Teatralidades negras
Conrado Dess
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-23, dez. 2024
expandindo os escopos do corpo como lugar e ambiente de produção e inscrição
de conhecimento, memória, de afetos e de ações” (Martins, 2021, p. 162). Em vez
de buscar uma "visibilidade plena" nos moldes tradicionais, o corpo negro assume,
dessa maneira, uma condição que Leda Maria Martins descreve como “corpo-tela”:
Um corpo pensamento. O corpo, assim instituído e constituído, faz-se
como um corpo-tela, um corpo-imagem, acervo de um complexo de
alusões e repertório de estímulos e de argumentos, traduzindo certa
geopolítica do corpo: o corpo pólis, o corpo das temporalidades:
espacialidades, o corpo gentrificado, o corpo testemunha e de registros.
Um corpo historicamente conotado, que personaliza as vozes que
denunciam e nomeiam o itinerário de violências de nossa rotina cotidiana,
mas que, sem tréguas, escavam vias alternas para uma outra existência,
mais plena e cidadã. Um corpo voz/inventário que limpa, restabelece,
restitui, reivindica, respira e inspira, em perene processo de cura,
escavando vias alternas de outros devires possíveis, sempre desejoso de
transformações do corpus social (Martins, 2021, p. 162).
É, assim, através do performar — seja no campo artístico, nas ações políticas
ou no cotidiano —, que esse corpo não apenas desafia os regimes de visibilidade
hegemônicos, mas também (re)afirma sua subjetividade e agência, em um
confronto que reconfigura o espaço-tempo. A performance, nesse sentido, torna-
se mais do que expressão: ela é uma prática ontológica de realização e produção
de saberes, um gesto que reivindica a memória e a plenitude do sujeito7:
O corpo em performance restaura, expressa e, simultaneamente, produz
esse conhecimento, grafado na memória do gesto. Performar, nesse
sentido, significa inscrever, repetir transcriando, revisando, e representa
"uma forma de conhecimento potencialmente alternativa e
contestatória". A memória dos saberes dissemina-se por inúmeros atos
de performance, um mais-além do registro gravado pela letra alfabética;
por via da performance corporal — movimentos, gestos, danças, mímica,
dramatizações, cerimônias de celebração, rituais etc. (Martins, 2021, p.
130).
7 Falar sobre o corpo negro em performance é um exercício que também evoca a noção de
performatividade
.
Fernandes (2011), ao discutir as conceituações de performatividade e teatralidade trazidas por Josette Féral,
ressalta que o teatro se organiza em torno de uma narrativa e de representações que utilizam códigos para
registrar simbolicamente o que está sendo tratado. Já a performance se configura como uma expressão de
desejos e energias em movimento, buscando desconstruir essas mesmas estruturas. Embora Féral
proponha a teatralidade e a performatividade como conceitos antagônicos, sua abordagem sugere que a
teatralidade emerge justamente desse confronto entre as estruturas simbólicas e estáveis do teatro e os
fluxos dinâmicos — gestuais, vocais e emocionais — da performance. Esses fluxos, sempre em construção,
criam espaços de expressão cênica mais fluidos e instáveis. Apesar da relevância dessa discussão, este
artigo opta por focar especificamente na ideia de teatralidade, abordando a performatividade apenas de
maneira tangencial e tomando-a como algo que nasce a partir do corpo do performer e precede o fenômeno
da teatralidade.