1
Partituras do corpo:
um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges
Isis Gasparini
Para citar este artigo:
BORGES, Cristian; GASPARINI, Isis. Partituras do corpo:
um panorama da escrita coreográfica.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1,
n. 54, abr. 2025.
DOI: 10.5965/1414573101542025e119
Este artigo passou pelo
Plagiarism Detection Software
| iThenticate
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
2
Partituras do corpo1: um panorama da escrita coreográfica2
Cristian Borges3
Isis Gasparini4
Resumo
Das rudimentares notações coreográficas, criadas a partir do século XV, aos métodos digitais
mais recentes de captura do movimento, observa-se, de um lado, a alternância entre
presença e ausência da figura humana e, de outro, o desenvolvimento de uma escrita do
movimento que, partindo do nobre intuito de preservação e transmissão, acaba às vezes
valendo por si só, como resultado parcial de um processo de criação. Ao abordar problemas
de escrita próprios à música e à dança, percebe-se na obra de William Forsythe um duplo
sentido no emprego da partitura: conduzindo da obra à notação e da notação à obra.
Palavras-chave
: Notação coreográfica. Captura do movimento. Escrita do corpo. William
Forsythe.
Body scores: an overview of choreographic writing
Abstract
From the rudimentary choreographic notations created in the 15th century to the most recent
digital methods of motion capture, one observes, on the one hand, the alternation between
the presence and absence of the human figure and, on the other, the development of a
writing of movement that, starting from the noble intention of preservation and transmission,
sometimes ends up being valuable in itself, as a partial result of a creative process. While
addressing writing problems specific to music and dance, one perceives in William Forsythe's
work a double sense in the use of the score: leading from the work to the notation and from
the notation to the work.
Keywords:
Choreographic notation. Motion capture. Body writing. William Forsythe.
Partituras corporales: una visión general de la escritura coreográfica
Resumen
Desde las rudimentarias notaciones coreográficas, creadas a partir del siglo XV, hasta los más
recientes métodos digitales de captación del movimiento, se observa, por un lado, la
alternancia entre presencia y ausencia de la figura humana y, por otro, el desarrollo de una
escritura en movimiento que, basada en la noble intención de preservación y transmisión, en
ocasiones termina siendo válida en misma, como resultado parcial de un proceso de
creación. Cuando se acercan problemas de escritura propios de la música y la danza, se
percibe en la obra de William Forsythe un doble sentido en el uso de la partitura: el de la
obra a la notación y el de la notación a la obra.
Palabras clave
: Notación coreográfica. Captura de movimiento. Escritura del cuerpo. William
Forsythe.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Helena Albert Bachur. Mestranda em
Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP). Graduação em Letras pela USP com dupla habilitação
em Português e Francês.
2 Este artigo deriva de uma pesquisa que recebeu apoio da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo, processo: 2021/12417-0).
3 Doutorado em Cinema e Audiovisual pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris 3. Mestrado em Cinema
pela Universidade de Bristol, ambos com bolsa da CAPES. Professor Associado do Departamento de
Cinema, Rádio e Televisão e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade de São
Paulo (USP). cristianborges@usp.br
http://lattes.cnpq.br/0532374506907977 https://orcid.org/0000-0002-5570-5599
4 Doutoranda em Artes Cênicas na Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em Artes pela USP. Bacharel
em Artes Plásticas pela FAAP. isisgasparini@usp.br
http://lattes.cnpq.br/7734217784641711 https://orcid.org/0009-0009-0700-2301
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
3
Breve panorama da escrita coreográfica
A notação que descreve uma dança é conhecida como
partitura coreográfica
e vários sistemas de notação foram inventados ao longo dos últimos cinco séculos,
muitos deles voltados a tipos específicos de dança. Isso não impediu que a
notação coreográfica fosse relegada a segundo plano até muito recentemente,
fazendo com que várias obras importantes de diferentes épocas se perdessem
para sempre – daí a dança ter sido designada como uma arte
descartável
. Num
rápido panorama dessa evolução, observaremos a gradual introdução da figura
humana no esquema de sinais codificados, bem como sua eliminação
intermitente.
A partir do final do século XV, surgiram os primeiros tratados da dança
publicados na Itália, França e Inglaterra. Os mais antigos de que se tem notícia são:
o
manuscrito
Basses danses dites de Marguerite d'Autriche
(c. 1460), escrito com
tinta de ouro e prata sobre 25 folhas pretas, contendo indicações básicas
referentes a 58 danças desse período; e
L'art et instruction de bien dancer
(c. 1496),
de Michel Toulouze. Contemporâneos e bastante semelhantes, provavelmente
baseados em uma mesma obra anterior, ambos apresentam uma pauta musical
com notação quadrada (gregoriana) e indicações extremamente simplificadas dos
passos de dança, representadas por letras abaixo dos versos da música sem
qualquer indicação de estilo ou detalhes de movimentação.
Em 1588, Thoinot Arbeau publicou na França
Orchésographie
, considerado o
primeiro manual de dança “multimídia” por aliar, ainda que separadamente, texto,
imagens (xilogravuras) e música na descrição dos diferentes estilos coreográficos.
Ao posicionar a partitura musical verticalmente, o autor descrevia os passos de
dança correspondentes a cada nota a ser tocada/ ouvida, por vezes com o auxílio
de ilustrações que, embora graciosas, careciam de precisão nos detalhes (Figura
1).
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
4
Figura 1 - Página de
Orchésographie
(1589) de Thoinot Arbeau5
Estimulados pela criação da Academia Real de Dança (1661), na França de
Luís XIV, e pelo apoio da Dinastia Stuart às artes, na Grã-Bretanha, surgiram no
final do século XVII os primeiros tratados de dança mais elaborados, já contando
com certa sofisticação de sinais e sinuosidade de linhas, que buscavam analogia
visual com a movimentação dos corpos no espaço. Tornou-se corrente o emprego
de “plantas baixas” que serviam para indicar aos dançarinos, através da simulação
de vistas aéreas, onde se posicionar no salão e para onde olhar em relação a si
mesmos e à plateia. Em 1700 foi publicada, também na França, a obra que lançaria
as bases do balé clássico, intitulada
Chorégraphie ou L'art de décrire la dance
,
de
Raoul-Augier Feuillet, na qual a figura humana permanecia ausente, dando lugar
apenas à partitura da música, na parte superior da folha, e a uma trilha de sinais
que indicavam os movimentos dos pés e apenas sumariamente a posição dos
braços, na parte inferior, carecendo, portanto, de indicações de ritmo ou de saltos,
por exemplo (Figura 2).
5 Fonte: https://www.libraryofdance.org/dances/branle-hault-barrois/ Acesso em: 29/01/2025.
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
5
Figura 2 - Página de Chorégraphie ou L'art de décrire la dance (1700)6
Por sua vez, Edmund Pemberton publicaria em 1711, na Inglaterra,
An essay
for the further improvement of dancing
, que seguia o mesmo padrão binário
música/dança do sistema de Feuillet: ambas as obras apresentavam, assim,
esquemas visuais com padrões básicos relativos às ações, ficando de fora tanto
detalhes mais precisos relativos ao trabalho de braços e pernas quanto a figura
humana que as executaria. Entretanto, não se pode ignorar o requinte gráfico
absolutamente fascinante atingido por esse dispositivo de transposição da
tridimensionalidade da dança para a bidimensionalidade do papel. Apesar da
enorme influência exercida pelo sistema de Feuillet em sua época, sistemas
futuros não empregariam mais a combinação de passos e trajetórias, ficando estas
restritas às plantas baixas, tal como empregadas ainda hoje, a partir dos trabalhos
de Arthur Saint-Léon (1852) e Friedrich Zorn (1887).
Porém, em 1725, o bailarino e coreógrafo Pierre Rameau publicou, na França,
Le maître à danser
, no qual a figura humana é enfim inserida, integral ou
parcialmente, em conjunção com curtas descrições verbais dispostas de modo a
mimetizar os movimentos sugeridos visualmente pelas imagens estáticas, que
o autor brinca com linhas sinuosas compostas pelas próprias palavras (Figura 3).
Curiosamente, essa disposição plástica das palavras no espaço da folha impressa
6 Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Raoul_Auger_Feuillet Acesso em: 29/01/2025.
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
6
prefiguraria, de certo modo, a operação posta em prática em meados do século
XX pela poesia concreta brasileira por exemplo, nas traduções de Augusto de
Campos para o
Poema-cauda
(1865), de Lewis Carroll, e para
A rosa doente
(1794),
de William Blake.
Figura 3 - Páginas de Le maître à danser (1725) de Pierre Rameau7
Em 1735, Kellom Tomlinson publicou, em Londres,
The art of dancing
explained by reading and figures
, em 2 volumes, nos quais aparecem novamente
as figuras humanas, que desta vez com maior riqueza de detalhes (de
vestimentas e gestos) e inseridas no sistema de Feuillet, ou seja, com sinais
coreográficos estampados no chão, aos pés das personagens, e partitura musical
pairando acima de suas cabeças. Nesta obra, o autor inglês emprega a
perspectiva
e diferentes
pontos de vista
, além de introduzir audaciosos
espelhamentos
(Figura 4 e 5) e antecipar, por assim dizer, o procedimento
cinematográfico conhecido como
campo e contracampo
que só seria criado nas
primeiras décadas do século XX –, através da inversão de
enquadramentos
com
7 Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Le_Ma%C3%AEtre_%C3%A0_danser_p.258.jpg Acesso em:
29 jan.2025.
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
7
dois personagens (Figura 6 e 7).
Figura 4 a 7 - Páginas de The art of dancing (1735) de Kellom Tomlinson8
Arthur Saint-Léon publicou, em 1852,
La sténochorégraphie ou L'art d'écrire
promptement la danse
, na qual utilizava figuras de palito para indicar as posições
dos braços e pernas, ao passo que reaproximava a pauta musical da coreográfica
8 Fontes: https://digitalcollections.nypl.org/items/89b93c5d-a432-99bb-e040-e00a18066f5f +
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Houghton_Typ_705.35.842_-_Kellom_Tomlinson,_passacaille.jpg +
https://www.researchgate.net/figure/The-Art-of-Dancing-explained-by-Reading-and-Figures-Kellom-
Tomlinson-London-1735-book_fig1_228682793 + https://danceinhistory.com/tag/kellom-tomlinson/page/2/
Acesso em: 29/01/2025.
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
8
a fim de indicar mais claramente, com o auxílio de sinais musicais, as durações
dos movimentos. Friedrich Albert Zorn elaboraria uma versão mais sofisticada do
sistema de Saint-Léon, em sua
Grammatik der Tanzkunst
(1887), que seria usada
como manual em academias de dança europeias no início do século XX (Figura 8).
Contudo, de acordo com Ann Hutchinson Guest (2005, p. 2), a utilização de figuras
de palito em notações coreográficas coloca três problemas práticos: 1º, por serem
desenhados do ponto de vista da plateia de um teatro, o leitor/ intérprete precisa
inverter direita e esquerda; 2º, a terceira dimensão não é claramente indicada; e
3º, a indicação dos movimentos é sobrepujada pela mera descrição das posições.
Figura 8 - Trecho de partitura no sistema de Zorn para a
Cachucha
de Fanny Elssler9
Buscando resolver a dificuldade para se notar duração e ritmo, Vladimir
Stepanov empregaria sinais de notação musical, em seu
Alphabet des
mouvements du corps humain
(1892), ao incorporar indicações de movimentos do
corpo todo em termos anatômicos. No entanto, as notas musicais não eram
suficientemente flexíveis para comportar as várias indicações espaço-temporais
9 Fonte: https://ausstellungen.deutsche-digitale-bibliothek.de/tanz/items/show/45 - Acesso em: 29 jan.
2025.
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
9
necessárias à notação de movimentos visíveis. Assim, somente em 1928 surgiriam
duas obras que proporiam sistemas de notação do movimento mais complexos e
com pretensões mais globalizantes:
The notation of movement
,
de Margaret
Morris, e
Schrifttanz: methodik, orthographie, erläuterungen
, de Rudolf Laban. O
sistema de Morris, resultado da libertação das amarras impostas ao corpo pelo
balé clássico, segundo Guest (2005, p.2),
é baseado em uma análise anatômico-sonora do movimento, sendo
aplicável a muitas formas distintas. Cada movimento anatômico possui
sua própria indicação, mas a escolha arbitrária de símbolos, as indicações
assimétricas de posições simétricas e a ausência de continuidade na
indicação da duração propiciam limitações.10
o sistema proposto por Laban resultava da libertação das amarras
impostas à dança pela música e solucionava alguns problemas históricos
importantes: por um lado, sua inovadora pauta vertical adequava-se muito melhor
à representação do próprio corpo do dançarino, correspondendo diretamente à
esquerda e à direita de quem lê/ interpreta a partitura, e à continuidade no fluxo
do movimento; por outro lado, os símbolos prolongavam-se ou encurtavam-se
para indicar a duração exata de cada ação. Baseada em princípios espaciais e
dinâmicos, sua escrita analítica do movimento acabava revelando-se mais flexível
do que as anteriores e, logo, podia ser aplicada a qualquer tipo de movimento e
não apenas à dança. A figura humana desaparecia por completo desse sistema de
notação, restando apenas diagramas simbólicos (Figura 14). Como destaca Guest
(2005, p. 84):
a labanotação é o único sistema no qual quatro fatores de uma ação
combinam-se em apenas um símbolo: a direção (indicada pela forma do
símbolo), a altura (indicada pelo seu preenchimento), a duração (indicada
pelo seu comprimento) e a parte do corpo que se move (indicada pelo
seu posicionamento na pauta). E como a duração é dada pelos próprios
símbolos do movimento, o sistema acaba sendo autossuficiente e
independe de as sequências serem notadas tendo por referência uma
pauta musical.
O sistema de Laban, também conhecido como
labanotação
, segue sendo
utilizado por sua capacidade de registro bastante abrangente e precisa, mas
permanece restrito a uma fração de leitores que, como parte do aprofundamento
10 Exceto quando indicada uma edição em português, todas as traduções são nossas.
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
10
em seu método, dedicam-se a estudar esse “idioma”. Depois de Laban, vários
outros sistemas de notação surgiram, incluindo alguns programas de computador
voltados para o registro de coreografias. Estes normalmente derivavam de
sistemas analógicos baseados na descrição matemática do movimento, tais como
o de Rudolf e Joan Benesh (
Introduction to Benesh Dance Notation
, 1956) no
qual a bailarina é representada de costas na pauta musical de 5 linhas, cada uma
delas correspondendo a uma parte do corpo e o de Noa Eshkol e Avraham
Wachmann (
Movement Notation
, 1958) cuja abordagem lógica emprega
sobretudo números na criação de coreografias inusitadas que partem da partitura
para o corpo, impondo-lhe outro tipo de demanda física.
O coreógrafo Merce Cunningham foi pioneiro ao empregar tecnologia digital
na criação coreográfica, a partir de 1989, através da técnica de captura do
movimento (
motion capture
), graças ao programa de computador LifeForms,
desenvolvido para ele pela Universidade Simon Fraser (Figura 15-16). A virtualização
dos movimentos corporais propiciada pela tecnologia digital, e mais
particularmente pelo procedimento de
motion capture
, alça a notação
coreográfica a um outro patamar, que o próprio corpo em movimento consegue
se inscrever e gerar dados com extrema precisão e complexidade, ao passo que
esse tipo de notação passa a ser considerado, por si só, como uma espécie de
performance virtual:
Se o virtual e o real não se opõem na captura do movimento, e se esta é
considerada, ao mesmo tempo, traço e performance atual [...] quando a
massa e a aceleração do movimento são trabalhadas em termos de uma
integralidade corporal, e portanto em relação com a mobilização da
massa corpórea afetada pela gravidade, em lugar de uma simples série
de posições, uma nova poética do movimento por computação gráfica
torna-se possível [...] Se em vez de uma simples forma de representação
ou “escrita” a ser interpretada, a dança puder funcionar como informação,
no âmbito de sistemas informacionais mais amplos que não fazem
distinção entre tipos de dados, então ela poderá funcionar no mesmo
nível ontológico que qualquer atividade sistêmica (Vincs, 2016, p. 268-
276).
Conforme a pesquisadora Maíra Spanghero ressalta em seu artigo “Dançando
números, formas e padrões”, existe no Brasil “a experiência pontual de Analívia
Cordeiro, o Nota-Anna (1998), um sistema de notação desenvolvido para a escrita
eletrônica do movimento, baseado no método Laban, e que teve um uso muito
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
11
restrito” (Spanghero, 2014, p. 134).
Problemas de escrita
A base da notação coreográfica consiste, como vimos, na tradução de
movimentos tridimensionais em sinais codificados sobre papel bidimensional. O
movimento possui, via de regra, quatro dimensões três espaciais e uma temporal
–, mas poderíamos acrescentar ainda uma quinta, se levarmos em conta a
dinâmica
, ou seja, a qualidade, a textura e o frasear dos movimentos, que
normalmente ficam de fora das notações coreográficas, pois são sobretudo as
posições que ficam registradas. Trata-se, portanto, de uma representação
simbólica
da forma e do movimento dos corpos por mapeamento de sua evolução
no espaço através do emprego de figuras desenhadas, símbolos gráficos, números,
letras e/ou palavras.
Ao contrário da notação musical ocidental, que começou com os neumas por
volta dos séculos IX e X, passando pela notação gregoriana entre os séculos XI e
XV até cristalizar-se com o advento da imprensa de Gutenberg no século XV (ver
Cullin, 2004)11, a notação coreográfica teve um desenvolvimento bem mais
conturbado e irregular, produzindo eventualmente sistemas um tanto herméticos
que, a exemplo da Labanotação, tornam-se operativos apenas dentro de uma
metodologia. Nesse sentido, a universalidade pretendida por certo sistema de
notação existe como ilusão produzida pela fluência que certo grupo de
seguidores adquire nesse mesmo sistema, já bastante difundido, não alcançando
um lugar de universalidade.
Essas dificuldades acontecem, em parte, devido a mudanças nos estilos de
dança e na expressividade corporal ao longo dos tempos, mas também, e
sobretudo, porque a dança, em comparação à música, compreende mais variáveis
a serem codificadas: além de altura, força e duração, o movimento coreográfico
comporta igualmente um aspecto visível e tridimensional particularmente difícil
11 Por exemplo, na p. 27: “‘Notar’ a música é antes de tudo conferir-lhe uma imagem, uma representação cujo
alcance ultrapassa largamente seu conteúdo”; ou ainda, p. 46: “[...] mesmo se a notação é o lugar de uma
codificação tornada sistemática, ela reserva ainda assim espaço suficiente para uma oralidade sempre
presente, porque a escrita não pode pretender absorver e exprimir plenamente o objeto de seu desejo”.
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
12
de ser transposto para as duas dimensões do papel, sem falar na dinâmica, com
suas sutis variações na trajetória do corpo no solo e no espaço. Como explica Ann
Hutchinson Guest (2005, p. 1):
A dança é mais complexa do que a música porque existe tanto no tempo
quanto no espaço, e porque o próprio corpo é capaz de muitos modos
de ação simultâneos. Consequentemente, os problemas de se formular
uma notação do movimento que possa ser facilmente escrita e lida são
inúmeros. Os primeiros métodos resultaram de fases no
desenvolvimento da própria dança, cujas mudanças constantes fizeram
com que se tornassem obsoletos e, logo, fossem descartados. Os três
requisitos fundamentais registrar com precisão movimentos
complicados, registrá-los de forma econômica e legível, e acompanhando
as sucessivas mudanças no movimento deixaram a notação
coreográfica em um estado de fluxo permanente, impedindo por séculos
um desenvolvimento estável.
A notação, tanto musical quanto coreográfica, possui um duplo estatuto ou
uma dupla função: por um lado, de
preservação
, ligada à sua vocação de arquivo;
por outro, de
transmissão
, relacionada à possibilidade de sua reprodução através
de um trabalho de decodificação. Mas o histórico fracasso da dança em
desenvolver um tipo de notação adequada e amplamente aceita deriva, segundo
Fernau Hall, no fato de ela não ter conseguido se perpetuar por meio de um
sistema universal de notação que possibilitasse estudantes e coreógrafos a
analisarem detalhes de obras específicas (Hall, 1983). Hall considera que uma
espécie de “analfabetismo” teria sido responsável por essa falta de consistência
na manutenção de um sistema coreográfico amplamente aplicável e legível:
O balé permaneceu analfabeto não porque os coreógrafos e mestres da
dança fossem inconscientes da importância da notação: ao contrário,
tentativas de se inventar um sistema satisfatório de notação coreográfica
podem ser encontradas no início do século XV, ou seja, nos primórdios
do balé. Alguns inventores demonstraram bastante engenho e suas
criações foram adotadas por algum tempo, sobretudo por eles próprios;
mas elas não sobreviviam à morte de seus criadores, não havendo,
portanto, um progresso regular (Hall, 1983, p. 394).
Ele argumenta que, se por um lado, a padronização e o desenvolvimento
gradual da notação musical garantiram, com o passar do tempo, que ela ocupasse
um lugar central na composição e evolução da música, a notação coreográfica, por
outro lado, teria sido relegada às margens da criação da dança devido à
impossibilidade de se conjugar, em um único sistema, um registro completo da
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
13
integralidade do movimento que fosse simples e de prática aplicação (Hall, 1983,
p. 395). Por isso, enquanto o compositor consegue visualizar o conjunto de sua
obra no papel, tanto no sentido horizontal quanto no vertical12, o coreógrafo
encontra dificuldades em fazê-lo com o auxílio de uma partitura coreográfica e
acaba contando apenas com sua memória (Hall, 1964, p. 392) uma deficiência
que poderia ser corrigida, por exemplo, com o auxílio da
policoria
(ou “contraponto
coreográfico”) proposta pelos estudos de
coreologia
do casal Benesh (Hall, 1964,
p. 398).
Nelson Goodman, por sua vez, questiona a possibilidade mesma de se
desenvolver uma notação universal para a dança, ao indagar se ela seria como a
pintura (para a qual não pode haver tal notação) ou como a música (para a qual
existe um sistema relativamente adequado), na distinção entre artes e obras
autográficas
como a pintura e a literatura, que dependem do autor para existir
e
alográficas
como a música e o teatro, cuja existência depende ao mesmo
tempo do autor e do intérprete da obra. Quanto às limitações da notação
coreográfica, ele ressalta que:
uma partitura não precisa captar toda a sutileza e complexidade de uma
performance. [...] A função de uma partitura é especificar as propriedades
essenciais que uma performance deve conter a fim de corresponder à
obra; as estipulações dizem respeito apenas a certos aspectos e somente
em determinados graus. Todas as outras variações são permitidas e as
diferenças entre performances de uma mesma obra, mesmo musicais,
são enormes (Goodman, 1983, p.394).
Nesse sentido, Jack Anderson distingue os
materialistas
, que acreditam em
uma obra somente quando seguida à risca em sua interpretação – decodificação
ou leitura –, dos
idealistas
, que acreditam em uma interpretação mais livre, desde
que se mantenha fiel ao
espírito
da obra original sua concepção ou efeitos
essenciais (Anderson, 1983).13 Até porque, como lembra Olivier Cullin a respeito da
notação musical (mas que se aplica igualmente à coreográfica):
12 Algo que Serguei Eisenstein (1990, p. 49-72) habilidosamente transpõe ao cinema, a partir da noção de
“montagem vertical”, descrita no artigo “Sincronização dos sentidos” (1940) e brilhantemente ilustrada pelo
diagrama para uma sequência de seu próprio filme, Alexandre Nevsky (1938), que acompanha o artigo “Forma
e conteúdo: prática” (p. 97-132).
13 O que remete, de certo modo, à defesa que André Bazin (2014) fazia da adaptação literária pelo cinema:
devendo ser muito mais fiel ao
espírito
do que à letra da obra original.
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
14
O manuscrito e sua escrita situam-se na continuidade da oralidade;
aquilo que percebemos pela leitura nada mais é do que uma
re-produção
e não uma produção. Ato de arquivar fixando com códigos uma parte
visível da obra e/ou ato direto ou interiorizado de memorizar por meio de
uma mediação indireta (o leitor, seja ele um intérprete ou não), a escrita
congela a oralidade interrompendo-a no nível de uma determinada
performance [...] Ela é, por outro lado, mortífera, pois mata ao partir em
micromovimentos o movimento original, o gesto espontâneo [...] A escrita
também instala uma pista falsa ao nos fazer crer em uma suposta
objetividade (Cullin, 2004, p. 28-30).
Afinal, ao contrário da literatura, trata-se de um sistema de escrita em
segundo grau que não costuma nascer enquanto tal, no papel, mas na
materialidade, ainda que imaginada, dos sons (no caso da música) ou dos
movimentos (no caso da dança), e somente depois é codificado e transposto para
o papel. Além disso, é um sistema que implica um domínio de referência,
determinando igualmente um lugar de poder: “quem controla o código e quem o
lê?” (Cullin, 2004, p. 31).
De acordo com Laurence Louppe, a dança é “uma contra-escrita, o contrário
de qualquer grafema” que “levaria à abolição do verbo” numa “jornada sem fim
para além da inscrição” e, logo, uma “arte sem escriba” (Louppe, 1994, p. 10).
Assim, a problemática de sua notação apresenta-se, de saída, como algo insolúvel
ou, no mínimo, de difícil resolução, dada sua natureza fugidia, “descartável” e
eventual (no sentido de algo que deriva de um evento). Daí a autora sugerir que a
concepção ocidental da dança funda-se na “busca de um signo inscrito na matéria,
da cartografia de um ‘texto’ que o movimento lerá em um espaço que desconhece”
(Louppe, 1994, p. 13).
Originalmente, o termo
coreografar
, cunhado por Raoul-Augier Feuillet em
1700, designava o ato de “traçar ou anotar a dança” e a palavra
coreografia
era
empregada de maneira distinta, designando o próprio sistema de notação para
comunicar uma sequência de movimentos, enquanto que atualmente refere-se à
criação de uma dança, correspondendo à “transformação de organizações
motoras latentes, do espaço e do tempo que as contêm e do intercâmbio entre
as polifonias interiores e os dados espaço-temporais objetivos com os quais, entre
outras coisas, o ato as confronta” (Louppe, 1994, p. 14). Contudo, Louppe insiste na
impossibilidade inerente a qualquer tipo de notação de dar conta da organicidade
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
15
manifesta pelo movimento dançado, que “não pode ser traduzido, não pode ser
recuperado, encontra-se ligado à sua pura atualização emocional e física, que
nenhum signo pode restaurar, que nenhum signo tem o direito de inscrever como
um evento definitivo” (Louppe, 1994, p.20). Sem dúvida, algo análogo ao que ocorre
quando a dança “morre” para se tornar filme: um reflexo, uma sombra, uma pálida
tradução, uma metáfora. Assim como quando transposta ao papel, como indaga
Louppe (1994, p. 22-23):
Por que todos esses desenhos, traçados, planos, redes, trajetórias
cravadas no papel por uma mão carregada de seus próprios movimentos,
como se o movimento da mão tivesse lido o movimento do corpo e
projetado seu fluxo? O papel de modo algum contém um registro da
dança, mas um traço que não pode ser confiado a outro lugar. [...] O corpo
não o escreve, pois ele escreve o corpo. [...] esses papéis são sempre
habitados por algo que extrapola o visível. [...] Espelhos, sem dúvida, mas
também membranas, peles, a interface de espaços porosos. O local da
transação ilusória entre o dentro e o fora, a metáfora do derradeiro
invólucro corpóreo que é a superfície de inscrição [...] apenas o
prolongamento dos elementos cutâneos e intercutâneos que
determinam os territórios conjuntivos do imaginário.
Daí encontrarmos, ao longo do século XX, notações um tanto
excêntricas
que
parecem querer trazer para o papel algo da abstração, da vibração, da vitalidade,
do magnetismo de corpos em movimento, em uma espécie de “escrita sem
‘linguagem’ que traça seus sinais diretamente a partir de uma matéria sem forma”
(Louppe, 1994, p. 26). Por exemplo, nas teias ou malhas de linhas que cobriam as
páginas de textos de Trisha Brown, no final dos anos 1970, borrando as fronteiras
entre escrita e artes visuais (Figura 9). Trabalhos como esse subvertem o sentido
tradicional da notação, porque não constituem uma ferramenta de memória, de
transmissão ou mesmo de composição do movimento coreográfico. Mais que
como um meio, essas notações se realizam como resultado de um processo
criativo, adquirindo por si mesmas o estatuto de obra.
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
16
Figura 9 - Trisha Brown,
Untitled
(1976) e
Untitled
(1980)14
Algo que retorna em sua obra
Desenho/ Performance
(2008), no qual ela cria
uma imagem sobre papel, no chão, com o próprio corpo, remetendo tanto às
experiências fotográficas de Man Ray com suas
rayografias
e de László Moholy-
Nagy com seus
fotogramas
, nos anos 1920 que consistiam na impressão por
contato dos próprios objetos e partes do corpo sobre superfícies fotossensíveis –
, quanto às pinturas corporais de Yves Klein na série
Anthropométries
, dos anos
1960 que resultavam da performance de corpos pintados de azul sobre uma tela
disposta na parede ou no chão. Assim como, por outro lado, também remete à
atualização que Guilllermo Kuitca propõe, nos anos 1990, de um dos diagramas de
dança de Andy Warhol, dos anos 1960.
Se observarmos alguns desenhos preparatórios e partituras de artistas da
dança, como Anne Teresa de Keersmaeker, Yvonne Rainer (Figura 10) e Lucinda
Childs (Figura 11), por exemplo, perceberemos como cada uma delas busca sua
própria maneira de comunicar no papel o sentimento da performance corporal
num misto de notação coreográfica e artes visuais, entre rabiscos um tanto
14 Fonte: https://walkerart.org/collections/publications/performativity/drawings-of-trisha-brown/ - Acesso
em: 29 jan. 2025.
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
17
abstratos e indiscerníveis e diagramas altamente elaborados e racionais.
Figura 10 - Yvonne Rainer, esboço para a primeira parte de
Trio B
(c. 1968)15
Figura 11 - Lucinda Childs, trecho da partitura de
Calico Mingling
(1973)16
15 Fonte: https://walkerart.org/collections/publications/performativity/drawings-of-trisha-brown/ - Acesso
em: 29 jan. 2025
16 Fonte: https://www.researchgate.net/figure/Lucinda-Childs-reduction-for-Calico-Mingling-1973-
photocopy-85-11-Fonds_fig4_348685855 - Acesso em: 29 jan. 2025.
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
18
No contexto das experimentações que marcaram a produção artística dos
anos 1960, o
happening
e a
performance
afirmam-se como linguagens artísticas
baseadas na ideia de que a presença do corpo, sua ação e seu gesto podem
constituir, por si mesmos, uma experiência estética. Em princípio, essas
manifestações se assumem e reivindicam a condição de obra efêmera. Como diz
Peggy Phelan, teórica e crítica especializada na linguagem da performance:
A vida da performance está apenas no presente. A performance não pode
ser guardada, gravada, documentada, ou participar de modo algum da
circulação de representações: se fizer isso, torna-se outra coisa que não
a performance. Na medida em que a performance almeja entrar na
economia da reprodução, ela trai e dissolve a promessa feita por sua
própria ontologia (Phelan, 1996, p. 147).
Mas os artistas não tardarão a produzir documentos e a acumular resíduos
dessas ações, não apenas como forma de referenciá-las, mas como um
desdobramento da experiência que produzem. Não era incomum que artistas
ligados à linguagem da performance executassem suas ações a partir de
instruções ou diagramas que podem ser entendidos como sistemas de notações.
Nesse contexto, o Fluxus, grupo internacional constituído por artistas de
formações e origens diversas, produziu sistematicamente experimentos que
ficaram conhecidos como
event scores
(partitura de eventos). Apesar da analogia
com o sistema de notação da música, mais do que um sistema de registro de uma
obra, essas partituras funcionam como um roteiro, escrito de forma sintética e
provocativa, para uma ação a ser executada por seu criador, por um artista
convidado ou por qualquer outra pessoa que desejasse fazê-lo. Justamente com
esse propósito, várias dessas partituras foram partilhadas em publicações
editadas pelo grupo. Muitas delas chegaram a ser efetivamente realizadas e outras
constituem provocações poéticas que convidam a uma ação imaginária. Nesse
sentido, algumas notações podem ser entendidas como espécies de poemas, cujo
valor carrega certa autonomia em relação às ações que propõem.
Quando tratamos da escrita, e particularmente desse tipo de escrita em
segundo grau aplicada à música e à dança, estamos falando em termos de uma
sedimentação
, como propõe Dragos Duicu em relação à fenomenologia do
movimento:
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
19
As palavras com as quais pensamos, assim como as palavras que
inscrevem nosso pensamento e o corpo que faz essa inscrição são
todos repositórios do movimento que somos, e o retorno a si do
movimento que o verdadeiro pensamento deveria ser só é viável porque
existe essa sedimentação (Duicu, 2014, p. 392).
O que nos lembra que “
notar
a música [ou a dança] não é [necessariamente]
sinônimo de
compor
(Cullin, 2004, p. 39, grifos nossos), ao contrário do que ocorre
com o cinema. E justamente por isso as escritas musical e coreográfica costumam
ser diferentes da escrita cinematográfica se nos referirmos aqui à criação de
frases audiovisuais e não de roteiros, é claro. Porque o cinema
se inscreve
no
próprio ato de captação de imagens e sons, ou seja, enquanto a música e a dança,
pelo menos em suas vertentes ocidentais, são passíveis de serem escritas ou
transpostas
a posteriori
para o papel, um filme
se escreve
a si mesmo enquanto
nasce, mas não com símbolos ou palavras. Não à toa, Pier Paolo Pasolini (1976, p.
47-76), que considera a realidade como “linguagem da ação” ou “cinema ao
natural”, define o próprio cinema como “língua escrita da realidade” – ou, nas
palavras de Ismail Xavier (2005, p. 140), “realidade coagulada, cristal desvitalizado
da experiência”.
Segundo Pasolini, à linguagem verbal que deriva da combinação de uma
língua oral (natural) com uma língua escrita (convencional) que fixa a primeira ao
substituir o canal de transmissão
boca/ orelha
pelo canal
reprodução gráfica/ olho
deve corresponder, analogamente, uma
linguagem da ação
que, por sua vez,
deriva da combinação de uma
língua da realidade
(natural), pela qual somos atores
e espectadores da vida em “um gigantesco
happening
”, com uma
língua
cinematográfica
compreendida como reprodução (convencional) da realidade, que
opera igualmente na rememoração ou no sonho. Nesse sentido, “a ‘linguagem da
ação’, que é eventual e não pode ser definida com precisão, encontrou [no cinema]
um meio de reprodução mecânica
similar à convenção da língua escrita em
relação à língua falada
” (Pasolini, 1976, p. 56). Em seguida, ele complementa:
Se o cinema nada mais é do que a língua escrita da realidade (que se
manifesta sempre por ações), isso significa que ele não é arbitrário nem
simbólico: ele representa a realidade através da realidade.
Concretamente, através dos objetos da realidade que uma câmera
reproduz, momento após momento. [...] Ao me exprimir através da língua
do cinema que não é outra coisa, repito, senão o momento escrito da
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
20
língua da realidade permaneço sempre no âmbito da realidade: não
interrompo sua continuidade através de um sistema simbólico e
arbitrário, como o sistema de signos linguísticos que, a fim de
reproduzir
a realidade através de sua evocação
, deve necessariamente interrompê-
la (Pasolini, 1976, p. 77-87).
Ao adotarmos qualquer uma dessas metáforas da escrita como
sedimentação
(Duicu) ou
coagulação
(Xavier) percebemos, dialeticamente, a
realidade visível-audível como algo a ser
decantado
pela escrita, em uma operação
necessariamente
desvitalizante
. No papel, como na película, o resultado é o
mesmo: a cristalização de uma experiência dinâmica vivida (ou pelo menos
imaginada) da música, da dança ou do simples movimento das coisas a ser
restaurada, revivida, revitalizada ou atualizada enquanto interpretação,
performance ou projeção, em algo que lembra uma mistura um tanto curiosa e
inusitada de alquimia com feitiçaria. Mas a problemática desloca-se, então, para
as diferentes técnicas de escrita do movimento, através das quais passamos da
mera inscrição sobre papel (interrupção e desvio de seu curso) a uma escrita
empreendida diretamente pela própria luz (
fotografia
) ou pelo próprio movimento
(
cinematografia
).
A escrita do cinema se encontra, de fato, com a escrita da dança quando o
audiovisual passa a ser acolhido sistematicamente como instrumento de memória
e de transmissão da obra coreográfica. A eficácia desse instrumento reside no fato
de que ele está baseado num “idioma” amplamente disseminado, no qual a cultura
moderna se tornou bastante fluente. Seria equivocado afirmar, contudo, que o
cinema alcança, finalmente, a tão esperada condição de forma universal de
notação coreográfica, que ele segue sendo um discurso sujeito a codificações,
estratégias e estilos diversos e próprios bem como sujeito a possíveis subversões
de seus códigos. Cientes disso, dança e cinema acabarão por testar de forma
conjunta os potenciais desse diálogo, produzindo não apenas um sistema de
notação ou registro, mas todo um universo de experimentos artísticos que
acontecem na interseção dessas duas linguagens.
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
21
Notação coreográfica como disparador: William Forsythe e o duplo
sentido da partitura
Muitos coreógrafos acabam criando seus próprios métodos de registro, sem
necessariamente se referirem aos sistemas tradicionais ou às obras anteriores. Em
contextos mais estruturados, como companhias oficiais e balés nacionais, o
processo de conservação e preservação das coreografias vai além da notação ou
do vídeo. São incorporados também diversos materiais em torno da obra, como
programas, folders, textos, críticas, reportagens e objetos de cena, tais como
figurinos e adereços, além de vídeos e fotografias que vêm sendo amplamente
utilizados como parte desse esforço de preservação e armazenamento de rastros
de performances. Se, por um lado, a ausência de um sistema convencional único
por vezes permite tomar como notação essa ampla gama de materiais, por outro,
a complexidade desse acervo acaba por exigir uma distinção entre o que é uma
indicação feita por um criador para a construção de uma coreografia e quais
seriam as referências deixadas para futuros debates e pesquisas sobre tal criação.
Ao analisar um contexto particular, especialmente no âmbito da dança
contemporânea, percebemos que é inerente aos coreógrafos, em seus processos
de criação, o desejo de construir um léxico próprio e desenvolver uma espécie de
assinatura artística. Embora em um processo de criação em dança jamais se
abandone o que foi realizado anteriormente, há uma busca incessante de uma
assinatura única, a partir de um vocabulário que quem o cria, executa ou está
próximo o suficiente do processo pode de fato compreender. Nesse sentido, cada
abordagem possui seus próprios méritos e limitações a menos que haja um
desejo didático implicado, para que haja uma leitura possível, pois é preciso que,
junto a essa escrita, exista o desejo de propagá-la. E, nesse sentido, tanto Laban
quanto Forsythe buscaram sistematizar formas de construção de movimento,
assim como de sua transmissão.
Americano radicado na Alemanha, o bailarino e coreógrafo William Forsythe
exerceu papel significativo no desenvolvimento das técnicas da dança
contemporânea. Após ter dirigido e revitalizado o Balé de Frankfurt, entre 1984 e
2004, funda no ano seguinte a Forsythe Company, onde permanece como diretor
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
22
artístico até 2015, quando deixa seu legado nas mãos do coreógrafo italiano Jacopo
Godani. Nesse momento, a companhia passa a se chamar Dresden-Frankfurt
Dance Company. Em 1971, Forsythe estudou o sistema de notação de Rudolf Laban
no New York‘s Dance Notation Bureau. Embora não o tenha utilizado diretamente
em seus trabalhos, a ideia de notação assumiria papel significativo em sua
abordagem coreográfica, adotando instruções sistemáticas que serão comparadas
aos algoritmos. A princípio, suas notações nascem de uma preocupação
pedagógica: o desejo de produzir um idioma que facilite a interação e a
comunicação mútua entre coreógrafo e bailarinos. Uma vez estabelecido esse
método de interação, mais do que um instrumento de memória e de transmissão,
a notação se torna para ele um método de criação. Nas últimas décadas do século
XX, muitas companhias oficiais de dança buscaram formas de tornar as estruturas
do balé clássico permeáveis a novas possibilidades de movimentos. Imerso nesse
ambiente de inovação, Forsythe cria um método para desconstruir essas
estruturas, implicando os bailarinos em seus processos de composição. Ele lança
ao grupo proposições emolduradas a partir de um
what if
(e se...). As frases que
se constroem a partir disso se encaminham na direção de partituras que não
visam à reprodução, mas à gestação de movimentos ainda não codificados, ou que
testam certos movimentos conhecidos em relação a outras referências do espaço
em que se dança ou do corpo de certo bailarino. Desse modo, essas “quase-
partituras” constituem, portanto, um método de concepção coreográfica que
produz soluções inesperadas, produzindo um vocabulário corporal que se abre à
noção de desordem. A partir dos movimentos possíveis de um corpo idealizado,
Laban havia concebido a representação de um espaço abstrato que chamou de
kinesfera
. Forsythe, por sua vez, também se empenha em dar representação para
seu espaço coreográfico, mas, diferentemente de seu antecessor, ele fará isso
colocando um corpo real que dialoga com o lugar em que se dança.
Partindo de suas pesquisas em torno da notação coreográfica, os trabalhos
de Forsythe se expandem na direção da performance, das artes visuais e das
linguagens computacionais. Suas obras adotam uma noção expandida de
coreografia que se materializa em instalações, vídeos e plataformas digitais
interativas, que investigam relações espaciais que estavam presentes em sua
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
23
produção inicial na dança. Por conta disso, sua produção foi progressivamente
extrapolando os palcos e ocupando também importantes espaços expositivos
como o do MoMA de Nova York, o Museu do Louvre, em Paris, a Tate Gallery de
Londres, a Bienal de Veneza, entre outros.
Essa insubordinação de Forsythe aos limites da dança não é um movimento
isolado. Ela pode ser pensada como parte de um processo mais amplo observado
nas artes de expansão e hibridização das linguagens que também investe num uso
ampliado da noção de coreografia em processos criativos que não se restringem
à dança. Como diz a pesquisadora Juliana Moraes (2019, p. 371):
Ao pensar coreografia como uma disposição à composição corpo-
espaço-tempo para além dos limites tradicionais, obras de fora do
circuito da dança passaram a partilhar do conceito, assim como
atividades situadas além dos campos artísticos, como atesta a
incorporação do conceito de coreografia pela computação (coreografia
de serviços em web consiste em modelos de orquestração de dados, por
exemplo). Observa-se, assim, uma mudança que aproxima campos
(artísticos ou não) pelos seus eixos estruturantes em vez de suas
linguagens específicas, buscando similaridades e diferenças muito além
das superfícies das categorizações. Conceitos não mais se aliariam às
especificidades dos meios, mas sim à lógica estrutural e organizativa do
trabalho não importa se uma coreografia é feita com corpos humanos
ou com objetos, o que importa é se a obra possui uma lógica coreográfica.
Em 1994, Forsythe criou um CD-ROM intitulado
Improvisation Technologies:
a tool for the analytical dance eye
, por meio de uma parceria com o ZKM, Centro
de Arte e Mídia de Karlsruhe, com o intuito de registrar e compartilhar seu método
de criação. Desenvolvida originalmente por Forsythe para treinar sua companhia,
tratava-se de um material que deixava um “passo a passo” para que os bailarinos
que chegassem à companhia pudessem aprender, treinar e criar a partir de um
ponto em comum que enfatiza o modo como o corpo inscreve um movimento no
espaço e com o espaço. No CD-ROM, esses movimentos são representados por
desenhos e efeitos aplicados sobre imagens que mostram um bailarino em ação
(Figuras 12-15). Essas representações, concebidas originalmente como estratégia
para desencadear um processo de composição, acabam por formar um sistema
de notação que dissemina seu método para um grande público, iniciado ou não
nas técnicas da dança contemporânea.
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
24
Figuras 12-15 -
Forsythe,
Lectur
es from improvisation technologies
(2011)17
A produção recente de William Forsythe evidencia uma ampliação
significativa de sua prática coreográfica, ao transpor os limites da dança e operar
em um campo interdisciplinar que articula texto, imagem, objeto e sonoridades
experimentais. Essa multiplicidade de meios não é apenas suporte, mas encarna
o que o artista define como a
materialização de um pensamento coreográfico
um modo de conceber e estruturar ações no tempo e no espaço. Ao deslocar a
dança do palco e explorar o vídeo não apenas como registro, mas como linguagem
artística, Forsythe reconfigura os modos de produção e recepção do movimento,
propondo um novo regime de visibilidade e existência da coreografia, em que o
gesto se desdobra como conceito, imagem e dispositivo. Trata-se de uma
abordagem que tensiona fronteiras disciplinares e redefine o lugar do corpo, da
percepção e da criação na arte contemporânea (cf. Gasparini, 2017).
17 Fonte: https://www.artfactory-international.com/forsythes-improvisation-technique/ - Acesso em: 29 jan.
2025.
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
25
Em 2006,
One Flat Thing, reproduced,
de William Forsythe, ganhou uma
versão audiovisual dirigida por Thierry de Mey (Figura 16), cineasta reconhecido
por outros trabalhos feitos em colaboração com coreógrafos e bailarinos. Com
imagens captadas por três câmeras em ângulos diferentes e um minucioso
trabalho de edição, o trabalho propõe uma experiência perceptiva que reorganiza
a relação entre corpo, espaço e olhar, resultando em uma experiência distinta da
versão original, apresentada nos palcos desde sua estreia em 2000. Marcada por
uma composição que articula tensão entre desordem e simetria, a obra deu
origem, em 2009, a uma plataforma interativa online desenvolvida por Forsythe
em colaboração com Jill Johnson, Christopher Roman e Elizabeth Waterhouse,
junto ao Departamento de Dança da Universidade de Ohio, nos Estados Unidos,
com a participação de um amplo grupo composto por especialistas em dança,
design e programação. Esse projeto, resultado de três anos de pesquisa, reafirma
a coreografia como campo expandido de análise e produção de conhecimento em
meio digital.
Figura 16 - Videograma de
One Flat Thing, reproduced
(2006) de Thierry de Mey18
Essa plataforma consiste em uma base de dados que resulta de uma
investigação das formas de construção coreográfica de Forsythe. A partir da coleta
de dados espaciais que mapeiam a coreografia e a performance dos bailarinos, a
equipe se empenhou em descobrir padrões de organização que resultam na
18 Fonte: http://synchronousobjects.osu.edu. Acesso em: 09 jan. 2016.
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
26
criação de “interpretações visuais”, aqui nomeadas como “objetos”. Conforme o
texto de apresentação da plataforma, “esse projeto examina as estruturas
organizacionais encontradas na dança
One Flat Thing, reproduced
de William
Forsythe, traduzindo e transformando-as em novos objetos – formas de visualizar
dança projetadas por técnicas de variadas disciplinas”19. O título que abre a
homepage do projeto na internet,
Synchronous Objects: visualizing choreographic
structure from dance to data to objects
, antecipa o que iremos encontrar ali:
uma espécie de decupagem das estruturas de movimento que traduzem os
modos como Forsythe transpõe um pensamento em formas visuais. Em seguida,
o site disponibiliza animações, gráficos, desenhos e vídeos que surgiram dessa
experiência. Esse resultado pode ser assumido como uma forma de notação
coreográfica na qual memória e criação se confundem (Figura 17).
Figura 17 -
Synchronous Objects
(2009), plataforma on-line do projeto20
Os criadores do projeto contam que o objetivo inicial era explorar, interpretar
e transformar
One Flat Thing, reproduced
de modo a criar um sistema que
permitisse a um público amplo “ler essa dança”, o que implica em fruir de seu
resultado, mas também de seu método compositivo. A constituição da plataforma
se utiliza da estrutura do vídeo para decodificar os movimentos em programas de
19 Definição que consta na plataforma Synchronous Objects for One Flat Thing, reproduced. URL:
http://synchronousobjects.osu.edu/
20 Fonte: http://synchronousobjects.osu.edu. Acesso em: 29 jan. 2025.
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
27
computador:
Nossos animadores geraram coordenadas de localização dos bailarinos
por meio do rastreamento de um único ponto demarcado em cada
bailarino, em ambas as vistas, superior e frontal, geradas pelo vídeo do
trabalho
OFTr
. Ao combinar as coordenadas de dois pontos de vista,
fomos capazes de gerar dados sobre um lugar tridimensional para a
localização de cada dançarino, em cada momento da dança. Muitos
objetos, incluindo
Movement Density, Generative Drawing Tool
e
Cue
Visualize
fazem uso desse tipo de dado especial para visualizar a
estrutura coreográfica de OFTr.21
A composição coreográfica original foi pensada para permanecer aberta à
improvisação, modificando-se a cada apresentação. E a construção dos objetos
não se preocupou em transcrever a dança tal e qual ela seria vista no palco, pois
ela investe em uma nova forma de visualização de sua estrutura coreográfica,
permitindo também a compreensão do método de Forsythe.
Forsythe também foi pioneiro no uso de tecnologia para expandir os limites
da coreografia em seus experimentos com notação digital e visualização do
movimento. Tanto a
geometria do movimento
quanto a
articulação do corpo no
espaço
estão na base de suas experimentações coreográficas. Um exemplo dessa
influência pode ser visto em seu projeto
Motion Bank
(Figura 18)
,
no qual investigou
maneiras de digitalizar e visualizar o movimento, conceitos que podem ser
conectados aos estudos de Laban sobre a análise espacial e o movimento
humano. Mais uma vez, como um desdobramento de um trabalho anterior, foi
desenvolvido posteriormente, entre 2010 e 2013, esse projeto interdisciplinar e
colaborativo fundado junto ao pesquisador Scott deLahunta que ainda hoje atua à
frente desse enorme banco de dados do movimento coreográfico. Inicialmente, o
projeto foi criado como parte da Forsythe Company na Alemanha, sob a direção
de William Forsythe, e seu intuito era estimular a criação de “partituras
coreográficas digitais” visando a investigação da prática coreográfica com o
objetivo de explorar maneiras de capturar, analisar e compartilhar o conhecimento
coreográfico utilizando tecnologias digitais e promovendo uma fusão entre dança,
tecnologia e ciência para além do trabalho com a companhia.
21 Fonte: http://synchronousobjects.osu.edu. Acesso em: 09 jan. 2016.
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
28
Figura 18 -
Motion Bank
(2009), plataforma
on-line
do projeto22
Synchronous Objects for One Flat Thing, reproduced
foi o projeto piloto que
estruturou esse processo de investigação em composição coreográfica,
articulando ferramentas de notação e reconstrução digital. Disponível online, a
plataforma foi acompanhada por eventos e workshops voltados a pesquisadores
interessados em colaborações que envolvessem a criação de partituras
coreográficas. Nos primeiros anos, foram convidados os coreógrafos Deborah Hay,
Jonathan Burrows & Matteo Fargion, Bebe Miller e Thomas Hauert para integrar o
projeto
Motion Bank
, cujos métodos e criações foram documentados de maneira
detalhada, compartilhando com um público amplo documentos e análises de suas
ideias e processos coreográficos.
Desde 2013, foi criado também o Choreographic Coding Lab
(CCL)
como uma
extensão do projeto
Motion Bank
, no formato de um laboratório itinerante que
possibilitaria outros artistas e pesquisadores experimentarem as ferramentas de
criação e análise coreográfica, seu intuito é explorar e fomentar colaborações entre
coreógrafos e programadores em diversos países. O foco principal tem sido o
desenvolvimento de ferramentas digitais e tecnológicas para a análise, visualização
e criação de coreografias. Tratando-se de um laboratório itinerante que oferece
22 Fonte: https://motionbank.org/projekte. Acesso em: 29 jan. 2025
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
29
um ambiente de criação colaborativa entre artistas e programadores que podem
experimentar juntos novas formas de se pensar e representar o movimento por
meio de códigos, visualizações interativas, softwares, aplicativos e outras
tecnologias digitais.
Essa iniciativa esteve no Brasil em duas ocasiões, sendo a primeira
realizada em 2016, na cidade de Belo Horizonte, sediada pelo SESC Paladium e
organizado pela bailarina e coreógrafa Thembi Rosa, e a segunda, em 2024, na
cidade de São Paulo, tendo a Universidade de São Paulo como espaço de encontro
e organizado pela pesquisadora Júlia Abs. Ambas as ocasiões contaram com a
presença e coordenação de Scott deLahunta.
Enquanto o
Motion Bank
investigava maneiras de capturar e documentar o
conhecimento coreográfico, o projeto
Choreographic Coding Lab
(Figura 19) dá um
passo adiante incentivando a criação de ferramentas e experimentações baseadas
nessas pesquisas para expandir as possibilidades de expressão coreográfica no
ambiente digital, fazendo dos
scores
tanto uma forma de documentação e
preservação, quanto uma ferramenta de construção de novas coreografias
.
Figura 19 -
Choreographic Coding Lab
(2013-), plataforma on-line do projeto23
23 Fonte: https://choreographiccoding.org/#/. Acesso em: 29 jan. 2025
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
30
Considerações Finais
A dança, por sua natureza orgânica, movente e efêmera é uma linguagem que
não pode ser facilmente codificada, tornando a ideia de uma notação universal
algo inalcançável. A busca por um sistema convencional de notação costuma
fracassar uma vez que gesto e corpo não se submetem a uma codificação única
e definitiva.
E é justamente esse fracasso na tentativa de se estabelecer um sistema
único que opera como uma ativação de processos criativos. As lacunas e falhas
desses processos abrem espaço para diálogos entre coreógrafos e bailarinos,
revelando-se por vezes bem-sucedidas como base para a construção de
metodologias e criações artísticas. O processo histórico de busca por um sistema
de notação, marcado por seus próprios limites, soa, sob a perspectiva
contemporânea, como uma espécie de pesquisa poética e um tanto utópica.
Aquilo que inicialmente se pretendia como uma sistematização objetiva
acaba se transformando em um processo interpretativo que resulta no esforço
heróico de interpretação de um corpo que constantemente escapa ao desejo de
enquadramento. Paradoxalmente, é a partir desse relativo “fracasso” e das
hesitações da notação coreográfica que muitas pesquisas contemporâneas
emergem. Essas pesquisas não apenas evidenciam as limitações dos métodos
tradicionais, como também extraem dessas lacunas uma abertura que permite
expandir a ideia de coreografia para além da dança, alcançando outras linguagens
artísticas.
Esse processo de falhas e incertezas se transforma, então, em uma espécie
de matéria-prima poética. Por um lado, todas as tentativas de codificação geram,
a partir de certo momento, uma consciência sobre a complexidade e a resistência
do movimento corporal à codificação. Por outro, essas pesquisas, com seus
sistemas gráficos, esboços e teorias sobre o corpo, acabam por construir uma
espécie de matéria plástica em si mesma. Essa matéria não apenas alimenta e
instiga a pesquisa contemporânea em dança, mas também reverbera em outras
práticas artísticas, expandindo suas possibilidades criativas.
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
31
Referências
ANDERSON, Jack.
Idealists, materialists, and the thirty-two fouettés
[1975]. In:
COPELAND, Roger; COHEN, Marshall (Org.)
What is dance? Readings in Theory and
Criticism
. Oxford/ Nova York/ Toronto/ Melbourne: Oxford University Press, 1983, p.
410-419.
BAZIN, André.
Por um cinema impuro - defesa da adaptação
[1952]. In:
O que é o
cinema?
São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 113-135.
CULLIN, Olivier.
Laborintus: essais sur la musique au Moyen Âge
. Paris: Fayard,
2004.
DUICU, Dragos.
Phénoménologie du mouvement: Patočka et l’héritage de la
physique aristotélicienne
. Paris: Hermann, 2014.
EISENSTEIN, Serguei.
O sentido do filme
. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
FORSYTHE, William (et alii).
Synchronous objects
. Columbus, Ohio: mar 2009.
https://synchronousobjects.asc.ohio-state.edu/SODanceDataObjectsEssays.pdf. Acesso
em: 16 set. 2024.
GASPARINI, Isis. William Forsythe: encontros entre dança, cinema e artes visuais.
Fórum Permanente, 2017. https://www.forumpermanente.org/rede/vertices-vetores-e-
dialogos/william-forsythe. Acesso em: 16 set. 2024.
GUEST, Ann Hutchinson.
Dance notation: the process of recording movement on
paper
. Londres: Dance Books, 1984.
GUEST, Ann Hutchinson.
Labanotation: the system of analyzing and recording
movement
. Nova York: Routledge, 2005.
GOODMAN, Nelson. The role of notations [1968]. In: COPELAND, Roger; COHEN,
Marshall (Org.)
What is dance? Readings in Theory and Criticism
. Oxford/ Nova
York/ Toronto/ Melbourne: Oxford University Press, 1983, p. 399-410.
HALL, Fernau.
Dance notation and choreology
[1964]. In: COPELAND, Roger; COHEN,
Marshall (Org.)
What is dance? Readings in Theory and Criticism
. Oxford/ Nova
York/ Toronto/ Melbourne: Oxford University Press, 1983, p. 390-399.
LOUPPE, Laurence (Org.)
Traces of dance:
drawings and notations of
choreographers. Paris: Dis Voir, 1994.
MORAES, Juliana. O conceito de coreografia em transformação.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas. Florianópolis, v.1, n.34, p. 362-377, mar./abr.
2019. DOI: 10.5965/1414573101342019362.
Partituras do corpo: um panorama da escrita coreográfica
Cristian Borges | Isis Gasparini
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-32, abr. 2025
32
PASOLINI, Pier Paolo.
L’expérience hérétique
. Paris: Payot, 1976.
PHELAN, Peggy.
Unmarked: The Politics of Performance
. Nova York: Routledge,
1996.
SPANGHERO, Maíra. Dançando números, formas e padrões.
Revista Científica/FAP
,
Curitiba, v. 11, n. 1, p.123-144, 2014. Acesso em: 12 set.
2024. DOI:
10.33871/19805071.2014.11.1.1377.
VINCS, Kim.
Virtualizing Dance
. In: ROSENBERG, Douglas (Org.)
The Oxford
Handbook of Screendance Studies
. Oxford/ Nova York: Oxford University Press,
2016, p. 263-282.
XAVIER, Ismail.
O discurso cinematográfico:
a opacidade e a transparência. 3a ed.
São Paulo: Paz e Terra, 2005.
Recebido em: 20/09/2024
Aprovado em: 23/11/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
PPGAC
Centro de Artes, Design e ModaCEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br