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Escrever é escutar –
ensaio sobre as vozes de Por visões”
Maria Clara Ferrer
Para citar este artigo:
FERRER, Maria Clara. Escrever é escutar ensaio sobre as
vozes de Por visões”.
Urdimento
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 54, abr. 2025.
DOI: 10.5965/1414573101542025e201
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Escrever é escutarensaio sobre as vozes de Por visões”
Maria Clara Ferrer
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-20, abr. 2025
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Escrever é escutar1ensaio sobre as vozes de Por visões”
Maria Clara Ferrer2
Resumo
Ao problematizar a relação entre escrita e fala no fazer teatral, o artigo, em um viés
prático-teórico, reconstitui o processo de criação do espetáculo
Por visões
da Cia.
Passo a 2 de Teatro. A partir da experiência da autora, como dramaturga e diretora
convidada para o projeto, estabelece-se uma reflexão sobre a escuta como prisma
para a escrita, como uma forma de deslocamento de si. São descritos e analisados
as etapas e procedimentos utilizados na elaboração do texto, buscando um
entendimento mais amplo do gesto de escrita, em sua ligação íntima com a
oralidade, e do que, hoje, se pode chamar de texto teatral.
Palavras-chave
: Texto de teatro. Escrita. Fala. Oralidade. Escuta.
To write is to listen - an essay on the voices in « Por visões »
Abstract
By problematizing the relationship between writing and speaking in theatre making,
the article, from a practical-theoretical perspective, reconstructs the process of
creating the show Por visões by Cia. Passo a 2 de Teatro. It is based on the author's
experience, as a playwright and director invited to the project, that establishes a
reflection on listening as a prism for writing, as a form of self-displacement. The
stages and procedures used in the preparation of the text are described and
analyzed, seeking a broader understanding of the gesture of writing, in its intimate
connection with orality, and of what today can be called a theatrical text.
Keywords:
Theater text. Writing. Speech. Orality. Listening.
Escribir es escuchar - un ensayo sobre las voces de “Por visões”
Resumen
Problematizando la relación entre escribir y hablar en la creación teatral, el artículo
reconstruye, desde una perspectiva teórico-práctica, el proceso de creación del
espectáculo Por visões de la Cia. Passo a 2 de Teatro. Se basa en la experiencia del
autora, como dramaturga y directora invitada al proyecto, que establece una
reflexión sobre la escucha como prisma para la escritura, como forma de auto
desplazamiento. Se describen y analizan las etapas y procedimientos utilizados en
la elaboración del texto, buscando una comprensión más amplia del gesto de la
escritura, en su íntima conexión con la oralidad, y de lo que hoy puede llamarse texto
teatral.
Palabras clave
: Texto teatral. Escritura. Habla. Oralidad. Escucha.
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Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Roger Ferreira Xavier. Doutorando em
Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Graduação em Letras pela
Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ). euacreditonaarte@gmail.com
2 Pós-doutorado na Université Paris-Nanterre. Paris (FR). Doutorado, Mestrado e Graduação em Etudes
Théâtrale/Artes Cênicas pela Universi Sorbonne Nouvelle Paris 3, França. Profa. nos cursos de Graduação
e Pós-graduação de Teatro na Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). claireferrer@yahoo.fr
http://lattes.cnpq.br/3726730187855170 https://orcid.org/0000-0002-0549-5079
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Introdução
Falar sobre escrita teatral, hoje, indo além de uma recorrente discussão
crítica sobre o textocentrismo, envolve duas vastas searas. A primeira diz respeito
a uma definição, isto é, ao que estamos chamando (ou dispostos a chamar) de
texto de teatro. A segunda concerne aos processos de escrita e aos modos de
criação, sejam eles individuais ou coletivos, de um texto para a cena. Em outras
palavras, como estamos escrevendo (para o) teatro?
Trago em preâmbulo essas duas questões como catalisadoras de hipóteses
e reflexões, sabendo bem que, para abordá-las, é necessário observar uma
variedade de estudos de casos concretos e de exemplos específicos sobre o fazer
teatral. É nesta perspectiva que me debruço, aqui, sobre o processo de criação do
espetáculo
Por visões
, para o qual fui convidada a participar como dramaturga e
diretora, em 2019, pela Cia. Passo a 2 de Teatro3, fundada e composta por Juliana
Monteiro4 e Maria Cordélia5.
Escolhi esse trabalho para falar sobre escrever para a cena por ele ter me
feito perceber, entender no corpo, o aforismo com o qual intitulo este ensaio:
escrever é escutar”. Trata-se, na verdade, de uma fala do autor norueguês Jon
Fosse enunciada durante uma entrevista, na qual ele aborda seus processos de
escrita.
Eu não escrevo, é mais como ter algo em mim que eu deixo escrever.
Para mim escrever é escutar. Escuto vozes silenciosas. Eu não vejo nada
quando eu escrevo. Eu escuto… fico à escuta de vozes obscuras e
borradas, de forças interiores, de sons emocionais, de certo modo 6
(Dufay, Fosse, 2023, p. 29).
3 A Cia. Passo a 2 de teatro, sediada em Sāo Joāo del-Rei, foi criada em 2008 por Juliana Monteiro e Maria
Cordélia. Dedica-se à investigação cênica em diálogo com outras linguagens artísticas, incluindo nesse
mergulho um olhar para questões pedagógicas e que abarcam uma terapêutica dos sentidos.
4 Atriz, diretora e professora no curso de Teatro na UFSJ (área de Dança, Treinamento Corporal do Ator e Voz).
Bacharel em Artes Cênicas e Doutora em Artes da Cena pela UNICAMP e Mestre em Artes pela USP.
5 Atriz, cantora, professora (de canto e de teatro) e cantoterapeuta. Graduada em Canto Popular e Mestre em
Artes da Cena pela UNICAMP, com extensão na Maestria Interdisciplinaria en Teatro y Artes Vivas em Bogotá,
Colômbia.
6 Je n’écris pas, c’est plutôt qu’il y a quelque chose en moi que je laisse écrire. Pour moi écrire, c’est écouter.
J’écoute des voix silencieuses. Je ne vois rien quand j’écris, j’écoute... Je suis à l’écoute de forces obscures
et floues, des forces intérieures, des sons émotionnels, en quelque sorte. (Tradução nossa).
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Marguerite Duras, em um documentário onde reflete sobre seu trabalho de
escritora, descreve, semelhantemente a Jon Fosse, a maneira como as vozes
movem o seu gesto de escrever:
coisas que eu não reconheço quando eu escrevo, quer dizer então que
elas me vêm de um outro lugar. Eu não estou sozinha quando escrevo. É
pretensão achar que estamos sozinhos diante da folha. Por exemplo, é
muito raro que eu ande pelo jardim ou pela praia sem que eu reviva certas
coisas incomensuravelmente longínquas. Elas chegam por baforadas. Eu
me digo que são os lugares que guardam essa memória e que se a gente
não oferecesse nenhuma resistência cultural ou social, a gente seria
permeável a elas. É sem dúvida esse estado que eu busco encontrar
quando eu escrevo, um estado de escuta extremamente intenso, mas
voltado para o exterior. As pessoas dizem que nós escrevemos em um
estado de concentração, eu tenho o sentimento de estar em uma
extrema desconcentração. A coisa vem de você, a coisa vem do outro,
pouco importa. A coisa vem de fora. A memória, pra mim, é algo
espalhado por todos os lugares. Eu percebo os lugares desta maneira.
Aquilo que se arrebata sobre você, quando você escreve, é simplesmente
a massa da vida vivida [...] somos assombrados por nossas experiências
de vida [...]. Tem vezes que tudo fala em mim por toda parte. Eu tento, de
certa forma, dar conta desse transbordamento7 (Duras, 1976).
É ao pé da letra que podemos compreender o que os dois escritores, ambos
dramaturgos e romancistas, sugerem em seus depoimentos. Colocar-se à escuta
de uma oralidade latente não é em nada um fenômeno sobrenatural, quando
percebemos/sabemos que a fala e a escrita estão intrinsecamente ligadas, que
elas são formas de manifestação a primeira operada pela emissão da voz, a
segunda pelo grafar (ou digitar) de letras do movimento do pensamento.
Simplesmente, tanto Duras quanto Fosse convidam-nos a pensar que escrever
não se dá apenas escrevendo ou, em outras palavras, que escrever começa antes
e vai além de escrever. Escreve-se lendo, escreve-se falando, escreve-se ouvindo
os outros falarem, escreve-se até mesmo sonhando na medida em que todas
7 Il y a des choses que je ne reconnais pas quand j'écris, donc elles me viennent bien d'ailleurs. Je ne suis pas
seule quand j'écris. La prétention, c'est de croire qu'on est seul devant sa feuille. Par exemple, il est très rare
que je me promène dans le jardin ou sur la plage sans que je revive certaines choses incommensurablement
lointaines. Ça m'arrive par bouffées comme ça. Je me dis que c'est les lieux qui la recèlent cette mémoire
et que si on n´offrait aucune résistance culturelle ou sociale, on y serait perméable. C'est sans doute cet
état que j'essaie de rejoindre quand j'écris, un état d'écoute extrêmement intense, mais tourné vers
l'extérieur. Les gens disent que qu'on écrit on est là, dans un état de concentration, mais j'ai l'impression
d'être dans un état extrême déconcentration. Ça vous arrive de vous, ça vous arrive d'un autre, peu importe.
Ça vous arrive de l'extérieur. La mémoire, pour moi, c'est quelque chose de répandue dans tous les lieux. Je
perçois les lieux de cette façon-là. Ce qui vous arrive dessus dans l'écrit, c'est tout simplement la masse
du vécu [...] On est hanté par son vécu. [...]. Il y a des fois ça me parle partout et j'essaie quand même de
rendre compte un petit peu réaliser de ce débordement. (Tradução nossa)
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essas atividades envolvem ou são envolvidas por vozes que, silenciosas ou não,
ecoam em nós. Muito concretamente, as vozes são a pulsação do corpo que
escreve antes mesmo que as mãos e os dedos entrem em ação. Trata-se,
portanto, de apreender a escrita como um gesto mais amplo, mais mexido, que
não se limita à grafia ou à digitalização das letras. A sala de ensaio teatral
apresenta-se como um fértil campo de experimentação para esse exercício, por
isso volto-me ao processo de criação de
Por Visōes
.
Um convite para a escuta
Ao evocar seus processos de escrita, Fosse e Duras se referem a atividades
solitárias. Suas peças de teatro foram escritas antes e independentemente de suas
encenações, seguindo, portanto, um modelo de criação teatral em dois tempos.
Em um ensaio sobre o duplo caráter literário e cênico do teatro, o filósofo
francês Henri Gouhier o define como uma arte em dois tempos. A peça de teatro
é escrita para ser representada, a sonata para ser executada. Em um caso como
no outro, a própria existência implica dois tempos, o da sua criação e o da sua
recriação que é o da sua representação ou da sua execução”8 (Gouhier, 1989, p. 9).
Em uma provocação e em contraponto ao modelo binário de Gouhier, Joseph
Danan, ao debruçar-se sobre o estudo da produção dramatúrgica contemporânea,
sugere a imagem de uma arte a mil tempos” (parafraseando a famosa canção
Une valse à mille temps “ de Jacques Brel): Parece possível hoje ver as coisas de
uma forma um pouco diferente: como uma mescla entre os dois tempos,
conduzindo a uma difração dos tempos de criação e de execução, que tomará
diferentes formas”9 (Danan, 2015, p. 11). O autor se refere a processos de criaçōes
nos quais a invençāo dramatúrgica se em um vai-e-vem constante entre as
experimentaçōes cênicas e a escrita textual.
Por visōes
se inscreve nessa
dinâmica.
8 La pièce de théâtre est écrite pour être représentée, la sonate pour être exécutée. Ici et l’existence même
de l’oeuvre implique deux temps: celui de sa création et celui de sa re-création qu’est la représentation ou
l’exécution. (Tradução nossa)
9 Il semble possible aujourd’hui de voir les choses un peu autrement : sous l’aspect d’un brouillage entre les
deux temps, conduisant à une diffraction des temps de la création et de l’exécution, qui prendra différentes
formes. (Tradução nossa)
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Por visōes
título que só foi dado ao espetáculo às vésperas de sua estreia
teve como ponto de partida a leitura do romance
Cassandra
, de Christa Wolf
(2007). Nele, a autora alemã retraça em um monólogo interior, a trajetória da
personagem feminina em busca de autonomia e autoconhecimento. Cassandra
recebe de Apolo o dom da vidência, mas por se opor ao desejo do deus, é por ele
amaldiçoada. Suas visões passam a ser desacreditadas. Em meio à cegueira
histórica de seus contemporâneos, Cassandra que alertava sobre a tragédia da
guerra de Tróia, deixa de ser escutada e perde a clareza de suas palavras. Embora
o elemento propulsor do projeto tenha sido o romance de Wolf, o intuito não era
nem de adaptar o romance para a cena, nem de representar os personagens da
história. O que instiga as atrizes no diálogo com a obra literária é a reflexão que
ela alimenta, tanto no campo da dramaturgia quanto no da atuação, em especial,
sobre como a palavra se forma e ganha corpo através da escuta. Isso se traduz
em uma frase do livro que, como um desafio e um aprendizado, percorreu todo o
nosso processo: Falar com a própria voz: o bem supremo” (Wolf, 2007, p. 14).
Para falar do processo de escrita de
Por visōes
, devo lembrar que ele foi
iniciado, em 2018, pelas atrizes e musicistas Juliana Monteiro e Maria Cordélia,
fundadoras da Cia. Passo a 2 de Teatro. Foi após um ano de experimentações que
elas decidiram convidar alguém, de fora da companhia, para assumir as funções
de dramaturgia e de direção. O convite, então, me colocou em um lugar inabitual,
pois o projeto, além de não ser uma iniciativa minha como diretora e dramaturga,
estava em andamento quando eu comecei a fazer parte dele. Ou seja, havia
um tema de investigação - o mito de Cassandra - e muitos materiais coreográficos,
textuais, musicais e plásticos, levantados em torno dele.
Descobri, com essa situação, um desafio estimulante no qual o gesto
dramatúrgico não precisava se apoiar em um o que eu quero dizer”. De fato,
quando somos proponentes de um projeto, sentimos a necessidade de nos ater a
um propósito, a posição de liderança própria à direção (sobretudo quando
associada à dramaturgia) geralmente implica na postura de quem define e justifica
diante da equipe o sentido (nas duas significações da palavra: significado e direção)
do projeto. A experiência de
Por visões
exigiu que eu me deslocasse de uma
atitude de voluntariedade.
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A equipe solicitou minha participação no projeto após eu ter assistido a um
ensaio aberto. Naquela ocasião, na qual era espectadora, relatei à Juliana Monteiro
e Maria Cordélia que pressentia em Material Cassandra” assim se chamava
provisoriamente o experimento a potencialidade de uma palavra, sem a
organização de uma linguagem. Os textos, ora falados, ora cantados, ecoavam, mas
não se tramavam. Era como se o pensamento estivesse naquele estado de
opacidade, que conhecemos bem quando escrevemos, em que conseguimos
trazer à tona certas expressões ou frases, sem achar o fôlego, o ímpeto do
parágrafo. Sobre isso, Gertrude Stein dizia ter descoberto ao escrever o livro
How
to write
que as frases não são fatores de emoção e [que] os parágrafos são [...] e
que essa diferença não era uma contradição, mas sim uma combinação10(Stein,
2011, p. 94). Apoio-me na reflexão de Stein, de maneira metafórica, na tentativa de
explicitar uma situação que vivenciamos bastante em processos colaborativos,
que é a de acumularmos materiais cênicos ricos, mas que colocados lado a lado
não trazem a emoção do parágrafo”.
Quem se aventurou em processos colaborativos, nos quais a dramaturgia
se constrói progressiva e coletivamente, sabe das dificuldades que surgem no
momento de definição do texto escrito. Muitas vezes, nesses processos, as equipes
convidam um dramaturgo (como no caso do Teatro da Vertigem), cuja tarefa é
transformar em partitura, em um objeto escrito contendo uma repartição de falas
e rubricas, as inúmeras propostas e improvisações feitas ao longo do processo,
triando, recortando, dividindo, excluindo e dando forma aos materiais cênicos. Em
sua tese de doutoramento, na qual confronta a noção de dramaturgia a diferentes
tipos de criações coletivas, Marcus Borja constata que, frequentemente, nesse tipo
de processo, a necessidade de fazer com que no texto caiba a voz de cada
participante transforma o texto final em uma justaposição/superposição de
monólogos redundantes”11 (Borja, 2015, p. 268). Há sempre uma tensão, no que diz
respeito à autoria em processos colaborativos, entre o discurso (que se quer)
10 [...] les phrases ne sont pas facteur d’émotion mais les paragraphes si [...] que cete différence n’était pas
une contradiction, mais une combinaison. (Tradução nossa)
11 La nécessité de faire tenir dans le texte la voix de chaque participant transforme le texte final en
juxtaposition/superposition de monologues qui se redondent. (Tradução nossa)
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coletivo do grupo e a mão do escritor.
Em um contexto no qual todos querem ter a palavra, o lugar daquele que
está ali como um distribuidor, ou no mínimo como um agenciador de
palavras, torna-se polêmico. Mesmo que as tentativas de interpretação
do problema sejam diferentes de uma companhia à outra, de um
dramaturgo a um ou outro ou a um ator, a constatação de crise desta
posição parece unânime12 (Borja, 2015, p. 269).
De fato, é difícil, ao nos distanciarmos do modelo binário de criação teatral,
conceber a dramaturgia como uma função individualizada. Bernard Dort, teórico
francês que muito se interessou pelas relações entre o texto e a cena, define isso
de forma muito pertinente. A dramaturgia instituída como uma função em si é
apenas uma questão de divisão do trabalho. Não se trata de um campo de
atividade distinto dentro da realização teatral. Ou seja, a dramaturgia é um estado
de espírito. Uma prática transversal. E não uma atividade em si”13 (Dort, 1986, p. 10).
Sem pertencer a ninguém da equipe, a dramaturgia, não limitada ou identificada
aqui como texto, é o movimento de um pensamento, aquilo que dá a liga entre os
materiais, a parte invisível/espectral do espetáculo, onipresente em seu todo.
Então, mesmo que o projeto da Cia. Passo a 2 de Teatro não contasse inicialmente
com uma dramaturga, havia ali um pensamento dramatúrgico operante, embora
ainda encoberto.
Portanto, quando entrei no processo de
Por visões
, me encontrei na atividade
de escutar aquilo que estava sendo dito sem ser dito. Logo, entendi que não me
cabia impor uma ideia minha ou ponto de vista sobre o mito de Cassandra, mas
sim propor dispositivos capazes de tornar sensível, palpável, aquilo que estava em
jogo para as atrizes, o que as moviam juntamente na escolha de Cassandra. O
processo de escrita do espetáculo se caracterizava como um exercício de
tradução, no qual aquilo que estava para ser inventado não era propriamente o
conteúdo do texto, mas a sua tramagem. A noção de tradução que emprego, aqui,
12 Dans ce contexte tous veulent avoir la parole, la place de celui qui est censé être, sinon le dispensateur,
du moins l’agenceur de cette parole, devient polémique. Même si les tentatives d’interprétation du problème
diffèrent sensiblement d’une compagnie à une autre, d’un dramaturge à un autre ou à un acteur, le constat
de crise de cette position semble unanime. (Tradução nossa)
13 La dramaturgie comme institution est seulement affaire de division du travail. Non de définition d’un champ
d’activité distinct de l’ensemble de la réalisation théâtrale. J’y reviens: la dramaturgie est un état d’esprit.
Une pratique transversale. Non une activité en soi. (Tradução nossa)
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não se refere à fidelidade a um propósito original, mas sim a um deslocamento
transformador de formas, próprio ao gesto de traduzir, que consiste em achar as
canaletas adequadas para que haja condução dos sentidos.
Assim, é curioso constatar, ao consultar hoje o roteiro do experimento
Material Cassandra, ao qual havia assistido em 2018, que nele constam várias falas
do texto definitivo de
Por visōes
, sem que, no entanto, eu houvesse utilizado esse
documento para compor a escrita do espetáculo, cujo rumo tomado foi totalmente
outro. Isso significa que essas falas muitas delas são citações do romance de
Wolf navegaram entre as diferentes etapas do processo de criação,
transportadas pelas bocas das atrizes, como sinais manifestos de um estado de
espírito dramatúrgico.
“O Bloco” - dispositivo para a elaboraçāo coletiva de um
discurso em cena
Para nos entrosarmos e também para trazer à tona, de maneira menos
sugestiva e mais nítida, aquilo que movia a equipe como falar com a própria
voz" –, abri minha caixa de ferramentas” e propus várias práticas. Dentre elas, um
jogo performático chamado O Bloco”, que logo se revelou ser a canaleta decisiva
para o agenciamento da dramaturgia.
Concebido pelos dramaturgos franceses Joris Lacoste 14 e Jeanne Revel
(2008), O Bloco” é uma forma de conferência improvisada a várias vozes, que
busca a construção de uma enunciação coletiva, a partir de um pequeno número
de regras formais. Podendo acontecer sob forma de espetáculo diante de um
público ou simplesmente como um jogo em equipe, O Bloco” pode servir para
produzir textos de teatro. Foi o que aconteceu no processo de
Por visōes
, pois
podemos dizer que o dispositivo foi o pivô da escrita textual.
É interessante notar que a maioria das improvisações praticadas nas salas de
aula e/ou de ensaio não visam propriamente a produção de texto. Muitas, na linha
dos “études” de Stanislavski, buscam uma investigaçāo dos personagens e da
14 Para conhecer um pouco mais sobre o trabalho do dramaturgo e diretor Joris Lacoste, remeto ao artigo
“Quando a fala o que falar”, publicado no catálogo da MITsp 2018 (p.34-43). Disponível em: Catalogo
Mitsp2018cp | PDF | Brasil | Teatro (scribd.com). Acesso em: 18 set. 2024.
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situação dramática na qual eles se inserem. Algumas, próximas de métodos como
o Viewpoints, voltam-se para a composição espacial, levando os corpos a
perceberem e jogarem com as diferentes características físicas de um ambiente.
Outras, com vieses mais lúdicos e/ou didáticos, estimulam o imaginário, a
capacidade de ação/reação, a intuição rítmica, mas sem necessariamente se
preocuparem com a forma e o conteúdo do que é dito. São menos explorados os
jogos e improvisações que têm como foco específico a elaboração de um discurso.
De modo geral, a atenção dessas práticas não está voltada para aquilo que é dito,
nem como é dito, as falas que surgem não são tidas propriamente como um texto,
como um tecido no qual fundo e forma se associam. É como se,
pressupostamente, o texto em si não pudesse de fato ser tramado/inventado em
cena.
O Bloco” pertence a um conjunto de práticas, de jogos orais, chamado Jeux
W” (Jogos W). As normas do jogo constroem um dispositivo propício à elaboração
coletiva de um discurso em tempo real. A primeira delas é a configuração espacial
(regra 1) que determina que os jogadores devem estar sentados lado a lado em
uma mesa com microfones, diante de uma plateia, como em uma coletiva de
imprensa. Junta-se a isso o fato de que todos os jogadores devem começar
dizendo Boa noite/ bom dia” e encerrar dizendo Obrigado/a”. Tal disposição gera,
inevitavelmente, o código da palestra. O contexto determina uma postura de
enunciação (corporal e vocal) específica movida pela consciência de um
endereçamento coletivo e pela necessidade de explanar sobre algo para uma
plateia que está a uma distância pública.
Outra restrição imprescindível para os jogadores é que O Bloco” diz nós”, e
nunca eu”, pois trata-se de um pensamento único e indivisível, a ser desenvolvido
por vozes consonantes. Isso implica também (regra 5) que um jogador nunca pode
se opor a uma ideia dita pelo outro, não pode haver discórdia entre as vozes. O
discurso se constrói através de concatenações que permitem ao pensamento se
desdobrar segundo diversas combinatórias: digressões, exemplificações,
traduções, sínteses, etc. Essas regras trazem a dimensão de coro do bloco,
garantindo que os solos, as ideias premeditadas e as tentativas de monopólio da
fala sejam evitadas. Ou seja, elas impedem a individualização dos pontos de vista
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e dos discursos e alimentam a necessidade de um pensar junto aos outros. Não é
a vontade ou a boa ideia de um jogador que deve conduzir o jogo, mas a lógica
interna ao discurso.
Também é importante destacar que no Bloco” nenhum tema é previamente
decidido e nenhuma estratégia pode ser combinada. A regra 8 indica que o grupo
deve sempre partir da situação real, de algo que é objetivamente irrefutável dentro
da realidade compartilhada pelos jogadores (por exemplo: estamos reunidos hoje
no dia 7 de setembro de 2024”), uma informação básica e evidente. O intuito dessa
regra é fazer com que o discurso seja criado sem premeditações a partir do
presente, isto é, o grupo cria um discurso sobre algo que ele nem sabe o que é. Ė
no final da rodada que o coletivo terá uma consciência retrospectiva daquilo
que foi capaz de compor.
A medida em que o discurso é elaborado, os elementos fictícios começam a
se infiltrar nele, como descreve Joris Lacoste, o bloco é uma arte da deriva”15
(2008a), na qual a ficção se tece na medida em que nos distanciamos, pelas
ferramentas da retórica, do que está dado na situação real. Nesse sentido, poderia
parecer contraditório propor um exercício como O Bloco” no processo de
Por
visões
, onde justamente se buscava tornar palpável o que estava em jogo. Mas, o
fato de não deixar que a ficção se imponha como uma pura invenção, mas como
algo que emerge de um imaginário coletivo latente e inesperado, graças ao
dispositivo rigoroso do jogo, foi decisivo para trazer à tona aquilo que não sabemos
que sabemos dizer. O Bloco” ensina a nos desapegarmos de nossas boas ideias”,
das nossas vontades individuais de fala, abrindo um portal de escuta, que permitiu,
no caso de
Por visōes
, deixar falar o estado de espírito dramatúrgico.
Uma vez que as atrizes assimilaram as regras do jogo, os discursos gerados
foram ficando mais densos e a concatenação de ideias mais afiada e ousada.
Aquilo que Jon Fosse e Marguerite Duras descrevem sobre o deixar falar das vozes
a partir de um estado de atenção desconcentrada ao presente, torna-se concreto
na sala de ensaio, à medida em que as atrizes inventam ali ao vivo”, textos com
fundo e forma entrelaçados.
15 Le bloc est l’art de la dérive. (Tradução nossa)
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O deslocamento de um eu falante e voluntário” que O Bloco” promove,
estabelece um exercício de escuta e de coralidade, que tem o silêncio como
válvula da composição dos discursos. A regra 12 coloca que O Bloco não teme os
silêncios16(2008), embora não seja formulada como uma restrição, mas sim um
incentivo ao silêncio, não deve passar despercebida. Conforme exploramos o jogo,
nos demos conta de que o silêncio também deve ser criado, que ele faz parte da
partitura, podendo ter várias formas e significados: a pausa, a interrupção, a
suspensão, a dúvida, a espera, a expectativa, o desejo, etc.
Assistir a um discurso sendo elaborado em tempo real é também perceber
tudo aquilo que cabe na fala para além da palavra, todas as fragilidades de um
pensamento gaguejante que a escrita não consegue absorver plenamente em suas
letras. Tudo aquilo que escapa ao domínio da vontade torna-se palpável e
indispensável para a construção imaginária do discurso. Como descrevo em um
artigo elaborado em parceria com a artista-pesquisadora Juliana Mota17 : São
esses desvios, brancos e derrapagens que, traindo o utilitarismo semântico da fala,
estimulam a imaginação do ouvinte, dizem além do sentido sensato” das palavras,
ou seja, dizem o que o sujeito não sabe ou não pretende dizer” (2018, p. 25).
Entendendo, portanto, que as anotações escritas feitas a partir do Bloco”
não bastariam, não dariam conta de registrar as diferentes camadas de sentidos
ofertadas pelo exercício, decidimos, após algumas partidas, gravar os textos que
estavam sendo produzidos. Pode parecer inusitado que esteja chamando de
textos, discursos improvisados por falas em cena, antes mesmo que eles se
materializem na folha ou na tela. De fato, o que está em jogo aqui não é somente
uma inversão observar que em certos processos de criação pode ser a fala
cênica que determina a escrita –, mas um entendimento mais amplo daquilo que
consideramos como texto.
As vozes estão soltas por aí!
Quando falamos de texto de teatro, fica subentendido que estamos nos
16 Le Bloc ne craint pas les silences. (Tradução nossa)
17 Juliana Mota é atriz, cantora e professora do Departamento de Artes da Cena na Universidade de Sāo Joāo
del-Rei.
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referindo a algo escrito. Nessa perspectiva, a teoria de Gouhier, do teatro como
uma arte em dois tempos, traz consigo o pressuposto de que o texto precede a
encenaçāo e, portanto, que a escrita precede a fala. A primeira pertence ao gesto
literário e isolado do autor, enquanto a segunda corresponde ao devir-corpo, por
mediação dos atores, daquilo que foi previamente escrito. Para colocar em xeque
o tempo binário e linear dessa concepção, vale estabelecer, ainda que
minimamente, uma perspectiva histórica sobre a relação entre escrita e fala dentro
da composição teatral.
À luz dos estudos de Paul Zumthor, especialista da literatura e cultura
medieval, vale lembrar que a concepção de texto que temos está circunscrita e
vinculada à invenção da imprensa. Contudo, etimologicamente um texto é um
tecido de linguagem, uma trama de pensamentos expressa em palavras, ou seja,
não se trata necessariamente de uma tessitura escrita. Um texto poético
puramente oral não é menos texto do que um texto escrito, ele é diferente
deste. Ele se torna texto através da operação da voz”18 (Zumthor, 1993, p. 364). A
separação, tida na maioria das vezes como uma oposição, entre texto e voz, e
entre escrita e fala, não é dada. É com a expansão das técnicas de impressão que
as formas escritas se proliferam e que o objeto livro passa a ser o principal suporte
de difusão de um texto, que pode então ser fruído de maneira silenciosa e solitária.
Antes disso, a literatura era indissociável da oralidade e a leitura, que se dava em
voz alta, tinha um carácter predominantemente coletivo. Isso nos faz olhar de
maneira mais relativa para o lugar da escrita dentro da linguagem humana, como
coloca Georges Steiner: A escrita é um arquipélago no meio da imensidão
oceânica da oralidade” (2020, p. 38).
A contextualização histórica é importante, hoje, para (re)pensarmos o que
definimos como texto de teatro. Não à toa Paul Zumthor sugere que a Idade Média
é em superfície o oposto de nossa época, mas [que] há, no fundo, semelhanças
perturbadoras entre elas”19 (Zumthor, 1993, p. 414). De fato, da mesma maneira que
18 Un texte poétique purement oral n’en est pas moins un texte, mais il l’est autrement. Il le devient en effet
dans l’opération de la voix. (Tradução nossa)
19 [...] le Moyen Age, c’est en surface le contraire de notre temps ; mais en profondeur, apparaissent de
troubles ressemblances. (Tradução nossa)
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a significativa transformação tecnológica da imprensa reconfigurou a relação entre
escrita e fala, hoje também atravessamos mutações importantes em nossos
modos de comunicar, ligadas, entre outros, à multiplicação e à vulgarização dos
registros vocais. Assim como escrevemos mensagens, enviamos mensagens de
voz no WhatsApp, assim como lemos livros, ouvimos podcasts. As vozes estão
soltas por aí!
Vivenciamos uma transformação dos nossos modos de ler, escrever, falar e
escutar. Em seu instigante ensaio intitulado Aqueles que queimam livros”, escrito
em 2003, Georges Steiner, de maneira quase visionária (para aquela data)
descrevia:
Daqui por diante, é certo que a leitura vai se tornar um tráfico eletrônico
constante, mais do que uma atividade solitária, e que a escrita - mesmo
aquela do romancista - será uma troca aberta, on-line, entre o autor e o
público. Isso não é de forma alguma ficção científica (Steiner, 2020, p. 31).
É nesta perspectiva que me parece importante encararmos os discursos
elaborados em improvisações cênicas, devidamente estruturadas, como textos.
Junto a isso, devemos levar em conta a facilidade com a qual podemos registrar
sonoramente aquilo que está sendo dito em sala de ensaio, apenas com os nossos
smartphones como foi o caso no processo de
Por visōes
–, sem que isso exija
recursos financeiros ou expertise técnica. Vale, portanto, considerarmos a
presença do gravador, cada vez mais frequente, nos processos. Não que as
gravações sonoras substituam as anotações escritas dos diretores essas
remetem ainda a uma outra lógica de registro dos ensaios –, mas elas garantem a
reconstituição das falas cênicas improvisadas em suas integralidades, ou seja, elas
fixam e permitem a reprodução daquilo que, até então, era tido como efêmero e
irreproduzível. O gravador tende, portanto, a modificar o estatuto da fala cênica
improvisada no processo de composição dramatúrgica e dissolver os binarismos
entre fala e escrita, vozes e letras, contribuindo assim para uma visão mais ampla
e corporal do gesto de escrever. Nesse sentido, podemos sim entrever uma
estranha semelhança com as práticas literárias da ideia da Idade Média,
intrinsecamente ligadas às performances vocais.
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Sobre inscrever vozes
Os discursos gravados e transcritos a partir do Bloco” correspondem a
camadas de uma escrita cuja primeira etapa se faz pela fala. O fato de estar
chamando esses materiais de texto não significa que se trata de um texto
definitivo. Da mesma maneira que quando escrevemos, estamos sempre
corrigindo, recomeçando, apagando, acrescentando, remendando, ao elaborar o
texto falando também acumulamos tantas versões.
Uma vez que os registros sonoros foram organizados e também transcritos,
realizei uma imersão, desta vez solitária, naquele material. Ouvi e li (em voz alta e
silenciosamente) os discursos várias vezes, ainda sem nenhuma pré-concepçāo
de como seria a dramaturgia final. O intuito era apenas deixar reverberar o estado
de espírito dramatúrgico do projeto em mim.
Até que um dia, andando na rua, uma frase muito nitidamente soou em minha
mente: Talvez não haja silêncio sem amor”. Não estava pensando na escrita do
texto naquele momento, mas essa frase surgiu como um chamado e sabia que ela
se associava ao material em processo. Naquela altura, ainda não tinha o hábito de
mandar áudios para mim mesma, por isso continuei andando até em casa,
macerando a frase na minha cabeça para não a esquecer. Ao abrir o computador,
sem saber sobre o que escrevia, me deixei levar por aquela intuição sonora,
compondo um trecho do que seria o texto definitivo de
Por visōes
. As vozes
estavam soltas em mim. À medida que os pedaços foram surgindo, eu os levava
para a sala de ensaio, e em poucas semanas, concluímos o texto. Assim como no
exercício do Bloco”, a escrita do texto não foi guiada por uma vontade pessoal de
dizer alguma coisa. Como alguém que traça ou rabisca algo em um papel, se
deixando levar por uma pulsão gráfica, fui olhando para o traçado realizado. E
então fui começando a enxergar aquilo que estava fazendo, começando a ter
visões, ou seja, a deixar o imaginário dar forma e transformar aquilo que ia
surgindo.
Aquilo que se teceu tem, em seu fundo e forma, a marca dos discursos
improvisados através do Bloco”. O início do texto anuncia o contexto de
enunciação de uma palestra, feita em primeira pessoa do plural e endereçada a
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um coletivo.
Boa noite
Boa noite
Este é o lugar de fala escolhido
o lugar de fala que escolhemos
para o nosso encontro
De hoje
Percebam que, embora a proximidade entre nós seja palpável,
a distância também é minimamente necessária
para que a nossa fala possa ocupar o seu devido lugar
Nós sabemos que para que uma fala possa existir é necessário que
existam
espaços entre, espaços vagos
As falas vagam
Movimentam-se agora por esse espaço
Meio claro, meio escuro
Meio cheio, meio vazio (Ferrer, 2019)
Como no Bloco”, começa-se apontando para algo real e evidente, relativo à
situação compartilhada pelas pessoas ali presentes. A peça-palestra é concebida,
não em cenas, mas em três experimentos, intitulados I. Dos vazamentos
sonoros”; II. Da criação de silêncio”; III. Da cacofonia”. Eles questionam nossa
relação com a escuta, com o silêncio e com a confiança que temos (ou não) na
fala do outro. Se o discurso tem como ponto de partida uma descrição topográfica
e proxêmica de onde nos encontramos, logo ele deriva, ao trazer como estudo de
caso a história de Cassandra.
Estudo de caso: Cassandra.
Cassandra é uma criança de olhos agudos. Sua face é um grito. De sua
mente vazam fios de cabelos eletrizados por ideias que não cabem em
sua cabeça. A noite em sua cama, muitas vezes tem febre. Febres de
conhecimento. Ela sabia, pois sentia, que pensar é uma atividade elétrica.
De alta intensidade.
Ao assistir ao mundo, tinha choques de percepção. Tremia de pensar.
O pensamento treme.
prazer. (Ferrer, 2019)
A narração, em terceira pessoa, opera como uma metáfora daquilo que é dito
pelas palestrantes, trazendo o exemplo de uma voz feminina que, por não receber
crédito de seus contemporâneos, é silenciada. Percebe-se, portanto, que aquilo
que era o ponto de partida do projeto surge como um desvio do discurso
estruturante. Tal estratégia permite um deslizar entre a palestra e a ficção. Assim
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como nas improvisações, oscila-se entre enunciados retóricos (nós sabemos
que...”, percebam que…”, se nós dissermos que…”) pertencentes a uma lógica
argumentativa e formulações de caráter mais romanesco e narrativo.
Outra marca do Bloco” é a maneira como o texto é alinhado. O alinhamento,
muitas vezes (sobretudo nas partes argumentativas do texto), não corresponde à
unidade sintática da frase. Isso traduz a pulsação de um pensamento que está
sempre buscando se completar, que está em aberto para que a escuta do outro
possa alimentá-lo, faça-o seguir seu curso. Junta-se a isso, uma outra
característica herdada do Bloco” que é a não divisão das falas. O texto foi
inteiramente escrito sem que fosse indicado pelas didascálias, quem está falando
o quê. São falas sem donos. São vozes sem personagens. Seguindo essa lógica, as
duas atrizes decoraram a integralidade do texto sem que houvesse uma repartição
fixa dentro da partitura. A divisão do texto entre elas se faz ao vivo”, a cada
apresentação, mantendo a ideia de que se trata de um discurso único e indivisível,
um pensamento a duas vozes consonantes. Ao não indicar como as falas se
dividem, o texto gera a necessidade de uma escuta aguçada entre as atrizes, pois
a nāo-escuta” entre elas pode gerar um atropelamento das falas, ou seja, a falta
de escuta torna-se audível. Embora o texto esteja finalizado e decorado, sua
composição terá sempre a variável da repartição das palavras, o que obriga as
atrizes a compartilharem continuamente o mesmo fluxo de pensamento, a
pensarem em coro em cena. É sempre, portanto, através do espaço produzido
pela escuta que as vozes continuam a compor o texto.
Como foi que tudo isso começou?
Todo processo de criação carrega a sua própria história. Trata-se da história
da elaboração coletiva de um pensamento ao se tornar obra cênica. Trata-se de
uma história feita de ideias propulsoras, insights, conflitos entre pontos de vista,
desvios, bloqueios, gatilhos, momentos de perdição e outros de visões: uma
espécie de dramaturgia interna raramente revelada ao público. No entanto, quando
se trabalha com a produção e com a transmissão de saberes práticos, sabe-se o
quão as histórias e traços de um processo de criação, embora muitas vezes
apagados, são ricos em aprendizados
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Em março de 2024, cinco anos após a sua criação, retomamos o espetáculo
Por visōes.
Lembro-me que na primeira releitura do texto, depois de um longo
período afastadas dele, nos surpreendemos muitíssimo. Depois de escutarmos sua
última frase Como foi que tudo isso começou?”, perguntamos a nós mesmas:
« Como foi mesmo que chegamos nesse texto? » A pergunta era uma brincadeira
que merecia ser levada a sério. Com isso, começamos a resgatar nossos cadernos
e drives, e a navegar, retrospectivamente, sobre os rastros do processo. É
interessante perceber como esse trabalho de reconstituição retroalimenta o
estado de espírito dramatúrgico do projeto, dando fôlego aos ensaios de retomada
do espetáculo.
Para além do estudo de caso de
Por visōes,
acredito na importância de
olharmos para nossas ferramentas e procedimentos de composição em sala de
ensaio para entendermos, da maneira mais concreta possível, como estamos
combinando, e não opondo, literatura e teatro. Quando na introdução do
emblemático
Teatro Pós-Dramático
, Hans-Thies Lehmann anuncia o fim da
galáxia de Gutenberg” (2007, p. 17) nas artes da cena, o que é posto em questão é
a precedência e a primazia do escrito sobre o oral. Ao referir-se em sua crítica ao
inventor da imprensa, o autor alemão não pretende fazer a apologia de um teatro
sem texto escrito, nem desmerecer o livro ou tampouco renunciar ao literário,
mas, sim, fazer com que o teatro faça letra-viva” da literatura. Como muito
justamente aponta a pesquisadora alemã Therezia Birkenhauer (2012, p. 187):
O teatro não é o lugar de uma concretização da literatura - no sentido
comum da palavra literatura - mas ele mesmo é uma prática literária,
contanto que as modalidades próprias do palco permitam um trabalho
na ngua (Barthes) que faz com que ela possa ser experimentada de
maneira diversa.
Quando o texto escrito não é a matriz do processo de criação teatral, abrem-
se inúmeras possibilidades de invenção do texto a partir de práticas da oralidade.
Fica, portanto, o desejo de continuarmos refletindo sobre as potencialidades e
formas de condução dessas práticas, movidos pela convicção de que o teatro é
um lugar de experimentação da(s) língua(s) como nenhum outro.
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Recebido em: 18/09/2024
Aprovado em: 20/11/2024
Universidade do Estado de Santa CatarinaUDESC
Programa de s-Graduação em Artes CênicasPPGAC
Centro de Artes, Design e ModaCEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br