda das máscaras que denominam
socialmente esse homem. Nesse processo, o espectador testemunha a crise de
amor, silenciamento e a morte da mãe como a verdadeira história reprimida em
sua consciência. A aceitação dessa tragédia leva a um ritual de erradicação das
máscaras e preconceitos da personagem. Os rastros da memória o levam à
escuta e à reconciliação com o reprimido lado afetivo de sua própria natureza. A
história da busca pessoal e autoficional de personagem cênica conta, dessa
maneira, a busca humana de reconciliação com nosso lado afetivo.
Figura 8 - Ator Maciej Rozalski, Espetáculo “Erradicação”, 2024.
Foto: Alessandro Poeta Soave
E um dia, a mãe respondeu. Ela chegou para meu corpo pela desapegada
pose de uma jovem apaixonada na praia do Mar Báltico. Lembro essa primeira
sensação aguda e cristalina. Uma dança de mãe surgiu depois de dias de ensaios.
Parece que se soltou das moléculas da minha carne. E desde o primeiro
momento dançei numa forma firme, delicada e nostálgica. Parece cantar pelas
enormes espacialidades do tempo-espaço. E dançei desde a primeira vez no
mesmo jeito. Nunca mudamos nada dessa dança. Foi a dança dela que se
inscreveu no corpo, chegando miúda e feliz da velha fotografia na praia. O resto
do espetáculo é um enorme preparativo e comentário para encontrar ela e
dançar com ela. Pode ser pouco? Quase nada. Mas para nós, foi um momento
mais importante. Nesse risco de se esquecer, não encontrar nada, virar “balbucio
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de caos” encontramos um gesto de amor.
Figura 9 - Ator Maciej Rozalski, Espetáculo “Erradicação”, 2024.
Foto: Alessandro Poeta Soave
A identidade da água
Um jovem rapaz fantasmático, cuja deambulação traçava infatigável
uma fronteira, invisível como fluxo noturno, entre a água e a terra. O
apelidamos de um nome qualquer, pois ele não responde a nenhum
nome dado. Certa manhã, ele se pôs em movimento e começou a
caminhar pela costa. Ele se recusou a falar, não reconhecendo
nenhuma língua possível” (Glissant, 2021, p.151).
...É possível traduzir completamente para outra cultura? Pode um
residente de uma cultura compreender verdadeiramente o Outro?
Posso me tornar um nativo por escolha própria ou fico sempre
suspenso no meio do caminho, nem em mim mesmo, nem nos outros?
E finalmente, o que significa fazer parte de uma cultura?...
Sigo eu, surfando nessa insegura jangada. E sigo Gombrowicz perdido nos
fragmentos e máscaras da própria existência. Quem chegou com outro impulso e
inesperada ajuda foi o escritor, dramaturgo e filósofo martinicano Edouard
Glissant. Foi um dos muitos pensadores que poderiam ser descritos como
"Atlântico". Ele tenta caracterizar a experiência comum de não inserção do
território e narrativas das afro-diásporas do mundo pós-colonial Atlântico.
“Salve, velho oceano” Você conserva em tuas cristas o barco surdo de
nossos nascimentos, teus abismos são o nosso próprio inconsciente,
arados por memórias efêmeras. [...] Não somente conhecimento
particular, apetite, sofrimento e gozo de um povo particular, mas o
conhecimento do Todo que aumenta com a frequentação do abismo e
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que no Todo libera o saber da Relação (Glissant, 2021, .31).
Glissant não concorda com as categorias poéticas e estéticas impostas pelo
pensamento ocidental. Postula “(Re)imaginar o mundo” e categorias como
território, pertencimento e identidade. O artista postula um novo tipo de
poeticidade baseada na experiência diaspórica de um mundo em constante
movimento e transformação. O Atlântico é um território marcado por uma densa
rede de símbolos e artefatos do passado. A primeira e mais importante delas é a
cicatriz não curada da escravidão. Mas a memória da colonialidade encontra
inúmeras outras narrativas baseadas na experiência de deslocamento constante.
Um dos pontos mais importantes da sua proposta ampla e poética de “re-
imaginar” a realidade é basear o conceito de identidade na “poética da Relação”.
Glissant diz que a identidade baseada na experiência de enraizamento profundo
é e sempre foi uma ilusão. Tomando emprestado a terminologia de Deleuze, o
conceito de rizoma propõe a identificação e definição de fenômenos culturais a
partir da perspectiva dos movimentos diaspóricos. A experiência de perder as
raízes encontra nesta experiência Atlântica um fenômeno que Glissant chama de
“continuidade na descontinuidade” e outro pensador afro-atlântico, Paul Gilroy
(2001), de “continuidade em mudança” (
changing sameness
). Ambos os
pensadores procuram um modelo de identidade que se afaste do conceito de
essencialidade, mas que não caia apenas no relativismo. Glissant experimenta a
autenticidade e profundidade do que chama com letra maiúscula de
“Relacionamento”. Esta identidade é fragmentada, mas também sempre viva e
aberta a experiências de encontro. Glissant no primeiro capítulo de sua “Poética
da Relação” fala sobre dois tipos de nômades um nômade marcado por um
ponto de destino (narrativas de conquista e dominação) e um nômade circulante
(caracterizado pelo deslocamento como base da identidade).
Gombrowicz não viaja a partir da lógica "de ponto A para ponto B"
enquanto navega no transatlântico. Seu diário o mostra no limbo. Ele permanece
a bordo deste navio, uma figura de identidade nômade que não tem como voltar
para casa. O autor compara o mar com a sua própria identidade, dissolve-se
como gotas de água e determina a relação do seu corpo com o mar. “... e
realmente, eu deveria ser apenas um jargão de caos, como essas ondas?” E
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parece que Glissant responde para essa inquietação.
Assim, o desenraizamento pode conduzir à identidade, o exílio pode se
revelar proveitoso, quando são vividos não como uma expansão de
território (um nomadismo em flecha), mas como uma busca pelo Outro
(por nomadismo circular). O imaginário de totalidade permite esses
desvios... (Glissant, 2021, p.31).
O contexto principal do referido fragmento dos “Diários” é o simbolismo e a
experiência do mar, sendo o contexto e a metáfora deste tratado existencial
ontológico. “O Diário” é um testemunho de viagem e deslocamento, não apenas
uma análise do destino, onde a viagem é apenas um desconforto momentâneo.
A água e as viagens através da água descrevem um modelo de situação
existencial tanto no fragmento da obra de Gombrowicz como no conceito de
Glissant. A água é trazida para cá em um contexto de movimento constante. Não
são apenas a mudança e o não-ajustamento que são importantes aqui. Isto é
mais do que apenas outra versão do relativismo. O “nômade circulante” retorna a
situações e encontros específicos. Ele aprende a poética do encontro
. As
imagens, os cheiros, as sensações, os rostos e os gestos formam uma identidade
que acompanha o ritmo da vazante e do fluxo do ocean
o. A memória é sempre
fragmentária e íntima, mas para Glissant é sempre uma viagem - um elemento,
um detalhe desnecessário, a cor de um cartaz antigo na parede, são gatilhos que
nos fazem recuar no tempo. Alcançar a memória guardada pelo corpo da água e
a identidade da água não se consegue desenterrando documentos antigos do
arquivo, mas visitando antigos pontos de deslocamento nômade em um
movimento espiral. Tentar se enquadrar nas linguagens dos outros, aprender um
novo corpo, desaprender o antigo, escapar do tumulto, desaparecer entre outros
corpos - essas são estratégias de autoidentificação nômade. O ponto central da
prática existencial assim entendida é a descoberta da identidade fluida no nível
da comunicação corporal. Os processos de desenraizamento e de enculturação
ocorrem aqui principalmente ao nível do corpo. Todo ato de comunicação é
superficial se não toca nas memórias íntimas, na visão subjetiva de um corpo em
constante transformação. O processo criativo envolve palavras, imagens e ações
corporais.
O pensamento errante não é apolítico nem antinomiano em relação à
procura de identidade, que em última análise nada mais é do que a
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procura de liberdade num tempo e espaço específicos. Se ele se opõe à
intolerância territorial com base no conceito de uma raiz específica de
identidade [...], é porque no conceito da Poética Relacional aquele que
está em constante movimento e transformação não é mais um viajante,
descobridor ou conquistador, ele tenta compreender o mundo em sua
totalidade. Ele busca sabendo que essa totalidade nunca estará
disponível para ele. É disso que se trata a beleza fugaz (Glissant, 2021,
p.31).
Para Glissant, não a cultura em torno do Atlântico (formulação de Joseph
Rouch no livro “Cidades da Morte”), mas a cultura contemporânea, em geral, tem
um carácter rizomático, não é estática, está sempre no meio, negociando vários
conceitos de gênero, raça e normatividade simbólica. Para Glissant, o
enraizamento é uma ilusão, congelando-se numa experiência específica, num
território específico. Ele considera a construção de uma identidade baseada em
raízes essenciais num contexto geográfico e histórico específico como uma
ilusão do pensamento eurocêntrico. Ele chama os processos de movimento, que
envolvem ir de um ponto a outro, de “nomadismo invasivo”, em oposição ao
nomadismo circulante. Ele considera esta estratégia tão perigosa quanto a ilusão
de uma raiz vertical de identidade, justificando qualquer tipo de invasão baseada
na crença na superioridade da própria identidade sobre a outra. A mesma crítica
se aplica ao conceito romântico de emigrante, para quem a plenitude da
existência se realiza no regresso à terra dos antepassados, e o local de exílio é
apenas uma paragem temporária e menos valiosa.
Nesse sentido, o conceito de Glissant impulsionou também o espetáculo
“Erradicação”. Precisa arriscar para perceber e enxergar a “beleza fugaz de
Totalidade” que propõe Glissant. O espetáculo mostra a perca dos restos que me
prenderam na identidade construída a partir de raiz solida. O início desse
espetáculo começou de verdade surgir nas desgastadas mesas do “Bar do
Carmo”. Não sabia que nesse doloroso e embriagado processo surge nova
identidade. Encontro-me numa forma simbólica com velho Gombrowicz se
transformando nas gotas da água da brisa de oceano. A forma mutável emergiu
nos dois casos de encontros, translocações e processos de migração. A figura
principal é um nômade cuja identidade é determinada pelo movimento de
circulação e retorno. Nesta jornada, os pontos de chegada são participantes
iguais na relação dialógica. Para Glissant, o deslocamento nômade tem uma
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identidade própria. Expressa-se em práticas de viagem, translocações e retornos
a pontos fixos de viagem. Imagens e memórias de nômades aparecem como o
impulso. O impulso para nós foi um amor guardado na velha fotografia, guardado
nas espacialidades do tempo.
...A noite que talvez mais tenha permanecido para mim das várias
vividas no “Bar do Carmo” foi noite de miss rainha trans. Foi quatro
horas da manhã, quando, sentando com os companheiros da minha
sonambúlica viagem, percebemos um milagre da natureza com todo
seu brilho da existência. Pelas portas do bar entrou uma mulher
demasiadamente bonita. Maquiagem forte. Uma saia longa costurada de
lantejoulas brilhantes. O decote fantasiado com enormes plumas dos
pássaros coloridos. Mas o que ficou mais comigo foi atitude e postura
de corpo emanando a beleza. Parece que velho bar se transformou para
um segundo para pedaço de paraíso. Nos peitos, uma mulher teve
pendurada uma faixa com a inscrição “Miss trans 2014”. Mulher, num
jeito de rainha, se aproximou de bar. Pediu uma cachaça, bebeu e saiu
como efêmera fantasma. O que ficou foi uma “beleza fugaz” no meu
coração. Depois fiquei sabendo que é um dos rituais da noite. Miss trans
cada ano toma posse de seu reino. No cada bar de Pelo bebe uma
cachaça para mostrar sua beleza para nos pequenos embutidos nas
mesas náufragos do Bar do Carmo...
Figura 10 - Espetáculo Erradicação, 2024. Foto: Alessandro Poeta Soave
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Referencias
COLLA, Ana Cristina.
Caminhante, Não caminhos. rastros
. São Paulo:
Perspectiva, 2013.
FABIÃO, Eleonora. Corpo cênico, estado cênico.
Revista Contrapontos
, Vol. 10 -
n.3 - p. 321-326 / set-dez 2010.
GILROY, Paul.
O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência
. São Paulo, Rio
de Janeiro, 34/Universidade Cândido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiáticos,
2001.
GLISSANT, Edouard.
Poética da Relação
. Trad. Marcela Vieira, Eduardo Jorge de
Oliveira, Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2021.
GOMBROWICZ, Witold,
“Dziennik 1961-1963”, em „Dziennik 1953-1969
wyd.
Wydawnictwo Literackie, Warszawa, 2013.
SANTIAGO, Silviano.
Uma leitura nos trópicos
. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
ROACH, Joseph.
Cities of the Dead. Circum-Atlantic Performance
. New York:
Columbia University Press, 1996.
Recebido em: 20/09/2024
Aprovado em: 23/11/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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