O corpo criador de narrativas teatrais: influências do trabalho corporal na escrita de uma dramaturgia amazônida
Bene Martins | Bárbara Toscano Gibson
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-19, dez. 2024
Ser ou não ser – eis a questão. Será mais nobre sofrer na alma pedradas
e flechadas do destino feroz ou pegar em armas contra o mar de
angústias – e, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir; Só isso. E com
o sono – dizem – extinguir dores do coração e as mil mazelas naturais a
que a carne é sujeita; eis uma consumação ardentemente desejável.
Morrer – dormir – Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo! Os sonhos
que hão de vir no sono da morte quando tivermos escapado ao tumulto
vital nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão que dá à desventura uma
vida tão longa. Pois quem suportaria o açoite e os insultos do mundo, a
afronta do opressor, o desdém do orgulhoso, as pontadas do amor
humilhado, as delongas da lei, a prepotência do mando, e o achincalhe
que o mérito paciente recebe dos inúteis, podendo, ele próprio, encontrar
seu repouso com um simples punhal? Quem aguentaria fardos, gemendo
e suando numa vida servil, senão porque o terror de alguma coisa após a
morte – o país não descoberto, de cujos confins jamais voltou nenhum
viajante – nos confunde a vontade, nos faz preferir e suportar os males
que já temos, a fugirmos para outros que desconhecemos? E assim a
reflexão faz todos nós covardes. E assim o matiz natural da decisão se
transforma no doentio pálido do pensamento. E empreitadas de vigor e
coragem, refletidas demais, saem de seu caminho, perdem o nome de
ação (Shakespeare, 2019, p.51 – Trad. Millôr Fernandes).
Quantas vezes essa cena ganhou vida nos maiores palcos do mundo?
Quantos atores e atrizes repetiram a frase mais famosa da história da dramaturgia
– “ser ou não ser: eis a questão” – ao longo dos séculos? Quantas plateias se
emocionaram diante da história trágica do príncipe da Dinamarca? Quantos foram
Hamlet? Inúmeros. Infinitos. Ninguém como o Lucas. Naquela tarde chuvosa,
naquela sala de ensaio, naquela escola de teatro, em Belém do Pará, Hamlet
materializou-se de modo tão transcendental que o próprio espírito de
Shakespeare se levantou para admirar.
Pela primeira vez, presenciei um corpo tornando-se dramaturgia e uma
dramaturgia tornando-se corpo. Lucas falava em morrer, dormir, só isso, e cada
fibra do seu corpo cansado contava uma história, centenas de histórias, que
misturavam passado, presente e futuro. O tempo parou. Naquele momento, não
havia doença, não havia fim. Naquele instante, eu entendi que o teatro é a arte do
passado e do porvir, do eterno, e que o eterno dura, efemeramente, um segundo.
Hamlet eternizou-se em Lucas, Lucas eternizou-se em Hamlet, e os dois viraram
um só corpo cênico!
Naquela tarde chuvosa, eu
vi
e
senti
um corpo-dramaturgia. Lucas me
presenteou, foi minha inesquecível lição do quanto pode um corpo, movido pela