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Balanços e giros de processos artístico-pedagógicos que
abraçam concepções animistas
Lígia Borges
Para citar este artigo:
BORGES, Lígia. Balanços e giros de processos artístico-
pedagógicos que abraçam concepções animistas.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 1, n. 54, abr. 2025.
DOI: 10.5965/1414573101542025e118
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Florianópolis, v.1, n.54, p.1-15, abr. 2025
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Balanços e giros de processos artístico-pedagógicos que abraçam concepções
animistas1
Lígia Borges2
Resumo
A partir de uma oficina de contação de histórias entre mulheres que ocorreu ao longo do
ano de 2023 em uma escola pública de integração de linguagens artísticas voltadas para as
infâncias, o artigo ensaia uma escrita abalada pela presença do parque onde a escola se
encontra. Diálogos com concepções animistas revisitadas permearam as dinâmicas e a
escolha das narrativas que foram analisadas a partir de abordagens que levaram em
consideração a performance das crianças, com eixo nos gestos de balançar e girar.
Considerações acerca do lado artesanal do ofício de narrar foram evocadas pelos bordados
do Coletivo BordaEMIA e através de reflexões, que tecem analogias com a tradição oral.
Palavras-chave
: Contação de histórias. Infâncias. Animismo. Tradição oral.
Balances and turns of artistic-pedagogical processes that embrace animist conceptions
Abstract
Based on a storytelling workshop among women that took place throughout 2023 in a public
school that integrates artistic languages aimed at children, the article attempts a writing that
was shaken by the presence of the park where the school is located. Dialogues with animist
conceptions revisited permeated the dynamics and the choice of narratives that were
analyzed from approaches that took into account the children's performance, with a focus
on the gestures of swinging and turning. Considerations about the artisanal side of the
storytelling craft were evoked by the embroidery of the BordaEMIA Collective and through
reflections, which weave analogies with the oral tradition.
Keywords:
Storytelling. Childhoods. Animism. Oral tradition.
Equilibrios y giros de procesos artístico-pedagógicos que abrazan concepciones animistas
Resumen
A partir de un taller de narración entre mujeres que se desarrolló a lo largo del año 2023 en
una escuela pública integrando lenguajes artísticos dirigido a niños, el artículo ensaya una
escritura sacudida por la presencia del parque donde se ubica la escuela. Los diálogos con
concepciones animistas revisitadas permearon la dinámica y la elección de las narrativas que
fueron analizados a partir de enfoques que tuvieron en cuenta la actuación de los niños,
centrándose en los gestos de mecerse y girar. Consideraciones sobre el lado artesanal del
oficio de narrar fueron evocadas a través de los bordados del Coletivo BordaEMIA y a través
de reflexiones, que tejen analogías con la tradición oral.
Palabras clave
: Narración de cuentos. Infancias. Animismo. Tradición oral.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Daniel Glaydson Ribeiro. Doutorado em
Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em Língua
Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana pela USP. Licenciatura em Letras pela Universidade
Estadual Vale do Acaraú (UEVA).
2 Doutorado e Mestrado em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP). Graduação em Educação
Artística Habilitação em Artes Cênicas pela USP. Professora de Artes do Instituto Federal de Alagoas (IFAL).
ligia.borges@ifal.edu.br
http://lattes.cnpq.br/7974391750233448 https://orcid.org/0000-0002-0299-5377
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O ferreiro forja a Palavra,
O tecelão a tece,
O sapateiro amacia-a curtindo-a.
(Hampâté Bâ, 1980, p. 196)
Figura 1 Tecido por Naige Naara. Foto: Joana Salles3
Dentro do parque Lina e Paulo Raia no bairro Jabaquara, na zona sul de São
Paulo estão 3 casas que abrigam mais de 40 anos a Escola Municipal de
Iniciação Artística (EMIA-SP). Seu eixo principal é o curso regular, frequentado por
crianças a partir de 5 anos de idade, no contraturno do ensino formal. Ali, elas têm
aulas com dois professores de duas linguagens artísticas diferentes seguindo
assim até os 9 anos, quando a radicalização da integração acontece através do
quarteto. Nesse momento, professores das quatro linguagens artísticas
trabalhadas na escola - teatro, dança, artes visuais e música - dão aula juntos.
Muito foi escrito sobre essas experiências e estas palavras se dedicam,
sobretudo, à integração entre escola, parque, crianças e os abalos dessa integração
na experiência adulta. Professores, familiares, visitantes do parque, que permitem
remodelar suas percepções ao se deixarem atingir pela alquimia rara na cidade de
São Paulo, quando processos artísticos acontecem entre crianças, árvores,
3 As imagens que compõem o artigo são parte do trabalho artístico-pedagógico
Raízes: Narrativas da terra”,
realizado pelo coletivo BordaEMIA, com coordenação de Joana Salles.
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pássaros, formigas. Temporalidades e espacialidades capturadas que abrem
portais para o extracotidiano almejado nas linguagens artísticas em diálogos com
cosmologias cujas percepções dialogam com o animismo. Formulação complexa,
falível às contradições, que buscará seu campo de diálogo nesse texto mais
adiante. Desde já, abraçando os encantamentos que circundam as infâncias,
busca-se uma aproximação com possíveis segredos escondidos no parque que
incialmente podem se amostrar adormecidos. Para despertá-los e acessá-los,
convocam-se balanços, giros e vertigem, na contramão de concepções
cartesianas, que preconizam a supremacia da razão. As crianças podem se revelar
mestras na ativação desse estado e seus gestos rascunham um convite, que inclui
trânsito por essências e estados.
Ainda que tecendo estes pensamentos e palavras, que aqui se apresentam,
pelo eixo que recebe a alcunha de artista-professora, papel que exerci quando
compus seu corpo docente ao longo de 7 anos, tantos de nós, nesta posição,
transitamos e nos encontramos na relação com a EMIA como crianças, adultos,
anciões, árvores, terra, casa, balanço. Metamorfoses operadas quando nos
permitimos abalar por percepções que as acolhem enquanto trânsito de vivência
possível, com frequência suscitadas pela integração entre escola e parque. Passear
pelo parque com um grupo de crianças em aliança com os encantamentos à
espreita é canal para as mutações que brotam tais como raízes e folhas.
Manifestações de silêncio e fertilidade análogos, que escondem remédios e
venenos, um canto mudo que clama travessias.
Experimento escrever como quem tece, crava com agulha no tecido, perfura
materialidade, nos rastros de uma percepção rapsódica, tensionada pela posição
de contadora de histórias. Além de Hampâté Bâ, referência presente na epígrafe
e ao longo do texto, muitas investigações abordaram a ligação da contação de
histórias com os ofícios artesanais, destacando o ato de tecer, bordar, costurar.
Em algumas pesquisas em que trilhei nessa direção, realizei parcerias com o grupo
de bordadeiras da EMIA: bordaEMIA4. Consciente das limitações das palavras,
4 Coletivo que desde 2016 pesquisa e realiza a arte do bordado na EMIA, com a coordenação de Joana Sales,
artista visual e professora-artista da escola. Integrantes em 2023: Ana Galluzzi, Ellen Triz, Érika Passo, Eunice
de Paula, Fátima Pereira, Graça Rocha, Jaqueline Marques, Naige Naara, Rose Araújo, Sílvia Vicente, Sueli Sufevi,
Tetê Chaves, Vanusa Paula, Vera Marques e Vivi Viana.
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sobretudo escritas, trouxe uma metáfora aqui iconografada através de suas raízes
bordadas. Em seu exercício, elas realizaram percursos semelhantes à busca
empreendida no artigo: entre palavras e fios, enraizar e brotar encantamentos,
inspirados pelas infâncias em movimento.
No ano de 2000, fui estagiária na EMIA. Finalizava a graduação em
Licenciatura em Artes Cênicas e assistia a algumas aulas na escola, com a
perplexidade que compõe a sua existência, uma sensação comum de quem
descobre uma escola pública de integração de linguagens artística dentro de um
parque. Assombro dividido sobretudo entre pessoas profundamente conectadas
com os processos artísticos e frequentemente somado à questão: como teria sido
minha infância se tivesse acesso à EMIA nesse período? De certa forma driblamos
as impossibilidades cronológicas: entregamos a EMIA à nossa resistente infância,
da mesma forma que nos aproximamos dos Sacis, atravessamos portais na árvore
tombada, navegamos no rio adormecido debaixo da passarela, tememos com
curiosidade o Mago do porão. Presenças que se apresentam na radicalidade da
imaginação e do corpo em balanços e giros que são grandes alicerces da escola.
Figura 2 - Tecido por Eunice de Paula. Foto: Joana Salles
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Nesse estágio tive a sorte de acompanhar as aulas ministradas por Marina
Marcondes Machado, naquele então artista-professora de teatro, junto a Cláudia
Freixedas, da área de música. As duas realizavam uma parceria junto a uma turma
de crianças de 5 e 6 anos de idade. Ali pude observar, na prática, o que depois
pude acompanhar nas reflexões que Marina Marcondes tem desenvolvido, que,
inclusive, põem em xeque tantas categorizações, que neste texto se explicitam
para tentar dar conta da experiência: a divisão entre linguagens artísticas, funções,
teoria e prática. Sua escrita-experiência caminha na direção de uma radicalização
da desestabilização de categorias, ao valorizar o encontro, a experiência, os fluxos.
Além de fundamentar a integração de linguagens artísticas, interessa aqui seu
conceito de criança performer interferindo e moldando percepções adultas:
Para utilizar uma linguagem próxima da Sociologia e da Psicologia de
análise das representações de papéis, haverá sempre amplos espectros
dos efeitos da representação (visões de infância do professor) no
representado (as crianças alunas). Posto em linguagem cotidiana, a cada
maneira de olhar a criança corresponde um jeito de ser e de estar do
adulto, emoldurando a convivência entre eles (Machado, 2010, p. 117).
A desestabilização das categorias ao se dirigir à criança, que permeia a citação
acima, se presentifica aqui de forma paralela ao cercar uma abordagem dirigida
ao animismo, perpassada pela fragilidade epistemológica, que acompanha sua
concepção. No artigo de 2019 diversos autores (Bird-David, Viveiros de Castro,
Hornborg, Rival, Sandstorm, Pálsson, Ingold) se propuseram a revisá-lo,
reconhecendo historicamente dificuldades de categorização, sobretudo ligadas às
dicotomias presentes em epistemologias dividem o vivo e o não vivo, o físico e
humano, corpo e espírito, sociedade e natureza. “A expressão “atribuir vida ao não
vivo” relega, em um golpe, as crenças animistas à categoria de “erro”,
retrocedendo a um patamar aquém dos avanços realizados por Lévi-Strauss”
(Bird-David et al, 2019, p.104).
O desinteresse nas assertividades e nas zonas de certeza permitem um
vínculo animista enquanto inspiração estética, além de poder encará-lo como uma
“estratégia perceptiva”, atitude quase ingênua citada no artigo enquanto uma
posição diante da incerteza: se não como ter certeza da ausência de vida,
permite-se circundar sua possibilidade. A conexão sustentável e as possibilidades
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criativas legitimam a abordagem, buscando não sucumbir no que o artigo aponta
como “objetificação das identidades indígenas complexas” (Bird-David et al, 2019,
p. 97). Percorrendo suas palavras, o presente texto busca driblar essa cilada
farejando seus rastros quando busca “uma nova visão para o conceito de
animismo [...] ressignificando o chamado animismo primitivo como uma
epistemologia relacional.” (Bird-David et al, 2019, p.97).
contra o “eu penso, logo existo” coloca-se o “eu relaciono, logo existo”,
“eu sei quando me relaciono”. contra a concepção materialista do meio
ambiente, entendido como coisas discretas, coloca-se o enquadramento
relacional do meio ambiente enquanto relacionalidades aninhadas (Bird-
David et al, 2019, p.127).
Diversas trilhas empreendidas dentro e fora do teatro, a princípio distante da
academia e suas teorias, mas em busca de experiências sensíveis circundaram
uma necessidade pessoal de abraçar essa concepção. Destaco, reiteradamente,
os anos de estudos e prática como contadora de história, que passou a moldar
uma existência rapsódica em mim, onde a vida, com frequência humanizada, de
montanhas, ventos, sentimentos, objetos se apresentam com a fluência onírica tal
como nas histórias, mitos, tradições. Também vivos, parentes: avós, filhos, irmãos,
amigos. No pulso das narrativas busquei alargar os sentidos para me relacionar
com tudo que se mostrava portador de alma,
anima,
sem compromissos
epistemológicos. A presentificação seguia uma fluência intuitiva, abraçada à
criança, também viva em mim.
No ano de 2017 retornei à EMIA, como artista-professora (-narradora),
sustentando um portal aberto para as histórias, já então muito presente na minha
prática pedagógica. Sobrevoei, rastejei, naveguei pelo parque e pela escola nessa
prática também rapsódica entrelaçada a um sentimento de pertencimento em
elos temporais sincrônicos. Encontrei tradução para a ancestralidade que cerca a
arte de contar histórias em Hampâté Bâ, mestre da tradição oral da África sub-
saariana, atual Mali. Mais especificamente, Bandiagara, região de pastores que
guiavam seus rebanhos pelas savanas, onde também cercavam seus ouvintes para
processos de transmissão de sabedoria, armazenada na memória.
Em seu texto “A tradição Viva”, Hampâté Bâ relata a forma como seu povo se
relaciona com a palavra, incorporando-a, sendo também formado por ela, que
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no fundamento da tradição oral, ela preserva a memória em sua vocalidade, sopro,
nos processos de transmissão, pulsão anímica em que a palavra viva se apresenta.
Os ofícios artesanais, como aqueles presentes na epígrafe deste texto, são,
segundo ele, “os grandes vetores da tradição oral” (Hampâté Bâ, 1980, p. 196). O
que de artesanal no gesto de ensinar? Sei que nessa trajetória na EMIA teci e
fui tecida pelas infâncias e que o ato de narrar, permeou todo o processo. As
histórias suscitaram teatralidades, movimentos, musicalidades, criações diversas.
Desatar nós da existência, das transições da não-mais-somente-infância porvir.
Navegamos com elas em diferentes turmas, parcerias em que gestos ritualísticos
se desenhavam de modo similar aos balanços e giros das crianças no parque da
EMIA. A magia de se movimentar, voar com o quadril sustentado, de rodopiar e
tanger vertigem. O parque foi aliado, co-autor de processos, descobertas.
Enquanto raízes de árvores se comunicavam, nós desenhamos trajetos
analogamente férteis, cravamos nossas histórias, enraizamos elos, os fortes e os
insustentáveis.
Figura 3 - Tecido por Sílvia Vicente. Foto: Joana Salles
Entre tantos processos vividos, destaco a oficina “Reencantar através das
histórias”5 oferecida ao público adulto ao longo de 2023. Ainda que, como foi
5 Participantes da oficina: Bárbara Schill, Beth Castro, Dina Walquiria Gomes Silva, Elizabeth Monteiro, Janaína
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citado, o eixo pedagógico da escola esteja centrado nas infâncias, algumas oficinas
são oferecidas livremente, independente do curso regular. Nesse caso, a oficina foi
direcionada ao público adulto e quando isso acontece, com frequência, são as
famílias, que aguardam as crianças, as principais interessadas e aproveitam esse
momento para a participação.
Ali nos reunimos, em um laço, que sem a intenção explícita, acabou por se
tornar uma roda de mulheres. Como é evidenciado, com maior frequência o
cuidado com as crianças está mais associado a elas (nós) e as implicações
patriarcais desse fato permeou nossas dinâmicas no desvelar de questões
associadas à maternidade. Levando-se em consideração essa vinculação
subjacente cercamos trilhas em torno da formação de contadoras de histórias.
Jogos teatrais em diálogo com a cena expandida circundaram as dinâmicas
enquanto se buscava um aprimoramento de um estado de presença almejado,
para as várias direções possíveis de soprar uma história mobilizando sentidos de
quem narra e escuta. Dentre os tantos eixos formativos destaco a constituição de
um repertório, sobretudo com histórias que promovem um arrebatamento em
quem entra em contato com elas como que evocando uma urgência na sua
aproximação, até o sopro, momento em que é dividida em performance junto ao
público. Isso acende uma responsabilidade na seleção de narrativas. quem fale
em ser escolhido por elas. Entre sujeito e objeto, nesse caso, elejo a fricção e
abordo um campo de ressonâncias, relacional, portanto, entre a história e quem a
narra, ambos dotados de
anima
. Contexto que sugere elos e fluxos, que pode
incluir o público de ouvintes que também participa desse trânsito que possibilitará
ao contador de histórias uma rede de mobilizações.
Além da seleção de narrativas como eixo e guia de processos,
participantes que trazem histórias para serem trabalhadas. Acolhê-las tem
relevância análoga. No processo formativo algumas são escolhidas como forma
de testar sintonias, dar vida às metáforas evocadas, convidar ao sopro. Mais
adiante abordarei aquelas que foram direcionadas para compor um
compartilhamento público do processo. Antes me detenho em uma que participou
Leslão, Karla Almeida Argentim, Macia Sugui e Naige Naara.
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do desenvolvimento da oficina e se liga à escuta do parque ao redor da escola,
como forma de buscar um sopro abalado por sua presença, como que traduzindo
o sopro das próprias árvores e seres diversos. Se tantas fábulas, como aquelas de
Esopo se dedicam a dar vida a bichos e sentimentos como forma de transmitir
mensagens, sobretudo de cunho moral, a busca aqui, se conecta a uma abertura
relacional, que poderia ser encarada como escuta. Diversos escritores e
pesquisadores trilharam a constituição ou o diálogo com uma literatura que traduz
as forças da natureza, encarando-as com suas respectivas vozes, concepção que
ao longo desse texto tem sido encarada como animismo. Roberto Zular analisou
esse movimento em diversas obras: “Literatura da floresta” de Lúcia Sá, “Recado
do morro” de Guimarães Rosa, “A Queda do céu” de Davi Kopenawa, casos em que
se operam esse movimento, cujos gestos podem ser postulados de diversos
modos, tais como escuta, tradução, criação:
Escutar a mata e o morro é colocar a mata e o morro em um mesmo
plano de significação que atribuímos à nossa linguagem. [...]
Se nos restringirmos ao conteúdo (quase sempre) visual do que é dito
sobre a natureza, continuamos nos colocando mesmo que sensíveis à
causa ecológica e indígena naquela posição de uma exceção metafísica
externa que determina o mundo desde um suposto fora (Zular, 2020,
p.20).
No caso de nossa oficina, salta a aliança com o conto tradicional e nessa
direção coletamos uma referência criada, traduzida, escutada por Andersen: “O
Último Sonho do Velho Carvalho”. O conto será tematizado aqui, mas desde
ressalto que ele não chegou a ser performado. Seu fluxo narrativo esteve mais
presente como forma que conteúdo, afirmando e inspirando a gestação de sopros,
evidenciando o caso em que a narrativa é mestra de escuta em seu estado
semente. Nesse caso, a temporalidade animada pela história norteou nossas
buscas, ao cercar um corpo-estado-árvore, que também é percurso almejado
nessa escrita, traduzido com mais precisão nos bordados.
Na história, o fluxo das estações, traço recorrente em Andersen, se faz
presente em uma aliança xamânica que vida aos portais do tempo, elemento
que se encontra no eixo da narrativa. O velho carvalho, protagonista, tem 365 anos
e sabe que viverá sua última noite, já que no seu ciclo passa 9 meses acordado e
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3 dormindo. O natal prenuncia seu derradeiro sonho, temporalidade tensionada na
presença dos “efemerópteros, que são os insetos que vivem um dia” (Andersen,
2020, p. 102), que também ganham voz ao celebrar o pacto com vida, que creem
de igual intensidade que o carvalho: “nós temos o mesmo tempo de vida, o jeito
de calcular que é diferente” (Andersen, 2020, p. 103). As proporções matemáticas,
explicitadas na idade do carvalho correspondente aos dias do ano, ou no terço do
ano dedicado ao sono, abalam estruturas formais de relação com o tempo
cronológico. Um gesto capaz de desvelar a eternidade: pulso vital da jornada de
quem atravessa centenas de séculos ou segundos: o desabrochar da vida. A
performance narrativa se pretende assim, a evocar vida, mascarando-se de
eternidade.
Em uma tempestade da noite de natal o Carvalho tem seu derradeiro sonho
em que vai crescendo em direção ao Sol, em um movimento pleno acompanhado
por todos os seres da mata. Enquanto sonha, a tempestade faz as ondas do mar
que beiram o carvalho se avolumarem a ponto de ranger a árvore que desaba em
meio ao sonho de realização. O Carvalho era como um farol para os marinheiros
que honram na noite natalina sua existência em um louvor que afirma sua face
crística, seu potencial de renascimento, ali a adubar a terra no fluxo das estações,
a fertilidade do ciclo morte-vida.
Reafirmo: ainda que a presença dessa história na oficina fosse subterrânea,
sua fabulação tange o vetor cercado pelas contadoras de histórias em formação,
de sustentar a potência da vida, de evocar um último sonho antes da morte do
encontro que se almeja eterno, a adubar perspectivas. Ao redor das árvores,
borboletas e formigas do parque cercamos gestos capazes de traduzir essa
narrativa. Partimos em busca do extraordinário, que por vezes se apresentava,
outras tantas se escondia. Gestá-lo implica na lida do ordinário, em seu sentido
repetitivo, artesanal, como o ofício pedagógico, atos forjados, tecidos e amaciados,
mão-dupla entre o ensinar e aprender, trocar de papéis, escutar o conselho das
árvores que silenciosamente se forjam extraordinárias. Fotossintetizamos
narrativas, que almejamos frutos. Florescemos narradoras.
O território eleito para a apresentação foi, portanto, o parque, em meio às
árvores, como que convidando as presenças à escuta dos conselhos do Carvalho.
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Em um momento decisivo, quando o grupo escolhe quais as narrativas serão
divididas com o público, dentre as tantas experimentadas, pareceu particular que
as duas eleitas se encontrassem em uma mesma coletânea “O Violino cigano e
outros contos de mulheres sábias” de Regina Machado. Autora que é um grande
nome no Brasil de estudo e prática da arte de narrar, além de organizadora do
emblemático encontro que celebra, aprimora, contextualiza, amplia e discute
diretrizes nessa arte: “Boca do céu”. Seus estudos inspiraram várias das dinâmicas
realizadas na oficina e a obra onde estão os contos selecionados, apresenta como
um campo de vivificação da arte de narrar. Todas as histórias têm o traço do conto
tradicional, de oralidade subjacente, de potencial evocativo do sopro. Como se a
estrutura dos contos sustentasse uma possibilidade de performance, um percurso
de gestos enraizados, que em meio a terra fértil da performance das contadoras
de histórias sinalizasse broto e florescimento.
Eis as histórias eleitas: “Uma fábula sobre a fábula”, conto árabe e “Mãe Wu”,
da China. Na primeira, a Verdade deseja entrar no palácio do sultão e tenta
ostensivamente: primeiramente quase nua, transparente, tal como é possível
visualizá-la, mas não obtém êxito. Revoltada, veste-se com peles grosseiras e
aparece como Acusação e tem a mesma recusa. Sua teimosia não a deixa desistir
e decide buscar as mais lindas vestes e enfeites e se apresenta “com voz doce e
melodiosa” (Machado, 2004, p. 16) e assim, apresentando-se como Fábula atinge
seu alvo. Metáfora relevante para nossa busca: vestirmos fábula, darmos vida a
ela.
O samba de Noel Rosa “Com que roupa?” anunciou a história e anima a
questão que margeia a história, que tensiona a dúvida tal como a sugestão da pele
possível, friccionando limites entre aparência e essência, ficção e realidade. No
samba e na história, vestes entre nudez, farrapo, mostram sua face malemolente,
buscadora, e anunciam a necessidade das metamorfoses que as vestes
possibilitam:
Eu hoje estou pulando como sapo
Pra ver se escapo
Desta praga de urubu
Já estou coberto de farrapo
Eu vou acabar ficando nu (Noel Rosa, 2003).
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No samba, o fracasso e a dúvida imperam. Esta última até nomeia a obra. A
fábula experimenta a troca, a dúvida, mas finaliza afirmativa: que com estas vestes
fabulosas, a verdade consegue entrar no castelo do rei (sultão, no conto original).
Ali em meio ao parque, o signo do castelo, balançava entre o imaginário e a
corporalidade da plateia de ouvintes animada pelo samba, árvores atentas e o
próprio processo formativo das contadoras performers, que além de fabuladoras
e fabulosas foram corajosas. Decidiram encarar a distopia da segunda história
selecionada: “Mãe Wu”. Segundo Regina Machado (2004, p. 115):
É um bom exemplo da abrangência insuspeita das narrativas tradicionais.
Em geral vive nas pessoas a crença de que tais narrativas se resumem a
“contos de fadas”, histórias maravilhosas apenas para crianças. Talvez
porque não tenhamos vivido as noites em volta da fogueira, em que os
mais velhos contavam história aterradoras, causos” tidos como
acontecidos, cheios de fatos inexplicáveis de arrepiar os cabelos.
O parque e as crianças talvez pendessem para que permanecêssemos com
as vestes fabulosas, mas a urgência e o espanto abriram espaço para o terror
anunciado por “Mãe Wu”. Na história, a protagonista que a intitula é uma mulher
muito velha que todos os dias repete os mesmos gestos: subir uma montanha,
examinar a “estupa secular edificada ali” (Machado, 2004, p. 117) e rezar. Alguns
meninos decidem questionar a razão de tal repetição. Ela explica que foi uma
tradição que foi recebida pelos antepassados, de verificar se a estupa está
manchada de sangue que esse seria o prenúncio de um terrível
desmoronamento. Ela ainda afirma que realiza esse trabalho por toda a aldeia. Os
meninos consideram absurda aquela crendice e armam um plano para invalidar a
profecia: conseguem sangue de carneiro no açougue e deixam ali na estupa para
que a velha o encontre no dia seguinte. Ela volta assustadíssima e gritando anuncia
a necessidade urgente de deixar o local. sua família abandona a região. “Um
estrondo ensurdecedor aterrorizou a todos, mas ninguém ficou vivo para saber de
mais nada” (Machado, 2004, p. 120). A misteriosa tragédia se confirma.
Essa história foi narrada em um local dentro do parque conhecido como
“portal da árvore tombada”. Uma grande árvore em queda sustentada por alguns
alicerces, suscitando uma travessia abaixo dela. Em dinâmicas com crianças o
lugar foi, diversas vezes em derivas criativas pelo parque, arena para chamar um
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gesto de metamorfose: mudanças de ação, personagens. A transformação, a
passagem se vestem dispositivos de estado de presença, corporificando a
imaginação, suscitando fabulações. Ali, onde a árvore ainda se sustenta, mas
anuncia uma queda, tal como o céu dos yanomami, denunciado por Davi
Kopenawa. Tal como o rumor da terra anunciado por Mãe Wu, na história que
ousamos narrar ali, onde tudo pode se sustentar ou despencar. Encruzilhada da
sobrevivência e ancestralidade, onde assentamos nossos encantamentos como
sopro vital. Entre permitir a escuta da árvore tombada, traduzir seus alicerces e
forjar elos com o prenúncio de “Mãe Wu”, se desenhou nossa performance, como
convite a um estado de recepção às forças do parque.
Junto às ousadas mulheres que abraçaram e delinearam essa travessia, as
palavras por aqui giraram e balançaram assim como cada ser que ao longo desses
mais de 40 anos de EMIA também balançaram, giraram e permitiram que tantas
histórias ainda possam se desenhar nesse parque e escutar o conselho das
árvores: enraizar, florescer e frutificar.
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Recebido em: 19/09/2024
Aprovado em: 23/11/2024
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