
Escrever é escutar – ensaio sobre as vozes de “Por visões”
Maria Clara Ferrer
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-20, abr. 2025
Marguerite Duras, em um documentário onde reflete sobre seu trabalho de
escritora, descreve, semelhantemente a Jon Fosse, a maneira como as vozes
movem o seu gesto de escrever:
Há coisas que eu não reconheço quando eu escrevo, quer dizer então que
elas me vêm de um outro lugar. Eu não estou sozinha quando escrevo. É
pretensão achar que estamos sozinhos diante da folha. Por exemplo, é
muito raro que eu ande pelo jardim ou pela praia sem que eu reviva certas
coisas incomensuravelmente longínquas. Elas chegam por baforadas. Eu
me digo que são os lugares que guardam essa memória e que se a gente
não oferecesse nenhuma resistência cultural ou social, a gente seria
permeável a elas. É sem dúvida esse estado que eu busco encontrar
quando eu escrevo, um estado de escuta extremamente intenso, mas
voltado para o exterior. As pessoas dizem que nós escrevemos em um
estado de concentração, eu tenho o sentimento de estar em uma
extrema desconcentração. A coisa vem de você, a coisa vem do outro,
pouco importa. A coisa vem de fora. A memória, pra mim, é algo
espalhado por todos os lugares. Eu percebo os lugares desta maneira.
Aquilo que se arrebata sobre você, quando você escreve, é simplesmente
a massa da vida vivida [...] somos assombrados por nossas experiências
de vida [...]. Tem vezes que tudo fala em mim por toda parte. Eu tento, de
certa forma, dar conta desse transbordamento7 (Duras, 1976).
É ao pé da letra que podemos compreender o que os dois escritores, ambos
dramaturgos e romancistas, sugerem em seus depoimentos. Colocar-se à escuta
de uma oralidade latente não é em nada um fenômeno sobrenatural, quando
percebemos/sabemos que a fala e a escrita estão intrinsecamente ligadas, que
elas são formas de manifestação – a primeira operada pela emissão da voz, a
segunda pelo grafar (ou digitar) de letras – do movimento do pensamento.
Simplesmente, tanto Duras quanto Fosse convidam-nos a pensar que escrever
não se dá apenas escrevendo ou, em outras palavras, que escrever começa antes
e vai além de escrever. Escreve-se lendo, escreve-se falando, escreve-se ouvindo
os outros falarem, escreve-se até mesmo sonhando na medida em que todas
7 Il y a des choses que je ne reconnais pas quand j'écris, donc elles me viennent bien d'ailleurs. Je ne suis pas
seule quand j'écris. La prétention, c'est de croire qu'on est seul devant sa feuille. Par exemple, il est très rare
que je me promène dans le jardin ou sur la plage sans que je revive certaines choses incommensurablement
lointaines. Ça m'arrive par bouffées comme ça. Je me dis que c'est les lieux qui la recèlent cette mémoire
et que si on n´offrait aucune résistance culturelle ou sociale, on y serait perméable. C'est sans doute cet
état que j'essaie de rejoindre quand j'écris, un état d'écoute extrêmement intense, mais tourné vers
l'extérieur. Les gens disent que qu'on écrit on est là, dans un état de concentration, mais j'ai l'impression
d'être dans un état extrême déconcentration. Ça vous arrive de vous, ça vous arrive d'un autre, peu importe.
Ça vous arrive de l'extérieur. La mémoire, pour moi, c'est quelque chose de répandue dans tous les lieux. Je
perçois les lieux de cette façon-là. Ce qui vous arrive dessus dans l'écrit, c'est tout simplement la masse
du vécu [...] On est hanté par son vécu. [...]. Il y a des fois ça me parle partout et j'essaie quand même de
rendre compte un petit peu réaliser de ce débordement. (Tradução nossa)