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Corpos em deriva: os labirintos e narrativas
da internet em
O sol desapareceu
Lucas Miyazaki Brancucci
Lívia Machado
Para citar este artigo:
BRANCUCCI, Lucas Miyazaki; MACHADO, Lívia. Corpos em
deriva: os labirintos e narrativas da internet em
O sol
desapareceu
.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 4, n. 53, dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e112
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Corpos em deriva1: os labirintos e narrativas da internet em
O sol desapareceu
Lucas Miyazaki Brancucci2
Lívia Machado3
Resumo
Partindo de uma perspectiva performativa, este artigo aborda a relação entre
narrativa e dramaturgia no teatro contemporâneo a partir da peça
O sol desapareceu
(2023), dirigida por Janaina Leite. O objetivo é analisar aspectos narrativos da
dramaturgia contemporânea e procedimentos de deriva como dispositivos de
criação cênica tanto no deslocamento pela internet, quanto pela cidade. Abre-se a
ideia de se pensar a virtualidade como campo/gênese de fabulações para o narrar
cênico.
Palavras-chave
: Narrativa. Deriva. Dramaturgia contemporânea. Internet.
Dérive bodies: labyrinths and narratives of the internet in
The sun vanished
Abstract
From a performative perspective, this article addresses the relationship between
narrative and dramaturgy in contemporary theater based on the play
The sun
vanished
(2023) directed by Janaina Leite. The aim of this study is to analyze
narrative aspects of contemporary dramaturgy and the procedures of
dérive
as a
device for scenic creation, both in displacement through the internet and through
the city. The article also proposes a reflection about virtuality as a field/genesis of
fabulations for scenic narration.
Keywords:
Narrative. Dérive. Contemporary dramaturgy. Internet.
Cuerpos a la deriva: los laberintos y narrativas de internet en
El sol desapareció
Resumen
Desde una perspectiva performativa, este artículo aborda la relación entre narrativa
y dramaturgia en el teatro contemporáneo a partir de la obra
El sol desapareció
(2023), dirigida por Janaina Leite. El objetivo es analizar los aspectos narrativos de la
dramaturgia contemporánea y procedimientos de deriva como dispositivos de
creación escénica tanto en el desplazamiento por internet como por la ciudad. Se
abre la idea de pensar la virtualidad como campo/génesis de fabulaciones para la
narración escénica.
Palabras clave
: Narrativa. Deriva. Dramaturgia contemporánea. Internet.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Lucas Miyazaki Brancucci. Mestrando em
Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP). Graduação
em Letras pela USP.
2 Mestrando em Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo
(USP). Graduação em Letras pela USP. Escritor e performer. lucas.brancucci@usp.br
http://lattes.cnpq.br/4702510283121358 https://orcid.org/0009-0006-3251-2547
3 Doutorado em Meios e processos audiovisuais pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em
Comunicação e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Graduação em Comunicação
Social na UFJF. liviamachado@alumni.usp.br
http://lattes.cnpq.br/1743144632624168 https://orcid.org/0000-0002-7305-7820
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Performar, narrar, dissociar
Em análises seminais de peças brasileiras na virada do século XX e início do
século XXI, Silvia Fernandes (2010, 2011) observa como certas alterações nos
modos de conceber e abordar o texto dramatúrgico configuram partes
estruturantes do que se depreende por
teatralidades contemporâneas
. Ao elaborar
as especificidades que envolvem o conceito de performance na cena
contemporânea, a autora situa o lugar do processo distanciando-o de diretrizes
que exploram a cena a partir da centralidade do texto dramático: “a performance
nunca é um objeto ou uma obra acabada, mas sempre um processo, por estar
ligada ao domínio do fazer e ao princípio da ação” (Fernandes, 2011, p.16). Daí que,
na esteira de discussões sobre dramaturgia contemporânea enquanto “texto
performativo”/“texto cênico”4, Fernandes pontua fenômenos que relativizam a
predeterminação entre acontecimento cênico e escrita dramatúrgica. É o caso de
obras de “intensa fisicalidade” (Fernandes, 2010, p. 107) cuja dramaturgia opera
para além da dimensão verbal, ou também, em outra instância, de encenações
que incorporam textos narrativos oriundos de outras mídias como um “material
de composição”, enfatizando assim a autonomia literária da palavra e visando a
abertura para “construção de estratégias espaciais complexas” (Fernandes, 2010,
p. 163).
Tal contágio da cena com formas enunciativas não-dramáticas advém no
intuito de dispor de “processos narrativos” que expressem “novas contradições da
realidade” (Fernandes, 2010, p. 154). Nesse sentido, a elaboração do narrar em cena
não opera apenas a nível do relato de uma história, mas como fenômeno que
propõe um
continuum
das ações e sublinha o modo mesmo em que estas são
pensadas e percebidas.
Em convergência com tais modos híbridos de usar o texto enquanto “impulso
provocador” da cena, Stephan Baumgärtel (2010, 2012) ensaia sobre como certas
dramaturgias, ao se centrarem na exposição da materialidade sígnica da palavra
por meio de jogos poéticos e “arranjos perceptivos” (Baumgärtel, 2010), deflagram
4 Cf. Féral, 2015, p. 245-267.
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a dimensão social e política em cada situação cultural.
Mostra-se central, nesse movimento, a evidenciação da crise do discurso
experienciada enquanto crise epistemológica, a contar da dissolução da ideia de
personagem em Samuel Beckett e, na ausência mesma de personagens, das
primeiras dramaturgias de Peter Handke: ambos os autores instilam na cena
“experimentos formais que buscam colocar no primeiro plano da escrita a
dinâmica psíquica e a sobredeterminação da personalidade humana por forças
sócio-históricas” (Baumgärtel, 2012, p. 147). É também o caso dos projetos
dramatúrgicos como os de Heiner Muller, Valére Novarina, Sarah Kane, Rainald
Goetz, Bernard-Marie Koltés, no contexto europeu, e Luis Alberto de Abreu,
Christiane Jatahy, Grace Passô, dentre outros, no cenário brasileiro.
Se, observando tais dramaturgos, o pensamento em torno da materialidade
textual no teatro contemporâneo é comumente assinalada em vista de seu
alcance poemático/lírico5, é instigante o fato de que suas dramaturgias articulam
um processo de desdramatização justamente nas proposições narrativas e lógicas
sequenciais da montagem discursiva. Nesse sentido, tais textualidades
incursionam no teatro figurações diversas da narração conferindo, em ressonância
com a hipótese de Jean-Pierre Sarrazac, “mutações da forma dramática em
termos de
devir rapsódico
” (Sarrazac, 2002, p. 102).
Situando-se nesse mesmo horizonte performativo e anti-dramático, este
artigo analisa alguns dos procedimentos narrativos, em específico a deriva,
presentes na peça
O sol desapareceu
(2023)6.
Resultado de processo iniciado no Núcleo de Pesquisa Fundo7 — coordenado
5 Mesmo no caso de apropriações de prosas ficcionais como material dramatúrgico, a composição escritural
é geralmente pensada segundo sua potência de criar “imagens poéticas” (Cf. Paz, 2009), ou seja, próximos
ao gênero lírico (em oposição ao épico/narrativo) tendo em vista os jogos e movimentos físico/verbais, as
sonoridades do texto que operam uma “dança falada” e a dimensão paisagística/atmosférica que um texto
instiga à cena.
6
Direção e concepção
: Janaina Leite.
Codireção e dramaturgia
: André Medeiros Martins.
Performance,
pesquisa e textos autorais
: Ery Gabixi Caozito Baesse, Lívia Machado, Lucas Guilherme Sollar, Lucas
Miyazaki, Thais Della Costa.
Preparação corporal e sonoplastia
: Robs Wagner.
Assistência de sonoplastia
:
Caíque Andreotti.
Iluminação
: Felipe Tchaça.
Confecção de adereço
: José Valdir Albuquerque.
Textos
utilizados
: @rentune, @canalkleberiano, @cienciatododia, Radio Novelo Apresenta e Anonymous.
Realização
: Grupo XIX de Teatro, Núcleo Fundo e Lei de Fomento para a cidade de São Paulo.
7 O Núcleo foi fundado pelo Grupo XIX de Teatro via 40ª Edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro
para a cidade de São Paulo.
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por Janaina Leite (direção e concepção) e André Medeiros (dramaturgia e
codireção) —, a peça investiga temas e materialidades oriundos da internet
articulados enquanto vetores sócio-históricos da qualidade de presença em que
corpos se expressam na atualidade. O eixo central da sua dramaturgia baseia-se
na apropriação da narrativa
The Sun Vanished
, desenvolvida por Aidan Elliot e
publicada no
Twitter
no formato de ARG (
Alternate Reality Game8
). Mas a
justaposição não linear da dramaturgia também proporciona um fluxo cinestésico
que se “dissocia” em diversos outros temas infiltrados no imaginário digital.
O objetivo da análise será situar como os procedimentos criativos
inicialmente experimentados de modo online e, posteriormente, testados no
presencial — são instaurados a partir de materiais narrativos oriundos da internet.
Relatos de
posts
, recortes informativos, dados do
modus operandi
de navegação
de usuários em rede e outros signos do social e da experimentação estética da
lógica online, parecem funcionar segundo elementos impulsionadores para uma
dramaturgia performativa que articula e pensa o corpo em deriva.
Do conceito de deriva: virtualidades entre a internet e o palco
Adentrar espaços seja o urbano, seja o digital tal qual uma livre
“sondagem internética” pode ser um meio de criar sequências narrativas entre as
telas e os palcos. Adentra-se as “abas”, públicas e privadas, da cidade, do teatro e
das páginas online em fluxos de matéria, informação e energia. Tal dinâmica
encontra especial convergência com o conceito de deriva.
Tendo como um dos principais teóricos o escritor marxista francês Guy
Debord (1931-1994), deriva é um procedimento de pesquisa psicogeográfico
comumente associado a relações entre arte e urbanismo. Propõe pensar a
passagem por ambientes variados ligada a uma percepção do espaço urbano
como labirinto e também como “afirmação de um comportamento lúdico-
construtivo, o que opõe em todos os pontos às noções clássicas de viagem e de
passeio” (Debord, 1993, p.27).
8 As narrativas de ARGs caracterizam-se por uma experiência de imersão e engajamento que desafia os
espectadores/jogadores a tomarem decisões e colaborarem com o andamento da história. Utilizam-se de
diversas mídias interativas próprias do universo digital. Cf. Lopes (2009).
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Assumir a aleatoriedade relacionada com o meio torna-se, portanto, fator
determinante da experiência. No caso das cidades, é possível observar as
“correntes constantes, pontos fixos e turbilhões que tornam o acesso ou saída de
certas zonas muito difíceis” (Debord, 1993, p.27).
Gabriela Freitas (2020), por sua vez, atualiza a noção de deriva tendo em vista
“reconfigurações do conceito de
flâneur
pelas práticas artísticas do caminhar na
artemídia contemporânea” (Freitas, 2020). Opera, nessa lógica, uma ocupação
propositiva e transmidiática do espaço urbano. Assim, para a pesquisadora de
semiótica, a ação de “derivar”
sobrepõe ao traçado da cidade uma cartografia da experiência que
dialoga com as subjetividades, partindo delas em direção ao coletivo. Tal
sobreposição altera a forma de ver a paisagem, transformando o espaço
em lugar comportamento também diferente do
flâneur
(Freitas, 2020).
A deriva, por fim, pode ser entendida como uma “navegação” que atravessa
os espaços digitais, cênicos e urbanos traçando um mapeamento de seus pontos
de conexão e percepção possíveis entre corpo, inconsciente e espaço.
Da mesma maneira como a ideia de deriva está presente dentro e fora das
telas, o conceito de virtualidade também ganha força para além do que acontece
na lógica do online. Na contramão do senso comum que elabora com binarismos
as diferenças entre real e virtual, o filósofo e sociólogo francês Pierre Lévy (1996)
aproxima os dois campos, entendendo tal oposição como fácil e enganosa.
Classifica o virtual como “campo complexo e problemático, o nó de tendências ou
de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma
entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a atualização” (Lévy,
1996, p.16).
Sob esse enfoque, um dos exemplos sublinhados pelo autor é a própria
relação com o texto escrito:
Tal é o trabalho da leitura: a partir de uma linearidade ou de uma platitude
inicial, este ato de rasgar, de amarrotar, de torcer, de recosturar o texto
para abrir um meio vivo no qual possa se desdobrar o sentido. O espaço
do sentido não preexiste à leitura. É ao percorrê-lo, ao cartografá-lo que
o fabricamos, que o atualizamos (Lévy, 1996, p.36).
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No campo artístico, a deriva emergente no meio aleatório das cidades e das
redes internéticas, pode ser então estetizada em termos de virtualidades
sintonizadas no caminhar/olhar/escutar pelas ruas e
links
não visitados,
textualidades de páginas desconhecidas de um livro ou de um site.
Imergir: derivas das telas
Adentrando o material cênico e dramatúrgico da peça ora analisada, uma
primeira observação refere-se a procedimentos cênicos desenvolvidos no Núcleo
Fundo em um primeiro momento, de caráter investigativo e teórico.
Nessa etapa, o Núcleo abordou a internet como território virtual comum a
uma série de experiências corpóreas, psíquicas e textuais que atravessam a vida
em sociedade na atualidade. Apenas de forma remota (via
Zoom
), os artistas
criaram cenas a partir de uma multiplicidade de materiais emergentes na relação
com as telas,
gadgets
diversos e derivas online. Por meio de gravações de tela, são
expostos os fluxos livres das abas de diversos espaços da internet no intuito de
estetizar imagem e som oriundos da relação com a mídia digital (buscas por
notícias e vídeos específicos que caiam em outros temas cada vez mais distantes
do original, exploração de memes, investidas em canais pornográficos e
stalking
em perfis de redes sociais eram alguns aspectos comuns das gravações dos
materiais do exercício e dispositivo criativo.)
Algumas temáticas oriundas desses materiais foram: vigilância e
monitoramento; hackeamento; inteligência artificial; gamificação da vida;
alienígenas e busca de vida em outros planetas; jogo de perspectiva entre micro
(célula) e macro (corpo do universo); saúde mental e internet;
deep web
e suas
formas de anonimato, agrupamentos, ilegalidade transgressão/perversão;
narrativas virtuais de
creepypasta
9; teorias da conspiração e
fake news
; o avatar e
seus arquétipos virtuais; o meme como modo de expressão, dentre outras.
Assim, as gravações de tela se estabeleceram como os primeiros
procedimentos para dar a ver a corporalidade aquática advinda da internet: a
narratividade que se cria de elementos improváveis e imprevisíveis na medida em
9
Creepypastas
são consideradas lendas urbanas da internet. São geralmente histórias bizarras ou de terror
que ficaram famosas ao serem compartilhadas em diversos
blogs
e sites. Cf. Roy (2014).
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que se navega e se busca caindo de um
link
para o outro —, se aproxima da
ação e da superficialidade de “surfar”.
Em termos de poéticas da cena, congregando temáticas e materialidades
dessa etapa do processo, evidencia-se “roteiros em deriva” que conduzem os
artistas e espectadores à sensação de adentrar uma espécie de “zona de
desfazimento” da identidade de si, da dualidade entre real e ficcional, de uma
certa concepção de realidade mundana. Posteriormente, parte desses materiais
das gravações seriam traduzidos como narrativas/narrações feitas pelos artistas
na peça de modo “presencial”.
Emergir: derivas do Fora
Em etapa posterior do processo, quando do início da montagem da peça, o
Núcleo passa a se encontrar presencialmente em todos os ensaios tendo em vista
o combinado prévio de não utilizar telas ou projetores, operando com o mínimo
possível de recursos multimídia. Portanto, depois de um primeiro processo de
imersão em telas, o que acontece somente nas redes digitais passa a funcionar
como material de pesquisa para o presencial.
Nestes encontros, os performers são então impelidos a trazer toda a
bagagem teórica, imagética e televisiva das experiências em deriva nas telas para
a sua dimensão tátil e analógica, como se se buscasse uma “biologia actante” do
digital para se dimensionar, na concretude presencial dos corpos, a experiência
específica emergente na relação com o ciberespaço.
Sob esse prisma, o espetáculo se estruturou em duas partes: uma que se
inicia em cinco diferentes estações de metrô da cidade de São Paulo Barra
Funda, Sé, Trianon-MASP, Japão-Liberdade e Armênia —; e outra que ocorre na
sede do Grupo XIX de Teatro, no galpão da Vila Maria Zélia.
Na parte inicial, o público geral da peça é então dividido entre os cinco artistas
performers que partem dos diferentes pontos de encontro da cidade e fazem uma
“deriva guiada” por meio da qual associa-se assuntos diversos das pesquisas de
cada performer: teorias conspiratórias e alienígenas, gamificação, relatos históricos
sobre os bairros, transporte urbano, pornografia. Mas, durante o percurso, os
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artistas possuem a função de também contar todos uma mesma história, uma
lenda urbana também tida como
creepypasta
. Trata-se da lenda urbana do
“cachorro morto na mala”10.
Tal narrativa é posteriormente retomada quando do início da apresentação
no espaço do teatro. Entretanto, a anedota não é contada ao público tal qual um
“relato à parte”, ou configurada enquanto “lenda”, mas é introduzida na
organicidade da própria deriva como um acontecimento espontâneo dentro do
trajeto de cada ator. Nesses deslocamentos, palavras e caminhadas se entrelaçam
em diferentes atos narrativos, de modo que a anedota, paulatinamente
compartilhada por todos os espectadores, ganha uma qualidade de deriva.
Ao chegar no transporte público que conecta a estação Belém de metrô até
o teatro do Grupo XIX, um dos performers repete a mesma lenda urbana do
“cachorro morto”, contada primeiramente de forma individual, agora para todos os
espectadores. O recontar da anedota proporciona assim uma espécie de jogo de
espelhamento e de repetição das narrações das lendas urbanas que opera de
forma similar às
creepypastas
e “narrativas em deriva” nas redes digitais: criação,
repetição anônima, transformação na medida em que o relato ganha novos
espaços, corpos e bocas.
dentro do espaço do teatro, cria-se uma outra atmosfera, de profundidade
e escuridão, tomando como ponto de partida um cenário apocalíptico que é o
mesmo da premissa da narrativa apropriada do
Twitter
: “E se o sol
desaparecesse?” Dessa premissa, a história acompanha alguns personagens (que,
na versão original, são contas do
Twitter
) tentando sobreviver em um mundo
apocalíptico após o desaparecimento do sol.
Adentra-se então nessa fábula como base da escrita dramatúrgica. Cada
performer assume um personagem da história como um
player
, sem perder de
vista a dinâmica de abas e janelas, errâncias e derivas que a própria estrutura de
ARG (
Alternate Reality Game
) sugere.
É desse modo que os artistas trafegam por diversas camadas narrativas em
10 Essa lenda urbana é contada em episódio do
podcast
Rádio Novelo Apresenta, que inspirou o Núcleo Fundo.
Cf. “Episódio 29”: https://radionovelo.com.br/wp-content/uploads/2023/06/RNA_ep29_transcricao.pdf .
Acesso em: 19 set. 2024.
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10
derivas paralelas à fábula do
Twitter
, e vão referenciando suas próprias pesquisas
e obsessões a violência e o proibido na
deep
e a
dark web
, as
creepypastas
e
suas origens nas lendas urbanas, a cultura de
games
, pornografia, as teorias
conspiratórias, etc., temas que nos remetem à complexidade das redes também
como lugares de criação interativa. Lucas Miyazaki mostra potes com comidas em
diversos estágios de decomposição enquanto narra sobre a prática pictórica
japonesa
Kusozu
, cujos artistas representavam e observavam os diferentes
momentos de decomposição de um corpo morto; Lívia Machado compara
fotografias de lâminas de materiais orgânicos como sangue, escarro, esperma,
urina e fezes com coloração e imagens de fotografias de planetas, alegando
relações entre o micro e o macro e todo um universo que existe no corpo do
cosmos; Ery Gabs Baesse faz uma
live
pornográfica, real, enquanto recebe os
internautas durante a peça e possibilita que o grupo escolha vibradores antes da
interação; Lucas Guilherme Sollar, com uma máscara, promove um jogo interativo;
Thais Della Costa conduz uma interação a partir de cartas de
Pokémon
.
Agora, a fim de ilustrar, mais de perto, uma das composições textuais
experimentadas cenicamente de acordo com a lógica discursiva da internet,
aborda-se um trecho do texto da artista pesquisadora Thais Della Costa, quem
tinha a função de narrar cenas de extrema violência gráfica utilizando apenas
signos verbais. Os crimes a serem narrados pela atriz, que ficaram “famosos”11 no
universo da
dark web
,
eram previamente sorteados por alguém da plateia, não
sem antes receber o alerta de que a cena contém descrição de violência explícita.
Um dos relatos, a exemplo, conta com o seguinte texto:
Esse vídeo é muito conhecido na internet muitos anos. Trata-se de
um vídeo sobre um crime onde dois garotos mataram um senhor
aparentemente sem motivo algum e eles filmaram e postaram o vídeo
na internet. E esse deo foi aparecer na
deep web
e, posteriormente,
emergiu para
surface
... O vídeo mostra e começa com um senhorzinho
andando de bicicleta numa estrada cercada dos dois lados por árvores e
ele está vindo tranquilamente em sua bicicleta e esses dois garotos,
jovens, cercam esse senhor e o derrubam da sua bicicleta. O senhor não
reage, ele parece confuso e eles batem com o que parece ser o martelo,
que está dentro de uma sacola amarela. Eles batem com esse martelo,
11 Dentre os crimes sorteados a serem narradas estavam: “Brick on windshield”; “3 guys and 1 hamme”r;
“mangue 937”; “1444”; “acidente do torno russo”; “Miss Pacman”; “No Mercy in Mexico”; “Punição da
Motossera”; “Acidente do mergulho na Turquia”; “Shuaiby”.
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com esse objeto, na cabeça do senhor. O senhor fica meio apagado. Eles
arrastam o senhor para dentro da mata que está ao redor daquela
estrada. E eles não levam ele muito pra dentro. Levam o senhor para um
lugar relativamente próximo da estrada. E ali eles começam a bater com
aquela sacola amarela, com o objeto que tá dentro da sacola amarela, na
cabeça do senhor. Aquele senhor era um homem que estava voltando
pra casa. Isso a gente acabou sabendo posteriormente. E eles começam
a bater no rosto do senhor com um martelo. Não demora muito para o
rosto do senhor ficar totalmente desfigurado e quando você olha assim,
fica aquela massa vermelha de carne e sangue totalmente triturado
onde você não consegue identificar nada. Você ali um buraco e
onde ficava aparentemente a boca do senhor. Ele não reage muito. Os
meninos batem nele. E eu imagino o quanto o senhor ali estava
confuso porque foi absolutamente do nada. Os meninos riem, se
divertem, e filmam o senhor e filmam a si mesmos como se fossem uma
selfie, como se fosse uma coisa muito divertida. Eles batem no rosto do
senhor e a pior coisa é que você fica ouvindo a respiração do homem
meio, uma respiração meio molhada, como se ele estivesse afogando no
próprio sangue. É o som mais horrível que existe. É um som muito horrível
e esse som perdurou o tempo todo da gravação. Os meninos riem, andam
em volta do homem, filmam e ele tá com o corpo sobre um material de
mato e tem muito lixo por perto. E ele tá com os botões da camisa
abertos. Depois de bater tanto na cabeça do homem e ele tão
desfigurado, eles pegam um objeto pontiagudo que parece um picador
de gelo ou uma chave de fenda, eles começam a perfurar o abdômen do
homem. E eles vão furando, furando e vai fazendo um barulho horrível e
dá pra sentir os órgãos sendo perfurados e eles vão misturando, assim…
pra sentir as coisas misturando dentro e faz um barulho e o barulho
é a pior coisa. E ao fundo, assim, você ouve os carros passando e parece
que o mundo tão perto, as pessoas estão tão perto e as pessoas não
sabem o que acontecendo ali. E o barulho continua e os meninos rindo,
rindo, e o homem tentando respirar e aquela respiração sufocando ele,
ao mesmo tempo, com sangue. Então eles pegam o objeto pontiagudo e
começam a perfurar onde estavam os olhos do homem e eles perfuram
os olhos do homem e enfiam no crânio dele, como se não tivesse
causado tanto dor nele. O homem tenta se defender com os braços, mas
ele tá tão fraco e a respiração dele é forte e o abdômen sobe e desce. Aí,
por fim, um dos meninos sobe em cima do tórax dele, da barriga dele e
pra ouvir as costelas dele se quebrando. E pra terminar, ele pega o
martelo, que não está mais dentro da sacola e bate com força na
cabeça dele. Dá pra ouvir a cabeça dele se quebrando. Eles, os meninos,
correm para fora da floresta e tem um carro parado. Eles estão dando
muita risada, se filmando, como se fosse uma coisa muito divertida. E
eles pegam um galão de água no porta-malas do carro, lavam o martelo,
colocam dentro da sacola amarela, colocam tudo embaixo do porta-
malas, fecham o carro. E aí o vídeo termina. Ele só termina.12
Com a narração dos crimes, cria-se um duplo sobre as questões éticas da
estética das redes: enquanto o ARG
O sol desapareceu
referencia uma narrativa
12 Trecho de dramaturgia não publicada, concedida pela atriz Thais Della Costa.
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que instaura uma atmosfera lúdica e indeterminada dos jogos online, essa mesma
imprevisibilidade múltipla se estende para um outro submundo latente da internet,
relativo ao compartilhamento e arquivamento de materiais de violência explícita e
toda sorte de criminalidade. Daí que tal relato aproxima a ideia de narrar sob o
signo do acontecimento, por conduzir a experiência e a palavra como eventos
móveis dentro da estrutura da peça. Desse modo que observa-se, no material
dramatúrgico, um deslocamento para uma “zona de desfazimento” (sem uma
centralidade do Eu ou de uma linearidade narrativa) que é, ao mesmo tempo,
compartilhada e construída entre atores e espectadores.
Na mesma linha do que investiga o filósofo Peter Pál Pelbart (1989), esse
“espaço de desfazimento” e indeterminação no qual os corpos adentram pela
narrativa, relaciona-se à ideia de “lugar do Fora”. O Fora, para o autor, refere-se às
diversas modalidades históricas que foram, a contar da modernidade,
enclausuradas na categoria de loucura:
caos do mundo, fúria da morte, fim dos tempos, bestialidade do homem,
inumanidade, força do desejo, sagrado dos elementos, fascínio das
miragens, violência do desmesurado, ameaça do nada, e todas as outras
forças, sejam quais forem, determinadas ou indeterminadas, e que
podem “constituir” o Fora (Pelbart, 1989, p. 169).
Assim, mais do que “falar sobre” o que seria esta “zona de desfazimento”
muito próxima da realidade disjuntiva da internet, o material dramatúrgico orienta-
se no sentido de materializar esse espaço pelo próprio
ato narrativo em deriva
,
como se observa desde a primeira parte da peça, nas estações de metrô, até os
momentos de dentro do teatro nos quais friccionam-se temáticas e narrativas
diversas.
Nota-se que esse percurso de derivas orquestrado pela multiplicidade
discursiva dos “corpos que narram”, torna-se a principal estratégia de uma
dramaturgia que opera um transplante entre espaços de virtualidades e
materialidades. Tal movimento dimensiona o acontecimento em montagem
narrativa de via dupla: tanto em sua potência de virtualidade fabulativa, acionando
o imaginário em fluxo discursivo, quanto em engajar os corpos no acontecimento
comum que a narração instaura, como uma lenda urbana compartilhada. Portanto,
Corpos em deriva: os labirintos e narrativas da internet em
O sol desapareceu
Lucas Miyazaki Brancucci | Lívia Machado
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-16, dez. 2024
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entre a deriva e a narração, depreende-se a abertura de um “movimento
narrativo”13 que presentifica a zona de desfazimento, esse “Fora”.
Considerações finais
Retomando a dimensão do narrar performativo, pode-se dizer que as
investigações e procedimentos dramatúrgicos perceptíveis na peça
O sol
desapareceu
materializam uma escrita cênica para além de circundar uma
identidade do indivíduo ou da narrativa, operando, de certa forma, uma
“sobredeterminação da personalidade humana por forças sócio-históricas”
(Baumgärtel, 2012). Neste caso, sobredeterminação da corporalidade advinda de
modos de se narrar inseminados por vias e abas múltiplas, sendo a deriva o
procedimento operador que costura essa forma específica de experienciar
acontecimentos.
Tal modo de composição textual, em face do que delineia Sílvia Fernandes
(2010) sobre dramaturgias contemporâneas, amplia formas de dinamizar
processos narrativos que expressem “novas contradições da realidade” ao
conferirem a autonomia do discurso internético como materialidade de cena,
visando assim uma abertura para “construção de estratégias espaciais complexas”
(Fernandes, 2010).
Nesse sentido, a própria dramaturgia também se estrutura em rede: existe
uma narrativa central, mas em diálogo com outras “abas” de pesquisas, derivas,
links
que abrem novas janelas para temas de interesse e relatos pessoais dos
artistas participantes do projeto.
As estruturas sistêmicas que envolvem corpos em estado online — dentro e
fora das telas —, a lógica das redes como lugar possível de diversas qualidades de
interação e criação de narrativas compartilhadas, nos permite pensar na internet
não apenas como um lugar de alienação, mas também como espaço de exposição
e redimensionamento da qualidade de presença dos corpos na atualidade.
Retomando a definição de virtualidade (Pierre Lèvy) e do Fora (Peter Pál
13 Para a discussão sobre movimentos do narrar que se orientam segundo a ideia de “fora”, ou “exterior”, cf.
Maurice Blanchot em
O livro por vir
(2013).
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O sol desapareceu
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Pelbart), explorar campos da internet na cena pode ser um modo de “atualizar” as
verves narrativas: de trazer à tona o Fora submerso na profundidade internética,
sejam as histórias de caráter lúdico como
O sol desapareceu
,
ou manifestações
abjetas oriundas do imaginário do
deep
e
dark.
Figura 1 - Derivas no metrô. Foto: Jonatas Marques.
Figura 2 - Derivas no teatro. Foto: Jonatas Marques.
Figura 3 - Derivas no teatro. Foto: Jonatas Marques.
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Referências
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não-narrativos: reflexões sobre impulsos não-dramáticos na dramaturgia
brasileira contemporânea.
Urdimento
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dramaturgia performativa contemporânea.
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(UnB), v. 9, 2010, pp. 107-
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Lucas Miyazaki Brancucci | Lívia Machado
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-16, dez. 2024
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SARRAZAC, Jean-Pierre.
O futuro do drama
. Porto: Campo das Letras, 2002.
Recebido em: 20/09/2024
Aprovado em: 23/11/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br