Ancestralidade como princípio filosófico de uma cena encruzilhada:
processo criativo do espetáculo
Sobretudo Amor
Monica Pereira de Santana
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-19, dez. 2024
dos afetos alegres como o amor, numa investigação de uma subjetividade que nos
fora roubada – sem com isso objetivar representar orixás, caboclos, divindades. A
perspectiva da cena era promover um trânsito entre o cotidiano desta mulher que
sou eu, que são as com quem conversei, que abre sua casa para uma conversa.
Uma conversa com uma plateia. Uma conversa que não se quer palestra, que não
se quer apenas a palavra lógica, mas sobretudo a palavra soprada. Que não quer
uma sucessão de eventos e ações, mas simplesmente permitir o jorro, o livre fluxo
de consciência, o vômito, para assim, depois de expelido, lavar a boca e os olhos,
alimentar-se.
Em dado momento da peça, a mão esquerda cobre a orelha esquerda,
enquanto a mão direita aponta para a plateia, como quem empunha uma arma. É
uma citação sútil da dança da divindade feminina Oba, que corta a própria orelha,
sob o aconselhamento de sua rival Oxum, que lhe disse que servia a própria orelha
para o companheiro Xangô7. Obá se mutila para agradar o seu amor, gesto que
provoca a expulsão do palácio de seu marido, que sente repulsa diante da oferta.
Ferida, Obá guerreia, sempre com essa marca no corpo. Obá nos traz essas águas
feridas, revoltosas, intensas, avassaladoras: e o gesto convocado na cena nos
provoca a pergunta se é possível esquecer as dores e traumas, inclusive coloniais,
que nos constituíram diasporicamente. Mas o gesto evocado de Obá também diz
respeito à sua força, que a faz protetora da justiça.
A iluminação proposta por Luiz Guimarães cria momentos de uma atmosfera
doméstica, permitindo perceber a passagem do tempo, o sol que nasce, a tarde
que cai. O laranja de Oba. A delicadeza das águas que lavam as dores. Como a
montagem caminha entre a simplicidade do cotidiano, com momentos oníricos,
onde cabe transportar o espectador para um lugar não convencional. A
maquiagem concebida por Nayara Homem buscou a delicadeza de não compor
uma máscara distinta para o rosto, mas deixá-lo como é, agregando sobre si,
nuances do rosa e do dourado que se harmonizaram com as vestes. Os cabelos
7 Trata-se de um itã que apresenta a relação entre Oxum e Oba, orixás que seriam esposas de Xangô, orixá
rei e divindade da justiça. Oba é a esposa guerreira, capaz de lutar bravamente e vencer os homens. Oxum
é uma esposa mais jovem, mas bastante ardilosa e sedutora. O itã revela a ingenuidade de Oba, que decepa
a própria orelha, acreditando ser esse o truque de sua rival, para temperar os pratos servidos a Xangô. Todo
conhecimento de guerra de Oba sucumbiu ao ardil de Oxum, uma estrategista que não emprega a força
física. A história nos apresenta diferentes arquétipos femininos, a partir destes mitos yorubas.