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O corpo criador de narrativas teatrais:
influências do trabalho corporal na escrita de uma
dramaturgia amazônida
Bene Martins
Bárbara Toscano Gibson
Para citar este artigo:
MARTINS, Bene; GIBSON, Bárbara Toscano. O corpo
criador de narrativas teatrais: influências do trabalho
corporal na escrita de uma dramaturgia amazônida.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 4, n. 53, dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e117
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O corpo criador de narrativas teatrais: influências do trabalho corporal na escrita de uma dramaturgia
amazônida
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Bene Martins2
Bárbara Toscano Gibson3
Resumo
Este artigo tem a finalidade de tecer entendimentos sobre
corpo-dramaturgia
num contexto teatral a
partir de situações experenciadas na carreira de uma atriz-dramaturga-diretora-pesquisadora que
escreve e dirige espetáculos em Belém do Pará desde 2011. A premissa é que o trabalho corporal de
artistas pode influenciar diretamente no desenvolvimento dramatúrgico, uma vez que o corpo em si é
constante criador de sensações, gestos, percepções, narrativas. Buscando expandir a discussão,
referenciais teóricos e exemplos concretos são utilizados para examinar conceitos relevantes como
textocentrismo, dramaturgia expandida e corporeidades, que auxiliam numa compreensão mais ampla
de dramaturgia corporal.
Palavras-chave
: Teatro. Dramaturgia. Corpo-Dramaturgia.
The body creating theatrical narratives: influences of bodywork in the writing of an Amazonian
dramaturgy
Abstract
This article aims to develop understandings about body-dramaturgy in a theatrical context based on
situations experienced in the career of an actress-playwright-director-researcher who writes and
directs plays in Belém do Pará since 2011. The premise is that the bodywork of Artists can directly
influence dramaturgical development, since the body itself is a constant creator of narratives. Seeking
to expand the discussion, theoretical references and concrete examples are used to examine relevant
concepts such as text-centrism, expanded dramaturgy and corporeality, which assist in a broader
understanding of corporeal dramaturgy.
Keywords:
Theater. Dramaturgy. Body-Dramaturgy.
El cuerpo creando narrativas teatrales: influencias del trabajo corporal en la escritura de una dramaturgia
amazónica
Resumen
Este artículo tiene como objetivo desarrollar comprensiones sobre la dramaturgia corporal en un
contexto teatral a partir de situaciones vividas en la carrera de una actriz-dramaturga-directora-
investigadora que escribe y dirige obras de teatro en Belém do Pará desde 2011. La premisa es que el
trabajo corporal de Artistas puede influir directamente en el desarrollo dramatúrgico, ya que el cuerpo
mismo es un constante creador de narrativas. Buscando ampliar la discusión, se utilizan referencias
teóricas y ejemplos concretos para examinar conceptos relevantes como textocentrismo, dramaturgia
expandida y corporalidad, que ayudan a una comprensión más amplia de la dramaturgia corporal.
Palabras clave
: Teatro. Dramaturgia. Dramaturgia Corporal.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Bruno Sérvulo da Silva Matos. Doutorado
e Mestrado em Artes pela Universidade Federal do Para (UFPA). Especialização em Língua Portuguesa a
Literatura (FIBRA). Licenciatura em Letras pela UFPA).
2 Pós-doutorado em Estudos de Teatro na Universidade de Lisboa-PT - Apoio CAPES. Doutorado em Letras
pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestrado em Letras pela Universidade Federal do Pará
(UFPA). Graduação em Pedagogia pela UFPA. Professora associada da Faculdade de Dança; do Programa de
Pós-graduação em artes (PPGARTES), da Universidade Federal do Pará (UFPA). behneafonso@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/6379814397024971 https://orcid.org/0000-0002-5265-1054
3 Doutoranda em Artes pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestrado em Artes pela UFPA. Especialista
em Teatro Educação pela Faculdade Paulista de Artes. Bacharel em Direito pelo Centro de Universitário do
Pará. Técnica em Teatro pela Escola de Teatro e Dança da UFPA . Atriz, Advogada, Dramaturga, Diretora e
Professora de Teatro. babigibson@hotmail.com
http://lattes.cnpq.br/2118132188795910 https://orcid.org/0009-0002-2238-6541
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Introdução
Existem saberes no corpo. Ao conviver no e com o mundo, o corpo
sabe
o
mundo. O saber do corpo é imanente, intrínseco, íntimo, ilimitado. Assim como o
pensamento, desconhece limites. No campo dramatúrgico, o corpo é profunda
fonte de material criativo, possibilitando o desenvolvimento de dramaturgia
s
que
ultrapassam a palavra escrita e propiciam verdadeiras experiências sinestésicas
para todos os envolvidos nas montagens de espetáculos. Com mais de quinze
anos de experiência como diretora teatral e dramaturga em Belém do Pará, tais
constatações tornaram-se irrefutáveis para mim.
Dirijo atores e atrizes de perfis diversos experientes, inexperientes, jovens,
maduros contudo, percebo que independentemente das suas características
individuais, todos influenciam o meu fazer artístico a partir de algo que, muitas
vezes, alimentam institivamente: seus corpos que criam cenas, encenam em
minha escrita, em minha atuação como artista-pesquisadora. Este artigo almeja
desenvolver reflexões sobre dramaturgia do corpo, a partir de duas experiências
pessoais que demonstram como o trabalho corporal de atores e atrizes é capaz
de impactar minhas vivências, enquanto dramaturga-diretora-pesquisadora na
capital paraense.
Visando embasar nossas reflexões, utilizaremos referenciais teóricos para
investigar como, ao longo dos anos, a centralidade do texto tem se tornado cada
vez mais questionável, uma vez que, apesar da sua inegável importância para a
concepção cênica, outros elementos tais como direção, atuação, iluminação,
cenografia, figurino, trabalho corporal são igualmente relevantes. Além disso,
tocaremos na evolução dos conceitos dramatúrgicos principais, até adentrar no
mais recente, que se refere à dramaturgia expandida.
Textocentrismo e evolução da dramaturgia corporal
A noção de que o texto dramatúrgico é uma estrutura imutável, rígida e
indelével é objeto de questionamentos décadas. Porém, na história do teatro
moderno, prevaleceu por muito tempo a busca por um drama absoluto, mediante
a retomada das leis aristotélicas, com destaque para o conflito, unidades de ação
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dramática, interpelação das cenas e interdependência entre os atos. A
consequência dessa busca foi a atribuição de um espaço soberano e central ao
texto: o chamado textocentrismo (Santos; Souza, 2020).
Destarte, o trabalho principal dos artistas teatrais seria transpor o texto para
o palco com o máximo de fidelidade possível à escrita original, com praticamente
nulas possibilidades criativas. Como adverte Anne Ubersfeld, “o principal perigo
dessa atitude reside certamente na tentação de congelar o texto, de sacralizá-lo
a ponto de bloquear todo o sistema de representação e a imaginação dos
intérpretes” (2010, p.03-04).
Assinala, também, Jean-Jacques Roubine (1998, p. 45-46):
O problema do lugar e da função do texto dentro da realização cênica é
menos recente do que se costuma imaginar e, além e acima das
considerações estéticas, ele representa um cacife ideológico [...] vemos
assim esboçar-se, ao mesmo tempo, a especialização e a hierarquização
das profissões teatrais: a cada um o seu métier, e todos a serviço do texto
(e do autor)! Cada um vai trancar-se na sua especialidade: encarnar um
personagem, conceber e construir um cenário.
Nos séculos XVII e XVIII, com a maior valoração das leis dramáticas,
intensificou-se a reverência ao texto, o que provocou um menosprezo às
manifestações populares como a
Commedia Dell’arte,
cuja marca era a liberdade
de improviso textual. Porém, segundo Cleise Mendes (2014), a validação da figura
do encenador, especialmente no século XIX, contribuiu para desmistificar a ideia
do dramaturgo num pedestal inalcançável, cujo trabalho não poderia ser tocado,
porquanto o diretor passou a ser visto não como mero estruturador de cenas, mas
um legítimo criador, cujas opiniões são expressas em todos os aspectos do
espetáculo.
A visão textocentrista, que predominou por muito tempo no fazer teatral, foi
questionada por grandes nomes do ramo, como Antonin Artaud, que defendeu a
apropriação do texto por parte dos diretores e atores. Consoante Artaud, cada
texto tem possibilidades infinitas e deve ser encarado como ponto de partida para
criação cênica dos artistas, que podem “investir no potencial imagético das
palavras, libertando-se das amarras trazidas pela sujeição irrestrita ao texto e à
figura do autor” (Mendes, 2014, p. 16).
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Outro grande nome do teatro mundial, Bertold Brecht, propôs uma atuação
épica, sugerindo que a representação de visões políticas nos palcos promove
reflexões críticas e possíveis mudanças de paradigmas nos espectadores (Mendes,
2014). Sendo assim, dependendo da técnica de encenação empregada, um mesmo
texto pode gerar efeitos diversos no público, evidenciando, desse modo, que o
texto escrito não é o elemento mais significativo de uma montagem, tampouco
deve ser encarado como intocável, mas como um possível disparador de um
processo criativo.
Nos anos 60, tornaram-se mais frequentes os processos de criação coletiva,
nos quais elementos significativos, como encenação e dramaturgia, são
desenvolvidos com a participação ativa do grupo, que costuma trabalhar
diretamente em todas as áreas. Nesse contexto, muitos coletivos passaram a criar
seus próprios textos no decorrer dos ensaios, ao invés de partirem de obras
dramatúrgicas finalizadas previamente (Mendes, 2014).
Nos processos colaborativos, por sua vez, diversos artistas envolvem-se na
criação do espetáculo; contudo, as funções específicas são mantidas. O principal
agente de criação torna-se o próprio grupo, e as ações dos seus diversos
participantes – atores, diretores, dramaturgos – integram-se diretamente, sem se
confundirem, mas plenamente amalgamadas (Fischer, 2010). Com o advento dos
processos colaborativos e/ou de criação coletiva, os ideais textocentristas
tornaram-se ainda mais escassos. Não estamos aqui afirmando a morte do texto,
mas chamando atenção para a importância de considerá-lo como um dos muitos
elementos que compõem um espetáculo, seja ele com texto de autoria única, ou
criado pelos integrantes da proposta, do grupo realizador.
Um ponto interessante a se notar é que, diante da democratização das
funções teatrais, relativizou-se, consequentemente, a hierarquia das profissões.
Quando o texto era ditado como único elemento central de uma montagem, ele
determinava o que estaria presente no palco e o dramaturgo assumia,
naturalmente, uma posição de grande destaque, inclusive no ponto de vista
socioeconômico (Santos; Souza, 2020). Assim, não era incomum que o dramaturgo
recebesse uma remuneração financeira muito acima dos diretores, atores e
técnicos. Com o advento das produções colaborativas e de criação coletiva, porém,
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percebe-se uma tendência de status econômico e social mais equânime entre as
profissões da cena.
Nota-se, assim, uma evolução do conceito de
dramaturgia
no decorrer das
últimas décadas. Inicialmente, prevaleceu o sentido mais simples: dramaturgia era
a arte da composição de peças teatrais e restringia-se ao trabalho do autor, que
organizava a estrutura narrativa da obra, sem abranger a realização cênica do
espetáculo (Pavis, 2008). Sobre essa visão “clássica”, explicita a pesquisadora
Marina de Oliveira (2018, p. 17):
Considerando-se a visão clássica de dramaturgia, um estudo
dramatúrgico terá a construção dos personagens, a estruturação dos
diálogos em direção ao clímax e o posterior desfecho da trama como os
principais focos de análise. Nesse caso, a peça escrita é compreendida
como uma estrutura fechada em si mesma, completa, apta para ser
transposta para a cena, tendo o conflito como impulsionador das ações,
responsável pelo aumento gradativo da tensão dramática.
Posteriormente, a partir da representação épica formulada por Brecht, uma
segunda acepção de dramaturgia ganhou força, relacionada às duas estruturas de
uma peça teatral: formal e ideológica. Levando em conta que, para Brecht, o texto
encenado visa produzir um certo efeito na plateia, a dramaturgia “abrange tanto o
texto de origem quanto os meios empregados pela encenação” (Pavis, 2008, p. 113).
Finalmente, a mais recente definição compreende dramaturgia de modo mais
amplo, expandido: uma comunhão entre o trabalho do dramaturgo e dos demais
criadores do espetáculo – encenadores, cenógrafos, atores e demais membros da
equipe. Por conseguinte, dramaturgia expandida refere-se:
Ao conjunto das escolhas estéticas e ideológicas que a equipe de
realização, desde o encenador até o ator, foi levada a fazer. Este trabalho
abrange a elaboração e representação da fábula, a escolha do espaço
cênico, a montagem, a interpretação do ator, a representação ilusionista
ou distanciada do espetáculo (Pavis, 2008, p. 113-114).
Dadas as alterações do conceito e da prática, compreende-se o trabalho do
dramaturgo não como uma atividade isolada, muito pelo contrário o escritor
teatral nutre-se diretamente da construção coletiva do grupo, enriquecendo-se
com a criatividade e interferência dos demais participantes na construção de uma
peça teatral. Não pretendemos questionar a validade dos resultados cênicos
focados majoritariamente nos textos literários, mas é notável que, a partir de uma
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visão ampliada, atualmente é possível falar em dramaturgia
s
(da luz, do som, do
espaço, do corpo etc.). Todas essas acepções são muito relevantes na atualidade,
mas foquemos agora na dramaturgia do corpo, que enfatiza a importância da
presença física como meio de indução narrativa.
Gestos, movimentos, ritmo e expressão corporal são, muitas vezes, mais
impactantes numa história do que palavras emitidas. Segundo Lau Santos e
Julianna Rosa de Souza (2020), o texto do corpo e o corpo do texto produzem
dramaturgias, enquanto Júlio Tavares afirma: “é meu corpo que fala antes mesmo
de me utilizar do aparelho fonador pelo qual vou emitindo as imagens acústicas
que pronuncio, antes de me tornar consciente do próprio corpo” (Tavares, 2012, p.
54). Dramaturgia do corpo, para o autor, significa:
[...] considerar corpo como síntese/texto que emite, em linguagem não
verbal, as mensagens arquivadas a partir das experiências que se
cotidianizaram e que, por intermédio dos cines da memória corpórea, se
fixaram na situação na qual aquele determinado movimento foi
registrado. Isto é, o corpo brinda-nos pelo gesto expresso em linguagem
não verbal com aquele movimento que foi criado e elaborado na
produção de sua experiência (Tavares, 2012, p.51).
Corroborando essas colocações, Santos e Souza (2020) apontam o corpo
como um signo, cujo significante é a estrutura física e o significado é o processo
de arquivamento das experiências nessa estrutura. O corpo é, assim, de forma
concomitante, matéria orgânica e assimilador de vivências; verdadeiro produtor de
histórias e agente discursivo.
Ao criarem personagens, os atores e as atrizes desenvolvem novas
identidades temporárias, detentoras de dramaturgias corporais próprias. O corpo
não é mero objeto transmissor do texto; ele promove uma autêntica conexão entre
o transmissor e o receptor do jogo cênico, uma vez que “a significação corpórea
trabalhada, executada e proposta pelo ator pode ser sentida, compreendida e
significada pelo espectador, pois ambos possuem um corpo capaz de intensificar
essas relações” (Bussoletti, Vargas; 2015, p. 70).
O filósofo francês Michel Bernard não utiliza o termo
corpo
, e sim
corporeidades
, pois o primeiro simboliza, para ele, uma unidade imutável, estável
e constante, enquanto o segundo, nas palavras de Paola Secchin Braga, “traria uma
visão original, ao mesmo tempo plural, dinâmica e aleatória, como jogo
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quiasmático instável de forças intensivas ou de vetores heterogêneos” (Braga, 2018,
p.4). A autora prossegue:
Entender o corpo dançante enquanto corporeidade dançante significa
entrar em contato com um corpo poroso, quiasmático, atravessado por
forças diversas que o modificam, por vetores que constantemente o
alteram. Não um corpo dado e estável, mas uma corporeidade em
contínua mutação, em eterna adaptação. Uma corporeidade sujeita a
sensações diversas e distintas, que se entrecruzam e agem umas sobre
as outras, trazendo alterações no seu funcionamento (Braga, 2018, p.05).
Braga se refere a
corporeidade dançante
, mas estendemos o raciocínio para
uma corporeidade também
teatral,
pois uma de suas principais características é a
possibilidade de criar ficções a partir de sensações corporais sensações essas
que a habitam e desdobram. Portanto, corporeidade pode ser compreendida como
“produtora de desdobramentos, de ficções criadas a partir das sensações” (Braga,
2018, p.06).
As relações de corporeidade são, segundo Bussoletti e Vargas (2015), modos
contundentes dos atores sensibilizarem os espectadores. Tal sensibilização pode
estimular o público a buscar experiências artísticas para além das telas, porquanto
a relação ao vivo, que conecta corpos de quem ocupa o palco e da plateia, é um
diferencial sinestésico das artes cênicas.
Permitam-nos, agora, quebrar a dupla autoria da escrita e me inserir no
diálogo, utilizando minhas experiências pessoais para levantar questões. Como
mencionado anteriormente, o texto do corpo e o corpo do texto produzem
dramaturgias. Chamo-me Bárbara e pesquiso dramaturgias escritas por mulheres
amazônidas no Doutorado em Artes da Universidade Federal do Pará desde 2023
sob orientação da professora-pesquisadora Bene Martins, com a qual escrevo
este texto. Trabalho como diretora teatral-dramaturga há quase quinze anos, sou
atriz há quase trinta, e, examinando minha carreira, percebo diversas ocasiões em
que tal máxima materializou-se na minha frente
corpos produzem dramaturgias.
A seguir, narro duas ocasiões em que artistas da cena, por meio de seus
trabalhos corporais, impactaram profundamente minha carreira na dramaturgia e,
de muitas formas, modificaram o modo como enxergo o mundo. Desbravo os fios
da minha memória para relatá-las a seguir.
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O saber do corpo que me tornou dramaturga
Uma tarde chuvosa. Uma pequena sala de ensaio. O final da disciplina
Dramaturgia
no Curso
Técnico de Formação em Ator,
da Escola de Teatro e Dança
da Universidade Federal do Pará. O ano era 2009 e eu tinha dezenove anos, tendo
iniciado minha carreira de atriz ainda na infância, naquela mesma casa. Os alunos
avidamente vestiam os figurinos de seus personagens, ansiosos para compartilhar
suas criações com a turma. A professora havia sugerido que escolhêssemos uma
cena impactante de uma dramaturgia e mostrássemos nossa versão para os
colegas. Na época, eu era obcecada pela série de televisão
The Tudors
, então,
decidi adaptar para teatro o momento da coroação de Ana Bolena. Estava me
olhando no espelho, admirando meu vestido longo amarelo, quando ouvi alguém
falar em tom de surpresa: “O Lucas chegou!”.
Eu não podia acreditar. O Lucas chegou? O Lucas? Chegou? Sim. Era verdade.
O Lucas havia chegado e, de imediato, meus olhos se encheram de lágrimas
porque o
Lucas. Havia. Chegado.
Você não sabe quem foi o Lucas, mas eu gostaria
muito que soubesse. O Lucas foi um menino brilhante que impactou muito a
minha vida e hoje, quinze anos depois, pesquisando
Dramaturgia
no Doutorado em
Artes, naquela mesma casa, onde nos conhecemos, na Universidade Federal do
Pará, orientada pela mesma professora que ministrou a disciplina
Dramaturgia
no
Curso Técnico, Bene Martins, percebo que ele foi o maior mestre que tive. O meu
amor por
Dramaturgia
sempre existiu, mas foi naquela tarde chuvosa, com a
chegada do Lucas, que eu me tornei dramaturga.
Corri para a porta da Escola. estava ele, muito magro, apoiando o corpo
cansado na mãe, malmente conseguindo se manter em pé. No início do ano letivo,
Lucas era um jovem rapaz cheio de energia, inteligentíssimo, o melhor aluno da
classe. A professora mencionava um autor, e ele o conhecia,
ah, sim
, havia lido
todos seus livros. “Acho que esse menino leu todos os livros escritos”, eu
pensava. Vinte anos, apenas, e seu olhar carregava a energia de milhares de
obras literárias. É difícil explicar, mas certas pessoas
carregam e transparecem
histórias nos olhos. Eu jamais vou esquecer os olhos do Lucas e as histórias que
eles contavam.
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No meio do ano letivo, abruptamente, o Lucas parou de frequentar as aulas.
Era estranho ver sua cadeira vazia, porque ele era extremamente assíduo. Então,
veio a notícia. O Lucas está internado. Não sabemos o que é. Parece que semana
que vem ele volta. Não. Não voltou. É grave. É câncer.
Como assim, câncer? O Lucas tem vinte anos. Ele está realizando o sonho de
ser ator. Ele vai ser professor de teatro, tenho certeza. Ele leu todos os livros,
imagina o professor estupendo que se tornará! Um ano a mais que eu. Um menino.
Um
menino.
Tudo bem, ele vai se tratar, se curar e rir de tudo isso. Você não
conheceu o Lucas, mas eu gostaria que soubesse o quão bem-humorado ele era.
Quando fiquei sabendo do diagnóstico, mandei uma mensagem pedindo que me
explicasse melhor o que estava acontecendo, e ele respondeu “o negócio é o
seguinte, Bárbara, minhas células são
indie rock
, elas se reproduzem fora do
sistema”.
Hoje, eu percebo o quão fora do sistema o Lucas inteiro era. Ele estava em
outro nível, parecia ser de outro planeta, um planeta onde as pessoas respiram
teatro, leem incessantemente e conseguem fazer piadas talvez na tentativa de
suportar o inevitável – diante de situações dificílimas. Eu tinha esperança, vai ficar
tudo bem, ele vai se curar e rir de tudo isso, mas, naquela tarde chuvosa de 2009,
no final da disciplin
a Dramaturgia
, a qual ele havia acompanhado apenas o início,
eu vi. Eu senti. Ele estava ali para, dramaticamente, fechar a cortina do próprio ato.
Poucas palavras foram trocadas. Certas coisas não cabem em palavras.
Ajudei-o a colocar o figurino, uma roupa simples calça preta, blusa branca. A
mãe o apoiava, porque suas pernas não tinham forças, mas a alma dele estava
mais forte do que nunca. Ele me abraçou e agradeceu. Eu não conseguia dizer
nada. Nada. As palavras nunca me faltaram, porém, naquele dia, descobri que
certas emoções e sentimentos não cabem em palavras.
Juntos, fomos até a pequena sala de ensaio, onde todos aguardavam. Ele
disse algo no ouvido da mãe que assentiu e sentou-se. Todos sentados, somente
ele em pé, e eu vi a transformação corporal mais impactante que presenciei. A
postura ficou ereta. Os membros pararam de tremer. Ele olhou fixamente para
frente e, forte, começou a declamar a Cena I do Ato III de Hamlet:
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Ser ou não ser eis a questão. Será mais nobre sofrer na alma pedradas
e flechadas do destino feroz ou pegar em armas contra o mar de
angústias e, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir; isso. E com
o sono dizem extinguir dores do coração e as mil mazelas naturais a
que a carne é sujeita; eis uma consumação ardentemente desejável.
Morrer dormir Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo! Os sonhos
que hão de vir no sono da morte quando tivermos escapado ao tumulto
vital nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão que à desventura uma
vida tão longa. Pois quem suportaria o açoite e os insultos do mundo, a
afronta do opressor, o desdém do orgulhoso, as pontadas do amor
humilhado, as delongas da lei, a prepotência do mando, e o achincalhe
que o mérito paciente recebe dos inúteis, podendo, ele próprio, encontrar
seu repouso com um simples punhal? Quem aguentaria fardos, gemendo
e suando numa vida servil, senão porque o terror de alguma coisa após a
morte o país não descoberto, de cujos confins jamais voltou nenhum
viajante nos confunde a vontade, nos faz preferir e suportar os males
que temos, a fugirmos para outros que desconhecemos? E assim a
reflexão faz todos nós covardes. E assim o matiz natural da decisão se
transforma no doentio pálido do pensamento. E empreitadas de vigor e
coragem, refletidas demais, saem de seu caminho, perdem o nome de
ação (Shakespeare, 2019, p.51 Trad. Millôr Fernandes).
Quantas vezes essa cena ganhou vida nos maiores palcos do mundo?
Quantos atores e atrizes repetiram a frase mais famosa da história da dramaturgia
“ser ou não ser: eis a questão” ao longo dos séculos? Quantas plateias se
emocionaram diante da história trágica do príncipe da Dinamarca? Quantos foram
Hamlet? Inúmeros. Infinitos. Ninguém como o Lucas. Naquela tarde chuvosa,
naquela sala de ensaio, naquela escola de teatro, em Belém do Pará, Hamlet
materializou-se de modo tão transcendental que o próprio espírito de
Shakespeare se levantou para admirar.
Pela primeira vez, presenciei um corpo tornando-se dramaturgia e uma
dramaturgia tornando-se corpo. Lucas falava em morrer, dormir, isso, e cada
fibra do seu corpo cansado contava uma história, centenas de histórias, que
misturavam passado, presente e futuro. O tempo parou. Naquele momento, não
havia doença, não havia fim. Naquele instante, eu entendi que o teatro é a arte do
passado e do porvir, do eterno, e que o eterno dura, efemeramente, um segundo.
Hamlet eternizou-se em Lucas, Lucas eternizou-se em Hamlet, e os dois viraram
um só corpo cênico!
Naquela tarde chuvosa, eu
vi
e
senti
um corpo-dramaturgia. Lucas me
presenteou, foi minha inesquecível lição do quanto pode um corpo, movido pela
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arte-vida. Shakespeare não conheceu o Lucas, mas, na pequena sala de ensaio, o
jovem rapaz que falava em morrer, dormir e talvez sonhar,
tornou-se
aquelas
palavras na nossa frente. Ele não contava uma história, ele
era
a história, e o fio
transcendental que conecta todos os atores desde os primórdios do teatro o
manteve de pé, com vigor, por vários minutos, enquanto as palavras de
Shakespeare tornavam-se vivas diante dos nossos olhos. Morrer. Dormir. Talvez
sonhar.
Nós, dramaturgas, somos, acima de tudo, contadoras de histórias, e o Lucas,
ao contar toda sua história em alguns minutos, vestindo preto e branco, vestindo
Hamlet
, tornou-se, naquela ocasião, o maior professor que tive, o mais pungente
olhar que tocou a quem estava presente. Um corpo que não contou uma
dramaturgia, como
tornou-se
dramaturgia. Assim como a obra de Shakespeare é
eterna, eterno também é o Lucas.
Hoje, posso afirmar que foi essa (des)construção, esse preparo/mergulho do
corpo dramaturgicamente posto em cena que persigo e tento exercitar no meu
corpo de atriz e passar para as pessoas que frequentam minhas aulas de
preparação para atores/atrizes. Estar em cena é estar/ser o momento vivido,
teatral e visceralmente falando.
O tempo não é linear, dizem os cientistas. Presente, passado e futuro
convergem em
loopings
inexplicáveis. Assim, Lucas permanece vivo naquela tarde
chuvosa, naquele texto sobre morte, sono e sonhos. Mas, eu não esqueço. Eu não
esqueço o corpo curvado com dificuldade, agradecendo os aplausos dos/as
amigos/as. Eu não esqueço do olhar de despedida. Do último abraço. Não esqueço
a coragem, o desapego, a força e o amor ao teatro que Lucas nos passou, ao
escolher aquele texto tão denso, tão verdadeiro para despedida das pessoas que,
ele sabia, comungavam das suas concepções sobre dramaturgia. Lucas enfatizou,
cenicamente, que dramaturgia é vida.
O corpo do Lucas, que tornou viva a dramaturgia de Shakespeare,
desencarnou algumas semanas depois. Em outra disciplina, uma que o Lucas
sequer iniciou, outra professora pediu que escolhêssemos uma cena de Hamlet
para contar uma história. Eu escolhi a cena do Lucas. Para mim,
aquela
cena é do
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Lucas, porque ninguém a contou melhor do que ele.
Ao falar em morrer, dormir e sonhar, ao repetir o trecho de uma das obras
mais aclamadas do mundo, falei nele e naquele corpo que se eternizou numa
história. Agora, fico a imaginar o quanto doeu em sua alma ou o quanto de preparo
espiritual esse jovem ator tinha para
shakesperianamente
nos dizer adeus ou até
breve, quem sabe, além de nos passar as sábias palavras de um texto teatral e
nos demonstrar as potencialidades corpóreas de um ator.
O saber do corpo que escreve dramaturgias
Em 2022,
A Liga do Teatro
, meu grupo fundado em 2017 e no qual assino
direção teatral e dramaturgia
,
ofereceu seu primeiro workshop em Belém do Pará.
O plano era realizar uma adaptação para os palcos da série
teen
de sucesso
Heartstopper
e,
para nossa grata surpresa, pessoas de várias faixas etárias se
inscreverem de 16 a 60 anos. A história trata de temas impactantes, como
bullying, distúrbios alimentares, aceitação da sexualidade, não-binarismo, dentre
outros.
Durante uma conversa em roda com os alunos, pedi que relatassem como a
trama retratava aspectos que eles viviam no cotidiano: muitos mencionaram os
desafios de fazer parte da comunidade LGBTQIAP+; alguns aludiram a situações
de violência psicológica nas escolas; uma moça falou sobre anorexia ainda na
infância. Notei que a participante mais velha, Mariluz Vidonho, de 60 anos, ficou
atenta o tempo todo, mas não pediu a palavra. Ao final da conversa, perguntei:
alguém mais gostaria de falar? Ela finalmente levantou a mão.
Um tanto tímida, aquela senhora ofereceu um depoimento que impactou
profundamente não só nossa montagem artística de
Hearstopper
, que intitulamos
Encontros
, mas a minha carreira como dramaturga. Mariluz narrou aspectos
experenciados na adolescência, os quais ficaram guardados, desde então, numa
incômoda caixinha em sua memória. Ela sonhava ser bailarina; contudo, sempre
fora considerada gorda, segundo os padrões estéticos vigentes, então, abandonou
seu maior desejo muito cedo. Sentia vergonha de ver seu corpo nos tutus de ballet;
foi a última das amigas a começar a namorar, porque não se achava digna de
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amor; evitava usar o banheiro da escola, porquanto as colegas riam, bravejando
alto que as fezes de pessoas gordas eram insuportáveis. Odiava o corpo. Sempre
odiara.
Quando ouvi palavras tão fortes, deprimentes e desumanas, me senti
intensamente tocada e sabia que deveria incluir a experiência de vida da Mariluz
na dramaturgia que estava escrevendo. Ela havia sido escolhida para interpretar a
mãe de um dos protagonistas e, na cena final do espetáculo, participava de uma
bela cena em que o filho desabafava sobre sua recém-descoberta bissexualidade.
Encontrei o momento ideal para que as experiências de vida da atriz se tornassem
conselhos da personagem. Escrevi:
MÃE: Filho, nada importa mais do que a sua felicidade. Nada. E
nós
somos
responsáveis pela nossa própria felicidade, sabe? Demorei muito tempo
para entender isso. Na época da escola, minhas amigas todas começaram
a namorar antes de mim e eu achava que, por ser gorda, não merecia ser
amada. Eu tinha vergonha de tudo, até de usar o banheiro com outras
pessoas, porque sempre me sentia motivo de chacota. Tinha vontade de
dançar, mas não queria colocar a roupa de bailarina porque tinha receio
que me julgassem. Eu sinto que perdi tanto tempo, filho, me preocupando
com a opinião dos outros, tentando me encaixar, me diminuindo para
caber numa caixinha insignificante. Eu encontrei um amor quando
passei a
me
amar, assim mesmo como sou, gorda, desajeitada. Mas
demorou muito tempo. você, encontrou tão cedo. Muitos passam a
vida toda procurando o que você tem com o Charlie, querido, um laço
tão puro e verdadeiro. Não desperdice a chance de ser feliz ao lado de
quem ama. Jamais tenha vergonha de ser quem você é.
Na primeira vez em que Mariluz leu o texto, chorou por muitos minutos, assim
como as demais pessoas do grupo. Eu a assegurei de que somente incluiríamos o
trecho se ela assim desejasse, e a atriz respondeu: “Precisamos incluir. Se uma
jovem moça naquela plateia ouvir minhas palavras e odiar um pouco menos seu
corpo, terei cumprido um propósito de vida”. E assim foi feito. Todas as vezes em
que apresentamos
Encontros,
a cena da mãe era a que mais emocionava o público
e muitas moças abraçavam Mariluz ao final, identificando-se com a situação e
sentindo-se um pouco mais confiantes.
Tal experiência fez com que eu compreendesse mais conscientemente como
a relação dos atores e atrizes com seus corpos impacta a minha escrita
dramatúrgica. Desde então, no início de cada processo, sento-me em roda com os
integrantes e faço perguntas que envolvem suas vivências corporais. As respostas
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são registradas num caderno diário de bordo que utilizo para consulta no
desenvolvimento dos meus textos para cena. Dividirei algumas dessas preciosas
anotações com vocês.
Quais diferenças você sente entre seu corpo cotidiano e corpo cênico?
Victor Azevedo, 30 anos, bailarino e ator:
A maior diferença que sinto está na atenção. Quando estou no palco,
estou focado, concentrado de forma diferente. É uma atenção física,
corporal, intencional. No cotidiano, minha concentração é automática,
pouco trabalhada. No teatro, é como se a minha atenção se expandisse
da mente para o corpo inteiro. Consigo até mesmo enxergar com as
costas. Tento não contar somente com os sentidos mais óbvios, como a
visão, mas procuro desenvolver uma percepção diferente do meu corpo
e dos outros colegas de cena. Também existe uma diferença na
quantidade de energia. Quando eu estou em cena, sinto-me como um
catalizador de energia. Existe uma quantidade enorme de energia que
meu corpo consegue produzir e externar. No cotidiano, o foco está em
cumprir tarefas: acordar, caminhar, produzir, trabalhar. meu corpo
cênico se ocupa de uma tarefa muito mais interessante: contar histórias.
Figura 1 Espetáculo Encontros, da Liga do Teatro (2022). Foto: Bruno Fadul
Quais sensações corporais são mais marcantes no palco?
Luiza Imbiriba, 30 anos, bailarina e atriz:
No palco, em cena, me sinto viva. Ultimamente, me sinto em dormência,
mas a cena me dá uma dose de vida toda vez, me sensibiliza. Sinto todo
o meu corpo e as extensões dele que se transbordam. Sinto a gota do
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suor, o fio de cabelo arrepiado, a respiração do outro e a minha. Isso me
nutre muito. Sinto algo quente no estômago, uma sensação boa, e uma
espécie de luz emana de dentro para fora. Essa sensação causa um
preenchimento e felicidade enorme. E é essa sensação que me faz voltar
aos palcos e me dá certeza do fazer cênico.
O que o seu corpo te diz no palco?
Paola Pinheiro, 28 anos, bailarina e atriz:
É como se eu mergulhasse no palco, sem perceber. Fico tão focada,
concentrada, presente, que o tempo nem parece existir. Tudo no meu
corpo corre no ritmo do palco, eu sinto como se estivesse num outro
lugar. O que marca muito é o sentimento quando termina o espetáculo.
O corpo se encontra num êxtase que não tem como explicar em palavras.
O corpo todo está vibrando, todas as células, coração acelerado e, ao
mesmo tempo, um alívio, uma calma, uma certeza. Desde que senti isso,
sei que o palco é o meu lugar.
Qual é a memória corporal mais marcante vivida num palco?
Larissa Imbiriba, 52 anos, bailarina e atriz.
No meio de ensaios, descobri que estava grávida, e a sensação de atuar
carregando minha filha no ventre é uma das mais mágicas que senti.
Usar a energia que reverbera no corpo para contar uma história para o
público provoca uma sensação muito grande de liberdade.
Figura 2 Espetáculo Dois Garotos de Liverpool, da Liga do Teatro (2023). Foto: Bruno Fadul
Guardo dezenas de belos depoimentos como os descritos e posso afirmar
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que, qualquer criação dramatúrgica que me proponho a desenvolver nutre-se
intensamente deles. Minhas dramaturgias nunca são rígidas, uma vez que as
criações desenvolvidas pelos atores durante os ensaios impactam diretamente no
desenvolvimento das cenas e, muitas vezes, até mudam os desfechos das
histórias. Mariluz, Victor, Luiza, Paola, Larissa... Lucas!
Eterno Lucas
. Estes e vários
outros artistas com quem tenho o privilégio de trabalhar não me fazem
compreender aspectos fundamentais do tema dramaturgia corporal como me
permitem
exercitar-viver a minha dramaturgia corporal.
Figura 3 Espetáculo Autocrítica, da Liga do Teatro (2024). Foto: Bruno Fadul
Ao cair das cortinas
O corpo – seja por gestos, posturas, transformações – é capaz de comunicar
emoções profundas e complexas que as palavras, por si só, não são capazes de
integralmente transmitir. Podemos redigir inúmeros parágrafos sobre
vulnerabilidade, por exemplo, mas uma movimentação corporal de encolhimento
orgânica tende a ser mais potente e viabilizar uma compreensão mais ampla
acerca desse sentimento.
A dramaturgia corporal transcende as palavras e, por esse motivo, conecta-
se diretamente com o público, oferecendo narrativas multifacetadas, repletas de
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nuances, que costumam suplantar a convencionalidade dos diálogos. Além disso,
expande as possibilidades de interpretação das obras, pois convida o público a
estar mais ativo na experiência teatral e a, momentaneamente, participar das
construções de significados cênicos. Esses breves momentos de interação com o
público, são dispositivos que nos movem a continuar com processos no fazer
cênico.
O corpo é um dos mais importantes veículos de comunicação e a dramaturgia
que advém das suas expressões é uma celebração da fisicalidade humana, apta a
gerar experiências teatrais impactantes, memoráveis e intensas. Por meio do
presente artigo, não pretendemos esgotar qualquer discussão sobre dramaturgia
corporal, mas, pelos breves relatos de uma ainda jovem atriz-diretora-
dramaturga-pesquisadora interligados aos de seu grupo, A Liga do Teatro,
buscamos contribuir, de algum modo, com a convicção dos leitores acerca das
potencialidades criativas do corpo dramaticamente lançados ao exercício e
atuação nas artes cênicas, nos palcos.
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Recebido em: 20/09/2024
Aprovado em: 23/11/2024
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