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Ancestralidade como princípio filosófico de uma
cena encruzilhada: processo criativo do espetáculo
Sobretudo Amor
Monica Pereira de Santana
Para citar este artigo:
SANTANA, Monica Pereira de. Ancestralidade como
princípio filosófico de uma cena encruzilhada: processo
criativo do espetáculo
Sobretudo Amor
.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 4,
n. 53, dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e127
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processo criativo do espetáculo
Sobretudo Amor
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Florianópolis, v.4, n.53, p.1-19, dez. 2024
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Ancestralidade como princípio filosófico de uma cena encruzilhada1: processo criativo do
espetáculo
Sobretudo Amor
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Monica Pereira de Santana3
Resumo
O artigo discute a noção de ancestralidade como princípio filosófico intrínseco à
performance negra brasileira, sem com isso afastar-se da dimensão de uma cena
política e contemporânea. A artista-pesquisadora parte do processo criativo de seu solo
autoral
Sobretudo Amor
, no qual a dimensão de vivência prática e filosófica com a
ancestralidade norteou o processo criativo e ampliou suas possibilidades de leitura. A
ancestralidade ancorada nas dimensões de desterritorialização e reterritorialização são
proposições da artista e reflexões povoadas nesta pesquisa, que foi desenvolvida no
âmbito do Doutorado em Artes Cênicas pelo PPGAC-UFBA.
Palavras-chave:
Ancestralidade. Performance negra. Processos criativos.
Ancestrality as a Philosophical Principle of an Interwoven Scene: The Creative Process of
the Performance
Sobretudo Amor
Abstract
The article discusses the notion of ancestry as a philosophical principle intrinsic to black
Brazilian performance, without detaching itself from the dimension of a political and
contemporary scene. The artist-researcher starts from the creative process of her solo
Sobretudo Amo
r, in which the dimension of practical and philosophical experience with
ancestrality guided the creative process and broadened its reading possibilities. Ancestry
anchored in the dimensions of deterritorialization and reterritorialization are the artist's
propositions and reflections populated in this research, which was developed as part of
the Doctorate in Performing Arts at PPGAC-UFBA.
Keywords
: Ancestrality. Black performance. Creative processes.
Ancestralidad como principio filosófico de una escena encrucijada: proceso creativo del
espectáculo
Sobretudo Amor
Resumen
El artículo discute la noción de ancestralidad como principio filosófico intrínseco a la
performance negra brasileña, sin desligarse de la dimensión de una escena política y
contemporánea. La artista-investigadora parte del proceso creativo de su solo
Sobretudo Amor
, en el que la dimensión de la experiencia práctica y filosófica con la
ancestralidad orientó el proceso creativo y amplió sus posibilidades de lectura.
Ancestralidad anclada en las dimensiones de desterritorialización y reterritorialización
son las proposiciones y reflexiones de la artista pobladas en esta investigación,
desarrollada en el ámbito del Doctorado en Artes Escénicas del PPGAC-UFBA.
Palabras clave
: Ancestralidad. Performance negra. Procesos creativos.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Alex Sandro Neres Simões. Bacharelado
em Letras Vernáculas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
2 Este artigo resulta em 63% de minha tese denominada “Mulheres negras: (auto)-(re)invenções devires e
criação de novos discursos de si nos corpos de criadoras negras”. Defendida no Programa de pós-graduação
em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), sob orientação de Cassia Lopes, em 2021.
3 Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestrado em Artes Cênicas pela
UFBA. Graduação em Jornalismo pela UFBA. falecommonicasantana@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/4153826741380831 https://orcid.org/0000-0002-1140-7071
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Como artista-pesquisadora e dramaturga, teço neste artigo algumas
reflexões a partir do processo do solo autoral Sobretudo Amor4, criado em 2017 e
encenado até 2021, no qual assumi diferentes camadas de autoria e pautando, ao
longo de seu desenvolvimento, a construção a partir do princípio filosófico africano
da Ancestralidade. Interessa aqui refletir as estratégias encontradas para permitir-
se pautar a criação artística por esse conceito, bem como de que maneiras essa
busca filosófica implica também em aberturas e conexões plurais ao longo do
desenvolvimento da obra. Ainda nas primeiras linhas deste artigo, é importante
demarcar em que horizonte a noção de ancestralidade se apresenta como uma
perspectiva filosófica e como esses processos criativos estiveram ancorados nela
bem como, de que maneira essa noção é cara em amplo contexto da
performance negra na diáspora, especialmente no contexto cultural brasileiro e
nas artes contemporâneas.
Para essa tarefa, é valioso citar Leda Maria Martins, que nos diz que “os povos
das diásporas africanas herdam essa percepção de que o mundo contém a
sacralidade da existência e dos seres diversos que o compõem, pois em tudo vibra
a energia vital e a força do axé” (Martins, 2022, p. 56). A autora nos afirma que a
noção de sagrado não se distingue da noção de natureza, tampouco das
dimensões de pessoa, coletividade, mundo, cosmos. Não se faz adesão a uma
perspectiva ocidental antropocêntrica, na qual o homem domina a natureza por
meio da razão, submetendo o entorno à sua exploração.
Martins sinaliza que a ancestralidade estrutura a cosmopercepção negro-
africana, bem como todo o pensamento que emerge dessa matriz filosófica,
impactando nos processos e práticas culturais. Nesse sentido, o fazer artístico,
quando se ancora nessas bases, tem na ancestralidade uma força que movimenta
o ato criativo ainda que de maneira híbrida, também cultivando direta relação
com outras epistemologias.
4 A íntegra do espetáculo está disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=8ZfZI7FXXWE
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O intelectual Eduardo Oliveira explica que a “ancestralidade, aqui, é
empregada como uma categoria analítica e, por isso mesmo, converte-se em
conceito-chave para compreender uma epistemologia que interpreta seu próprio
regime de significados a partir do território que produz seus signos de cultura”
(Oliveira, 2009, p.3). Para Oliveira, a ancestralidade é uma epistemologia africana:
Protagoniza a construção histórico-cultural do negro no Brasil e gesta,
ademais, um novo projeto sociopolítico fundamentado nos princípios da
inclusão social, no respeito às diferenças, na convivência sustentável do
Homem com o Meio-Ambiente, no respeito à experiência dos mais
velhos, na complementação dos gêneros, na diversidade, na resolução
dos conflitos, na vida comunitária entre outros. Tributária da experiência
tradicional africana, a ancestralidade converte-se em categoria analítica
para interpretar as várias esferas da vida do negro brasileiro (Oliveira,
2009, p. 4)
Ao pensar a ancestralidade como uma categoria analítica, também como um
vetor no processo de criação, pautando os modos de fazer e desenvolver a obra
artística, a perspectiva se desloca de um lugar de tematizar esse conceito. Colocá-
la em camadas explícitas de referência ou citação, mas como um valor
estruturante da obra artística – de maneira infiltrada na concepção das obras.
Para o processo criativo sobre o qual me debruço neste arquivo, é relevante
o diálogo com o pensamento da estudiosa mexicana Diana Taylor, que, em sua
obra
El Archivo
e
El Repertório
, considera que o processo colonizador das
Américas consistiu em desacreditar as formas autóctones de preservar e
comunicar a compreensão da história. A autora parte dos saberes dos povos
originários, que também guarda na noção de ancestralidade um fundamento de
seu modo de estar no mundo. O que Taylor enuncia permitiu-me compreender
que as práticas dos povos originários de territórios como Salvador, onde nasci,
cresci e sigo produzindo e pesquisando, foram aplacadas, apagadas e seguem
ausentes.
Se os sistemas corporalizados de memória foram desqualificados por não se
ancorarem em modos de escrita aceitos pelo Ocidente. Assim, não seria
exclusivamente por meio da escrita e de uma estrutura lógica que essa memória
pode se soerguer, ser acessada. A própria noção de ancestralidade pode ser uma
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chave de conhecimento, rompendo com noções lineares de temporalidade e de
espaço.
Cabe retornar a Leda Maria Martins, que nos afirma:
[...] o princípio filosófico da ancestralidade é motriz do corpo
individualizado, do corpo coletivo e do
corpus
cultural, de todo o
pensamento sobre a condição humana, de toda a plumagem ética e
estética, de toda a produção de conhecimento, em todos os âmbitos em
que a mesma acontece, dos mais técnicos aos mais transcendentais ou
rotineiros” (Martins, p. 57, 2022).
Essa perspectiva de trânsito entre individual, coletivo e cultural indissociáveis
no modo como a ancestralidade estruturou o pensamento e a criação das duas
obras artísticas, que serão revisitadas neste artigo. A historiadora Beatriz do
Nascimento5 forja o conceito de corpo-quilombo, compreendendo o corpo negro
como lugar onde a memória se alicerça, também onde ela se reinventa na
ausência das informações, das materialidades e da porosidade que o epistemicídio
colonial proporcionou. O corpo é quilombo por agrupar além de si, a coesão grupal,
o passado comum, as estratégias de resistência e os planos de fuga.
Dramaturgia-corpo-alimento: Sobretudo Amor
Em 2017, desenvolvi o processo de pesquisa artística para a criação do
espetáculo
Sobretudo Amor
, entrelaçado com um projeto maior intitulado
Cartografando Afetos. A obra teve como primeiro movimento a realização de
entrevistas com mulheres negras sobre dimensões de suas vidas subjetivas e
redes de afetos: percepção de si, relações, família, espiritualidade. Dessa série de
entrevistas, realizadas entre fevereiro e março de 2017, surgiu um mapeamento de
imagens que digeri em forma de dramaturgia, também dialogando com obras
literárias, especialmente
O Livro do Desassossego
, de Fernando Pessoa, bebendo
na forma da prosa poética, como uma estratégia discursiva para o texto e na
Crítica
da Razão Negra
, de Achille Mbembe, amparando nas discussões sobre a
colonização na dimensão do inconsciente e da linguagem. A intencionalidade
5 O pensamento de Beatriz Nascimento se encontra formulado no roteiro e na narração em off do
documentário
Orí
, com direção de Raquel Gerber. Neste artigo, empregamos como referência para acessar
os conceitos construídos pela pensadora, trechos do livro
Ôrí e memória
: o pensamento de Beatriz
Nascimento. In:
Sankofa
. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana. Ano XIII, NºXXIII,
abril/2020, do estudioso Rodrigo Ferreira dos Reis.
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primeira da obra era criar uma cena que levasse o espectador para dentro de uma
casa a fim de que, nessa casa, pudesse ser convidado a um olhar mais íntimo
sobre si e sobre o outro. Esse próprio espaço íntimo se constituiu da observação
de que, frequentemente nas obras artísticas, mulheres negras não habitam suas
próprias casas, mas a casa do outro ou, em obras assumidamente mais políticas,
têm na arena pública e discursiva do enfrentamento ao racismo seu local de
visibilidade.
A obra
Sobretudo Amor
nasce da busca um contraponto constituir um
território onde esses traços de subjetividade se encenam, essa “vida interior”,
historicamente negada, expressa-se no espaço da cena. Interessa criar uma
ambiência que remonte uma intimidade e a exploração dos anseios que se
encenam no ambiente da casa, na conversa com alguém que ouve sem pressa,
num compartilhamento de cúmplices. É uma obra artística fruto de um esforço
de busca de outra gramática: a partir do reconhecimento da ruína do sujeito e do
projeto de humanidade, excludente e desestabilizador da condição de existência
do próprio planeta em que estamos inseridos, especialmente nesse crucial
momento da história, cada vez mais exercitar a primeira pessoa do plural, ainda
que, a olhos vistos, haja apenas uma pessoa enquanto falante.
Sobretudo Amor
é um exercício de alçar a fabulação a partir dessa fala que
se por nós, irrigando a alteridade: a compreensão de que a cura e a fragilização
se dão no encontro, no atrito, na soma e no desgaste com o outro. A gramática
dos afetos que se constitui na abertura para os olhos e sentidos do outro, que
rompe com qualquer tirania de um sujeito ensimesmado na própria dor. Se o
cuidado de si tem uma potência de compreender-se enquanto um território a ser
ocupado, também instaura a fragmentação que, por vezes, nos cria severas
barreiras no exercício da alteridade. É questão deste trabalho, sim, pensar a
transmutação dessas dores históricas por meio dessa reterritorialização do
cuidado de si, como um cuidado de nós. Do cuidado da própria casa, como uma
casa coletiva. Da intimidade encenada não mais como um privado, porém como
um público.
Ainda quando estava escrevendo a dramaturgia, fui orientada pelo meu guia
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espiritual a “alimentar minha cabeça”6. Curioso lembrar que, segundo ele, estava
com a cabeça por demais aberta, excessivamente empática e consequentemente
vulnerável. Como transitei por tantas experiências rituais que me
desterritorializaram e também reinscreveram minha história, minha memória, era
necessário alimentar essa cabeça para que, realinhada, ela pudesse criar. Talvez
tantas vozes estivessem ali, misturadas nesta cabeça que por ora aqui escreve,
com um tanto de mar, terra, árvore, aldeia, páginas e páginas de livros, que era
necessário ali digerir e metabolizar tudo o que recebi. O Orí, que, na cosmovisão
yorubana, trata-se da divindade que está situada em nossa cabeça, quem cuida
do nosso destino e dos nossos interesses, delimita nossa personalidade humana.
Beatriz Nascimento considerava o Orí uma fonte cultural com potencial para
constituir no sujeito uma consciência de si e de sua própria coletividade.
A noção de Orí propõe fragilizar as estratégias de desumanização das pessoas
negras, agregando subjetividade, sem com isso se comportar nos contornos do
sujeito moderno. Aqui a cabeça não é oposição do corpo, é uma divindade no
corpo: cabeça-história-futuro-memória. A cabeça precisa de comida para criar,
prosperar e estar em conexão com seu propósito: o ritual do bori é esse espaço
de alimentar a sua divindade individual. A vivência desse rito durante o processo
de criação contribuiu para reposicionamento da busca de encenação de
subjetividade negra em Sobretudo Amor não mais na busca de performar um
eu falante, mas na conexão dessa cabeça-quilombo-documento-presença.
Ao mesmo tempo em que as entrevistas contribuíram no levantamento de
imagens e estrutura da obra, o processo de criação coincidiu de modo não
planejado com uma série de imersões em práticas medicinais afro-indígenas.
Digo que não planejadas, porque muitas dessas experiências foram decisivas para
o processo criativo. O contato com as medicinas indígenas para o corpo e a mente
foram tão determinantes na elaboração da dramaturgia, quanto as entrevistas ou
o diálogo com referenciais teóricos. Elas me permitiram acessar aspectos
recalcados da memória, outras temporalidades e espacialidades, bem como da
própria noção de controle. Essas experiências de desterritorialização, por meio dos
6 Dar bori é um rito importante nas religiões de matriz africanas, dizendo respeito ao culto à divindade que
habita nossa cabeça, o Orí. Nesse rito, são oferecidos alimentos para o Orí, a fim de harmonizá-lo,
tranquilizá-lo e também estabelecer uma reconexão do indivíduo com sua própria divindade.
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rituais, tanto me levaram a uma ruptura com o tempo, acessando uma linhagem
à qual não me conectava, pois a desconhecia pela própria imprecisão causada
pelo processo colonial, quanto também me ensinaram sobre a não linearidade do
tempo. Nesta perspectiva, o passado não é só uma ruminação, mas potencializa a
ação do presente. Essas práticas vividas no início do processo criativo apontaram-
me para a potência de memórias corporalizadas, que se preservam para além de
uma escrita e de uma vivência aclarada na consciência.
Minha avó, que era uma mulher negra nascida em Salinas das Margaridas,
município no Recôncavo Baiano, tinha muitos mistérios, pouca fala sobre o lugar
que ia às terças e aos sábados à tarde. Muito católica e fervorosa, pedia-me que
lesse as orações do mês de São José (março), porque não enxergava as letras
do livrinho amarelado pelo tempo. Contudo, discretamente, ela era médium numa
casa espiritualista, incorporando sua ancestralidade tupinambá desde a
adolescência. Não gostava muito de acompanhá-la, pois tínhamos que chegar
muito cedo, sair muito tarde. Não entendia por que razão ela não falava comigo,
quando estava estranha, sacudindo as pessoas, falando uma língua que eu não
entendia e rodando em círculos. E toda aquela gente, dos mais distintos fenótipos,
fazendo o mesmo: falando uma língua que nunca ouvira, sacudindo, dançando
com uma expressão que me parecia estranha. Faziam referência a uma senhora
já muito idosa sentada na cadeira.
Nós chegávamos naquela casa, sentávamo-nos numa antessala, recebíamos
água numa bandeja. Era uma espera longa para minha impaciência infantil,
contudo hoje compreendo que era um momento de deixar as preocupações,
especialmente dos adultos. Soltar a conexão com a vida fora. Depois, dentro do
salão, os textos que eu não compreendia bem, as orações, os cheiros fortes das
ervas, o incenso. Os sacudimentos que me faziam rir muito, as voltas em círculos
daquelas pessoas em transe, que nos ajudavam a curar nossos males. Um sopro
forte no ouvido. Algumas pessoas se emocionavam, e eu também não
compreendia.
Em
Sobretudo Amor
, tanto os elementos de ritualidade, quanto as referências
à noção de ancestralidade constituíram a arquitetura da dramaturgia e da
encenação, não necessariamente enquanto tematização na palavra ou na
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representação. Todo encadeamento das ações físicas e da palavra cumpriam um
papel de ritualização de aproximação, exposição, limpeza, harmonização e
nutrição. Daquele centro espiritualista que cresci frequentando, acompanhando
minha avó, entendi um percurso que me interessava convocar para a cena: receber
o espectador, num ambiente muito perfumado, sinestésico. Convocá-los a sentar,
não simplesmente como quem vem assistir a uma peça, mas sentar-se como
quem vai participar de algo que lhe exigirá uma posição mais ativa não de uma
prontidão de ação física, mas de presença plena. Assim como na recepção da casa
que frequentei, era necessário servir um chá que lhes trouxesse tranquilidade e
resfriamento dos ânimos. Foi aí que cheguei ao capim-santo, erva extremamente
saborosa e perfumada, capaz de nos trazer uma atmosfera de quietude, frescor e
alegria.
E uma vez servidos, ligar o forno para assar um bolo, num forno com timer
programado para 40 minutos. Um bolo para ser compartilhado na cena final do
espetáculo aqui não mais usando a referência do espaço em que cresci
frequentando com minha avó, mas de outras práticas, como os sirês ou mesmo
as missas, com diferentes perspectivas. Em comum, o entendimento de que
aquele alimento que chega, ao final da jornada, chega para promover e celebrar
uma cura nas mais diferentes dimensões, além da alimentação propriamente dita.
Numa das entrevistas, uma das mulheres trouxe essa reflexão sobre a potência
da partilha da comida como um cuidado, um carinho, uma expressão de alegria.
O alimento é para o corpo em sua amplitude e no corpo, especialmente, para a
cabeça enquanto divindade – também a dança é alimento, o cheiro é alimento, o
toque é alimento, a música é alimento, a palavra soprada é alimento.
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Figura 1 - Cena do espetáculo Sobretudo Amor.
Boca, doença, cura, transformação. Foto: Pris Fulô
Outros elementos foram agregados na materialidade da cena: as folhas secas
de pitangueira e amendoeira cobrindo o chão do espaço cênico, que tanto
remetem a um ambiente de quintal, fundo de casa. Também era a pitangueira a
folha que era espalhada em nossa casa, no Natal. As folhas também cobrem os
barracões dos terreiros de Candomblé em dia de festa. Pisar na folha, ouvir o seu
som remetem a um outro território para além da sala fria do teatro. O espaço
cênico, desde a dramaturgia, provocava a disposição do público em quatro lados,
uma parte dele dentro do espaço cênico e outra ao redor. O cenógrafo Deilton
José propôs uma cenografia que remete a uma planta baixa, contudo,
tridimensional, com linhas que delimitam portas, janelas, cozinha e sala. Desse
modo, com sutileza e simplicidade, podíamos visualmente marcar quem está
dentro da casa, desfrutando do chá, sentado nas almofadas, pisando nas folhas;
e quem está fora, participando da cena pelo olhar.
Se, por um lado, o quadrado da planta baixa remete à solidez da forma em
quadrilátero, por vezes austera e estável, as movimentações para se remeter ao
público enquanto interlocutor são circulares, demandam o permanente exercício
de deslocar-se para fora, para o diálogo com quem rodeia o centro da cena. Como
atriz e ocupante do centro da cena, toda a atenção é voltada para o lugar onde se
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a escuta e o diálogo: o público circunda a cena de maneira cúmplice e compõe
sua plasticidade.
Uma grande mesa foi concebida, como uma espécie de passarela para que
eu pudesse tanto subir, movimentar, dançar, quanto também nela preparar o chá,
cortar o bolo. O figurinista Cássio Caiazzo lembrou da casa em que cresceu na
Cidade Baixa de Salvador, muito simples, cuja mesa era comprida, formada por
dois tonéis e um compensado. Contudo essa mesa simples era forrada da renda
mais bonita de que sua mãe dispunha. Assim, ele produziu essa renda cuidadosa,
que cobria as laterais da mesa como cortinas, guardando ali alguns itens de cena
durante o espetáculo. Também ele seguiu a indicação de concepção de um vestido
entre amarelo e rosa cores doces, leves, porém vibrantes. O criador buscou
flores que bordou no vestido, em meio às rendas e ao veludo molhado.
Esse vestido feito cuidadosamente lembrando as vestes de sua mãe, uma
negra mulher trabalhadora, muito feminina e amante de muitos anéis e
badulaques. Como tantas das entrevistadas. Longe de querer buscar a essência
de uma feminilidade de mulheres negras, o vestido proposto coadunava com as
vozes que ouvi, com a vivência dos criadores envolvidos e com a minha própria.
Uma veste que não fechasse numa percepção única do tempo, que trouxesse um
trânsito entre as rendas do passado e o amarelo neon do presente.
Nos encontros com as entrevistadas, no começo do processo criativo,
algumas delas empregaram
itãs
, ou seja, narrativas míticas sobre Oxum, para
explicar alguma questão específica. Como a narrativa que descreve o hábito da
divindade de lavar suas joias, com muito esmero e cuidado, antes de ir ver seu
filho como quem reconhece aquilo que dispõe de mais bonito, cultiva e toma
posse, ficando em condições assim de cuidar e zelar do outro. Essa imagem
norteou a abertura do espetáculo, ficando eu, criadora, já em cena, sobre a mesa,
polindo meus adereços e lavando com água perfumada de ervas como alecrim,
manjericão e arruda. Depois de bem polidas, colocava uma a uma, enquanto o
público ia tomando seu assento.
Uma preocupação neste processo criativo era ter essas referências todas as
quais cito, irrefutáveis num processo criativo em que buscava abordar a potência
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dos afetos alegres como o amor, numa investigação de uma subjetividade que nos
fora roubada – sem com isso objetivar representar orixás, caboclos, divindades. A
perspectiva da cena era promover um trânsito entre o cotidiano desta mulher que
sou eu, que são as com quem conversei, que abre sua casa para uma conversa.
Uma conversa com uma plateia. Uma conversa que não se quer palestra, que não
se quer apenas a palavra lógica, mas sobretudo a palavra soprada. Que não quer
uma sucessão de eventos e ações, mas simplesmente permitir o jorro, o livre fluxo
de consciência, o vômito, para assim, depois de expelido, lavar a boca e os olhos,
alimentar-se.
Em dado momento da peça, a mão esquerda cobre a orelha esquerda,
enquanto a mão direita aponta para a plateia, como quem empunha uma arma. É
uma citação sútil da dança da divindade feminina Oba, que corta a própria orelha,
sob o aconselhamento de sua rival Oxum, que lhe disse que servia a própria orelha
para o companheiro Xangô7. Obá se mutila para agradar o seu amor, gesto que
provoca a expulsão do palácio de seu marido, que sente repulsa diante da oferta.
Ferida, Obá guerreia, sempre com essa marca no corpo. Obá nos traz essas águas
feridas, revoltosas, intensas, avassaladoras: e o gesto convocado na cena nos
provoca a pergunta se é possível esquecer as dores e traumas, inclusive coloniais,
que nos constituíram diasporicamente. Mas o gesto evocado de Obá também diz
respeito à sua força, que a faz protetora da justiça.
A iluminação proposta por Luiz Guimarães cria momentos de uma atmosfera
doméstica, permitindo perceber a passagem do tempo, o sol que nasce, a tarde
que cai. O laranja de Oba. A delicadeza das águas que lavam as dores. Como a
montagem caminha entre a simplicidade do cotidiano, com momentos oníricos,
onde cabe transportar o espectador para um lugar não convencional. A
maquiagem concebida por Nayara Homem buscou a delicadeza de não compor
uma máscara distinta para o rosto, mas deixá-lo como é, agregando sobre si,
nuances do rosa e do dourado que se harmonizaram com as vestes. Os cabelos
7 Trata-se de um itã que apresenta a relação entre Oxum e Oba, orixás que seriam esposas de Xangô, orixá
rei e divindade da justiça. Oba é a esposa guerreira, capaz de lutar bravamente e vencer os homens. Oxum
é uma esposa mais jovem, mas bastante ardilosa e sedutora. O itã revela a ingenuidade de Oba, que decepa
a própria orelha, acreditando ser esse o truque de sua rival, para temperar os pratos servidos a Xangô. Todo
conhecimento de guerra de Oba sucumbiu ao ardil de Oxum, uma estrategista que não emprega a força
física. A história nos apresenta diferentes arquétipos femininos, a partir destes mitos yorubas.
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propostos foram longas tranças, que começavam bem presas, estruturadas, como
uma coroa. Uma coroa que se desfaz quando abro as dores, os anseios, sonhos,
frustrações. Meu corpo permite-se despedaçar em movimento e se refazer. Um
cabelo que pode ser uma veste por sobre o rosto, qual palha que traveste o brilho
do sol, que pode fazer-se ver.
Sobretudo Amor
é um espetáculo calcado também na palavra, no qual como
dramaturga, intentei tecer as palavras de modo que pudessem ser encantatórias,
permanecer no público para além daquele momento de fruição. Que as palavras
pudessem se instalar para dali provocar reflexões, percepções, convocações.
Porém, é o teatro a minha plataforma criativa e interessava-me colocar em cena
meu corpo implicado, engajado em movimento seguindo a mesma lógica de
fluxo entre o cotidiano e o extra-cotidiano. Nesse sentido, foi valorosa a parceria
criativa com a dançarina e Mestre em Dança, Val Souza, que propôs partituras
físicas que contribuíram para agregar outras textualidades, de um corpo entre o
delicado e o vigoroso, entre o serviço gentil de quem recebe amigos em casa e o
vigor de quem sacode poeiras muito antigas e que precisa de força para ser
dissipada.
Figura 2 - Detalhe da xícara de minha avó, que é servida com chá para o público.
Foto: Daniela Moura
Ao dispor o público em torno do espaço cênico, em quatro lados, parte desse
público dentro da cena e outro fora, havia o objetivo de criar um ambiente de
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envolvimento e participação. Primeiro pela sinestesia, os cheiros escolhidos para
o espaço, os sons capturados e disparados na cena, pela manipulação dos objetos,
ou o caminhar nas folhas e chocalhos dos balangandãs e do próprio vestido. O chá
servido quentinho no início do espetáculo e o bolo ao final. O cuidado das xícaras,
pertencentes a minha avó e selecionadas por minha irmã. Todo ambiente foi
forjado para incluir o espectador numa experiência distinta do simplesmente
assistir, mas uma busca de envolvimento.
Sobretudo Amor
é um espetáculo de teatro performativo, no qual não se
busca um drama a ser contado, mas visa ser um acontecimento em si mesmo:
um encontro, uma conversa, uma troca, uma limpeza. Performativamente
convocar as memórias seja da minha ancestralidade, da minha linhagem, quanto
de cada pessoa que colaborou na construção desse trabalho memórias. Um
momento performativo concebido é a lavagem das cartas, escritas do público para
si mesmo no tempo da cena. Os espectadores que estão dentro da casa, recebem
folhas do papel e são convidados a um exercício de escrita, uma escrita que em
si performa a liberação daquilo que lhe pesa. Uma escrita ritual para desbastar os
ombros pesados. Após distribuir as folhas e canetas, dar o tempo de redação,
recolho as cartas dentro de um balde de alumínio, que de dentro, por trás das
águas, projeta uma luz brilhante.
Figura 3 - Momento da lavagem das cartas do público. Foto: Pris Fulô
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Como numa imagem que vi, de mulheres negras lavando as roupas na
Cachoeira do Ribeirão do Meio em Lençóis, bem como as lembranças narradas
por Samira Soares, uma das entrevistadas, filha de lavadeiras e garimpeiros,
busquei delinear na cena essa atmosfera de lavagem das letras, do papel, das
dores. O canto de trabalho simples, que não se quer bonito, apenas canto. Depois
de lavadas, despedaçadas as cartas, coloco para fora da casa o balde, repleto de
águas – da matéria e da escrita.
Sobretudo Amor
se projeta como uma obra de teatro performativo, com os
limites borrados entre a encenação e a experiência, entre o corpo que pulsa
palavra. É uma obra também que parte de uma série de entrevistas, do mergulho
nas próprias fotos e memórias pessoais. Contudo, aqui não se projeta uma cena
de um teatro documentário, onde se quer manter vivo e delimitado o lugar do
depoimento, os contornos do sujeito falante. Interessa aqui menos delimitar
sujeitos, indivíduos isolados: interessa entrelaçar essa subjetividade que se
constitui de dimensões coletivas, dimensões da afetividade negras, historicamente
silenciadas, guardadas, sufocadas pelas pautas de sobrevivência e da vida pública.
Esse processo criativo, assim como tantas outras obras do Teatro Negro
contemporâneo, pelos seus compromissos éticos e estéticos, mira no princípio
filosófico Ubuntu8. Esse princípio nos diz: eu sou porque somos, uma atmosfera
familiar compromissada com um projeto de coletividade não simplesmente de
uma individualidade. Nessa obra, está impressa a compreensão de que a
construção de uma voz que não se pela afirmação da individualidade, mas pela
insistência no entendimento de que a afirmação da própria humanidade se dá no
reconhecimento da humanidade do outro (Ramose, 1999). A existência desse
princípio filosófico no processo criativo, tendo outros elementos presentes como
o devir movimento, num fluxo incessante do ser, que não se quer estilhaçado e
fragmentado na estrutura sujeito-verbo-objeto, mas compreende o verbo como
personificação do agente.
O público era recebido no espaço cênico, deparando-se com uma casa
8 Ubuntu, entendido como ser humano (humanidade); um humano, respeitável e de atitudes cortesãs para
com outros constitui o significado principal deste aforismo. Ubu-ntu, então, não apenas descreve uma
condição de ser, na medida em que é indissoluvelmente ligado ao umuntu, mas também é o
reconhecimento do vir a ser e não, como desejamos enfatizar, o ser e o vir a ser. (Ramose, 1999, p. 3)
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delineada, com elementos tão afro-brasileiros em cena, como as folhas de pitanga
no chão, a quartinha (vaso de barro) com as folhas de Espada de Ogum, Guiné e
Arruda na entrada da porta da cena, temos um ambiente muito próximo da maior
parte dessa plateia, formada sobretudo por mulheres negras e pardas. Porém, a
vitrola também em cena, tocava uma música norte-americana, um blues, suave e
melancólico. A música, com letra em inglês e som abafado pelas antigas gravações
dos anos 30, convoca uma perspectiva diaspórica nas diferenças e no
espraiamento América afora, o que temos em comum?
Eu, Mônica Santana, coloco-me na cena sem nomear. Sem estabelecer um
nome que me limite. Ali a proposição é de existir, sem criar um personagem, uma
fábula distintiva. O drama colocado é o da própria existência: os sonhos povoados
pelas mãos do colonizador, as mortes cotidianas, os ombros cansados do peso de
uma linhagem, a solidão nos corredores dos hospitais. As experiências que colhi,
somadas às minhas, criando um lugar para olhar as experiências, rever e
apresentar novos sentidos e significados. Uma transformação que se no âmbito
pessoal e coletivo, seja pelas vozes que conjuntamente falam comigo. O público é
conduzido por uma cena-ritual que o conduz para performar uma limpeza
alquímica, uma lavagem de dores e memórias nas águas movimentadas na cena,
através de um exercício de autorreflexibilidade em conjunto. E sim, este é um
teatro político porém acessando percursos pouco habituais para as obras que
se compreendem como políticas, tais como o lirismo, a criação de um ambiente
de cumplicidade e não necessariamente de exposição ou constrangimento.
O espetáculo
Sobretudo Amor
se insere numa cena performativa, explorando
possibilidades autobiográficas, biográficas numa perspectiva de transformação de
si e de contribuir para a transformação coletiva, entendendo a produção de arte
como uma experiência compartilhada e comprometida. O meu corpo em cena
como uma plataforma moldável, não por uma mimese e um desejo de representar
algo, alguém ou ser uma voz pelo todo das mulheres negras. Mas moldável pelo
que a experiência do acontecimento cênico proporciona. Por cada encontro do
meu olhar com o do expectador e como ele reage à palavra dita. Os novos sentidos
que se ganham, os aprendizados que são disparados.
Esta cena não é uma cena solitária, pelo contrário a performance de
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mulheres e mais especificamente de mulheres negras é um momento pulsante
nas Américas, compreendendo a potência deste espaço como político, como
expressão de preocupações culturais, sociais, éticas, estéticas e capacidade de
implicação na cena. O formato solo proporciona que nós, artistas, possamos estar
implicadas na cena não como objeto do olhar e do desejo do masculino
dramaturgo ou encenador. Ao assumir essas diferentes frentes de criação, com
voz, corpo, memória, somos “sujeitas” e dentro das nossas condições, fragilizamos
um sistema patriarcal de signos.
Sobretudo Amor
é uma obra que busca se inserir numa construção coletiva
de política da visibilidade, num contexto de compreensão para negros e negras
nas mais diferentes linguagens artísticas de que a fabulação e a produção de
memória uma memória povoada de lacunas, estilhaçada pela história e pela
narrativa construída pelo colonizador e posteriormente, pela elite a fim de nos
restabelecer com nossa humanidade. E encontra na ancestralidade e na
encruzilhada epistêmica, estratégias de produzir reflexões por dentro e por meio
da arte.
Sobretudo Amor
fala sobre devir, sobre o movimento de ser sendo, das
aspirações e vontades. É um corpo no desafio de, amorosamente, deixar emergir
os conflitos intersubjetivos, deixar jorrar as inquietações e a alegria dos encontros,
a vulnerabilidade. Em conversa, passar por reflexões sobre os hábitos culturais e
os desafios postos para nós, de fazer desse corpo potência. Esta inquietação segue
somada a tantas críticas que foram possíveis de acessar ao longo deste
Doutorado, como a minha própria aspiração em falar sobre a subjetividade, numa
perspectiva de elaboração artística e política, que se distanciem de concepções
de individualidade burguesas e de projetos de humanidade, que historicamente
recusaram e negaram nossa existência. O desafio se soma à angústia criativa de
compreender que essas questões, tanto mais filosóficas quanto artísticas, são
pontos a serem perseguidos e que não devem pesar e impedir o fluxo criativo.
Considerações Finais
A ancestralidade é indissociável desse processo de criação artística e não
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demanda de uma afirmação de modo muito explícito quase como um jargão, tal
qual tem sido muito evidente nos últimos anos no fazer artístico. Por vezes,
esvaziando o sentido da própria palavra, ao conectá-la a modismos, jargões ou
apelos neoliberais em seu fundamento. Apelos neoliberais esses que se
expressam nos afetos e expressões discursivas no nosso tempo, sem dúvidas
sendo uma chave instigante de pesquisa na perspectiva da cultura de massa e dos
discursos identitários neste terreno. Contudo, esta maior circulação da palavra não
esvazia sua dimensão concreta norteadora das práticas da performance negra, se
deem elas em múltiplas linguagens artísticas. A ancestralidade se presentifica num
processo artístico que se abre para o vir a ser com o corpo, com o tempo, com a
firmeza de propósito no uso da palavra não como um algo absoluto, nem
superior ao gesto, mas como parte do movimento e da ação consciente no mundo.
A ancestralidade diz respeito a uma reivindicação de uma memória solapada
permanentemente, ainda no presente. Ancestralidade diz respeito a uma noção
de conexão com a coletividade que nos habita e com a responsabilidade de defesa
de suas lutas e vozes, nem sempre ouvidas.
É no presente e com compromisso com o futuro, sabendo que nosso fazer
artístico é efêmero, do trânsito e transe, logo passa, mas contamina quem conosco
comunga do instante. E consigo levar o que precisa ser germinado e pode gerar
novas ações. Esse exercício de relato de processo artístico, é sobretudo um relato
de inquietações criativas, problemas criados, desafios impostos que não se
fecham – talvez, porque a aspiração seja pelo devir, uma travessia na proposição
de uma performance negra comprometida sim, com a experiência e com a
transformação através da cena, tanto de quem nela se implica no ofício, quanto
quem nela frui e flui.
Impregnar a cena na dimensão da escrita, da encenação, do movimento,
dos elementos visuais não diz respeito tão somente a citações de lugares míticos
de uma brasilidade, africanidade ou herança dos povos originais. Aposto numa
perspectiva de compreensão ética, poética e política, que nos entrelaça e nos
permite criar para agenciar transformações e reinterpretações de mundo. A
ancestralidade no modo de fazer e pensar a cena, torna o fazer artístico prenhe
de porvir e de movimento, sabendo que o que emerge dali não se encerra quando
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a luz apaga, quando o livro fecha, quando a música termina. A palavra soprada ou
o gesto desenhado não começam no terceiro sinal, tampouco.
Referências
ABIMBOLA, Wande.
A concepção iorubá da personalidade humana
. In: Colóquio
internacional para a noção de pessoa na África Negra. Paris: Centre National de la
Recherche Scientifique, 1981, edição n°54.
GILROY, Paul.
O Atlântico Negro
: modernidade e dupla consciência. Trad. Cid Knipel
Moreira. São Paulo: Editora 34, 2012.
MARTINS, Leda Maria.
Performances do Tempo
Espiralar. São Paulo: Cobogó, 2022.
OLIVEIRA, Eduardo David de. A epistemologia da ancestralidade.
Revista
Entrelugares
Revista de Sociopoética e abordagens afins. Disponível:
http://www.entrelugares.ufc.br/phocadownload/eduardo-resumo.pdf. Acesso em: 30 mar. 2020.
RAMOSE, Mogobe B.
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REIS, Rodrigo Ferreira dos. Ôrí e memória: o pensamento de Beatriz Nascimento.
Sankofa
- Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana. Ano XIII,
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SANTANA, Mônica Pereira de.
Mulheres negras: (auto)-(re)invenções devires e
criação de novos discursos de si nos corpos de criadoras negras
. Tese (Doutorado
em Artes Cênicas) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2021.
TAYLOR, Diana.
El Archivo y El Repertorio
: el cuerpo y la memoria cultural em las
Américas. Santiago do Chile: Ediciones Universidad Alberto Hurtado (ebook Kindle),
2015.
Recebido em: 20/09/2024
Aprovado em: 21/11/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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