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Máscaras e mímicas no teatro brasileiro: uma
decolonização da prática artística?
Erico José Souza de Oliveira
Para citar este artigo:
OLIVEIRA, Erico José Souza. Máscaras e mímicas no teatro
brasileiro: uma decolonização da prática artística?.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 4, n. 53, dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e0125
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Máscaras e mímicas no teatro brasileiro: uma decolonização da prática artística?
Erico José Souza de Oliveira
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-21, dez. 2024
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Máscaras e mímicas no teatro brasileiro1: uma2 decolonização da prática artística?
Erico José Souza de Oliveira3
Resumo
Este artigo indaga a prática de pesquisa artístico-acadêmica das artes cênicas sobre as
mímicas e as máscaras em relação às práticas culturais afro-brasileiras a partir de
discussões decoloniais sobre democracia racial e apropriação cultural. A intenção é
questionar se é eficaz a apreensão de um pensamento decolonial sul-americano
desenvolvido na parte hispânica do continente sem levar em conta as especificidades do
racismo à brasileira na sociedade como um todo.
Palavras-chave
: Decolonialidade. Democracia racial. Decroux. Lecoq. Apropriação cultural.
Masks and mimes in Brazilian theater: a decolonization of artistic practice?
Abstract
This article questions the academic-artistic research practice of performing arts about
mimes and masks in relation to afro-Brazilian cultural practices from decolonial discussions
about racial democracy and cultural appropriation. The intention is to question if the
apprehension of a south-American decolonial thought developed in the continent’s Hispanic
zone is effective without taking into account the specificities of Brazilian racism in the society
as a whole.
Keywords:
Decoloniality. Racial democracy. Decroux. Lecoq. Cultural appropriation.
Máscaras y mimos en el teatro brasileño: ¿una descolonización de la práctica artística?
Resumen
Este artículo analiza la práctica de la investigación artístico-académica en las artes escénicas
sobre mimos y máscaras en relación con las prácticas culturales afrobrasileñas a partir de
discusiones descoloniales sobre democracia racial y apropiación cultural. La intención es
cuestionar si es efectivo captar un pensamiento descolonial sudamericano desarrollado en
la parte hispana del continente sin tener en cuenta las especificidades del racismo brasileño
en la sociedad en su conjunto.
Palabras clave
: Descolonialidad. Democracia racial. Decroux. Lecoq. Apropiación cultural.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Éverton de Jesus Santos, doutor em
Letras pela Universidade Federal de Sergipe.
2 Pesquisa interinstitucional em nível nacional que faz parte do projeto “ARTES CÊNICAS E UNIVERSIDADE:
(re)pensamento curricular de intervenções antirracistas”, financiada pelo CNPq, através da Chamada
CNPq/MCTI/FNDCT 40/2022-PRÓ-HUMANIDADES-Programa de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
em Humanidades.
3 Pós-Doutorado em História da Encenação pela Université Paris 3 - Sorbonne Nouvelle em Paris com estágios
em Biomecânica Teatral no Centro Internacional de Biomecânica Teatral de Meierhold, em Perúgia (Itália),
com Bolsa CAPES e Estágio Sênior na Université Paris 8 - Vincennes-Saint-Denis sobre transculturalidade
na pedagogia do trabalho com máscara na Escola Jacques Lecoq (Paris), com estágio de um ano na Escola
Internacional de Teatro Jacques Lecoq (Paris), com Bolsa CAPES. Doutorado em Artes Cênicas pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA) Sanduiche na Université Paris X-Nanterre, com Bolsa CAPES. Mestrado
em Artes Cênicas pela UFBA. Licenciatura em Educação Artística com Habilitação em Teatro pela
Universidade Federal de Pernambuco. Professor Associado 3 da Universidade de Brasília (UnB) e do Programa
de Pós-Graduação em Artes Cênicas. ericojoses@yahoo.com.br
http://lattes.cnpq.br/3116783239543777 https://orcid.org/0000-0001-9738-0406
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Uma arte colonizada desde seu início
A ideia das mímicas e das máscaras no Brasil, sobretudo no domínio
universitário, é geralmente ancorada num pensamento de herança europeia,
principalmente francês. Para o bem ou para o mal, a tradição acadêmica das artes
do espetáculo nas universidades brasileiras, na maior parte dos casos, é uma
réplica quase caricatural dos cânones eurocêntricos, o que demonstra uma
postura servil e colonial.
Tendo consciência de que a afirmação acima é contundente e suscita
grandes debates, é preciso aprofundar essa discussão nos domínios em que as
noções de colonialidade e decolonialidade estão ligadas às reflexões sobre as
cenas e, em particular, às práticas das máscaras e das mímicas. Por esse fato,
apresento os desafios ligados a essas temáticas da colonialidade e decolonialidade
para contribuir com uma perspectiva outra a respeito da história do teatro jesuíta
no Brasil e do nascimento dos cursos de Teatro no seio das universidades
brasileiras, com foco nas mímicas e nas máscaras.
É importante lembrar que a mentalidade colonial (racista, sexista,
LGBTQIAP+fóbica e culturalmente epistemicida) se construiu séculos atrás e
representa uma instituição bastante poderosa que atravessa tanto o marco da
introdução das artes cênicas no Brasil quanto, e consequentemente, sua inserção
nas universidades brasileiras, como nos diz Ramón Grosfoguel (2016, p. 25-49)
quando fala do racismo/sexismo epistêmico:
O racismo/sexismo epistêmico é um dos problemas mais importantes do
mundo contemporâneo. O privilégio epistêmico dos homens ocidentais
sobre o conhecimento produzido por outros corpos políticos e
geopolíticas do conhecimento tem gerado não somente injustiça
cognitiva, senão que tem sido um dos mecanismos usados para privilegiar
projetos imperiais/coloniais/patriarcais no mundo [...] desqualificando
outros conhecimentos e outras vozes críticas frente aos projetos
imperiais/coloniais/patriarcais que regem o sistema-mundo.
Tal constatação de Grosfoguel se aplica também a dois marcos abordados
nesta discussão: a chegada do teatro colonial ao Brasil e sua institucionalização
universitária. Obviamente, vários outros eventos fundantes da mentalidade
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colonial nas artes brasileiras, mas, no espaço deste artigo, me concentro nos dois
supracitados. Acompanhando essa narrativa de sobrevoo por esses momentos
históricos a partir do século XVI, pode-se constatar como as artes cênicas e,
principalmente, o teatro se estabelecem no território que portará o nome de Brasil,
começando assim que os primeiros missionários jesuítas chegam e, através de
suas peças teatrais, “catequizam” os povos originários com a falaciosa intenção de
salvar almas ditas primitivas convertendo-as ao catolicismo.
Aimé Césaire (2020, p. 11) chama atenção para essa empreitada perversa que
une a política e a economia à religiosidade dentro do projeto de invasão colonial,
exploração e genocídio:
[...] o grande responsável nesse campo é o pedantismo cristão, por ter
elaborado as equações desonestas: cristianismo = civilização, paganismo
= selvageria, das quais poderiam resultar as abomináveis
consequências coloniais e racistas, cujas vítimas seriam os índios [sic],
amarelos e negros.
Lembremos igualmente que, paralelamente às cruzadas coloniais que
avançavam sobre as terras da futura América, o que Florence Dupont (2007, p. 81)
chama de primeira revolução aristotélica, que teve lugar no século XVIII, se
construiu a ideia de ilusão teatral definida por atos tanto simbólicos quanto
concretos de exclusão. A autora nos diz: “A primeira revolução que começou pelos
idos do século XVIII, instala a ilusão. Goldoni expulsa Arlequim e as arlequinadas,
as máscaras saem de cena, o texto, sistematicamente conservado e reencenado,
torna-se um monumento [...]”.4
Entre o projeto da
Poética
de Aristóteles e as revoluções aristotélicas
repertoriadas por Florence Dupont, pode-se perceber praticamente as mesmas
estratégias e os mesmos jogos de interesse: a imposição de uma ideologia e de
uma prática cênica fundadas sob os cânones inventados e difundidos com o
objetivo de suprimir ou de se apropriar das formas de arte e cultura que não
estariam em conformidade com as normas estabelecidas pelas potências
dominantes, isto é, uma prática de colonialismo cênico.
4 La première révolution qui a commencé vers le milieu du xviiie siècle, installa l'illusion. Goldoni chasse
Arlequin et les arlequinades, les masques tombent, le texte, systématiquement conservés et rejoués,
deviennent un monument [...]. (Tradução nossa).
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Partindo das práticas cênicas jesuítas no Brasil colonial (séculos XVI e XVII),
lembremos que os processos de apropriação cultural e de colonialismo estavam
lá, contribuindo assim para o apagamento das sociedades que povoavam estas
terras. As artes da cena brasileira são, portanto, coloniais e etnocêntricas desde
seu nascimento em razão das conjunturas nas quais são introduzidas e
desenvolvidas, que derivam de uma criação intelectual, religiosa, acadêmica e
artística eurocêntrica e hegemônica com a evidente intenção de dominar, como
afirma Veronica Fabrini (2013, p. 17): “Para se dominar um povo, que se dominar
o imaginário que lhe insufla vida. E como uma das formas de dominar esse
imaginário e, consequentemente calar essa epistemologia, o modo utilizado pela
Companhia de Jesus foi... o teatro”.
Em matéria de apropriação cultural, Rodney William (2019, p. 47-48) assim a
concebe:
A apropriação cultural é um mecanismo de opressão por meio do qual
um grupo dominante se apodera de uma cultura inferiorizada, esvaziando
de significado suas produções, costumes, tradições e demais elementos
[...] Além de ser marcadas pela submissão de uma cultura
sistematicamente oprimida, a apropriação desvela as estratégias
sofisticadas do racismo e se impõe como um entrave para a afirmação
de segmentos minoritários.
É preciso sublinhar que as artes cênicas, dentro do território colonial
brasileiro, eram uma das responsáveis pelo extermínio dos povos originários e se
articulavam diretamente com as formas de apropriação cultural, contribuindo para
o epistemicídio das sociedades indígenas, como indicam Hernandes e Faria (2013,
p. 62):
Anchieta utiliza nessa peça aspectos da cultura indígena, mesmo aqueles
que poderiam contrariar a religião cristã, para o ensino da e da moral
cristãs. Mistura elementos da cultura autóctone com a europeia, cristã e
católica, em hibridismo linguístico e cultural (Agnolin, 2001).5
Com a mesma mentalidade eurocêntrica, as artes cênicas ligadas às
instituições universitárias nascem das mesmas matérias colonial e etnocêntrica e
se perpetuam no seio de um Brasil majoritariamente eurocêntrico, se
5 Trata-se da peça Narrativa feita pelos Índios Guaraparim ao Padre Provincial Marçal Beliate, apresentada em
1589.
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desenvolvendo enquanto colonialidade interna, isto é, colonizadoras de si mesmo,
na medida em que derivam de uma cultura intelectual e artística com os olhos
voltados para o Ocidente europeu. Essa herança continua, até os dias de hoje, a
reproduzir colonialidade e racismo através dos séculos sob diferentes máscaras
e, principalmente, nos projetos político-pedagógicos e nos currículos dos cursos
superiores de Artes Cênicas do país.
A pesquisadora Jussilene Santana (2012, p. 3) apresenta um panorama do
primeiro curso de Artes Cênicas criado no Brasil em nível acadêmico na
Universidade Federal da Bahia, a Escola de Teatro da UFBA (ETUFBA), fundada em
1956 e idealizada pelo encenador, ator e historiador de teatro Eros Martim
Gonçalves (1919-1973), nascido no Recife (Pernambuco). A citada autora nos expõe
de forma evidente a tendência de uma mentalidade hegemonicamente europeia e
norte-americana no seio do pensamento desse curso universitário através das
intrínsecas relações econômicas, conceituais, teóricas, pedagógicas, técnicas e
artísticas entre as potências mundiais e o surgimento da ETUFBA:
[...] além de ter promovido uma inusitada ponte aérea, sem escalas
efetivas no RJ e SP, entre Salvador e Nova Iorque, Londres e Paris. Vale
ressaltar que foi na Escola da Bahia onde foram gestados os primeiros
passos para a tradução da obra de Constantin Stanislavski para o
português e implementadas as primeiras experiências de cursos de
direção teatral e interpretação ligados a uma instituição universitária [...].
A subvenção governamental dos Estados Unidos da América (Fullbright e
Departamento de Estado) para as viagens de Eros Martim Gonçalves em 1955 tinha
intenções explícitas e categóricas: “observar a estrutura dos cursos universitários
e a organização dos métodos do ensino das artes no país” (Santana, 2012, p. 3).
Essa relação se perpetuou na esmagadora maioria dos cursos de Artes
Cênicas país afora, sempre voltados para a Europa e/ou os Estados Unidos da
América e obliterando as práticas e as especificidades das culturas brasileiras de
origem negra e indígena, cujas consequências são, até hoje, a distância
sociocultural e epistemológica explicitada nos currículos das universidades e as
sociedades aqui subalternizadas.
Até nossos dias, em razão da perpetuação dessa mentalidade colonial, a
Escola de Teatro da UFBA acumula crises pedagógicas e artísticas entre
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estudantes, pesquisadores/as, docentes, com graves problemáticas e acusações
de racismo e, sobretudo, ausência de reais e substanciais conteúdos de
referências negras e indígenas em seus projetos político-pedagógicos e em suas
grades curriculares, majoritariamente fundados sob a epistemologia ocidental
branca na cidade mais negra do mundo fora da África.6
A maioria da população brasileira se considera preta/parda (55,5% segundo a
Pnad/IBGE de 2022)7, e, em razão da nossa história colonial de escravização sofrida
por africanos/as e seus/suas descendentes, assim como do racismo estrutural
que reina até nossos dias, a presidência do Brasil, sob o comando do Partido dos
Trabalhadores de 2003 a 2016, instituiu ações afirmativas em forma de
compensação à população negra, como a Lei 10.639/2003, que tornou
obrigatório o ensino da história africana e afro-brasileira nas instituições de
educação formal; a Lei 11.645/2008, que incluiu o ensino da história e cultura
indígena; a Lei 12.711/2012, que instituiu as cotas raciais para a entrada de
estudantes nas universidades brasileiras, e a Lei nº 12.990/2014 para cotas de 20%
para negros/as em concursos públicos no país. Importante salientar que essas
conquistas foram fruto de lutas de décadas dos movimentos negros organizados
no Brasil.
Com a entrada de estudantes pretos/as e pardos/as no Ensino Superior e a
inoperância dos cursos universitários na reformulação de seus currículos a partir
das diretrizes da Resolução 1/2004 e do Parecer com força de Lei 3/2004,
que obrigam as universidades a incluírem em suas matrizes curriculares os
mesmos conteúdos das Leis supracitadas, as reivindicações estudantis por
pluralidade epistemológica nos cursos superiores e, sobretudo, nos de Artes
6 Ver a problemática entre a Organização Dandara Gusmão (coletivo de estudantes negros da ETUFBA) e o
espetáculo Sob as tetas da Loba, da Cia. de Teatro da UFBA (2019), episódio de escala nacional: Alunos da
Escola de Teatro da Ufba interrompem espetáculo em protesto - Jornal Correio | Notícias e opiniões que a
Bahia quer saber (correio24horas.com.br): https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/alunos-da-
escola-de-teatro-da-ufba-interrompem-espetaculo-em-protesto/; Professores negros da Escola de Teatro
da Ufba cobram Audiência Pública para discutir Racismo | Correio Nagô (correionago.com.br):
https://correionago.com.br/professores-negros-da-escola-de-teatro-da-ufba-cobram-audiencia-publica-
para-discutir-racismo/; Estudantes da UFBA interrompem peça de teatro e apontam racismo na obraiG
Gente: https://gente.ig.com.br/cultura/2019-06-04/estudantes-da-ufba-interrompem-peca-de-teatro-e-
apontam-racismo-na-obra.html. Acesso em: 28 maio 2024.
7 Ver:
https://ftp.ibge.gov.br/Trabalho_e_Rendimento/Pesquisa_Nacional_por_Amostra_de_Domicilios_continua/T
rimestral/Novos_Indicadores_Sobre_a_Forca_de_Trabalho/pnadc_202204_trimestre_novos_indicadores.pdf
Acesso em: 15 set. 2024.
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Cênicas se confrontaram com o racismo institucional representado pelo
desinteresse e desprezo de docentes, gerando grandes conflitos e disputas
político-ideológicas em torno do racismo nas artes da cena brasileira e
universitária.
Apesar de indigesta, esta discussão é urgente, e é preciso ter consciência do
fato de que, embora brasileiros/as, nós também podemos ser colonizadores/as
internos em função de nossa adesão e defesa das epistemologias coloniais como
um modelo artístico civilizatório em detrimento de outros horizontes
epistemológicos contra-hegemônicos.
Pode-se observar que a concepção de colonialidade difundida pela rede
Modernidade/Decolonialidade (M/D), constituída no final dos anos 1990, nos
conduz exatamente ao século XVI, durante as invasões das Américas, com a
escravização de povos originários e africanos e uma série de ações violentas,
genocidas e de imposição epistêmica da visão do mundo branco-eurocêntrico,
portadora de uma ideologia racista, sexista, LGBTQIAP+fóbica e contra toda
sociedade divergente dos ideais europeus.
Por causa dessa prática introjetada em todas as esferas sociais, políticas,
econômicas, culturais e educacionais, a colonialidade epistêmica difundiu uma
forma de pensar a Europa como o centro científico, acadêmico, artístico e cultural
do mundo. Para Grosfoguel (2016, p. 30-31), René Descartes é o fundador do
pensamento universalista científico dada sua equação “Penso, logo existo”, cujo
“eu” que pensa, neste caso, é o homem branco, heterossexual, cidadão de bem e
europeu, colocado como centro do universo no lugar do Deus cristão e que ruma
à conquista das nações não europeias:
[...] o “penso, logo existo” de Descartes é precedido por 150 anos de
“conquisto, logo existo”. O Ego conquiro é a condição de existência do Ego
cogito de Descartes. Segundo Dussel, a arrogante e idólatra pretensão de
divindade da filosofia cartesiana vem da perspectiva de alguém que se
pensa como centro do mundo porque conquistou o mundo. Quem é
esse ser? Segundo Dussel (2005), é o Ser imperial. O “eu conquisto”, que
começou com a expansão colonial em 1492, é a fundação e a condição
da possibilidade do “eu penso” idolátrico que seculariza todos os
atributos do Deus cristão e substitui Deus como fundamento do
conhecimento [...].
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Assim como Aristóteles, que, séculos mais cedo, fundou a ideia de um teatro
grego de exportação e de conquista territorial, Descartes constrói as bases de uma
ciência aplicável ao mundo inteiro através do epistemicídio de tudo o que não a
endossa. Segundo Dupont (2007, p. 73-74), a teoria aristotélica e suas
reinterpretações ao curso dos séculos não são somente teorias estéticas, mas
estratégias políticas de guerra contra a diversidade sociocultural do mundo em
favor da uniformidade e do universalismo artístico-cultural: “A teoria aristotélica e
suas leituras sucessivas não são eventos necessários, impostos pelo curso da
história ou pela evolução das ideias: são projetos políticos que possuem efeitos
antropológicos”.8
Sob o olhar da complexidade histórica do Brasil, é importante perceber que
somos o único país lusófono da América Latina e que jamais estivemos integrados
ao movimento decolonial de língua hispânica em seu início, como nos indica
Luciana Ballestrin (2013, p. 111):
Entretanto, uma questão importante que não povoa o imaginário pós-
colonial e decolonial do Grupo Modernidade/Colonialidade é a discussão
sobre e com o Brasil. Esse é um ponto problemático, que a colonização
portuguesa a mais duradoura empreitada colonial europeia trouxe
especificidades ao caso brasileiro em relação ao resto da América. O
Brasil aparece quase como uma realidade apartada da realidade latino-
americana. É significativo o fato de não haver um(a) pesquisador(a)
brasileiro(a) associado ao grupo, assim como nenhum cientista político
brasileiro ou não.
É a partir desse estado de espírito e desse contexto de exclusão conceitual,
teórica, metodológica e criativa que os estudos e as práticas sobre as máscaras e
as mímicas são introduzidos nas cenas e nas universidades brasileiras e,
diuturnamente, percebidos como símbolos de prestígio e de privilégio acadêmicos
e estéticos por suas heranças europeias. Porém, algum tempo e tendo como
suporte a decolonialidade, tais domínios teatrais vêm sendo ligados às práticas
culturais afro-brasileiras como um meio de afirmação de uma arte decolonial,
ignorando inegavelmente outras questões sensíveis e pungentes a essas relações.
8 La théorie aristotélicienne et ses lectures successives ne sont pas des événements nécessaires, mus par le
cours de l’histoire ou l’évolution des idées: ce sont des projets politiques qui ont des effets anthropologiques.
(Tradução nossa).
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Étienne Decroux e Jacques Lecoq: os cânones das mímicas e
das máscaras no Brasil
Para Alain Rey (1987, p. 10), a mímica é o corpo em estado de signo e
espetacularidade. A expressão da mímica se manifestou em francês em pleno
Renascimento, por volta de 1560, a partir do grego
mimos
e do latim
mimus
, isto
é, no início da colonização das Américas. no século XVIII, se enriquece com o
sentido moderno do termo: “[...] sua unidade se ancora em profundeza numa
experiência, aquela da expressão corporal, da gestualidade e dentro de uma
corrente de reflexão que nos conduz de Aristóteles aos semiólogos modernos”.9
Rey (1987, p. 11) procura sintetizar tal pensamento sobre a mímica:
Dessa forma, este corpo à mostra que se inscreve no calmo espaço, este
caminhar, este rosto nu ou mascarado, esta carne viva, são produzidos
para se apresentar, para significar, para suscitar em quem os veem os
“movimentos da alma” e as paixões, para estimular o imaginário. O
mímico é o sujeito de um ato-signo que mostra o invisível se
presentificando, transforma um espaço em ambiente, um tempo de
relógio em duração humana. Um ato de início físico, de movimentos, de
gestos que apresentam, sobretudo, o que eles não re-presentam.10
Na perspectiva desse autor, a mímica é uma experiência humana inerente ao
corpo, independentemente do contexto cultural em que se encontra. Dito isso,
cada lugar produziria sua própria corporeidade e, por consequência, suas formas
de traduzir o mundo em mímica, o que significa não somente a prática de imitação
acadêmica do pensamento europeu sobre a mímica e/ou a máscara, como se
habitualmente no Brasil: heranças gregas, de arlequinadas, de pantomimas
inglesas, de circos europeus, de
clowns
, de Augustos e Brancos, de bufões, de
personagens da
commedia dell’arte
etc. E, como uma filiação, os ensinamentos
de Decroux e de Lecoq. Evidente e felizmente, essa não é uma única prática
generalizada, pois há artistas que fogem de uma tradição severamente codificada
9 [...] leur unité s’ancre en profondeur dans une expérience, celle de l’expression corporelle, de la gestuelle, et
dans un courant de réflexion qui nous conduit d’Aristote aux sémiologues modernes. (Tradução nossa).
10 Ainsi, ce corps montré, qui s’inscrit dans le calme espace, cette démarche, ce visage nu ou masqué, cette
chair vive sont produits pour présenter, pour signifier, pour susciter chez ceux qui les regardent les
‘mouvements de l’âme’ et les passions, pour stimuler l’imaginaire. Le mime est le sujet d’un acte-signe qui
montre l’invisible en se montrant, transforme un espace en milieu, un temps d’horloge en durée humaine.
Un acte d’abord physique, des mouvements, des gestes qui présentent plutôt qu’ils ne re-présentent.
(Tradução nossa).
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e congelada no tempo e no espaço da arte eurocêntrica, mas ainda são uma
minoria no panorama artístico-acadêmico nacional.
Deborah Moreira (2012, p. 176), por exemplo, vê nos trabalhos de Decroux um
tratamento mais sério dado à mímica a partir do momento em que ele a retira das
ruas e a concebe como um drama de influências épicas, quer dizer, quando ele
distancia as artes cômicas das ruas, das feiras e das praças e as pinta com
tonalidades consideradas como “o bom teatro”, a fim de ser valorizada pela
sociedade burguesa e, sobretudo, pela academia.
No Brasil, desde os anos 1940, artistas como Maria Clara Machado11 vão seguir
cursos com renomados artistas franceses, como Jean-Louis Barraut e o próprio
Étienne Decroux, como nos monstram Bya Braga e Alexandre Brum Correa (2022,
p. 8): “Em 1964, ela cria o curso regular de teatro d’O Tablado. Há, assim, a junção
companhia-escola-ateliê-revista teatrais, o que nos parece um aspecto
enriquecedor de ser ‘laboratório teatral’ no Brasil, ainda que influenciado por
experiências francesas”.
Nos idos de 1970, o ator e professor de teatro Luiz Otávio Burnier segue seus
estudos com Étienne Decroux em Paris e se engaja na Unicamp, onde cria um dos
grupos mais conhecidos do Brasil, o Lume, fundado em 1985 e em atividade até
os dias de hoje. O grupo se produz sobre os quatro continentes em mais de 28
países, trabalhando no domínio da pesquisa ligada ao teatro físico, à palhaçaria, à
dança pessoal, assim como vários espetáculos em repertório.12
No que concerne a Jacques Lecoq, podemos retraçar uma cronologia que o
liga à Itália e suas experiências com Amleto Sartori e Giorgio Strehler no Teatro
Piccolo de Milão e à reescritura cênica da
commedia dell’arte
a partir dos anos
1940 e sua pedagogia com máscaras. Segundo Guy Freixe (2010, p. 179), “[A
pedagogia de Lecoq] se afirma na escola do Piccolo Teatro onde ele faz da
máscara neutra o pilar central de seu ensino, alargando a mímica ao movimento
11 Fundadora do renomado O Tablado, uma escola de teatro situada no Rio de Janeiro criada em 1951 e ainda
em atividade. Para saber mais sobre O Tablado, ver: https://www.otablado.com.br.
12 Para saber mais sobre o Lume Teatro, ver: http://www.lumeteatro.com.br/.
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12
da vida e aliando a improvisação à análise do movimento”.13
Mas Jacques Lecoq (1997, p. 49) reinterpretou várias tradições fundadas no
jogo das máscaras e construiu uma visão pedagógica para um corpo mascarado
na cena do teatro onde a máscara é sinônimo de presença cênica, isto é, “[...] um
estado de descoberta, de abertura, de disponibilidade a receber”.14
Por outro lado, a maior parte dos/as artistas-pesquisadores/as brasileiros/as
que vão seguir cursos na Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq termina
por simplesmente repetir os exercícios experimentados durante suas estadas,
privilegiando uma postura servil, contrária ao encaminhamento preconizado na
própria pedagogia lecoquiana.
O estado de espírito geral, tanto teatral quanto acadêmico, vem sendo forjado
no Brasil em detrimento de uma imersão mais profunda nos contextos corporais
brasileiros em suas diversidades, principalmente com relação às práticas culturais
negras e indígenas, e isso significa que, no lugar da academia, as “artes maiores”
são reservadas a uma linhagem teatral das mímicas e das máscaras europeias
como centros mobilizadores de práticas artísticas e pedagógicas por via de
Decroux e Lecoq.
Mas, relativizando a argumentação precedente, posso dizer que, desde os
anos 1920, as artes do espetáculo no Brasil têm experimentado relações e diálogos
com culturas afrocentradas, bastando citar como exemplos de exceção desse
pensamento artístico-colonial Abdias do Nascimento, com seu Teatro
Experimental do Negro, Solano Trindade, com o Teatro Popular Brasileiro,
Mercedes Baptista, com seu Ballet Folclórico, entre várias outras personalidades e
suas iniciativas. Portanto, podemos afirmar que, desde seu início, as artes do
espetáculo são impregnadas de culturas brasileiras pelo esforço de grupos de
teatro negro, o que não significa, portanto, que possuímos práticas cênicas
decoloniais, como certos/as artistas-pesquisadores/as nos induzem a acreditar.
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães mostra que, desde o liberalismo do século
13 [...] s’est déjà affirmée à l’école du Piccolo Teatro il a fait du masque neutre le pilier central de son
enseignement élargissant le mime au mouvement de la vie, et alliant l’improvisation à l’analyse du
mouvement. (Tradução nossa)
14 [...] un état de découverte, d'ouverture, de disponibilité à recevoir. (Tradução nossa)
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XIX, a ideologia construída inclusive por abolicionistas e democratas era a de que
a pobreza estava diretamente ligada à inferioridade das raças não brancas, e o
Brasil legitimou essa condição a partir da inferiorização do patrimônio cultural
africano e afro-brasileiro, mantendo a exclusão sociopolítica e cultural desses
segmentos até a atualidade e negligenciando as ações sociais e afirmativas para
essas populações mais vulneráveis sob o manto da democracia racial, nos fazendo
crer que o problema do Brasil não seria racial, mas econômico, que, no que
concerne às discussões raciais, tudo se resumiria ao mito da diversidade cultural
e sua coexistência harmoniosa.
Torna-se importante, portanto, abordar a questão do discurso de igualdade
entre os “homens” forjado numa Europa colonizadora. Ainda segundo Guimarães
(1995, p. 35), essa fórmula de igualdade universal que a França alardeou com a
divisa “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” foi sempre seletiva, visto que, para além
de ser um aparelho plenamente dogmático e teórico, ela não se aplicava às
sociedades escravizadas e colonizadas por esse país.
E isso quer dizer que os direitos e empreendimentos humanistas eram
exclusivamente reservados às sociedades europeias brancas sem nenhum direito
acordado com países não europeus: “Assim como hoje, essa teoria coexistia sem
maiores problemas com a enorme distância social e o sentido de superioridade
que separava os brancos e letrados dos pretos, dos mulatos e da gentinha em
geral”.
Abdias do Nascimento (1978, p. 93) foi um dos intelectuais negros que
apresentou uma percepção aguda sobre essa questão da democracia racial como
um estilo especificamente brasileiro de tratamento das questões raciais sob o
manto de uma coexistência pacífica e harmoniosa:
Devemos compreender “democracia racial” como significando a metáfora
perfeita para designar o racismo estilo brasileiro: não tão óbvio como o
racismo dos Estados Unidos e nem legalizado qual o apartheid da África
do Sul, mas eficazmente institucionalizado nos níveis oficiais de governo
assim como difuso no tecido social, psicológico, econômico, político e
cultural da sociedade do país.
Para Abdias do Nascimento, é essa mentalidade que autoriza o extermínio
secular de negros/as no Brasil e, por consequência, de suas práticas culturais
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numa história oficial coberta por massacres sobre as comunidades e sociedades
não europeizadas. Neste caso, a democracia racial seria uma máquina de
extermínio a partir da qual restaria um privilégio para a população negra: tornar-
se branca. Assim, o conceito de nacionalismo é ligado a dois pensamentos: o do
embranquecimento e o da harmonia das relações raciais no país, com as falácias
de que o racismo não existe e de que somos uma só cultura.
Guimarães (1995, p. 42-43) também corrobora esse diagnóstico:
Assim é o racismo brasileiro. Sem cara, travestido em roupas ilustradas,
universalista, tratando-se a si mesmo como anti-racismo e negando
como antinacional a presença integral do afro-brasileiro ou do índio
brasileiro. Para esse racismo, o racista é aquele que separa, não o que
nega a humanidade de outrem; desse modo, racismo, para ele, é o
racismo do vizinho (o racismo americano) [...] Num certo sentido, o ideal
de democracia racial é um mito fundador da nacionalidade brasileira e
deve ser denunciado justamente pelo seu caráter “mítico” de promessa
não cumprida.
Enfim, compreendo que o mito da democracia racial é mais uma invenção
construída por intelectuais brasileiros/as brancos/as evidentemente cuja
origem é atribuída ao pensamento sociológico de Gilberto Freyre e perpetuada em
todas as instâncias oficiais, acadêmicas e artísticas como a continuidade do
racismo estrutural, sempre à brasileira.
Mais uma vez, Abdias do Nascimento (1978, p. 106) lança luz sobre o que
significa o racismo à brasileira:
Temos aqui simultâneas a melhor ironia e a pior hipocrisia, pois do
mesmo momento que tais estudiosos estão tentando demonstrar a
completa aceitação e os braços abertos da sociedade brasileira, que
supostamente não consideraria vergonha nem estigma as suas raízes
africanas, ao mesmo tempo dizíamos, eles tácita ou abertamente
demonstram o contrário, isto é: que a civilização brasileira nunca aceitaria
a contribuição africana caso a mesma não se tornasse sutil, disfarçada,
atuando no underground.
Partindo dessas constatações, a decolonialidade nas artes da cena não teria
a função de clarear e tornar mais aceitáveis as práticas culturais de origem negra?
Essa prática de troca decolonial não se traduziria por um embranquecimento
intelectual, cultural e artístico da negritude? Essas questões duras e diretas me
levam a um outro tema que, para mim, é impossível de abstrair em se tratando
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de pesquisa decolonial nas artes cênicas: a questão da apropriação cultural,
largamente debatida em diversos domínios, mas jamais assumida enquanto
reflexão central ou problemática fundante pela
intelligentsia
artística brasileira em
seus processos interculturais.
O que se vê revelado nos discursos acadêmicos no campo das artes da cena
no Brasil, sobretudo a partir dos anos 2010, é uma forte tendência em associar o
domínio do corpo, do cômico, da mímica e da máscara de herança europeia a
reflexões decoloniais através de diálogos interculturais entre cenas e culturas afro-
brasileiras. Nessas narrativas, uma postura recorrente é bem visível: a utilização
de princípios de tais culturas negras para o aprimoramento das criações artísticas,
sejam elas acadêmicas ou profissionais, a partir de técnicas, pedagogias e estéticas
negras. A título de exemplo, pode-se observar artistas, pesquisadores/as, docentes
universitários/as que trabalham com máscaras da
commedia dell’arte
ligando-as
a práticas religiosas e mitos africanos no Brasil, ou mesmo às brincadeiras do
cavalo marinho pernambucano, sem nem mesmo refletir sobre esse gênero de
“troca” artística no tocante às questões apontadas neste artigo.
Na maioria esmagadora dos artigos escritos sobre tais intercâmbios, não
nenhum debate crítico sobre o privilégio de classe e de raça, sobre apropriação
cultural, sobre o mito da democracia racial ou sobre o racismo, por exemplo,
levando-se em conta que a quase totalidade dos/as autores/as é artista branco/a.
É preciso notar igualmente que, em toda a história europeia das artes do
espetáculo, os/as artistas, intelectuais ou acadêmicos/as se inspiravam
comumente em culturas e civilizações estrangeiras a fim de dinamizar e mesmo
revolucionar a cena europeia. Essa postura tão recorrente pode ser encontrada
entre os grandes nomes do teatro ocidental:
[...] cabe perguntar o quanto de uma postura colonialista (ou seja, de
apropriação e uso) pode estar presente nas apropriações que o teatro faz
da vitalidade desses “outros teatros”. E, se ela está presente, como
detectá-la e combatê-la? Admiro e reconheço o trabalho de Grotowski,
Eugenio Barba, Peter Brook e Ariane Mnouchkine, apenas para citar os
consagrados. Mas, pergunto-me se as fontes que os alimentaram estão
também tão vivificadas quanto seus teatros [...] Embora não consiga
nomear com clareza dada minha admiração pelos nomes citados
um desconforto, uma sensação de dívida, de que falta algo, pois conheço
seus nomes (Grotowski, Brook ou Mnouchkine), mas suas fontes
permanecem imprecisas e seus atores, anônimos (Fabrini, 2013, p. 20).
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O mal-estar sentido por Fabrini é um indício de que é urgente e necessário
repensar séria e eticamente com profundidade os diálogos entre os artistas da
cena e as sociedades subalternizadas não no exterior, mas também no Brasil,
pois, desde o início do surgimento do encenador, tais tipos de relação não são
devidamente questionadas e revisadas à luz das discussões emergentes.
Mesmo não estando totalmente de acordo com a autora quando define as
diversidades das práticas afro-brasileiras como “outros teatros” pois que
nominar como teatro culturas subalternizadas e que não se reconhecem como tal
é, também, um ato de colonialidade –, penso que seu posicionamento e seu
questionamento são cruciais para o debate sobre o tema da colonialidade nas
artes cênicas.
Se as culturas afro-brasileiras possuem seus próprios signos e significados,
suas próprias epistemologias e seus próprios conceitos construídos e pensados
de maneira endógena, qual o sentido de tratá-las como teatro se seus/suas
agentes não o fazem? A quem serve essa tendência de nominar as cosmologias
alheias? De fato, o termo teatro define formas de arte bem específicas e situadas
no tempo e no espaço, com seus traços históricos de diferenciação entre classes,
raças, poder econômico etc. O pensamento decolonial deveria estar alerta a esse
procedimento como uma ferramenta de poder e de dominação sobre os/as
outros/as. Tratar uma prática ritual afro-brasileira, como o candomblé, por
exemplo, como teatro é incongruente e contraprodutivo, que estamos face a
uma outra maneira de ser e estar no mundo, a uma outra cosmologia.
Maria Fernanda Sarmiento Bonilla (2016, p. 4646) é bem mais incisiva com
relação a essas questões cênicas interculturais:
Barba convida a extrair daquelas culturas seus mais profundos e
milenares segredos, sem nenhum entendimento de onde eles vêm ou do
pertencimento a cada uma de suas sociedades. Seu comportamento é
do típico colonizador extrativista, que usa outros povos para explorar
suas manifestações na pretensão de pegar a forma e esvaziá-la de
conteúdo. Uma vez mais, assistimos a um tipo de formação despolitizada,
agora, com o agravante ético da exploração do conhecimento das
culturas como método para formar atores.
Parece-me que esse procedimento denunciado por Fabrini (2013) e Bonilla
(2016) é recorrente tanto no exterior quanto no Brasil e que existe um enorme tabu
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quanto à possibilidade de abordá-lo criticamente. Poderia mesmo sondar se o
silêncio a respeito de tais temáticas não seria uma maneira de manutenção dos
privilégios artístico-acadêmicos para a perpetuação da colonialidade, e minha
resposta seria, sem hesitar, positiva, na medida em que a base central do
pensamento colonial é justamente a subalternização da raça negra através da
invenção do racismo como dominação, escravização, extermínio e genocídio das
populações pretas (e indígenas) e da instalação do colonialismo, da modernidade
e da expropriação econômica, cultural e ambiental.
Césaire (2020, p. 75) é cortante em suas ponderações sobre essa discussão:
E então, eu pergunto: que outra coisa fez a Europa burguesa? Minou
civilizações, destruiu pátrias, arruinou nacionalidades, erradicou “a raiz da
diversidade” [...] Violência, excesso, desperdício, mercantilismo, blefe, o
comportamento de manada, estupidez, vulgaridade, desordem.
No Brasil, portanto, não foi diferente porque a violência colonialista
perpetrada foi real e de natureza racista desde seu início. Essa ferida histórica não
pode ser apagada por meio de debates decoloniais, sobretudo nos domínios que
se relacionam com as culturas afro-brasileiras. É mais uma vez necessário
reconhecer que nós podemos ser colonialistas em nosso próprio país a partir de
como estabelecemos diálogo com as epistemologias negras (ou não brancas),
práticas das quais nós acreditamos piamente fazer parte pela simples razão de
sermos brasileiros/as: “Aquela noção colonialista e racista de que tudo que o negro
produz pertence a todos e se pode dispor como bem quiser é o pano de fundo
desse projeto torpe e imoral” (William, 2019, p. 161).
Um grande número de pesquisadores/as brasileiros/as ou estrangeiros/as
trabalha com a ideia das mímicas e das máscaras a partir do candomblé, do frevo
e do cavalo marinho do estado de Pernambuco, dos reinados do Congo, dos
maracatus, do carnaval, bem como de outras festividades e religiosidades negras,
por exemplo, sem refletir acerca de quais são as problemáticas que embasam o
fundamento crítico do pensamento decolonial. É evidente que um perigo
epistemológico e ético face ao tratamento dado às práticas culturais afro-
brasileiras como uma espécie de salvadoras das estéticas e bases conceituais de
artistas da cena e das disciplinas acadêmicas das artes do espetáculo, através de
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uma narrativa pseudocolonial que omite conteúdos desconfortáveis para esse
transitar entre as cenas, as máscaras, as mímicas e as culturas brasileiras
subalternizadas.
Uma decolonialidade
gourmetizada
Quando se trata da complexidade colonial, das especificidades históricas e
do mito da democracia racial no Brasil, é ingênuo (ou mesmo leviano) pretender
que qualquer coisa seja “puramente decolonial”, uma vez que o pensamento
colonial, racista, sexista, apropriador é sistêmico e regido praticamente por todas
as instâncias socioculturais, econômicas, educacionais e artísticas do país.
Ao mesmo tempo, as artes cênicas acadêmicas ou não reivindicam uma
identidade decolonial como se isso fosse possível em estado bruto. Em vários
artigos e livros sobre o tema, uma necessidade narcísica de evitar a todo preço
a estigmatização colonial nas práticas cênicas, o que em nada contribui com uma
discussão séria a respeito da colonialidade no Brasil, sobretudo quanto à cena
artística no que tange à comicidade, às mímicas e às máscaras inclusas.
No artigo “Deslocamento Epistêmico e Estético do Teatro Decolonial”, de Lîlâ
Bisiaux (2018), a autora aponta como um estudo de caso o texto teatral
Kay Pacha
,
do dramaturgo e ator equatoriano Juan Francisco Moreno Montenegro, o
analisando à luz do que seria uma obra decolonial. As motivações de análise do
texto, sob o meu ponto de vista, são frágeis: a primeira é que o autor do texto e
encenador do espetáculo é originário da América do Sul, uma região geográfica e
cultural que não é o centro da modernidade/colonialidade. Ora, é necessário
lembrar que a mentalidade e a prática coloniais não se limitam à geografia e à
cultura, pois somos testemunhas oculares de inúmeras atitudes de colonialidade
interna e de racismos os mais violentos no continente sul-americano. A estudiosa
não situa a origem específica do dramaturgo, nem se ele pertence aos povos
originários dos quais ele recolheu as narrativas míticas, fato que considero se tratar
de um elemento fundamental para a análise feita pela pesquisadora. Também não
é explicado como se deu essa relação no seio das sociedades indígenas onde ele
ministrou aulas de teatro, assim como o contexto e as relações que foram
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estabelecidas com esses povos. Esses dados são essenciais para uma análise
acadêmica das relações entre cenas e culturas, que estamos falando de
decolonialidade, mas a autora do artigo não os leva em consideração.
Ao mesmo tempo, isso se traduz como uma forma de proteção que denota
uma maneira de não tocar nas feridas coloniais contidas no domínio artístico. É
muito mais palatável e aceitável se autointitular decolonial e apresentar exemplos
práticos nas cenas do teatro do que discutir as problemáticas de colonialidade
contidas nas práticas cênicas brasileiras ou sul-americanas.
Essas constatações evidentes demonstram os procedimentos bem
conhecidos nas esferas artística, acadêmica e intelectual brasileiras: a repetição
de fórmulas e de conceitos agenciados no país para a manutenção de privilégio e
poder sobre as culturas negras e indígenas. Nas artes cênicas, por exemplo, a
decolonialidade deixou de ser uma proposição teórico-reflexiva e, sobretudo, uma
prática que propõe uma mudança social para se tornar uma ferramenta artístico-
metodológica de abordagem autorreferenciada de práticas decoloniais. Se
atualmente não é polido ser diretamente filiado/a a uma herança eurocêntrica,
artistas universitários/as se utilizam de um mascaramento decolonial unindo, por
exemplo, Lecoq e Decroux ao candomblé e ao cavalo marinho pernambucano, os
bufões aos orixás, a
commedia dell’arte
às pombas-gira.
Não é preciso tanto esforço para perceber que a decolonialidade das artes
da cena no Brasil é uma ilusão, um blefe, de maneira ainda mais violenta por
trabalhar com sutilezas retóricas da academia e do universo artístico-intelectual,
que geralmente não atentam para os lugares de poder de quem detém os
privilégios históricos e seus “objetos” de pesquisa acadêmica. Penso que, antes de
se pretender decolonial, se deve construir uma prática reflexiva e analítica sobre
a maneira como as artes da cena vêm, secularmente, se relacionando de forma
altamente colonial com as culturas subalternizadas no país.
O que se pode ver é que as artes cênicas brasileiras se apropriaram de uma
retórica decolonial de modo superficial e imediatista, gerando uma sensação bem
próxima da ideia de democracia racial, na qual um discurso inventado com
aparência de verdade, mas bem perverso, no qual não há nenhuma problemática
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a ser tratada nesses diálogos interculturais, que existe uma troca benéfica e
harmoniosa entre elas as artes cênicas brasileiras e as culturas afro-brasileiras,
todas as duas decoloniais pela própria natureza, o que não condiz com a realidade
dos fatos.
As artes do cômico, das mímicas e das máscaras precisariam encarar com
firmeza a realidade colonial em seu próprio seio para poderem redimensionar as
posturas coloniais contidas em seus procedimentos artísticos e pedagógicos, o
que implicaria uma revisão profunda de seus ideários de liberdade criadora e,
principalmente, de seus diálogos interculturais. Talvez assim pudessem fugir do
ranço apropriador sobre as práticas culturais negrorreferenciadas mascaradas de
processos artístico-decoloniais.
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