MONSTRA! - Dramaturgia, corpo e performance
Lara Duarte
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-25, dez. 2024
contraface, o herói traja seu uniforme de sapatênis e camisa Polo. Logo, é mais
simples defender o monstro, mesmo que por vezes seja cansativo ou violento,
porque, nessa cena, o monstro se opõe a uma norma
a priori
já combatida. Nesse
sentido assumir a monstruosidade numa perspectiva construtiva pode ser
entendido como, por exemplo, refazer o sentido pejorativo das palavras “sapatão”,
“viado” ou “bicha”, que são transformadas pela comunidade LGBTQIAP+ em
simples vocativos ou palavras afetuosas. Mas para além do caráter construtivo,
assumir a monstruosidade se relaciona também a um caráter contraditório, já que
“o monstro sempre desestabiliza a representação e a identidade em suas diversas
formas de expressão” (Peixoto Júnior, 2010, p. 180). Desestabilizar as fronteiras da
representação também se relaciona aos aspectos performativos da pesquisa que
serão abordados mais adiante.
Não acredito que seja possível traçar apenas uma defesa do monstro, por
mais tentador que seja acreditar que “
la história me absolverá
”7, ao passo que
assumir as contradições, o fragmento e as forças opostas enquanto uma estrutura,
seja dramatúrgica, seja identitária, pode trazer, sim, um caráter desmobilizador e
de difícil decifração. Delegar a monstruosidade ao Outro foi e segue sendo uma
estratégia de manutenção de paradigmas coloniais8, bem como de relações de
poder desiguais.
O monstro é a diferença feita de carne; ele mora no nosso meio. Em sua
função como o Outro dialético ou suplemento que funciona como
terceiro termo, o monstro é uma incorporação do Fora, do Além — de
todos aqueles locos que são retoricamente colocados como distantes e
distintos, mas que se originam no Dentro. Qualquer tipo de alteridade
pode ser inscrito através (construído através) do corpo monstruoso, mas,
em sua maior parte, a diferença monstruosa tende a ser cultural, política,
racial, econômica, sexual. O processo pelo qual a exageração da diferença
7 Frase proferida por Fidel Castro, líder da revolução cubana, no contexto de seu julgamento pelo assalto ao
quartel de Moncada em 1953.
8 “Quijano (2010) conceitua a ideia de colonialidade do poder para dar nome ao que entende como um padrão
de dominação global, uma espécie de face oculta das chamadas civilizações modernas, que tem origens na
conquista da América em conformidade com a constituição do modo de produção capitalista. É possível notar
que essa virada epistemológica dá outro centro às origens da modernidade, tirando-a do eixo Iluminismo-
Revolução Industrial e colocando-a na linha conflituosa que se estabeleceu no controle do Atlântico pela
Europa, entre o final do século XV e o início do XVI. Conjuntamente a esses fatores, pode ser elencada como
substantiva desse tipo de colonialidade a sua estruturação por meio de uma dinâmica de acumulação e de
exploração econômica, assim como pela assimetria de suas relações de poder em escala global. Esse
desnivelamento, por sua vez, constituiu-se como base da subalternização dos povos dominados –
estabelecido a partir de eixos distintos, como de controle do trabalho, da subjetividade, do gênero, das
práticas culturais, da natureza etc.” (Baliana, 2020).