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O Corpo-Canovaccio: relações entre corpo e escrita
na Commedia Dell'Arte contemporânea
Douglas Kodi Seto Takeguma
Para citar este artigo:
TAKEGUMA, Douglas Kodi Seto. O Corpo-Canovaccio:
relações entre corpo e escrita na Commedia Dell'Arte
contemporânea.
Urdimento
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 4, n. 53, dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e109
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O Corpo-Canovaccio: relações entre corpo e escrita na Commedia Dell'Arte contemporânea
Douglas Kodi Seto Takeguma
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-31, dez. 2024
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O Corpo-Canovaccio: relações entre corpo e escrita na Commedia Dell'Arte
contemporânea1
Douglas Kodi Seto Takeguma2
Resumo
O conceito de Corpo-canovaccio reflete como o corpo do ator se transforma em um espaço
de múltiplas camadas culturais e narrativas. A partir de uma perspectiva contemporânea
sobre a Commedia Dell'Arte, o corpo do ator é uma tela que absorve elementos de
improvisação, memória e tradição. Este artigo faz uma pesquisa autoetnográfica com o
espetáculo O Soldado, a Tigresa e uma outra história, demonstrando como o Corpo-
canovaccio permite explorar narrativas pessoais e culturais, reinventando a Commedia
Dell'Arte. Também discute o Ma, uma noção japonesa de espaço-tempo em suspensão, e o
corpo em suspensão, conceitos que explicam a transformação constante do corpo do ator.
Palavras-chave
: Corpo-canovaccio. Commedia dell’arte. Autoetnografia. Dramaturgia.
Atuação.
The Corpo-Canovaccio: relationships between body and writing in contemporary Commedia
Dell'Arte
Abstract
The concept of Corpo-canovaccio reflects how the actor's body transforms into a space
layered with multiple cultural and narrative dimensions. From a contemporary perspective
on Commedia Dell'Arte, the actor's body becomes a canvas that absorbs elements of
improvisation, memory, and tradition. This article presents an autoethnographic study using
the play O Soldado, a Tigresa e uma outra história, demonstrating how the Corpo-canovaccio
facilitates the exploration of personal and cultural narratives while reinventing Commedia
Dell'Arte. It also discusses Ma, a Japanese notion of suspended space-time, and the body in
suspension, concepts that explain the constant transformation of the actor's body.
Keywords
: Corpo-canovaccio. Commedia dell’arte. Autoethnography. Dramaturgy. Acting.
El Cuerpo-Canovaccio: relaciones entre cuerpo y escritura en la Commedia Dell'Arte
contemporánea
Resumen
El concepto de Cuerpo-canovaccio refleja cómo el cuerpo del actor se transforma en un
espacio de múltiples capas culturales y narrativas. Desde una perspectiva contemporánea
sobre la Commedia Dell'Arte, el cuerpo del actor es un lienzo que absorbe elementos de
improvisación, memoria y tradición. Este artículo presenta un estudio autoetnográfico
utilizando la obra O Soldado, a Tigresa e uma outra história, demostrando cómo el Cuerpo-
canovaccio permite explorar narrativas personales y culturales, mientras reinventa la
Commedia Dell'Arte. También se discuten los conceptos de Ma, una noción japonesa de
espacio-tiempo suspendido, y el cuerpo en suspensión, explicando la transformación
constante del cuerpo del actor.
Palabras clave
: Corpo-canovaccio. Commedia Dell’arte. Autoetnografía. Dramaturgia.
Actuación.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Rafaela Angelon. Mestranda no programa
de pós-graduação em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica do Paraná (UTFPR). Graduação
em Design pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). rafangelon@gmail.com
https://lattes.cnpq.br/9855799863693140 https://orcid.org/0000-0003-1105-0567
2 Doutorado e Mestrado em Artes Cênicas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Graduação
pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Ator e diretor do Teatro do Alvorecer (Maringá-PR), ator no
grupo Arte da Comédia (Curitiba-PR). Ator, mascareiro, diretor e pesquisador. douglaskodi07@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/2547501265624081 https://orcid.org/0000-0003-3322-9920
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Entre a tradição da Commedia Dell’Arte e a escrita contemporânea
Figura 1Cartaz da peça O Soldado a Tigresa uma outra história.
Feito por Felipe Tomazzela. Fonte: Acervo do autor.
A relação entre o corpo e a escrita na cena contemporânea é um tema que
abre espaço para uma infinidade de reflexões e abordagens artísticas. A
Commedia
dell'arte
se estabelece como um território que, em decorrência de sua extensão
histórica e heterogeneidade dentro da própria tradição, oferece uma lente
prismática para investigar essas interações, especialmente quando examinamos o
corpo como o veículo principal de uma narrativa viva e em constante
transformação. O conceito de
Corpo-canovaccio
, que desenvolvi, surge dessa
matriz e se refere à forma como o corpo do ator se transforma em um
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palimpsesto de experiências e de registros culturais, assimilando elementos de
improvisação e memória em uma fusão ininterrupta.
O espetáculo
O Soldado, a Tigresa e uma Outra História
(2022) busca explorar
essa dimensão do corpo como texto, utilizando uma abordagem que combina a
tradição da Commedia dell'arte com narrativas pessoais e referências culturais
diversas. O espetáculo se insere em uma pesquisa contínua sobre o papel do ator
como criador de dramaturgias, especialmente na cena contemporânea, onde as
barreiras entre o texto escrito e o improvisado são cada vez mais diluídas.
Como preâmbulo para definir essa perspectiva de uma possível tradição ou
visão da
Commedia dell’arte
, remeto a minha tese,
A Commedia dell’arte e seus
duplos: uma (re)visão no território da encruzilhada
(2023), em que o conceito de
duplos surge como uma tentativa de explorar a multiplicidade de formas que a
Commedia dell'arte
assume ao longo da história. Essa ideia é inspirada
diretamente pela noção artaudiana de que o teatro é um "duplo da vida", ou seja,
uma representação que não apenas imita, mas também transfigura a realidade.
Dentro desse contexto, os duplos se manifestam como encarnações múltiplas de
um mesmo fenômeno teatral, que se reinventa constantemente, mantendo um
diálogo com suas origens, mas sempre em transformação. Assim, a
Commedia
dell'arte
não é um fenômeno fixo, mas sim um campo de possibilidades que gera
diferentes manifestações, dependendo do contexto histórico, social e cultural.
A ideia é que a
Commedia dell'arte
não apenas sobrevive em sua forma
original, mas também se desdobra em novas formas e expressões, sendo uma
"figuração esperando transfiguração" (Artaud, 2014, p. 127). A cada nova
interpretação ou encenação, a
Commedia
cria um
duplo
de si mesma, refletindo
e reimaginando seus elementos principais máscara, improvisação, tipos sociais
– e inserindo-os em diferentes contextos cênicos e culturais.
Outra definição que é do
canovaccio
(Kodi, 2021), como uma forma textual
que desafia as normas dramatúrgicas estabelecidas. Sem depender de um texto
premeditado palavra por palavra, a
Commedia dell’arte
repousa sob uma estrutura
de personagens-tipo (como Zanni, Arlequim, Pantaleão, Capitão, Enamorados e
etc.), que interagem e se metamorfoseiam através da habilidade do ator em
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improvisar a partir desses esboços narrativos conhecidos como canovacci.
Em minha trajetória, me interessei pelo potencial do ator como escritor de si
mesmo em cena, um princípio que está enraizado nas práticas da
Commedia
dell'arte
e que reverbera até o presente. Como expus anteriormente (Kodi, 2022),
a máscara de Arlequim, uma das figuras centrais dessa tradição, representa a
síntese do grotesco e do cômico. No entanto, mais do que uma simples peça de
indumentária, a máscara é um símbolo de um teatro que se constrói e se
desconstrói continuamente, em diálogo com o público, e que encontra no corpo
do ator sua principal matéria-prima.
No espetáculo
O Soldado, a Tigresa e uma Outra História
, essa herança da
Commedia dell'arte é revisitada sob uma nova perspectiva. O conceito de Corpo-
canovaccio, que emerge desse processo de criação, permite que o ator seja o
prisma das tradições narrativas (textuais e orais) e corporais, transformando seu
corpo em um suporte de memórias culturais e pessoais. Tal como o
canovaccio
uma estrutura aberta que serve como guia para a improvisação o corpo do
ator é, aqui, uma tela em branco, pronta para ser preenchida com as inúmeras
camadas de significado que surgem no ato de performance.
Este conceito reflete uma interseção teórica que combina a noção de corpo-
tela, de Leda Maria Martins (2021), com as características autorias da
Commedia
dell'art
e. Assim como a máscara de Arlequim, que abriga em si as contradições e
ambiguidades da vida cotidiana e do universo teatral, o Corpo-canovaccio propõe
que o ator seja um palimpsesto vivo, sobre o qual diferentes histórias, tempos e
identidades podem ser escritos e reescritos na premeditação e no calor da cena.
Essa abordagem ressoa com o que explorei em outros trabalhos, como em
A Commedia dell'arte no território de encruzilhada: O rei do inferno vira Saci
(Kodi,
2022). Ali, propus a noção de um "espírito" da
Commedia dell'arte
, que se reinventa
em diferentes contextos culturais, como no Brasil, onde o Saci uma figura do
folclore nacional foi assimilado como uma espécie de Arlequim. Da mesma
forma, em
O Soldado, a Tigresa e uma Outra História
, o ator incorpora não apenas
um soldado de inspiração oriental, mas também as inúmeras camadas de suas
próprias origens e histórias pessoais, transformando-se em um
corpo-canovaccio
,
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apto a acolher e ressignificar a narrativa em cada nova apresentação.
O Corpo-Canovaccio: explorando a textualidade corporal na
Commedia
dell’Arte
Ao longo da pesquisa e da montagem de
O Soldado, a Tigresa e uma Outra
História
, um aspecto central foi a exploração da textualidade do corpo na cena,
inspirada na tradição da
Commedia dell'arte
. Essa abordagem se alicerça em uma
prática teatral onde a improvisação e a escrita corporal coexistem, dando vida a
um teatro em que a presença física do ator se funde com a dramaturgia. O corpo
do performer se torna, assim, um instrumento ativo de criação, não limitado a um
único papel ou tipo, mas em constante transformação e ressignificação. Ao
desenvolver o conceito de Corpo-canovaccio, busquei compreender como a
escrita do corpo pode emergir em cena, à medida que o ator explora seu repertório
pessoal e histórico, enquanto dialoga com as tradições e inovações da
Commedia
dell'arte
. A partir de influências que vão de Dario Fo à mímica corporal de Decroux
e ao atletismo afetivo de Artaud, o espetáculo foi uma tentativa de resgatar a
essência do ato de narrar no palco, sem abrir mão das múltiplas camadas culturais
e pessoais que compõem a experiência teatral contemporânea.
No aspecto dramatúrgico, encontrei inspiração em obras como
Guerra dentro
da gente
(Paulo Leminski),
A História da Tigresa
(Dario Fo),
Lendas Trazidas pelos
imigrantes do Japão
(Claudio Seto),
Sem rendição
(Hiroo Onoda) e, por fim, nas
histórias de minha própria família, registradas nos escritos pessoais de meu tio
Massahiro Seto. O espetáculo buscou combinar essas técnicas com o objetivo de
resgatar a base tradicional do teatro: o ato de contar uma história em um palco
vazio, onde ator e espectadores se encontram com a matéria-prima do teatro, a
imaginação.
Durante minha pesquisa, deparei-me com a frequente presença da narração
na
Commedia dell'arte
. O canovaccio é um texto que narra todas as ações da peça;
os personagens narram os conflitos para expô-los e resolvê-los ao longo da trama.
Em relação a Dario Fo e seu teatro de narrador, parte de suas peças, sobretudo
os monólogos, são completamente narrativos, seguindo a tradição dos jograis
medievais.
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Em suma, dentro do contexto da
Commedia dell'arte
, uma manifestação
recorrente é a presença de uma instância épica, caracterizada pela narração de
histórias. É uma função rapsódica em que a atriz ou o ator, estando em cena
sozinhos, são responsáveis por criar toda a teatralidade. O pressuposto que me
orientou a propor esse experimento foi a percepção da
Commedia dell'arte
como
um teatro baseado no texto, seja ele premeditado e escrito, seja improvisado,
através do uso do canovaccio.
Nesse contexto, surgem as questões: o que exatamente constitui a
textualidade na
Commedia dell'arte
? Ou, mais precisamente, o que define a
qualidade que nos permite classificar um texto como pertencente à Commedia
dell'arte, especialmente quando pensamos em seus aspectos ligados à atuação?
Essas perguntas, longe de oferecerem respostas imediatas ou definitivas, abrem
caminho para uma investigação que se desdobra ao longo da escrita. A busca por
entender como a
Commedia dell'arte
configura sua própria textualidade não
apenas no texto escrito, mas principalmente no corpo do ator e na improvisação.
As respostas, se é que elas existem, emergem da prática cênica e da reflexão sobre
o papel do corpo como veículo primordial de uma dramaturgia em constante
transformação.
Figura 2 Ilustração de um corpo-canovaccio. Produção do autor, 2019
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Para isso, mergulhei no pensamento de um texto escrito do corpo, não
apenas para o corpo, que pode ser premeditado, mas que deve passar por um
processo de elaboração contínua na cena.
Corpo-canovaccio
, um termo que veio
até mim em um sonho, combinando a nomenclatura da dramaturgia da
Commedia
dell'arte
com a ideia de corpo-tela de Leda Maria Martins (2021, p. 164):
O corpo-tela, que é também corpus cultural, em sua variada abrangência,
aderências e múltiplos perfis, torna-se
locus
e ambiente privilegiado de
inúmeros poéticas entrelaças no fazer estético. Essa gesta é elaborada
por criações cênicas inspiradas em poéticas das visualidades, das
espacialidades, das luminosidades, das sonoridades, das subjetividades e
por dramaturgias que experimentam alianças entre as tecnologias e
rituais.
Partindo das reflexões de Martins (2021), desenvolvi a noção de um corpo-
canovaccio, que se baseia, na ideia de que o zibaldoni termo originário na
Commedia dell’arte que define o repertório pessoal de cada ator —, se manifesta
através dos inúmeros duplos da Commedia dell'arte. Nessa perspectiva, o corpo
da atriz ou do ator se torna uma metamorfose em potencial, não se limitando a
tipos fixos pré-existentes, mas sim abrindo caminho para a produção de
textualidade e presença através do corpo.
Figura 3Apresentação feita em Curitiba, Teatro Barracão, o ator e dois duplos de sombra.
Acervo do autor. Foto: Laís Penteado, 2022.
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Entre a tradição e a busca pessoal: explorando a Commedia
dell'arte em um corpo em suspensão
A busca por um sentido na criação de um espetáculo teatral, especialmente
quando o processo está intimamente ligado à pesquisa e ao próprio corpo do
autor, é um desafio que vai além das convenções dramatúrgicas.
O Soldado, a
Tigresa e uma Outra História
não é apenas o resultado de uma investigação prática
sobre a Commedia dell'arte, mas também um processo de autoexploração, onde
o corpo do ator se torna o canal para a narrativa e a imaginação.
Em primeiro lugar, a motivação é a pesquisa da
Commedia dell'arte
e a busca
por uma forma de trabalhar com ela, pelo menos por enquanto. Neste ponto, vale
a pena citar Paulo Leminski, uma vez que sua obra foi uma de minhas inspirações,
especialmente seu poema “Buscando Sentido”:
Por isso o próprio da natureza do sentido: ele não existe nas coisas,
[tem
que ser
buscado,
numa busca que é sua própria fundação.
Só buscar o sentido faz, realmente, sentido.
Tirando isso, não tem sentido (Leminski, 2014, p. 15).
A busca pelo sentido foi o principal objetivo da peça e talvez seja o único
horizonte utópico que motive alguns a se dedicarem ao teatro —, revelando assim
outros sentidos ocultos que são parte desta pesquisa autoetnográfica.
Inicialmente, busquei encontrar um sentido pessoal como ator e autor do meu
próprio teatro, voltando-me para as minhas origens: sou latino-americano,
brasileiro, com ascendência japonesa paterna (embora, é claro, ter nascido no
Brasil não me torne japonês e nem diminua minha identidade enquanto um corpo
estrangeiro); e tenho uma ascendência materna 'brasileira', uma mistura de povos
originários, europeus e todos aqueles que chegaram em navios, fugindo da
pobreza, da guerra ou por serem trazidos à força, entre outros motivos não tão
felizes.
Essa condição me coloca em uma zona de não identificação, ou "suspensão”.
Para aqueles de origem japonesa, que têm ambos os pais com fenótipo japonês,
sou considerado "brasileiro"; para os demais, sou visto como "japonês”. A atriz-
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musicista e pesquisadora Isis Akagi, em sua dissertação
Nikkei em cena: corpo em
suspensão
(2017), utiliza o termo Nikkei para se referir aos descendentes de
imigrantes japoneses nascidos no Brasil. Sua obra oferece uma perspectiva valiosa
para compreender essa condição de suspensão e a complexidade da identidade
de uma pessoa que, embora nascida no Brasil, carrega o estigma de ser vista como
estrangeira devido à sua aparência física.
[...] Apesar de ter nascido no Brasil e ter uma educação ocidental ainda
carrega o estigma de ‘japonês’ por causa de seu fenótipo, de sua
aparência física. Isso é potencialmente ruim no âmbito da produção
artística pois acaba sempre recaindo sobre uma imagem (imaginário)
estereotipada e clichê do que é ser ‘oriental’. O estereótipo, segundo Homi
Babha, é uma espécie de “história incompleta” a partir do olhar e da
análise do outro, mas apesar disso e por causa disso, conta de explicar
“tudo” em relação àquele sobre o qual se lança o olhar (Akagi, 2017, p. 62).
Akagi, em sua pesquisa autoetnográfica, centraliza seu questionamento sobre
por que, “mesmo passados mais de cem anos desde a imigração, ainda persiste a
ideia de que o
Nikkei
é estrangeiro em sua própria terra natal?” (Akagi, 2017, p. 64).
A autora explora a recorrência da associação feita com os corpos dos imigrantes
japoneses, com o corpo Nikkei e até mesmo com o corpo de um 'sujeito imaginário
japonês'. Nesse sentido, ela expõe a visão de um artista Nikkei, que vive com esse
corpo em suspensão, no contexto brasileiro.
Outra questão com a qual geralmente o artista
nikkei
se depara é a
relação direta com as artes tradicionais japonesas. Ora, muitas vezes, o
artista tem pouca ou nenhuma ligação com a cultura japonesa e, pelo
simples fato de ter o fenótipo oriental do qual descende, entende-se que
algo de ‘japonês’ em seus gestos e movimentos. Essa relação (entre
nikkei
e a cultura japonesa) varia, uma vez que a singularidade da
trajetória de cada um acaba influenciando o fazer artístico e essa
influência, por sua vez, também varia (Akagi, 2017, p. 63).
No contexto exposto pela autora, o corpo
Nikkei
é frequentemente associado
a estereótipos e à fetichização da cultura japonesa. Nesse sentido, compartilho
relatos de minha própria experiência e formação artística, nas quais não mantenho
uma ligação direta com as artes da cultura japonesa, especialmente nas artes
cênicas, onde minha formação é predominantemente europeia. Escolhi adotar a
Commedia dell'arte
como minha principal linguagem artística e, nesta escrita,
proponho apresentar meu entendimento sobre ela até o presente momento.
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Em diversos espetáculos nos quais utilizei máscaras, recebi comentários
sobre a precisão de meu gestual, descrito como possuindo uma "disciplina
japonesa." O próprio espetáculo
O Soldado, a Tigresa e uma Outra História
foi
frequentemente interpretado como uma peça "japonesa", seja pela história que
reescreve a obra de Dario Fo com elementos nipônicos, seja pela técnica gestual
que utilizo, fortemente influenciada pela mímica de Decroux, que, por sua vez,
possui uma precisão marcial, ou até mesmo pela inclusão do conto de
Urashima
Taro
no final da peça. Existem diversas instâncias que poderiam justificar essa
leitura da obra nesse sentido, mas ainda assim a considero uma peça de
Commedia dell'arte
.
Portanto, não é adequado classificar minha peça, ou meus trabalhos futuros,
como derivados do corpo
Nikkei
, do corpo imigrante japonês ou de um imaginário
cultural específico. Talvez a definição mais apropriada esteja próxima do conceito
de "corpo em suspensão" proposto por Akagi (2017), utilizando o termo japonês Ma
(). Para uma melhor compreensão, cito a definição da pesquisadora Michiko
Okano em seu texto
Ma - a estética do 'entre'
(2014, p.152):
O ideograma Ma é uma associação de dois caracteres, representações
do portão e do sol , que traz a semântica do espaço intervalar
formado por duas portinholas, através do qual se entrevê o sol. Ressalta,
assim, a noção de intermediação presente na sua semântica.
O termo Ma representa o espaço-tempo em suspensão. Para Akagi, o corpo
em suspensão é uma metáfora que cria uma espacialidade de suspensão para os
corpos
Nikkei
, permitindo a coexistência de todas as contradições, ambivalências
e convergências desses corpos (Akagi, 2017, p. 102). Essa definição ajuda a
compreender a natureza flutuante desses corpos, que estão sujeitos a
interpretações contraditórias relacionadas à sua origem migratória, o que pode ou
não influenciar a prática artística.
Nesse sentido, concordo com a metáfora do Ma como um espaço de vazio e
de suspensão, compreendendo o corpo
Nikkei
. No entanto, gostaria de acrescentar
que a leitura de um corpo
Nikkei
está sujeita a várias outras interpretações. Para
ilustrar essa ideia, mencionarei alguns exemplos que podem parecer apenas
anedóticos, mas que, em minha opinião, sintetizam as possibilidades do corpo
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canovaccio em relação a essas perspectivas autoetnográficas.
Poderia citar meu nome, Kodi, que é evidentemente nipônico, embora essa
grafia não exista no japonês. O correto seria
Kōji,
formado pela junção de dois
kanjis que podem ser escritos com diferentes combinações e ter significados
variados, como "filho do arco-íris", "segundo filho", "filho solitário", ou "filho feliz".
No entanto, meu Kodi surgiu de uma interpretação equivocada na transcrição da
língua japonesa para o português, resultando numa aproximação ao nome norte-
americano
Cody
, o que, por fim, levou à grafia
Kodi
. Um exemplo corriqueiro ocorre
quando conheço alguém que não tem ideia do meu nome, que soa evidentemente
nipônico, "Kodi", ou dos meus sobrenomes "Seto Takeguma". A pessoa me olha e
diz: "Você é peruano? Chileno?", identificando em mim alguma semelhança com
povos andinos. Lembro-me também de quando estive no Nordeste do Brasil, nas
cidades de Salvador (BA), Recife (PE) e João Pessoa (PB). Era comum que as
pessoas se aproximassem e começassem a conversar comigo em portunhol.
Outro exemplo aconteceu em 2016, quando fui à Itália para participar de uma
residência de
Commedia dell'arte
com a Fraternal Compagnia di Teatro, em
Bolonha. Uma noite, enquanto saía com alguns amigos de uma atriz da companhia,
uma amiga dela, chinesa, começou a conversar comigo em italiano com sotaque
mandarim. Conversamos por um tempo, até que mencionei que era brasileiro. Ela
olhou para mim e disse:
Ma hai una faccia italiana
(Você tem cara de italiano). Para
concluir essa parte anedótica, considero válido compartilhar uma imagem da
minha CNH.
Figura 4 Foto de identificação da CNH do autor. Arquivo pessoal.
Com esta série de anedotas, pretendo demonstrar como o corpo está sujeito
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a diversas interpretações, as quais permanecem sempre incompletas e em
constante interação com o ambiente em que o corpo se encontra. A Teoria do
Corpomídia
, desenvolvida por Greiner e Katz (2001), explora esse estado contínuo
de transformação do corpo em relação ao meio, afirmando que "a mídia à qual o
corpomídia
se refere diz respeito ao processo evolutivo de selecionar informações
que vão constituindo o corpo" (Katz; Greiner, 2005, p. 131). Tanto Akagi (2017) quanto
Katz e Greiner (2005) sugerem que o corpo está em suspensão, sujeito a
interpretações múltiplas, e, ao mesmo tempo, é capaz de selecionar, sem controle
total, as informações que vão moldar sua leitura.
A partir dessas reflexões e da minha própria experiência, desenvolvo o
conceito de
corpo-canovaccio
, que é delineado pelo ator para ser lido e escrito
em tempo real durante a performance teatral. Nesse caso, a escrita desse corpo
que se constitui como o esboço da obra em cena assemelha-se a um
canovaccio e depende da seleção de elementos que irão dar forma à sua
interpretação. Como exemplo, menciono a peça-manifesto
O Soldado, a Tigresa e
uma Outra História
, na qual, ao me colocar em cena com um figurino que remete
a um colegial japonês, escolho palavras e expressões em japonês para compor a
dramaturgia e faço referências a obras dessa cultura. Embora a peça seja ancorada
em técnicas da
Commedia dell'arte
, esse
corpo-canovaccio
, em cena, é
simultaneamente escrito e lido como um corpo de origem japonesa, refletindo
uma constante reinvenção cultural.
Figura 6 Foto tirada no prólogo de O Soldado a Tigresa e uma outra história. Arquivo
pessoal.
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A ideia expressa nessa dramaturgia pode ser comparada ao processo de
criação da máscara do Arlequim, desenvolvido pelo ator Tristano Martinelli no
século XVII. Martinelli, um ator italiano que trabalhava na França, apropriou-se da
visão que os franceses tinham dos atores italianos para desenvolver a icônica
máscara do Arlequim (Kodi, 2022). De maneira semelhante, um ator brasileiro,
enquanto corpo imigrante em seu próprio país, utiliza a formalidade teatral italiana,
adaptando-a à sua própria realidade. Nesse processo, o ator volta-se para suas
raízes ancestrais a fim de expressar uma teatralidade que reflete o corpo em
suspensão, imerso em seu próprio Ma (), o espaço de coexistência entre as
contradições culturais e identitárias.
Figura 5 Bisavô (Noriyasu) e Bisavó (Iwa)3 do autor. Fotografia.
Entre os anos de 1915 e 1919. Acervo pessoal.
Nessa busca por sentido, por entender “de onde venho e para onde vou,”
percebo que estou imerso em um território de encruzilhada cultural, onde muitas
das culturas às quais pertenço se perderam ao longo do tempo. A história da
minha família paterna ilustra esse ponto: vieram do Japão e, ao chegarem ao Brasil,
perderam tudo o que haviam construído, como consequência da Segunda Guerra
Mundial. De certa forma, a guerra sempre esteve presente, tanto na história da
3 Outra curiosidade é que minha avó paterna não é filha biológica da minha bisavó, ela é adotada. Na verdade,
ela é filha da irmã da minha bisavó. Essa circunstância adiciona uma camada adicional de complexidade à
minha árvore genealógica e à minha identidade familiar.
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Commedia dell'arte
quanto em sua reinvenção no século XX período entre a
Primeira Guerra e Segunda Guerra Mundial. Meu bisavô, um apoiador do Japão
durante a Segunda guerra, foi membro da Shindo Renmei, uma organização
composta por japoneses que assassinavam seus compatriotas que aceitaram a
derrota do Japão.
Por outro lado, minha família materna tem raízes em Minas Gerais. Minha avó
materna teve seu registro de nascimento realizado tardiamente, no mesmo dia em
que deu à luz seu primeiro filho, quando a família chegou ao Paraná. Esses eventos
históricos e circunstâncias familiares moldam quem sou e influenciam
profundamente minha visão de mundo e meu processo criativo. Esses fragmentos
da minha história familiar refletem a complexidade das minhas origens e o
encontro entre diferentes culturas em minha vida. Esse contexto de superações,
conflitos e encontros define minha identidade, bem como o impulso criativo que
me move nas artes.
Diante disso, sinto-me dividido entre minha origem familiar e geográfica, e
questiono o que me levaria a estudar uma antiga forma teatral italiana como a
Commedia dell'arte
, especialmente no século XXI. Como posso abordar essa
prática teatral de forma 'antropofágica'? Retomo as ideias de Leda Maria Martins
(2003) sobre o Brasil como um território de encruzilhada cultural, onde diferentes
origens geográficas se fundem e impactam a produção artística. Com esse
entendimento, busco criar uma
Commedia dell'arte
que faça sentido — para mim,
para o público que testemunha a peça e, talvez, para a própria historiografia dessa
forma teatral. Ao reinterpretar o conceito de encruzilhada usado por Martins ao
pensar o corpo negro no teatro, coloco-o em diálogo com o meu corpo amarelo,
nikkei, de imigrante japonês, em suspensão, ou até como um corpo em
Ma
().
Ao explorar o conceito de uma
Neo-Commedia dell'arte
e sua origem
europeia, é fundamental destacar as pesquisas que cunharam o termo, a de
Filacanapa (2015), e a de Crick (2018), que expandiu o conceito, e que se
concentram quase exclusivamente no fenômeno dentro da Europa, com breves
exceções em reverberações localizadas nos Estados Unidos. Esse enfoque
europeu levanta a necessidade de refletir sobre como a prática brasileira pode se
desvencilhar de uma subordinação à tradição europeia, abrindo espaço para
O Corpo-Canovaccio: relações entre corpo e escrita na Commedia Dell'Arte contemporânea
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questionamentos sobre alternativas possíveis. A chave para avançar reside em
uma análise crítica e reflexiva, buscando caminhos que permitam uma expressão
autêntica e singular da
Commedia dell'art
e no Brasil, sem romper completamente
com suas raízes europeias. Dessa forma, podemos estabelecer um diálogo cultural
e criativo que valorize a prática brasileira, contribuindo para a diversidade e
pluralidade dessa forma teatral, que, em minha opinião, é essencialmente uma
encruzilhada
.
Entre as possíveis abordagens, destacam-se a recontextualização estética e
a reinvenção dos personagens da
Commedia dell'arte
à luz da realidade brasileira,
incorporando elementos e referências culturais locais. Nesta pesquisa, optei pela
primeira alternativa, sintetizada na 'peça manifesto,' que busca recontextualizar a
Commedia dell'ar
te em um corpo-canovaccio. A segunda, a reinvenção dos
personagens, fica em aberto para futuras explorações. Se a continuidade da
Commedia dell’arte é realmente necessária, é crucial superar a dicotomia entre
uma
Commedia dell'arte
europeia e uma brasileira — mesmo como ideal utópico.
É nesse contexto que apresento este espetáculo-manifesto, cujo objetivo é
romper com a dicotomia entre uma
Commedia dell'arte
europeia e uma versão
brasileira. A proposta busca recontextualizar essa forma teatral na encruzilhada
onde nos encontramos, criando novas possibilidades e diálogos entre culturas e
temporalidades.
Se compreendida pela lente da encruzilhada, nos termos de Leda Maria
Martins (2003), a
Commedia dell'arte
tem o potencial de se expandir em uma
efervescência de linguagens e culturas diversas — abrangendo expressões negras,
amarelas, imigrantes e indígenas. Nesse sentido, a pesquisadora nipo-brasileira
Christine Greiner, em sua obra
Fabulações do Corpo Japonês e seus
microativismos
(2017), examina como os corpos são capazes de ativar estados de
alteridade através de microativismos no processo criativo:
Se pensarmos sujeitos e objetos como sistemas sígnicos e não como
entidades substantivas de mundos diversos, a dicotomia é abalada, assim
como também é abalada, assim como deixa de fazer sentido a separação
entre matéria e forma que nunca esteve apta a descrever os movimentos
daquilo que se faz. Trata-se de deixar de pensar as ideias como formas,
para pensá-las como movimentos (Greiner, 2017, p. 42).
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Greiner, ao tratar das epistemologias da arte do corpo, utiliza uma rede de
pensadores da semiótica para propor que a arte, ou o processo artístico, tem a
capacidade de transformar a alteridade em um processo criativo. Nesse contexto,
a arte não é apenas vista como uma obra ou produto final, mas como um meio
de explorar e expressar a alteridade. Greiner retoma o conceito de
artisticidade
,
apoiando-se nos princípios filosóficos do pensador japonês Yasuo Yuasa (1925-
2005), que em sua obra
The Body
(1987) enfatiza os fundamentos da arte japonesa,
que não separa vida e arte, transcende dicotomias tradicionais. Como afirma
Greiner, “é como se a ideia deixasse de ser pensada para tornar-se um fazer
pensar” (2017, p. 42). Assim, a obra premeditada (seja texto ou canovaccio) ganha
vida na atuação, sem estabelecer uma separação rígida entre o texto e a
encenação. “Isso implica que a teoria é uma prática de invenção e criação. Se a
prática não se opõe à teoria, o conhecimento é sempre construído na ação, nem
antes, nem depois” (Greiner, 2017, p. 42).
É essencial, tanto em nível teórico quanto historiográfico, examinar as
diversas divisões e ramificações da
Commedia dell'arte
, seja como fenômeno
sócio-histórico, como reinvenção no teatro de vanguarda ou como
neo-Commedia
dell'arte
. No entanto, no contexto da prática cênica, essas divisões perdem a
relevância, pois o teatro é uma arte do presente, do efêmero. No momento em
que a cena se desenrola, as dicotomias do passado ou do futuro tornam-se tão
fugazes quanto o gesto das mãos de um ator. Tudo acontece no presente. E, nesse
instante, as divisões entre teatro da palavra e do gesto, entre dramaturgia escrita
e improvisada, entre atores que utilizam texto e aqueles que trabalham com
improvisação, entre teatro baseado na forma e outro baseado na palavra, tornam-
se desnecessárias. O corpo e o texto devem coexistir no mesmo espaço, pois essa
é a essência da escrita do corpo-canovaccio. Ao eliminar as barreiras entre arte e
vida, torna-se possível um encontro mais profundo com a alteridade, rompendo
com dicotomias que limitam a compreensão e a apreciação da arte.
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Navegando pelas encruzilhadas: o processo criativo e o
Mise-
en-abyme em O Soldado, a Tigresa
e uma
Outra História
O início de um processo de espetáculo teatral pode ser comparado a uma
jornada em um grande navio, acompanhado por uma tripulação rumo a terras
desconhecidas. É como embarcar em uma cruzada marítima, ansioso por explorar
novos horizontes. Contudo, essa viagem foi interrompida bruscamente por uma
tempestade inesperada: a pandemia de Covid-19. Ela nos privou do capitão,
Roberto Innocente (1957-2021), mestre da Commedia dell'arte e o diretor
originalmente previsto para conduzir essa jornada artística. Nesse cenário, o ator
foi forçado a assumir o papel de capitão e diretor, navegando solitariamente em
uma jangada que atravessa córregos, rios e mares, faz paradas em várias ilhas ao
longo do caminho. No entanto, ao longo dessa travessia, o ator descobre que o
teatro nunca é realmente um ato solitário. Mesmo em um monólogo, ele nunca
está sozinho, pois o personagem e seus
duplos
o acompanham.
O objetivo aqui não é buscar um texto que encapsule a essência da forma
teatral, mas sim um texto que se revele legível como corpo do ator. É importante
refletir sobre as revoluções aristotélicas sucessivas em torno da fábula no teatro,
como observa Dupont (2017). Ela aponta que, em meados do século XX, autores
como Shakespeare e Sófocles começaram a ser considerados "ilegíveis" em certas
encenações, não pela natureza teatral de seus textos, mas pelo deslocamento
histórico que os distanciou de seu contexto original, tornando-os de difícil
compreensão. Isso, segundo a autora, exige uma mediação entre o texto e a plateia
através da encenação, na qual o texto adquire sentido no palco ao ser
recontextualizado e reinterpretado preenchendo a lacuna histórica.
O que proponho aqui é entender o texto como um canovaccio, ou seja, um
texto composto para a peça que não busca sintetizar a ação nem fornecer
informações indispensáveis ao espectador. Sua função é, sobretudo, lúdica e
ritualística, permitindo que a encenação se fundamente na maneira como o ator
joga com os códigos de sua própria dramaturgia. Embora o texto seja, em algum
momento, meticulosamente escrito, palavra por palavra, em uma folha de papel,
ele nasce do palco e é constantemente reescrito por meio desse mesmo impulso
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criativo.
Nesse espírito, a peça
O Soldado, a Tigresa e uma Outra História
foi escrita a
partir de outras obras teatrais e também de fontes não teatrais, em um processo
que se desenvolveu tanto nas apresentações quanto nos ensaios. Essa criação
contínua e recriação do texto ocorreu em um diálogo vivo entre a cena e a sala de
ensaio, alimentando-se da interação entre o ator e a escrita desse
corpo-
canovaccio
.
Como mencionado anteriormente, o ponto de partida foi a obra
A História da
Tigresa
, escrita por Dario Fo e estreada em 1975. Inspirada por uma viagem que o
autor fez à China com sua companhia, a peça narra a história de um soldado
chinês durante a Grande Marcha, que levou à transformação da China em um país
comunista. O soldado, baleado e abandonado pelos companheiros, encontra
refúgio em uma caverna durante uma tempestade torrencial, onde passa a
conviver com uma tigresa. Depois de um longo período, ele foge para um vilarejo
que é constantemente atacado por diferentes exércitos. A tigresa e seu filhote,
então, defendem o vilarejo de todos os invasores líderes comunistas, japoneses,
e, por fim, dos próprios comunistas que retornam ao poder. No desfecho, os
felinos devoram os burocratas comunistas que sempre quiseram aprisioná-los em
uma gaiola. A peça, uma metáfora do provérbio chinês "ter um Tigre" (ser o
portador de uma grande revolução), carrega os ideais anarquistas característicos
de Dario Fo, refletindo o rugido desse
clown
épico.
Essa aventura alegórica de Dario Fo se desenrola em um contexto histórico
real, abrangendo um período de dez anos da história chinesa (1934/36 - 1946). No
entanto, nem o jogral Dario Fo, nem o personagem que ele interpreta, se
comprometem diretamente com alguma das causas políticas em jogo. É verdade
que, no início da peça, o jovem soldado marcha ao lado do exército comunista e
sofre os ataques dos exércitos de Chiang Kai-shek. Como observa a pesquisadora
Brigitte Urbani (1997), esse tipo de peça, que ela classifica como Monólogo Épico-
Histórico, entrelaça a história individual do protagonista, a história coletiva do
momento e a história oficial dos fatos em uma atuação predominantemente épica.
No caso de Fo, a mensagem é transmitida por meio de um estilo cômico e
caricatural.
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Ao me deparar com essa obra, que encontra inspiração na China, mas tem
sua construção enraizada na tradição italiana, levantei o seguinte questionamento:
por que escolhi partir deste texto em particular?
Figura 7Apresentação feita em Curitiba, Teatro Barracão (3).
Acervo do autor. Foto: Laís Penteado, 2022.
Meu primeiro contato com essa obra ocorreu em 2015, durante minha
graduação na Universidade Estadual de Maringá (UEM), quando li
Manual Mínimo
do Ato
r (2011) de Dario Fo. A peça era mencionada em notas de rodapé e
parcialmente traduzida, sendo utilizada para exemplificar a técnica de atuação
proposta. Gostaria de fazer um comentário pessoal: apesar de sua relevância para
os estudos da atuação, especialmente no que diz respeito ao estilo teatral do ator-
narrador de Fo, considero o
Manual Mínimo do Ator
um livro pouco atrativo, com
uma pedagogia ou explicação limitada. Diria que essa obra pode parecer
desinteressante para estudantes de artes cênicas contemporâneas. Isso não
diminui, de forma alguma, a qualidade da escrita de Fo. Na verdade, está
relacionado a uma questão complexa e, ao mesmo tempo, simples: a pedagogia
da técnica teatral é uma prática aprendida no palco, sendo necessário vê-la e
experienciá-la para apreender seu valor. No caso de Fo, ele sintetiza décadas de
prática teatral, e o livro requer um conhecimento empírico da técnica para
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compreender sua aplicação no corpo. A descrição das ações e gestos, embora
clara, adquire, por vezes, um tom mecânico, já que se trata do domínio do código
gestual pelo ator para ser usado em conjunto com o texto.
Não foi esse primeiro encontro com a obra que despertou meu interesse,
mas um longo cultivo da apreciação
pela Commedia dell'arte
e, principalmente,
meu encontro com Roberto Innocente, que havia assistido a diversas peças de
Dario Fo.
Em 2019, durante meu doutorado, decidi montar a peça, iniciando o processo
em 2020. Ao revisitar o texto, percebi que a ‘fábula anarquista’ em si não era meu
principal interesse. O que me fascinava era uma única ideia: um soldado solitário
convivendo com uma tigresa em uma caverna, o núcleo do segundo ato da peça
(embora Fo não dívida a peça em atos, fiz essa divisão baseada nos espaços
narrativos: um vale, uma caverna e um vilarejo). Todo o restante da trama poderia
ser deixado de lado.
Com essa escolha, comecei a trabalhar no texto original e a escrever um novo
primeiro ato, inspirado por três fontes: relatos da minha família, que obtive através
do meu tio Massahiro Seto, nos quais descobri que meu bisavô Noriyasu sempre
sonhara em ir para a guerra, mas, felizmente, nunca teve essa oportunidade; o
livro infantojuvenil
Guerra dentro da gente
(1986), de Paulo Leminski, que narra a
história de Baita, um menino que sonha com a guerra; e as memórias de Hiroo
Onoda, o soldado japonês que passou 30 anos em guerra, sobrevivendo sozinho
na ilha de Lubang, na Indonésia.
Dessas fontes surgiu um personagem inspirado em meu bisavô, no contexto
de uma autoficção teatral. A fabulação de minha vida como Commedia dell’arte
tomou forma com a figura de um bisavô descendente de samurais e seu bisneto,
que se sente responsável por contar a história desse ‘bravo guerreiro’. O
personagem é alguém que sonha em aprender a ‘Arte da Guerra’, um aspecto
emprestado de Baita, e que, ao longo da história, se transforma em um soldado
obstinado, como Onoda, exemplo de determinação.
Assim, o primeiro ato da peça ganhou vida: um adolescente que, contra todas
as advertências, insiste em aprender a arte da guerra. Ele encontra um sábio
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ancião que o conduz para a guerra, mas a experiência não corresponde às suas
expectativas.
O protagonista segue seu caminho na guerra: rouba os documentos de seu
irmão, embarca em um navio, é baleado na perna em alto-mar, foge e é
abandonado por seus companheiros. Ele luta pela sobrevivência contra a natureza
selvagem e, por fim, encontra uma caverna... Nesse ponto, me perguntei: por que
uma tigresa na caverna?
Meu interesse estava no absurdo fantástico: um soldado ferido, abandonado
pelos companheiros, buscando refúgio em uma caverna com uma imensa tigresa.
A questão política anarquista de Fo foi deixada de lado, dando lugar a uma peça
filosófica e fantástica.
Imaginei a tigresa como um dragão, semelhante às criaturas fantásticas dos
filmes de Hayao Miyazaki, com uma pelagem branca como a neve. Ela se tornou
uma tirana colossal que mantinha o soldado prisioneiro. Embora tirana, ela
ocupava esse papel porque o soldado a havia colocado lá, numa relação de
servidão voluntária, remetendo ao Discurso da Servidão Voluntária de La Boétie
(1987). Ao despertar para sua servidão, o soldado decide fugir da caverna.
A pergunta seguinte que me fiz como autor foi: agora que o soldado saiu da
caverna, o que poderia acontecer com ele? Como seria o terceiro e último ato?
Essa dúvida me acompanhou, pois, em Dario Fo, o soldado encontra um
vilarejo onde a tigresa protege os moradores, e a peça termina com uma “moral
anarquista”, em que os burocratas são devorados pelos felinos. No entanto, esse
não era o sentido que eu queria explorar.
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Figura 8Tigre a lua cheia4. Técnica xilogravura japonesa ukiyo-e.
Feita por Keisai Eisen (1790 1848)5.
Foi então que me lembrei do conto de Urashima Taro, uma história que meu
pai sempre me contava durante a infância. Talvez seja a única história que ele
tenha compartilhado comigo, e, sem dúvida, é uma das mais populares do folclore
japonês. Encontrei uma versão escrita pelo meu tio Claudio Seto. Em resumo, a
bela narrativa é a seguinte: Urashima Taro, um pescador de uma vila costeira do
4 Nessa gravura o conceito do
Ma
(vazio) é evidente na lua cheia, que ela é preenchida pelo espaço em
branco da folha.
5 Disponível em: https://ukiyo-e.org/image/mfa/sc222519. Acesso em: 04 mar. 2024.
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Japão, salva uma tartaruga e, como forma de agradecimento, é convidado a visitar
o Palácio do Dragão no fundo do mar. Lá, ele conhece a princesa Toyotama, que o
acolhe com gratidão e lhe concede todos os desejos. Após alguns dias de estadia,
Urashima decide retornar para sua vila. Antes de partir, a princesa lhe presenteia
com uma misteriosa caixa, advertindo-o de que nunca deveria abri-la. Quando
Urashima chega em sua terra, descobre que séculos se passaram e que seus pais,
assim como todas as pessoas que conhecia, haviam falecido. Confuso e
angustiado, ele vai até a praia, levando consigo a caixa que ganhara da princesa,
esperando algum desfecho. Incapaz de suportar a ansiedade, abre a caixa em um
momento de desespero, liberando uma fumaça branca que o transforma
instantaneamente em um idoso. Sem mais esperança, Urashima Taro falece na
praia.
Figura 9Urashima Taro depois de voltar do palácio, espera na praia. Xilogravura japonesa
estilo Surimono. Feita por Matsuki Heikichi (1836-1891)6.
6 Disponível em:
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?search=Matsuki+Heikichi&title=Special:MediaSearch&go=Go&t
ype=image Acesso em: 04 fev. 2024.
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Não existe necessariamente uma moral em Urashima Taro, da mesma forma
que a ideia da fábula moralizadora não está presente no folclore japonês. O
protagonista é bom e realiza a boa ação de salvar uma tartaruga, no entanto, não
tem um final feliz. A "moral", se é que podemos chamá-la assim, na história de
Taro é tão aberta quanto a percepção do Ma na cultura japonesa. O termo Ma, em
japonês, pode ser entendido como um "espaço vazio onde vários fenômenos
aparecem e desaparecem, fazendo nascer signos que se arranjam e se combinam
livremente, de infinitas maneiras" (Okano, 2012, p. 53). É nesse momento de Ma
que o pescador, após perceber que todos que conhecia se foram, vai até a praia e
espera, ao lado da caixa que ganhou da princesa, em um momento de
contemplação. É um momento de suspensão, de reflexão diante do vazio. É então
que ele abre a caixa, e nesse intervalo, ele percebe tudo que se passou, tornando-
se mais um punhado de pó na areia da praia.
Figura 10Urashima Taro ao abrir a caixa na praia. Gravura japonesa estilo Surimono.
Feita por Matsuki Heikichi (1836-1891)7
7 Disponível em:
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?search=Matsuki+Heikichi&title=Special:MediaSearch&go=Go&t
ype=image Acesso em: 04 fev. 2024.
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O conceito de Ma presente na fábula japonesa me inspirou a fazer uma
releitura do segundo para o terceiro ato da peça, fundindo as trajetórias do
menino-soldado-pescador. O
Ma
aqui se manifesta como um vazio recombinante.
O protagonista, o Soldado, encontra novamente um animal gigantesco, dessa vez
uma tartaruga chamada Choukin, que lhe oferece ajuda para retornar à sua casa.
Em troca, ela pede que o Soldado lhe conte uma história. Assim, o Soldado narra
para Choukin a fábula de Urashima Taro, que diz ter ouvido na infância.
No que chamo de último ato da peça, desenvolve-se uma estrutura de peça
emoldurada ou pièce enchassée, onde a própria narrativa cria uma
mise-en-
abyme
. Parafraseando o teórico Lucien Dällenbach (1976), a
mise-en-abyme
é um
fenômeno linguístico que pode ocorrer de três formas distintas. A primeira, de
maneira simples, acontece no nível do enunciado, quando um personagem
menciona outra narrativa de forma sintética. Em uma forma mais complexa, no
nível da enunciação, a segunda narrativa é projetada dentro desse ato de
enunciação, criando uma configuração da instância narradora. O terceiro nível
abrange tanto o enunciado quanto a enunciação, permitindo o encaixe de
micronarrativas dentro de uma narrativa maior, gerando um efeito vertiginoso em
que as fronteiras entre o mundo da fala e o mundo do discurso se diluem.
O efeito da
mise-en-abyme
, assim como o conceito de
Ma
, pode ser abstrato
de explicar, mas por meio de exemplos se torna acessível. Na estrutura
dramatúrgica de
O Soldado, a Tigresa e uma Outra História
, é possível identificar
todos os níveis dessa
mise-en-abyme
. Para facilitar a compreensão, apresento a
seguinte tabela ilustrativa:
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Quadro 1 Níveis de Mise-en-abyme em O Soldado, a Tigresa e uma outra história.
Produção do autor, 2024.
Nível
narrativo em
Mise en
abyme
Atos da peça O Soldado a Tigresa e uma outra
história
PRÓLOGO
I ATO & II
ATO
Nível do
enunciado
O ator entra em cena como
o contador da história de
seu bisavô, que foi um
Soldado, lutou na guerra e
morou na caverna com
uma tigresa.
Nível da
enunciação
O Soldado
(bisavô do ator)
vive, no tempo
presente da
peça, a história
em que lutou
na guerra e
morou com
uma tigresa.
Nível do
enunciado e da
enunciação
Na peça
O Soldado, a Tigresa e uma Outra História
, podemos identificar três
níveis narrativos que se entrelaçam de maneira intricada. O primeiro nível é
implícito e está ligado ao ator-narrador que conduz o monólogo, representando
simultaneamente as camadas da dramaturgia: tanto as explícitas, dos
personagens, quanto as implícitas, do próprio dramaturgo-ator.
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Um dos elementos que forma a essa estrutura narrativa é a presença de
componentes autoficcionais, permitindo que o ator conte a história de seu bisavô,
o Soldado, que partiu para a guerra e desenvolveu uma relação especial com a
Tigresa. Esse é o segundo nível narrativo, onde o Soldado vive sua própria história
enquanto a narra, revivendo os desafios, emoções e experiências do conflito, agora
materializados na performance do ator.
O terceiro nível surge quando as instâncias narrativas se fundem. O ator-
narrador transforma-se em seu bisavô-soldado, que por sua vez assume o papel
de soldado-narrador ao contar a fábula de Urashima Taro para a Tartaruga Gigante,
Choukin. Nesse ponto, o Soldado experimenta a história de Urashima Taro como
se fosse sua, imergindo na narrativa e compartilhando suas angústias e
descobertas.
Essa complexa estrutura de
mise-en-abyme
enriquece a experiência teatral,
promovendo uma reflexão profunda sobre a relação entre ficção e realidade, além
de evidenciar a interconexão entre as camadas narrativas. Cada personagem da
peça, inclusive aqueles que aparecem em outros momentos, coexistem dentro do
corpo-canovaccio do ator, manifestando-se como seus duplos.
Vale ressaltar que, durante o processo criativo, não houve uma separação
entre a escrita da dramaturgia e sua encenação. O texto não foi simplesmente
memorizado após uma fase de escrita. Em vez disso, ele foi constantemente
reescrito e reinventado ao longo da criação. Essa abordagem se desdobra em
várias camadas de reescritura: algumas tecem uma intertextualidade entre minha
vida, a lenda de Urashima Taro e referências da cultura pop japonesa, como
animes
e
mangás
; outras, envolvem a construção vocal e corporal do texto, como
a oralitura e o conceito de
corpo-tela
, propostos por Leda Maria Martins (2021),
que uso para desenvolver a ideia de um corpo-canovaccio, em que a obra pode
“remorrer” para ser rememorada e renascer em novas formas.
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O Corpo-Canovaccio na Commedia dell'Arte Contemporânea
A pesquisa e a criação do espetáculo
O Soldado, a Tigresa e uma Outra
História
revelam que o conceito de
corpo-canovaccio
surge como uma síntese das
tradições cênicas, onde a improvisação, a memória cultural e pessoal, e a
performance física se entrelaçam. O corpo do ator não é apenas um veículo de
expressão, mas sim um palimpsesto sobre o qual as camadas narrativas e
culturais se escrevem e se rescrevem durante a cena.
No caso do espetáculo, o ator assume um papel duplo: como criador e como
intérprete, fundindo a narrativa tradicional com elementos de autoficção e
histórias pessoais. O conceito de corpo-canovaccio, inspirado pelo
zibaldoni
da
Commedia dell’Arte
, reforça a ideia de que a improvisação e a textualidade não se
encontram em oposição, mas coexistem em um processo contínuo de reescrita e
reinvenção.
Por fim, o espetáculo não apenas revisita as tradições da
Commedia dell'Arte
,
mas também incorpora influências contemporâneas e culturais diversas, como o
folclore japonês, propondo um diálogo entre passado e presente. Esse movimento
demonstra que a
Commedia dell'Arte
não é uma forma teatral rígida e
historicamente distante, mas uma linguagem viva, apta a se recontextualizar-se
em diferentes contextos socioculturais, especialmente em um país de
encruzilhadas culturais como o Brasil. Ao longo do processo, o
corpo-canovaccio
provou-se uma ferramenta poderosa na construção de uma dramaturgia plural,
que abre espaço para a exploração de identidades, histórias pessoais e tradições
culturais. É nesse encontro entre o corpo e o texto que a
Commedia dell'Arte
contemporânea se reinventa, mostrando-se relevante para novas gerações de
artistas e espectadores, ao mesmo tempo que honra suas origens. Todavia, é
necessário observar que o termo emerge a partir da criação de um único
espetáculo, caracterizado como um monólogo. Nesse contexto, considero o
corpo-canovaccio
não se limita a um conceito teórico, mas constitui uma prática
que coloca o ator no centro da criação, transformando o teatro em um espaço de
constante diálogo entre histórias e a performance viva. Assim, é possível,
futuramente, expandi-lo para práticas de encenação com um número maior de
O Corpo-Canovaccio: relações entre corpo e escrita na Commedia Dell'Arte contemporânea
Douglas Kodi Seto Takeguma
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-31, dez. 2024
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atuantes, permitindo que a escrita do corpo assuma outras perspectivas e que a
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Recebido em: 19/09/2024
Aprovado em: 23/11/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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