Cartas para o corpo: autografias performativas na formação do corpo-artista-pesquisador
Daiana Maria Holz de Souza | Michelle Bocchi Gonçalves
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-23, dez. 2024
encontrar uma brecha pra nós.
Mas quero te dizer que você não é esquecido. Eu penso em você todos
os dias. Eu penso em cada curva, forma, cor e relevo. Eu penso em cada
dor que você sente e aprendeu a esconder. Eu penso nas cicatrizes que
você não queria ter e penso nas memórias que você queria esquecer.
Tipo aquela vez que a Rafaela do 7º Ano disse que tudo bem beijar o
André, o Guilherme ou o Cézar, mas que deus me livre beijar você. Ou
aquela vez que sua tia disse que você deveria comer mais. Daqueles
comentários da sua mãe que você não pediu sobre o seu peso, daquela
vez que um menino te disse que você devia cortar o cabelo. É cada vez
mais difícil não se sentir dismórfico.
E nessa relação de amor e ódio que eu tenho com você, quero te dizer
pra não sentir vergonha. Talvez só um pouco, mas que você não acumule
essa tensão. (palavra riscada) Quero te dizer pra não ter medo dos seus
trejeitos. Que você pode ser estranho, desengonçado, afeminado. Quero
te lembrar do que você é capaz de sentir. (frase riscada) Lembra da
adrenalina que sentia quando corria na infância? Lembra do prazer de
quando foi tocado pela primeira vez? Lembra de quando relaxou quando
riu da piada mais idiota que você lembra?
Eu quero te lembrar de mandar a Rafaela tomar no cu.
Eu quero te dizer que você pode se odiar o quanto quiser, mas não porque
os outros te disseram pra se odiar assim. O julgamento que você faz de
si é único e exclusivamente seu. E ele pode ser ruim, mas é seu e de mais
ninguém.
Eu quero te dizer que um dia você vai ter rugas, cabelos brancos,
corcundas e dores nas juntas. Talvez adquirir uma dessas doenças de
velho tipo diverticulite, osteoporose, fibrilação arterial ou qualquer outro
desses nomes difíceis que a ciência dá pro movimento natural de
amadurecer. Um dia você vai ser amido, cinza ou matéria orgânica. Mas
agora, hoje, você é vida, na mais diversa forma.
Vida essa sem igual. O seu corpo é a casa onde mora essa vida. E nessa
pequena casa só cabe um hóspede. Lembre-se (palavra riscada) de fazer
a faxina pra ele entrar, jogar fora as velhas formas, jogar suas cores fartas
e plantar sementes no jardim da sua solidão. Que juntos, a gente possa
conversar com mais frequência.
Nos falamos novamente, espero que o mais breve possível.
Com amor e também ódio _________.
A carta 1 desvela um sujeito dividido, que se relaciona com seu corpo como
uma identidade própria e como uma construção socialmente influenciada, opinião
que o sujeito apreciaria não ligar, mais que liga. A carta é atravessada por
memórias discursivas, como eventos específicos que marcaram sua percepção
corporal, como a menção às falas de terceiros — como a Rafaela, a tia e a mãe —
indicando como o discurso alheio influencia a constituição do sujeito e a
internalização de julgamentos externos. Essas vozes ecoam no texto,
demonstrando a interdiscursividade, ou seja, como o discurso do sujeito é
constituído por outros discursos pré-existentes na sociedade.