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Corpo
in
comum e (des)educação criações
e escritas de si com a dança autoral
Claudia Madruga Cunha
Daniella da Costa Nery
Angélica Vier Munhoz
Para citar este artigo:
CUNHA, Claudia Madruga; NERY, Daniella da Costa;
MUNHOZ, Angélica Vier. Corpo
in
comum e (des)educação
criações e escritas de si com a dança autoral.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 4, n. 53, dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e116
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Corpo
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comum e (des)educação criações e escritas de si com a dança autoral
Claudia Madruga Cunha | Daniella da Costa Nery | Angélica Vier Munhoz
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-26, dez. 2024
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Corpo
in
comum e (des)educação criações e escritas de si com a dança autoral1
Claudia Madruga Cunha2
Daniella da Costa Nery3
Angélica Vier Munhoz4
Resumo
A cultura ocidental desfigurou o corpo da vontade e impôs ao corpo órgãos e uma vida alienada e
fascista, expõem Artaud (1999) e Deleuze e Guattari (1997). Tais noções do corpo estão aproximadas da
dança autoral. Setenta (2008), Rocha (2016) e Lepecki (2017) problematizam uma prática para um corpo
In
comum. Estes referentes orientam um olhar para a dança experimentada pelo grupo Guido Viaro, no
objetivo de encontrar pistas para uma clínica e crítica, onde a dança é pensar-se, escrever-se,
movimentar-se. Acompanhado por três linhas de uma cartografia, o processo da pesquisa trata: i) de
um Corpo sem Órgãos ampliado?; ii) das práticas de dança para corpos Incomuns; e iii) de cinco verbos
para uma observação afetiva e reflexiva com a dança.
Palavras-chave
: Corpo sem órgãos. Dança autoral. (des)educação. Corpo
In
comum.
Unusual body and (dis)education creations and writings of the self with authorial dance
Abstract
Western culture has disfigured the body of the will and imposed organs on the body and an alienated
and fascist life, Artaud (1999) and Deleuze and Guattari (1997) expose. Such notions of the body are
close to the authorial dance. Setenta (2008), Rocha (2016), and Lepecki (2017) problematize a practice
for an
Un
common body. These references guide a look at the dance experienced by the Guido Viaro
group, intending to find clues for a clinic and a critique, where dance is thinking, writing, moving.
Accompanied by three lines of cartography, the research process deals with: i) an expanded Body
without Organs?; ii) dance practices for Unusual bodies; and iii) five verbs for an affective and reflective
observation with the dance.
Keywords:
Body without organs. Authorial dance. (dis)education. Unusual body.
Cuerpo inusual y (des)educación creaciones y escritos de sí con la danza autoral
Resumen
La cultura occidental ha desfigurado el cuerpo de la voluntad y le ha impuesto órganos y una vida
alienada y fascista, exponen Artaud (1999) y Deleuze y Guattari (1997). Tales nociones del cuerpo se
acercan a la danza autoral. Setenta (2008), Rocha (2016) y Lepecki (2017) problematizan una práctica
para un cuerpo
In
común. Estas referencias guían una mirada sobre la danza experimentada por el
grupo Guido Viaro, con el objetivo de encontrar pistas para una clínica y una crítica, donde la danza es
pensarse, escribirse y moverse. Acompañado de tres líneas de una cartografía, el proceso de
investigación aborda: i) ¿un Cuerpo sin Órganos ampliado?; ii) prácticas de danza para cuerpos
Incomunes; iii) cinco verbos para una observación afectiva y reflexiva de la danza.
Palabras clave
: Cuerpo sin órganos. Danza autoral. (des)educación. Cuerpo inusual.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Sofia Bocca. Doutoranda em Educação na Pontíficia
Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Mestrado em Educação pela PUC-PR. Graduação em Letras Português e
inglês pela Universidade Tecnólogica Federal do Paraná (UTFPR).
2 Pós-Doutorado em Educação pela Universidade do Porto (UP), Portugal. Doutorado em Educação pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS). Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Professora Associada da UFPR, do
Departamento de Artes do Setor de Comunicação e Design (SACOD), atua no Curso Bacharelado em Produção Cultural e
nos Programas de Pós-Graduação em Educação (PPGE). cmadrugacunha@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/3002442586103574 https://orcid.org/0000-0002-2867-5566
3 Doutoranda em Educação e Mestrado em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bacharelado e licenciada
em Dança pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP). Artista-docente-pesquisadora da Dança e professora de Arte da
Secretaria Estadual de Educação do Paraná (SEED). daniellacnery@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/7667011318852463 https://orcid.org/0009-0003-3912-2187
4 Pós-doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Doutorado e Mestrado em Educação pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduação em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUC-RS). Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Ensino da Universidade do Vale do Taquari
(Univates). angelicavmunhoz@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/4928481211980742 https://orcid.org/0000-0002-2644-043X
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O tema do corpo foi amplamente debatido e explorado no século passado,
com vistas a romper com a lógica racionalista e seu predomínio na produção das
ciências e das artes. As questões que envolvem essa temática seguem pujantes e
complexas. Ao nos aproximarmos de um debate teórico e prático sobre o corpo,
convocamos Nietzsche; Artaud; Deleuze e Guattari. O primeiro para tratar da
relação pensamento e vida, vontade de potência, e os três últimos para discorrer
sobre Corpo sem Órgãos. Problematizamos um corpo que precisa ser
experimentado, buscado, desfeito e refeito continuamente. Para tanto,
observamos uma prática com a dança autoral, realizada pelo Grupo de Dança
Guido Viaro5, e destacamos, sensibilizadas pelas leituras dos autores citados, a
noção de um corpo
In
comum.
Com esse tear de ideias, localizamos nesse coletivo, que tem experimentado
com a dança autoral uma possibilidade de esmiuçar essa noção de corpo, corpo-
matéria e fluxos que se ramificam em um processo artístico, no qual atuam e
amoldam, ampliam, se reescrevem, tomam a si próprios como tarefa a fazer.
Tratamos a seguir de algumas concepções sobre corpo que influenciam a arte
contemporânea, alteram valores e compreensões. Tais pensares margeiam os
percursos em uma pesquisa que utiliza a metodologia da cartografia6
metodologia que temos utilizado para acompanhar os experimentos com a dança
contemporânea –, e tem por foco de análise as interações entre arte e corpo,
propondo como objeto um corpo
In
comum.
5 Informação por completar: referimo-nos a um curso de dança contemporânea, chamado Grupo de Dança
Guido Viaro, que vem sendo ofertado no espaço educacional e artístico Centro Estadual de Capacitação em
Artes Guido Viaro, localizado em Curitiba/PR.
6 Pesquisa de doutorado ainda não concluída no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Paraná.
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Figura 1 Apresentação do grupo em 2024. Foto: Nelson Sebastião
Pensamento e vida - educar e (des)educar
[...] os fortes buscam necessariamente associar-se, tanto quanto os
fracos buscam dissociar-se; quando os primeiros se unem, isto acontece
com vista a uma agressão coletiva, uma satisfação coletiva de sua
vontade de poder, com muita oposição da consciência individual; os
fracos ao contrário se agrupam tendo prazer nesse agrupamento seu
instinto se satisfaz com isso, tanto quanto o instinto dos ‘senhores’ natos
(isto é, da solidão predatória da espécie ‘homem’) é irritado e perturbado
pela organização (Nietzsche, 1998, p. 125).
Na passagem do século XIX para o século XX, Nietzsche nos chama a atenção
para uma tendência de nos agruparmos sob a tirania de algum líder (sacerdote),
para lidar com nossas fraquezas. Também destaca a falsa ideia de boa
consciência, que visava a saúde da alma, ignorando que nossas neuroses estão
diretamente ligadas às formas como nos relacionamos com nosso corpo. O tema
do corpo, no século XX, entre as ciências humanas e as artes, se especifica em
disciplinas e áreas de concentração, que revisam conhecimentos vindos do que
chamamos a base do pensamento ocidental. Sendo assim, estudos da sociologia,
antropologia, história, filosofia e da arte se acercaram de novas ferramentas
acessadas no legado nietzschiano7.
7 Nietzsche (1992) destaca como a filosofia platônica compreendeu a filosofia socrática, estabelecendo uma
separação entre corpo e pensamento, compreensão que teve efeitos e produziu certa radicalização na
sacralização do conhecimento na Idade Média, momento no qual a alma, na sua condição metafisica, passou
a ser um elemento mais elevado e compôs uma ascese moral que submete e julga o corpo. O corpo
subjugado à alma, elemento superior e metafisico, manterá uma forma de organização prévia à existência,
algo que perpassa os dualismos movimentados pelos modernos, assim: sujeito e objeto, humano e natureza,
causa e efeito, mente e corpo, não formam um paralelo, mas uma ordenação hierárquica de mundo.
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Nietzsche (1992) reclama da cisão platônica entre alma e corpo, porque dela
se faz a separação entre pensamento e vida. O filósofo da vontade de potência
chama atenção para o fato de que havia duas estéticas que se sobressaíam no
mundo greco-romano: a dionisíaca e a apolínia, mas a segunda, devido ao
platonismo, sucumbiu à primeira. A estética dionisíaca entendia os corpos como
o lugar do êxtase, da dor, das errâncias, dos desejos, dos prazeres e das sensações,
todos esses elementos dão base ao que nos torna humanos e nos permite a
criação de uma arte da vida (Nietzsche, 1992). A estética apolínia, por sua vez,
refere-se às formas perfeitas abstratas, condiz com um ideal sublunar acessado
por uma alma que julga o corpo e o torna submisso, julga sentimentos, emoções
e expressões.
Nietzsche (1992; 1998), nas várias obras em que problematiza a relação
pensamento e vida, intui que cabe à filosofia realocar o lugar e a posição do corpo
na esfera do pensamento. Com estes e entre outros argumentos, Nietzsche (1992)
desestabilizou pensadores e artistas na passagem do século XX, exigindo
revisarmos constantemente a origem de nossos valores e de nossa moral. Esta
cobrança de revisão das nossas acepções normativas, dos nossos modos de
educar, implica em uma vigilância dos padrões éticos e estéticos com os quais
movimentamos nossos saberes. O corpo possui um filtro seletivo, uma
sensibilidade capaz de diagnosticar a imanência da vida que o contagia, de
significações fluídas, mutantes, que prescindem de substratos transcendentes.
Opondo-se ao dualismo pensamento-vida, Nietzsche (1992; 1998) mostrou que há
um fosso entre pensar e sentir, em que o abstrato se fez superior ao concreto.
Corpo desfazer e desorganizar
Na primeira metade do século XX, na esteira do pensamento nietzschiano,
Antonin Artaud (1999), poeta, escritor e dramaturgo, em sua obra radiofônica,
Para
acabar com o julgamento de deus
, proclama pela primeira vez a noção de Corpo
sem Órgãos CsO. Com essa noção, problematizava como os órgãos, no seu
conjunto de determinações prévias, sobrecarregam o corpo e demandam a ele
limites. Esses limites se referem tanto à capacidade de pensar, fazer uso de uma
inteligibilidade que se articula linguisticamente e se expressa corporalmente, como
Corpo
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ao modo que se constituem as experiências corporais dos coletivos, experiências
adequadas às formas dadas por uma racionalidade prévia que de antemão as
elucida e valora.
Artaud8 se desloca para o México em busca de tratamentos alternativos para
a doença mental que o acometia. Acessa, na década de 30, uma espécie de
alquimia com a minerologia, com as pedras, as plantas, os filamentos, matérias
que se tornam contribuições para pensar o corpo. Algo que precisa ser reforjado,
distinto do organismo, libertado das ordens e das organizações que o condicionam
às “formas da racionalidade, da espiritualidade, da ciência, da sociedade burguês,
da individualidade, da arte e da literatura” (Uno, 2022, p. 189). Artaud (1999) travou
uma luta em vida contra as limitações impostas ao corpo, pois entendia que o
corpo não conseguia expressar as forças, que, vindas da vida, o atravessavam,
forças que considerava elementares. Nesse esforço, propôs um teatro das forças,
da vibração, onde há sons, ruídos, gritos, vozes.
O dramaturgo reclama que uma forma de vida que nos é dada a viver,
conforme a moral dos costumes e do que foi sendo politicamente
institucionalizado. Esse modelo, ao qual somos submetidos, conduz a uma vida
alienada, oprimida, individualizada, que precisa ser desvivida. Reinventar-se
começa pelo corpo, sugere Artaud (1948
apud
Uno, 2022). É um processo que
passa por um desfazimento da vida e tem por fronteira o corpo que não cessa de
nos escapar. No corpo, há uma sonoridade, ligada a uma mente que produz esses
sons e eles não são necessariamente organizados, essa musicalidade permite uma
organização das variedades de intensidade vindas de movimentos oscilatórios; por
outro lado, tais intensidades se referem a forças que atravessam o corpo como
algo concreto. Artaud (1999; 2017) reivindica uma experiência ilimitada na relação
entre interioridade e exterioridade do corpo. Próximo do surrealismo, o dramaturgo
se tornou um anti surrealista quando opôs “musicalidade à visibilidade, os sons às
imagens, a singularidade à individuação, a vibração à representação, a diferença à
8 Antonin Artaud, dramaturgo, poeta, ensaísta e autor muito produtivo, esteve internado várias vezes em
hospitais psiquiátricos. Destacamos duas de suas obras que tiveram grande impacto:
O teatro e seu duplo
,
publicado em 1935, na França, obra que influenciou toda uma geração de autores da dramaturgia, tais como
Peter Brook, Jerzy Grotowski e Eugenio Barba; e
Para acabar com o juízo de Deus,
publicada em 1948, dois
anos após sua morte.
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7
identidade” (Artaud 2009
apud
Uno, 2022, p. 73)9.
O corpo, para Artaud (2009), devia se encontrar em um mundo aberto,
espraiado entre espaços, forças, sonoridades e as vibrações originais, o que exige
uma nova linguagem e escritura corporal. Tal requisição o inspira a declarar guerra
ao organismo, reivindicando um corpo sem órgãos corpo sem medidas no
espaço, sem formas, sem imagens, sem centro.
“O estilo é o homem/e é seu corpo”, diz Artaud (1975
apud
Dumoulié, 2011, p.
8). Os nossos corpos reais e imaginários têm um estilo, maneiras de tecer a textura
da carne do mundo. Mas essa textura dos corpos traduzíveis recobre um furor
intraduzível do corpo. Artaud chama de um “timbre improvável que sempre o
infinito no finito” (Dumoulié, 2011, p. 8). A ressonância desse timbre escava nossos
corpos de carne, daí essa espécie de definição do timbre dada por ele: “O timbre
tem volumes, massas de fôlegos e de tons, que forçam a vida a sair de suas
marcas de referência e a liberar sobretudo esse pretenso além que ela nos
esconde / e que não está no astral, mas aqui” (Dumoulié, 2011, p. 8-9).
Artaud não separava o pensamento da vida e, por isso, sugere que o corpo
seja ação que devolve o corpo ao corpo. Na busca de fugir desesperadamente dos
clichês, faz uma espécie de exorcismo ao organismo, de modo a enfraquecê-lo,
para que assim possa experimentar-se de outras formas. Esse corpo gestual de
Artaud se intensifica ainda mais nos seus últimos anos de internação em Rodez e
em Ivry, onde fica até a sua morte, em 1948. Artaud, nesse período, preenche 406
pequenos cadernos de anotações com breves fragmentos, desenhos, listas de
nomes, relatos de sonhos, orientações de vocalização, uma infinidade de marcas
aparentemente informes, traços espasmódicos, percussivos. São cadernos
riscados, marcados, dobrados, perfurados, queimados, onde ele faz uma operação
simultânea de pensamento e corpo, fulminando a página, o suporte, e arrastando
a palavra, a letra e o traço. Não se trata de formas de expressão, mas da negação
reiterada de qualquer forma.
Os traços, os desenhos, as escritas são para Artaud a busca de um corpo, o
9 Compreendeu que o surrealismo criava novas imagens estereotipadas, discursos e representações que
forjavam novas formas de captura. Artaud exigia pensar por figuras: o impossível, o impensável, as sensações
e vibrações petrificadas no pensamento.
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que permanece além de qualquer representação possível. Assim, o corpo sem
órgãos artaudiano envia a uma corporalidade crua, ao limiar do irrepresentável,
aquilo que coloca em suspensão todos os suportes do organismo. Nas palavras de
Artaud (1975, p. 55) “Fazei enfim dançar a anatomia humana”.
Escrever ou inscrever um corpo sem órgãos? Potências e
práticas
pela segunda metade do século XX, pós-Segunda Guerra e pós-Maio de
68, Gilles Deleuze
10
, filósofo francês, buscou desenvolver uma filosofia que
desviasse dos rumos da tradição filosófica ocidental, que em sua época se
mantinha fortemente ligada às reverberações do platonismo, do kantismo e do
hegelianismo. Deleuze convive nas décadas de 50 e 60 com autores ligados ao
estruturalismo francês, escola de pensamento formada por diferentes áreas de
estudo, mas que mantinham em comum a busca por novas metodologias para o
estudo das ciências humanas – procura que foi influenciada pelas novas ciências
que se desenvolviam naquele contexto, tais como: a antropologia, a psicanálise e
a linguística (Dosse, 2018).
Deleuze (cf. Dosse, 2010) tendo em alguns momentos de sua obra mostrado
interesse pela psicanálise, conhece, no final de 1969, o psicanalista Félix Guattari.
A partir daí, publicam juntos quatro obras duas problematizam o Corpos sem
orgãos: o
Anti-Édipo
(1995a) e o
Mil Platôs
11(1995b). Nestes escritos, fazem uso do
conceito artaudiano no intuito de convocar um corpo capaz de se auto instituir, de
se diferenciar, desfazer de si para se recriar, de modo singular. Ao aproximarem
este conceito de CsO à
Ética
de Espinoza (1977), definem que o corpo é o que é
no contato com outros corpos. É condição do corpo, para estabelecer sua
existência, coexistir entre corpos, entre materialidades ramificadas subjetivamente
e objetivamente. Ou seja, a vida depende de outros modos de existir para criar
sentido, precisa se chocar com outras dinâmicas que se confluem em
10 Gilles Deleuze desenvolveu um pensamento filosófico que teve por intercessores tanto Nietzsche como
Artaud. De Artaud, fez uso da noção de CsO, de modo breve, na sua obra
Lógica do sentido
(1974), publicada
na França em 1969.
11 Ambas publicadas na França,
Anti-Édipo
em 1972 e
Mil Platôs
- capitalismo e esquizofrenia, em um único
volume em 1980. No Brasil, Mil Platôs foi publicado dividido em 5 volumes. Destacamos que estes 5 volumes
são compostos por 14 textos.
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determinados territórios, sem que necessariamente tenha que habitar esse
território de um mesmo modo. No
Anti-Édipo
, o conceito de Corpo sem Órgãos
artaudiano é tomado para fazer uma crítica à psicanálise; na segunda,
especialmente no volume 3 de
Mil Platôs
(Deleuze; Guattari, 1996)
,
essa noção
aparece como uma prática a ser buscada, fomentando um agir eticamente e
politicamente orientado, capaz de superar os organismos e as organizações que
submetem o corpo e limitam seus modos de existir.
Esse segundo uso do Corpo sem Órgãos12 convoca um pensar prático que
nos chama a atenção, pois trata de uma forma de resistir às opressões sociais, à
expansão das políticas conservadoras e seus abusos diários que afetam nosso
corpo, manobras aberrantes vindas do atual congresso nacional, à convivência
com diversos tipos de espólios de uma economia capitalista que nos arrasta a
padecer como mercadoria e carne barata a ser exaurida. não basta perguntar:
o que o corpo pode?
, quando a maioria dos corpos com os quais convivemos
não aguenta mais, quando já não há recursos disponíveis para o resgate de forças
e vontades de poder ser (Lapoujade, 2002).
Porém, é preciso pensar o corpo habitado por sonoridades, intensidades,
velocidades e pausas, potências, agregado de linhas, que podem vir a ser
readequadas, realinhadas, derivando em modos de existir. Com a noção de CsO,
Deleuze e Guattari (1996) reafirmam que cabe a nós reconhecermos o corpo como
campo imanente, entre as coisas e corpos, linhas que o perpassam e o perfazem,
tencionam o limite do que o corpo pode. A reinvenção desse limite ou limiar é um
algo dado ao corpo, que ele pode reconhecer, sem ter de se fazer sucumbir ao
que vem de fora, às várias formas de organização que lhe são impostas.
Deleuze e Guattari (1995b)13 assumem que o que existe é a multiplicidade;
desta assunção se pode entender que somos um conjunto de linhas díspares, que
não foram reunidas ao acaso e formam um todo que precisa ser ultrapassado. A
prática do Corpo sem Órgãos remete a esse ultrapassamento das linhas, pulsões,
fluxos do desejo; logo, exercitá-la requer perceber as forças, assim como os
12 A noção de Corpo sem Órgãos será ainda comentada na conclusão do volume 5 de
Mil Platôs
(1997).
13 Conferir a introdução e a apresentação à Edição italiana do
Mil Platôs 1
publicada no Brasil.
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poderes, os organismos, o capitalismo, o niilismo, o fascismo, que agem sobre
nossa vontade (Lins, 1999). As formas como o corpo age e reage a estas pressões
são múltiplas e podem produzir um corpo canceroso, esvaziado ou pleno (Deleuze;
Guattari, 1996). Como um contraponto ao se deixar exterminar vem as formas de
resistir, reconstruir-se e reinventar-se; um retraço que anuncia a busca de um
corpo pleno e uma ética da prudência.
O corpo é desejo e os desejos são facilmente capturados pelas máquinas
sociais, históricas, que produzem processos de subjetivação. O que impede o
corpo de chegar a sua plenitude são os estratos ligados à organização e às ordens
do pessoal, do social e do biológico que nos adequam. Nesse sentido, o corpo
pleno exige um esforço enorme, precisa ser buscado e desejado, construir-se por
meio de práticas que evitem sua codificação. Daí a necessidade de reconhecer os
limites que lhe são impostos e os quais precisa ultrapassar, para que esses
momentos e rasgos de plenitude o afastem das dinâmicas do fascismo e do
niilismo (Pelbart, 2016).
Deleuze e Guattari (1996) resgatam Artaud para sugerir que nos desfaçamos
dos modos como nos relacionamos com o nosso corpo, para poder reinventá-lo.
Esse desfazimento encontra a arte como uma forte aliada. Através da arte, é
possível readequarmos modos de viver éticos e políticos, capazes de habitar um
corpo que se reconhece como uma multiplicidade, como um conjunto de estratos,
linhas, fluxos, desejos, planos, que podem encontrar novas maneiras de se
reesposar e viver a própria materialidade. A relação corpo e arte é algo sempre por
se determinar, irredutível às formas transcendentais, formas que costumam ser
convocadas por uma filosofia da tradição.
O CsO, do qual falam Deleuze e Guattari (1996), é imanente ao mundo, ao
meio, às coisas ao redor e a si mesmo, por isso, como prática, exige dobrar-se
sobre si, para alcançar alternativas para o seu desfazimento, ações que o
desapropriem da própria vida e a reinvente. O projeto de criar para si um CsO exige
lidar com um corpo geográfico, cartográfico, corpo capaz de perceber-se formado
por limiares e estratos que, ao serem localizados, territorializados, passam a ser
deslocados, cortados ou rearranjados em novas composições. O primeiro passo
para alcançar um corpo pleno é rasgar o si, fragmentá-lo, colocar para funcionar
Corpo
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o desfazimento, o desapego de forças limitantes; e, em um segundo momento, se
permitir criar um corpo outro, por meio de práticas, experimentos e escritas de si,
corpo que convoca novas intensidades, ainda não vividas, nem experimentadas,
embora nele resida o espaço para ressignificações (Deleuze; Guattari, 1996).
Contudo, temos bons e maus Corpos sem Orgãos (Deleuze; Guattari, 1996).
Como cada corpo, já se disse, é uma multiplicidade, é um campo atravessado por
forças, fluxos, afectos, estratos, singularidades e intensidades, ele pode assumir
práticas de si que o transformam em três tipos: i)
corpo canceroso
, reativo,
fascista, vazio, drogado, paranoico, hipocondríaco, um corpo sem plano ou fora do
plano; ii)
corpo esvaziado
pelo organismo, pela noção de sujeito e pelo significado,
esse se mostra preso aos estratos, sem mobilidade, cegado pela imagem, pelas
representações do fora, como disse Courtine (2013), em seus estudos sobre
Foucault, é corpo que não consegue deixar vazar seus fluxos, se conduz pela
massa e pelo ideal do lucro, serve às figuras “do Estado, do exército e da fábrica,
do Partido, etc.” (Deleuze; Guattari, 1996, p. 26); iii)
corpo pleno,
corpo do
desfazimento de si, que se mostra capaz de dar conta das intensidades que o
perpassam e o forçam a estranhar os estrados, os agenciamentos, os fluxos, as
pulsões que o configuram.
O que essencialmente difere nesses três tipos de Corpos sem Órgãos são os
modos de praticá-lo, uma vez que resultam de diferentes ações, graus, gradientes
de possibilidade, que referem a modos como cada corpo responde ou se relaciona
com os acontecimentos, agenciamentos, estratos, codificações que se impõem
sobre eles. Logo, chegar a um CsO pleno condiz a um constante desfazimento
para um refazimento de si. Desfazer-se do que se é sem se perder de si exige
manter um mínimo de estrato. Esse se perder sem sucumbir denota levar às
últimas consequências nossas dores, negatividades, incômodos e limitações, exige
espiar as excrecências, rachaduras, desconexões com tudo a nossa volta. Para
Deleuze e Guattari (1996), é no ponto de um total aniquilamento, de um absoluto
esgotamento, de uma imensa desesperança que um desejo do novo pode brotar,
permitindo a reinvenção de si em um novo plano. Esse ponto de aniquilamento
não tem a ver com a negação, mas com a fratura de um limite tangenciável.
Deleuze (2010, p. 71), no texto
Sobre o teatro,
anunciou esse limite naquele que
Corpo
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chamou de corpo esgotado, e ponderou que “apenas o esgotado pode esgotar o
possível, pois renunciou a toda necessidade, preferencia, finalidade ou
significação”.
Buscar um CsO ou corpo pleno sugere caracterizar as linhas que o
atravessam, as quais precisam ser revisitadas para fins de autogerir a imposição
da organicidade que nos adentra, porém, junto às suas formas operatórias,
subjetivas, limiares, convivem os blocos de infância, de devir, os espaços abertos,
lugares que podem espessar um germe intenso nos quais transita uma involução
criativa que é sempre atual e contemporânea (Deleuze; Guattari, 1996).
Corpo
In
comum traçando outras linguagens possíveis pela
dança
As teorias que trouxemos nos despertam para essa ideia de corpo
In
comun,
concepção que se apresenta ao observar corpos que frequentam o curso de dança
contemporânea, aulas gratuitas ofertadas em espaço público e geridas por recurso
público. Esses corpos, na continuidade do processo, assumem novas formas
figuradas, inscrições de si, de sua materialidade pujante e múltipla.
A dança autoral (Setenta, 2008), e os movimentos do coletivo de indivíduos
que agrupam os corpos que a experimentam, vem sendo acompanhada pelos
traçados da cartografia, que visa trazer pistas sobre corpos singulares, múltiplos,
corpos
In
comuns, que se entregam à dança como forma de disponibilizarem-se
de um outro modo de vida para si. Desterritorializar o território do comum implica
os esforços destes corpos de se manterem dançantes, esforços de reunirem e de
agruparem, de se submeterem à gestão partilhada, à atmosfera rítmica que acopla
estratos, às rotinas que, no operar com o comum, movimentam agenciamentos,
memórias, dores, paixões, pulsões alegres e tristes. Cada corpo em seu processo
de individuação (Deleuze, 2017) remete a um conjunto de elementos que
pertencem à multiplicidade e, ao mesmo tempo, dispõe de uma parte de
incomum
, excede o grupo no encontro entre as singularidades que perfazem estes
corpos.
O Grupo de Dança Guido Viaro no qual circulam corpos
In
comuns, os
modos de desfazimento de si por meio da dança autoral refere a um coletivo
Corpo
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que, parte dele, convive oito (8) anos; uma das atividades que realiza no seu
processo com a dança é o corpo que escreve, sobre seus sentimentos e sensação
com a dança.
As práticas voltadas por esse grupo dialogam com a dança contemporânea
(Setenta, 2008; Rocha, 2016; Lepecki, 2017), e os indivíduos que delas participam
se inscrevem em uma atividade não formal, nem lucrativa nem recreativa, que os
toma em diferentes sentidos e os inspira a novas linguagens, escritas gestuais e
clínicas de si. Os diferentes tipos físicos e suas diferentes personalidades
experimentam com a dança autoral um desencadear de fluxos, que liberam
texturas, gestos, e, com isso, colocam em movimento momentos vividos, dores e
sabores de corpo
In
comum. Nisso, vão rasgando o impossível que neles se agrega
e tecendo um outro possível de si, um vir a ser do qual nada se sabe, mas que de
alguma forma intuímos que se comunica com a prática buscada de um corpo
pleno.
Tudo que afecta o corpo vem do fora corpo (Espinoza, 1977), o fora impõe
contornos, formas, ocupa novas posições, traça eixos que se produzem e
reproduzem na proximidade dos corpos. Como diz Deleuze (2010
apud
Lapoujade,
2002, p. 86), “um corpo não cessa de ser submetido à erupção contínua dos
encontros, encontro com a luz, com o oxigênio, com os alimentos, com as palavras
cortantes etc. Um corpo é primeiramente encontro com outros corpos”.
A dança exige um estado de engajamento físico; para Lepecki (2017), a prática
da dança autoral, quando se mostra em uma linguagem discursiva, permite a
visibilização dos enunciados que se tornam dançantes, cortantes, desvios. Ousar
dançar se faz como prática subjacente ao pensar e ao sentir, ao movimentar
blocos de ar e linhas disruptivos, libera tensões vindas dos estratos que adequam
e entorpecem os corpos. Retomar-se pela dança contribui para se descarregar da
vigilância de uma corporeidade nutricional, física, estética, psíquica, conspira para
uma transvaloração da moral, das normas que se instalam em nossos ossos,
carnes, gestos, presenças, posições que nos emolduram, conectando-nos com os
estratos, as organizações de ordem social, biológica, pessoal. Mover ritmicamente
fricciona nossos limites e os expõe no poder de fazer vibrar os fluxos, com os
quais o gesto impossível toma a forma de reinvenção de si (Rocha, 2016).
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Figura 2 Apresentação do grupo em 2024. Foto: Nelson Sebastião
O Grupo de Dança em questão é o território no qual localizamos o corpo-
indivíduo dançante e sua matéria múltipla e ramificada, assim como as
composições, com as quais consegue fazer da sua matéria uma presença, uma
ocupação carnal e viva, que libera fluxos de experimentação para uma rachadura
que escava a reinvenção de si. Esse corpo que dança a cada encontro afecta e é
afectado por corpos
In
comuns. Como disse Pelbart (2016), Deleuze mantém a
grafia espinosista do afecto, indicando que esse “c”, refere a linguagem, gestos,
sintomas, fluxos, corporeidades que se modificam em contato com outras
corporeidades. E, nisso, cada corpo sendo um território permeado por fluxos, mais
flexivelmente, é deslocado, desterritorializado, pois se torna, nas atividades que o
envolve com a arte, um desarticulador do que nele foi enrijecido.
Do estranhamento inicial à repetição dos encontros, estes corpos
In
comuns
vão deslocando padrões que lhe são impostos ou assumidos em outros ambientes
familiares, profissionais ou sociais. Esses corpos e seus territórios permeados de
linhas, aos poucos se desterritorializam, no deixar fluir tonalidades intensivas, ao
afectar e ao serem afectados, se encaminham para um retraço outro de si.
Deleuze e Guattari (1997) ao final dos
Mil Platôs
, volume 5, retomam a noção
de corpo exposta no volume 3. Por ali, definem que o CsO é uma espécie de
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unidade disjuntiva, um rizoma permeado por muitas linhas, que podem ser
agregadas em cinco eixos:
Eixo
1) dos estratos, todo corpo é estratificado em
formas, substâncias, códigos, meio, ritmos, articulações que enquadram o corpo,
tipo: forma e substância, conteúdo e expressão, causa e efeito, significante e
significado;
Eixo
2) todo corpo produz e é produzido por máquinas abstratas, que
dizem das formações histórico-sociais e culturais, que podem se tornar tensores,
se impor sobre o corpo, alinhar a um conjunto, determinando suas funções, o que
ele deve ou não fazer (?), onde (?) e com quem (?), as máquinas abstratas
determinam seu lugar no diagrama, o codificam o tempo todo;
Eixo
3) os corpos
agenciam e são agenciados constantemente pelo meio em que se instalam, estes
agenciamentos podem ser de dois tipos: os agenciamentos maquinímicos, que
remetem à forma do conteúdo, e os agenciamentos de enunciação, que referem
à forma da expressão tanto um como o outro referem a estratos e territórios,
passam ou circulam de um a outro e podem desenvolver outros eixos, encontrar
as linhas de territorialidade e de desterritorialização, linhas que tendem a
desdobrar o agenciamento em outros agenciamentos, em outros territórios,
infinitamente;
Eixo
4) os corpos estão sempre em processo de desterritorialização,
por meio dos tipos de corpos sem órgãos que tendem a produzir e também a
abandonar o próprio território, desfazer-se dos regimes de signos,
desterritorializar-se dos significados que limitam os significantes e fragmentam os
regimes de signo, que podem povoar o significante;
Eixo
5), como cada corpo
agrega uma multiplicidade de linhas, cada corpo é um plano de consistência14, é
um esboço ramificado que, mantendo uma mínima organização, pode desbordar
em corpos sem órgãos e no acompanhar um processo de individuação que nada
tem a ver com individualismo, que a individuação para os autores é processo
que toma uma consistência na medida em que relação de exterioridade e
interioridade; logo, é movimento de fluxos com o meio, que podem ser lentos ou
intensos (Deleuze; Guattari, 1997). Trazemos estes
Eixos
como prelúdio e
inspiração para três linhas da pesquisa cartográfica aqui recortada.
14 Chamado depois em
O que é filosofia?
(Deleuze; Guattari, 1992), de Plano e imanência.
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comum e (des)educação criações e escritas de si com a dança autoral
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Ramificações de um corpo
In
comum três linhas de uma
cartografia
Retomando o que foi exposto, consideramos o corpo
In
comum como um
corpo que, com a dança, ativa sua matéria viva, dispõe dela em um campo de
afetos e de ritmos, submergida nas potências de padecer, de imaginar e de
experimentar novos sentimentos, sempre transversalizados por afecções que vão
em duas direções, de dentro e de fora, pois todo corpo afectado é um corpo
afectável (Espinosa 1977
apud
Deleuze, 2017). Essa capacidade de afectar e de ser
afectado se refere a potências ilimitadas, que pertencem ao corpo. Essa falta de
limite condiz com a afirmação espinosista de que não se sabe o que o corpo pode
(Espinoza, 1977).
Ao cartografar um corpo
In
comum, a perspectiva que trazemos é que
estamos tratando de corpos que escolhem dançar, como quem traça saídas
possíveis para os buracos, lacunas, falhas que se impõem sobre um corpo
esgotado no contexto atual, o que o obriga a inventar estratégias locais, saídas,
estratagemas para não sufocar (Cf. Pelbart, 2016). Encontramos numa passagem
de
Pensar um corpo esgotado
(Uno, 2018) que um corpo
dançarino flutua e joga com a gravidade, desenha linhas e curvas entre
suas articulações que não param de se deslocar. Ele se metamorfoseia
ao desenhar formas por todos os lugares em seus detalhes. Como ele
não para de fazer movimentos imperceptíveis [...] não se uma forma
mas vibrações continuas [...] formas, bem móveis, sempre
desconhecidas. Não sabemos se gestos, histórias, sentidos. A dança
parece se transformar em numa outra coisa, com elementos minúsculos
e imperceptíveis. Uma forma se esta existe, exclui sempre a fixação e a
petrificação (Uno, 2018, p. 57).
Uno nos inspira a pensar que algo se movimenta, se altera de um estado a
outro no corpo de quem pratica e dança. Essa alteração propiciada pela dança nos
permite refletir que, na dança experimentada pelos corpos que a participam no
Grupo de Dança Guido Viaro, existem desfazimentos e reinvenções de si.
Trazemos abaixo três linhas de uma cartografia em processo que tenta
observar estes estados de um corpo e outro: a primeira “Como um Corpo sem
Órgãos ampliado reverbera?”; a segunda: “Práticas de dança autoral para corpos
Corpo
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Incomuns”; e a terceira e última linha: “Cinco verbos para uma observação afetiva”.
Discorremos sobre os procedimentos, criados com base nos eixos antes expostos,
que possibilitam uma prática ou modo de cartografar o que chamamos de corpo
In
comum.
Linha 1 como um Corpo sem Órgãos ampliado reverbera?
Na sequência do que nos legaram Nietzsche e Artaud, antevemos que a arte
possui um papel fundamental no investimento de destruir ou desconstruir um
humano idealizado pela cultura ocidental cristã, um corpo autopunitivo, que
precisa ser esgotado para fins de ser reinventado (Lins, 1999). Como disse José Gil
(2002), o corpo na dança contemporânea vem se constituindo como um domínio
intensivo, que identificamos como corpo
In
comum, matéria que busca liberar
forças inconscientes, atmosferas afetivas, viscosidades, texturas e densidades,
assumindo nessa junção de forças um desembaraçar processual dos órgãos, ou
dos “modelos sensórios motores interiorizados” (Pelbart, 2008, p. 62).
Nos permitimos entender que a dança pode ser um veículo para um corpo
“outro”, corpo que precisa se refazer, livrar-se das intensidades angustiantes
impostas pela sociedade, linguagem, cotidianidade. Dançar reverbera as forças de
corpo que se esvazia submerso aos excessos da representação, aos abusos de
uma vida que não lhe é mais possível, suportável. O refazimento de si pela dança
nos parece permitir um refundir-se ou reinventar-se pela arte, desfazer-se de um
corpo cujos fluxos e energia potencial andam submetidos à lei do valor e à
axiomática do capitalismo (Pelbart, 2016).
Lepecki (2017) diz que a dança, na medida em que incorpora um contexto e
refere a um mundo, opera com os traços que se distinguem deste, tendo a arte e
a política como forças que se sobressaem de um campo imanente e, nele, linhas
se revelam, que interpelam a dança, distribuindo possibilidades de intervenção e
de mobilização. Em sua análise da dança, conjecturou que esta pode evocar uma
teoria social capaz de partilhar “com a política (a efemeridade, a precariedade, a
identificação entre produto do trabalho e ação em si, a redistribuição de hábitos e
gestos, o aumento de potências)” (Lepecki, 2017, p. 46).
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Com outra tonalidade, Amorin (2010, p. 19) disse que “o corpo é o veículo e a
escala da arte e é o que somos e o que temos. Quando nos libertamos da
dualidade corpo e mente, podemos compreender as verdadeiras
correspondências entre ação e pensamento”. Ao entendermos que os
conhecimentos, a educação, a cultura, as instituições de modo geral nos
restringem e adequam nosso corpo e nossa capacidade de interação com o
mundo, colocamos atenção no fato de que os movimentos dos nossos corpos,
sua expressão no mundo da vida, se faz contida e espelhada em representações
dadas, correspondendo a modelos internalizados (Courtine, 2013), modelos que
não podemos extinguir, mas podemos reinventar.
Por fim, ao retomarmos o Corpo sem Órgãos, de Deleuze e Guattari (1996),
pontuamos ato fato de que não existe CsO sozinho, solitário. Enquanto prática e
experimento, esse corpo se quer pleno, se constitui entre outros corpos existentes,
corpos que o afectam e que são afectados por ele (Espinosa 1997
apud
Deleuze,
2017). Esse corpo, o Cso, no diálogo com o corpo
In
comum, traz como exigência
criar um plano para localizar sua exteriorização, o conjunto de suas relações,
partindo de um mínimo de organismo, estrato, codificação, escrita, visa um corpo
dançante que se permite novas composições, novos afectos intensivos. Com o
movimento de seus fluxos e intensidades, vai consolidando outros modos de
conviver com a própria heterogeneidade que remete à multiplicidade e se opõe a
um princípio de finalidade, de unificação, de totalização (Deleuze; Guattari, 1996).
Linha 2 - Práticas de dança autoral para corpos
In
comuns
Essa segunda Linha é traçada para reunir diferenças materiais e imateriais,
que, referindo ao Grupo de Dança, expõe distâncias inconciliáveis que perpassam
os corpos nesse mapa que os agrupa, mostrando que as partes não formam um
todo, pois esse todo é um agregado de diferenças e singularidades que devem ser
mantidas como tais. Mais que desafiador, cartografar o Grupo de Dança Guido
Viaro se trata afinal de um esquizografar as relações que o perpassam e o
constituem, que esse coletivo tem como sua potência maior a ramificação
disjuntiva, que convida ao encontro com outros corpos e a desfazeção daquilo que
nele está entranhado, se assim o desejar.
Corpo
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comum e (des)educação criações e escritas de si com a dança autoral
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A dança autoral é politicamente anárquica, permite os encontros, mas não
define o que pode vir a ser encontrado no reunir vários corpos
In
comuns. O
divergente ou o
In
comum é o elemento potencializador de um plano comum,
dinamiza um composto de desejos, vontades e pulsões vindas de formações
sociais que se alinham e se enredam em um coletivo permeado de
“agenciamentos muito diferentes, perversos, artísticos, científicos, místicos,
políticos que não tem o mesmo tipo de corpo sem órgãos” (Deleuze; Guattari, 1996,
p. 19). Tal composição pode ser de um tipo
construído pedaço a pedaço, lugares, condições técnicas, não se
deixando reduzir uns aos outros”, evitam sucumbir as estratificações
sociais, políticas e culturais, perpassam tais corpos, manejam as
vontades, desejos. Também podemos dizer que manobram
possibilidades de existir, e, portanto, de poder de se autodeterminar.
Interessa saber se tais corpos ao serem propostos como um campo
formado por um conjunto de multiplicidades, formadas de pedaços, “se
esses pedaços se ligam e a que preço (Deleuze; Guattari, 1996, p. 19).
Observamos que a prática da dança autoral, mais do que enviar ou propor
uma estética da (des)compensação, faz movimentar o que aparentemente não
estava disponível a ser alterado na vida que se entranha nestes corpos. A tarefa
de fazer-se ritmo e expressão acessa potências que tendem a desbloquear fluxos
e permitir o desmontar das armadilhas da subjetividade. A dança “[...] cria um plano
de imanência, o sentido que desposa imediatamente o movimento. A dança não
exprime, portanto, o sentido ela é o sentido (porque é o movimento do sentido)”
(Gil, 2002, p. 75). Permite liberar fluxos, desfazer de um corpo rígido, verticalizado,
despotencializado. Dançar possui velocidades de transformação, de desconhecer
gestos, criar movimentos, ressignificar passos e ritmos, extrapolando a ideia de
uma execução-forma. Cada corpo no seu afectar e ser afectado por outro corpo
percebe, executa, reflete, aproxima, distancia, compõe velocidades de modo único,
singular.
sempre um “entre” corpos e um lugar vazio flutuante, onde um corpo se
desarticula e se reconstrói como quem tece em seu movimento palavras invisíveis.
O plano é proposto, mas o percurso é incerto, pois, como disse Uno (2018), a dança
é uma prática desestabilizadora. Cada ano o grupo objeto desta cartografia perfaz
um ciclo que se fecha, abrindo-se a um outro instantaneamente. Uma intensidade
Corpo
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levada ao seu limite vai perdendo sua força e outra vai sendo liberada
discretamente, quando um corpo
In
comum se expressa antecipadamente
disposto à seriação e ao encontro do ano seguinte. Destas observações, vai se
intuindo que, nas rotinas deste coletivo artístico, algo comum pode referir a
conjugação de elemento intensivo, desestabilizador, que induz a novas
possibilidades estéticas que tendem a ser a cada vez inventadas.
As rotinas de um grupo de dança são atravessadas por elementos
inesperados, que intervém na prática criativa. O corpo é aguçado a explorar
sentidos que muitas vezes não conseguem ser expressados por palavras. O corpo
In
comum é forçado a experimentar “suspendendo do juízo de deus”, como diria
Artaud (2017). Limites vão se rompendo nas rodas de diálogo que vão se
estabelecendo, rodas nas quais um necessário deformar palavras e frases, para
reformá-las em novos sentidos.
A prática da dança autoral expressa a urgência do acaso, esse é bem-vindo,
desestabiliza, impõe sua velocidade, rompe previsões, esboça desvios. Hijikata,
citado por Uno (2018), disse sobre o butô que a dança15,
Essa arte que se encontra em um tempo borrado e indeterminado, é dada
especialmente pela errância do universo. A fragilidade não é apensas o
motor da dança. Aquilo que singulariza a dança é a fragilidade, e esta
fragilidade é sempre revista e procurada (Hijikata
apud
Uno, 2018, p. 78).
No roubo das palavras do artista e coreógrafo, expostas acima, encontramos
que as fragilidades, as errâncias, as fracturas acompanham a formação desse
coletivo, seus processos de integração e de dispersão, modos de vivenciar as
próprias multiplicidades e singularidades corpóreas que se reúnem em torno de
um desejo comum. O corpo dançante experimenta momentos, borra o espaço e
esbarra com outro dançante, nesse desdobrar de gestos escreve o novo, um
agenciamento que a cada vez se atualiza em corpo
In
comum.
Sendo os corpos multiplicidades, o encontro com as potências de uma dança
autoral, que não visa técnica formatada ou evolução utilitária de seus
procedimentos, torna-se tarefa artística que agrega aos modos de vida. O processo
15 A citação refere-se à análise que Kuniichi Uno (2018) realiza da obra do dançarino e coreógrafo japonês
Hijikata Tatsumi (1928-1986), criador do Butô, após a Segunda Guerra Mundial. O Butô é uma dança que
convoca gestos estilizados na busca de conectar memórias e outros traços subjetivos.
Corpo
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comum e (des)educação criações e escritas de si com a dança autoral
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de gestação, de criação e de atualização é percebido em formato de erva,
ramificado. Lepecki (2005), ao comentar as propostas de experimentação de
Jèrôme Bel16 com a dança, reflete que este artista instala uma crítica à dança da
representação e às suas formas de dominação, afirmando que uma coreografia
pode ir além de um pensamento limitador, que se faz sob a “submissão da
subjetividade”. Jèrôme Bel, na leitura de Lepecki (2005), questiona os mecanismos
que tornam o corpo dançarino um mero representante do/a coreógrafo/a,
denuncia as formas de submissão, o exagero, a busca por uma reprodução técnica,
que tanto pode conduzir à subversão como à destruição.
A escolha da dança autoral não se ao acaso; Setenta (2008) diz que essa
prática tem a potencialidade para agregar um fazer coletivo, dar respostas às
inquietações e os atravessamentos existentes nos processos experimentais
dançantes. É efeito de corpo afetado entre demais corpos, contamina seu entorno
e é contaminado; por uma vibração coletiva não ignora ou abandona quem ele é,
mas atualiza-se outro em corpo por vir. Corpo performativo provocador e em
constante deslocar. Nesses diferentes modos de se pensar e fazer dança política
e esteticamente,
O corpo é o seu assunto, daí a necessidade dele produzir os movimentos
que sejam capazes de reconfigurar dos limites e as potencialidades do
seu dizer daí, também, a necessidade de inventar o modo desse dizer
ser feito. O corpo é o foco primordial e indispensável para se pensar/estar
o/no mundo. E quando se trata do corpo que dança, sucede o mesmo
(Setenta, 2008, p. 84).
Esta prática não se prende à execução de uma técnica perfeita, mas sim à
presença, à escuta, à percepção das superfícies dos corpos, formando na
proximidade um campo imanente. A dança autoral contribui para algo original e
caminha para uma reorganização possível para o corpo indivíduo dançante,
quando traz a necessidade do compartilhamento dos movimentos, das ideias e
das sensações (Setenta, 2008). Atrai um corpo autoral, que se experimenta a partir
“de processos de contaminação”. Conforme Rocha (2016), o ato de dançar vai
redesenhando o mundo por meio do gesto, do ritmo, da invenção de uma aventura
16 Jèrôme Bel, coreógrafo francês, tem interesse em corpos singulares e não doutrinados da dança. Os temas
abordados em seus trabalhos envolvem o corpo, a cultura, a vulnerabilidade, a emancipação, o poder, a
desconstrução de identidades sociais e a ligação entre dança e política. Conhecido como o criador da “não-
dança”.
Corpo
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postural, temporariamente possível. A dança autoral é reveladora de um processo
de criação emaranhado onde nada nem ninguém fica separado, tudo e todos
coexistem produzindo intensidades.
É interessante lembrar que quando se pratica dança num espaço
coletivo, aprende-se também a funcionar coletivamente fora dele, ou
seja, na sociedade, com consequências prioritariamente políticas. Passa-
se a buscar uma comunidade não delimitada por posições hegemônicas
e binárias (Setenta, 2008, p. 99).
No seu exercício artístico, a dança autoral permite que as multiplicidades se
encontrem, desencontrem, se reúnam e se afastem, se afetem e sejam afetadas.
Rocha (2016, p. 84) comenta que “a dança contemporânea é sempre a dança de
cada um, é porque podemos ver nela a produção de processos de singularização
corporal que concorrem para a produção de singularidades dançantes”. Na prática
autoral, a escuta que se faz de um corpo inteiro reverbera. O corpo
In
comun diz
uma prática dançante que não evita o transbordamento de possibilidades de um
pensar-dançar, mas, ao contrário, tenta deixar se inundar dos fluxos dos corpos,
de um cruzar experiências e mover ideias.
Figura 3 Apresentação do grupo em 2024. Foto: Nelson Sebastião
Linha 3 Cinco verbos para uma observação afetiva
No balanço dos limites e do ilimitado que um corpo
In
comum pode
ultrapassar, quando se engaja em um processo artístico e se entrega à dança como
Corpo
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um possível desfazimento de si, não paramos de nos perguntar que forças, a cada
ano, trazem de volta os corpos dançantes? Que intensidades são liberadas quando
estes corpos dançam, toda uma teia social, econômica, política e cultural que os
acompanha? Que vividos em uma sociedade competitiva, organizada pela disputa,
pelo lucro, pela mercadoria, pelo fundamentalismo partidário, são espraiados
desse corpo
In
comum, corpo que pela dança entra em processo de desfazimento
de si e revisita fragmentos que precisam ser esgaçados, expulsos para que se
mantenha a vontade de permanecer dançando? Que sentidos individuais esta
prática da dança tem conseguido agregar a estes corpos, favorecendo a busca pela
repetição e a vontade do reencontro? Quais significâncias se instalam e permitem
vivenciar um
In
comum que se torna desejo comum, inconstância que
constantemente se movimenta na dança autoral, expondo gestos irracionais,
disruptivos, disformes, desestabilizadores, propósitos e despropósitos que se
fazem de novo?
Para responder estas questões, temos desenvolvido 5 verbos para uma
observação afectiva17, que não necessariamente responderão de uma forma direta
ao que foi perguntado, mas com certeza orientam o olhar às intensidades que se
comunicam e se desfazem nestes corpos
In
comuns que praticam a dança autoral:
1.
Localizar
através de conversações individuais, estratos, códigos, que referem ao
meio ambiente, ritmos, conteúdos, significados que chegam junto com os corpos-
indivíduos dançantes; 2.
Desdobrar
o corpo
In
comum localizando quais tensores
alinham e desalinham nele o “comum”, podendo referir à matéria não formal, a
funções não formais que o executam e que são mediadas ou precisam ser
mediadas para que a dança autoral provoque um exercício construtivo, afirmativo;
3.
Destacar
agenciamentos que se formam no contágio destes corpos, as redes,
enunciações, as valorações que se impõem e desenvolvem vetores, traçados
possíveis na territorialidade a se desterritorializar; 4.
Acolher
as falas e os gestos
dos
corpos dançantes que queiram se expressar sobre o plano que institui a
pertença a um Grupo de Dança, quais sensações e desvios de si se movimentam,
para onde vão esses fluxos, desterritorializações, impossibilidades e
17 Chamamos assim porque, como diz Rolnik (2016), o corpo da cartógrafa é parte do processo, se afecta e é
afectado por outros corpos.
Corpo
in
comum e (des)educação criações e escritas de si com a dança autoral
Claudia Madruga Cunha | Daniella da Costa Nery | Angélica Vier Munhoz
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-26, dez. 2024
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esgotamentos; 5.
Sensibilizar
nos corpos indivíduos/
In
comuns e dançantes os
efeitos do contato, escritas toque de pele, contágio, expressão dos movimentos
de intensidade e de lentidão que perfazem ritmicamente a produção de
singularidades ainda não experimentadas e as sensações que são residuais à
finalização de um espetáculo a cada ano.
Considerações em processo
Retomando os autores franceses e locais sobre dança, suas críticas à tradição
iluminista e moderna refletem que carece de sentido e de fluidez a separação
entre corpo e mente; corpo é movimento e é pensamento. Coordenar um Grupo
de Dança e ao mesmo tempo pesquisá-lo, nos convoca, como disse Rolnik (2016),
a nos inventar e a propor procedimentos de pesquisa; afinal, se colocar na posição
de cartógrafas nos exige certa antropofagia que “vive de expropriar, se apropriar,
devorar e desovar, o transvalorado” (Rolnik, 2016, p. 65). Pozzana (2014, p. 56)
sugere que a cartografia permita a criação “de modos de fazer, perceber, sentir,
mover e conhecer, que não se separa do mundo, dos objetos humanos e não
humanos em articulação afetos em trânsito”. Atravessado e atualizado por
experiências do aqui e do agora, o corpo
In
comum cria com a dança extra mundos.
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Recebido em: 19/09/2024
Aprovado em: 23/11/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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