1
Um exercício de escrita autoetnográfica em
“Como (des)construir um macho?”
André Bizerra
Para citar este artigo:
BIZERRA, André. Um exercício de escrita autoetnográfica
em “Como (des)construir um macho?”.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 4,
n. 53, dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e113
Este artigo passou pelo
Plagiarism Detection Software
| iThenticate
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Um exercício de escrita autoetnográfica em “Como (des)construir um macho?”
André Bizerra
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-14, dez. 2024
2
Um exercício de escrita autoetnográfica em “Como (des)construir um macho?” 1
André Bizerra2
Resumo
O objetivo deste artigo foi apresentar um exercício de escrita sobre as sensações
corporais e cognitivas que emergiram nas apresentações e na apreciação do registro
em vídeo (revisitado recentemente) do espetáculo de dança “COMO (DES)
CONSTRUIR UM MACHO?”. O manifesto "Homens Libertem-se" inspirou a criação do
espetáculo que tratava sobre a questão do machismo estrutural, e duas das nove
cenas foram escolhidas para a descrição. Este exercício dialogou com o gênero de
pesquisa denominado autoetnografia performativa e evidenciou o eu na escrita,
apresentando o corpo como fonte epistemológica de investigação e reconhecendo
a complexidade da cultura local que o autor está inserido.
Palavras-chave
: Autoetnografia. Dança. Métodos de pesquisa.
An autoethnographic writing exercise in “How to (de)construct a male?”
Abstract
The objective of this article was to present a writing exercise on the bodily and
cognitive sensations that emerged in the presentations and in the appreciation of
the video recording (recently revisited) of the dance show “HOW TO (DE)CONSTRUCT
A MALE?”. The manifesto "Homens Libertem-se" inspired the creation of the show
that addressed the issue of structural male chauvinism, and two of the nine scenes
were chosen for the description. This exercise dialogued with the research genre
called performative autoethnography and highlighted the self in the writing,
presenting body as an epistemological source of investigation and recognizing the
complexity of the local culture in which the author is inserted.
Keywords:
Autoethnography. Dance. Research methods.
Un ejercicio de escritura autoetnográfica en “Como (des)construir um macho?”
Resumen
El objetivo de este artículo fue presentar un ejercicio de escritura sobre las
sensaciones corporales y cognitivas que surgieron en las presentaciones y en la
apreciación de la grabación en video (recientemente revisada) del espectáculo de
danza “COMO (DES) CONSTRUIR UN MACHO?”. El manifiesto "Homens Libertem-se"
inspiró la creación del espectáculo que trataba la cuestión del machismo estructural,
y para la descripción se eligieron dos de las nueve escenas. Este ejercicio dialogó
con el género de investigación denominado autoetnografía performativa y destacó
el yo en la escritura, presentando el cuerpo como fuente epistemológica de
investigación y reconociendo la complejidad de la cultura local en la que se inserta
el autor.
Palabras clave
: Autoetnografía. Bailar. Métodos de investigación.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Gisele Calgaro, Linguista e Psicanalista.
Mestrado em Linguística Aplicada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. giselecalgaro@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/2451627059576603
2 Doutor em Ciências pelo Programa Mudança Social e Participação Política na Universidade de São Paulo
(USP). Mestrado e Bacharelado em Educação Física pela Universidade São Judas Tadeu. Educador-artista-
pesquisador. andre.bizerra@usp.br
http://lattes.cnpq.br/2019260915033094 https://orcid.org/0000-0002-2300-5475
Um exercício de escrita autoetnográfica em “Como (des)construir um macho?”
André Bizerra
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-14, dez. 2024
3
HOMENS LIBERTEM-SE
- Quero o fim da obrigatoriedade ao Serviço Militar.
- Posso broxar. O tamanho do meu pau também não importa.
- Posso falir. Quero ser amado por quem eu sou e não pelo que eu tenho.
- Posso ser frágil, sentir medo, pedir socorro, chorar e gritar quando a situação for difícil.
- Posso me cuidar, fazer o que eu quiser com a minha aparência e minha postura,
cuidar da minha saúde, do meu bem estar e fazer exame de próstata.
- Posso ser sensível e expressar minha sensibilidade como quiser.
- Posso ser cabeleireiro, decorador, artista, ator, bailarino; posso me maravilhar diante
da beleza de uma flor ou do voo dos pássaros.
- Posso recusar me embebedar e me drogar.
- Posso recusar brigar, ser violento, fazer parte de gangues ou de qualquer grupo
segregador.
- Posso não gostar de futebol ou de qualquer outro esporte.
- Posso manifestar carinho e dizer que amo meu amigo. Quero viver em uma sociedade
em que homens se amem sem que isso seja um tabu.
- Posso ser levado a sério sem ter que usar uma gravata; posso usar saia se eu me
sentir mais confortável.
- Posso trocar fraldas, dar a mamadeira e ficar em casa cuidando das crianças.
- Posso deixar meu filho se vestir e se expressar ludicamente como quiser e farei tudo
para incentivá-lo a demonstrar seus sentimentos, permitindo que ele chore quando
sentir vontade.
- Posso tratar minha filha com o mesmo grau de respeito, liberdade e incentivo com que
apoio meu filho.
- Posso admirar uma mulher que eu ache bela com respeito, sem gritaria na rua e me
aproximar dela com gentileza, sem forçá-la a nada.
- Eu sei que uma mulher está de saia ou qualquer outra roupa porque ela quer e
não porque está me convidando para nada.
- Eu sei que uma mulher que transa com quem quiser ou transa no primeiro encontro
Um exercício de escrita autoetnográfica em “Como (des)construir um macho?”
André Bizerra
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-14, dez. 2024
4
não é uma vadia, bem como o homem que o faz não é um garanhão; são só pessoas
que sentiram desejo.
- Eu nunca comi uma mulher; todas as vezes nós nos comemos.
- Eu não tenho medo de que tanto homens como mulheres tenham poder e ajo de
modo que nenhum poder anule o outro.
- Eu sei que o feminismo é uma luta pela igualdade entre todos os indivíduos.
- Eu nunca vou bater numa mulher, não aceito que nenhuma mulher me bata e me
posiciono para que nenhum homem ou mulher ache que tem o direito de fazer isso.
- Eu vou me libertar, não para oprimir mais as mulheres, mas para que todos possamos
ser livres juntos.
- Eu fui ensinado pela sociedade a ser machista e preciso de ajuda para enxergar caso
eu esteja oprimindo alguém com as minhas atitudes.
- Eu não quero mais ouvir a frase “seja homem!”, como se houvesse um modelo
fechado de homem a ser seguido. Não sou um rótulo qualquer.
- Quero poder ser eu mesmo, masculino, feminino, louco, são, frágil, forte, tudo e nada
disso. E me amarem e aceitarem, não por quem acham que eu deva ser, mas por quem
eu sou. E por tudo isso, não sou mais ou menos homem.
- Quero ser mais que um homem, quero ser humano!
- O machismo também me oprime e quero ser um homem livre!
Manifesto “Homens Libertem-se” (do movimento "Homens, Libertem-se / Men Get Free,
do Coletivo Mo[vi]mento MG/RJ em parceria com o grupo de teatro The Living Theatre, de
Nova York - 2014).
Este manifesto inspirou a criação do espetáculo “COMO (DES) CONSTRUIR
UM MACHO?” da BIZ cia. de dança. A pesquisa iniciou em 2015 e foi contemplada
no Programa de Ação Cultural em 2018, na categoria circulação de dança,
apresentando-se em doze cidades diferentes do estado de São Paulo. O
espetáculo traz em seu título uma dupla pergunta para se pensar: como construir
um homem não machista e como desconstruir o machismo estrutural? Não se
buscou respostas para essa questão, mas questionamentos para pensar junto às
Um exercício de escrita autoetnográfica em “Como (des)construir um macho?”
André Bizerra
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-14, dez. 2024
5
plateias.
A obra foi pensada a partir de alguns questionamentos, como: o quanto se
tem de natureza humana e o quanto se tem de construção social em ser homem?
O quanto o homem se autorreprime e oprime pelo machismo? O quanto não se
demonstra a afetividade pela sua simples condição de homem? Por que o
machismo ainda é perpetuado em nossa sociedade?
Eu, homem, cisgênero, branco e com toda consciência do lugar de privilégio
que ocupo na sociedade brasileira, ao me deparar com o manifesto, iniciei um
processo de questionamento sobre o que é ser homem, deslocando essa
inquietação para a elaboração de uma peça de Dança, junto a cia. A partir da
experiência como intérprete no espetáculo, pude me olhar, ouvir e trocar com os
outros artistas do grupo, além do encontro com as plateias, sobre esse “padrão”
de homem que imperava, até então, no meu modo de lidar com a masculinidade.
No processo de construção desse espetáculo, as sensações corporais e
cognitivas emergiram na concepção, nas apresentações e na apreciação do
registro em vídeo (revisitado recentemente). Desse modo, a proposta deste estudo
é apresentar um exercício de escrita que dialogue com o gênero de pesquisa
denominado autoetnografia.
A autoetnografia traz uma investigação que se encontra no eixo das pesquisas
qualitativas, em que se propõem desenvolver investigações de processos em sua
complexidade, na tentativa de vislumbrar um conhecimento acadêmico que
estabeleça relações estreitas e dinâmicas entre as experiências das pessoas
artistas, as sociedades e a Arte em si.
Caminho autoetnográfico
O conceito da autoetnografia está relacionado intimamente com a
experiência pessoal a ser revelada, para, a partir disso, reconhecer e ampliar
problematizações relacionadas com outros grupos de pessoas.
A autoetnografia é uma abordagem de pesquisa e escrita que busca
descrever e analisar sistematicamente a experiência pessoal, a fim de
compreender a experiência cultural. [...] Consequentemente, a
autoetnografia é uma das abordagens que reconhece e acomoda a
Um exercício de escrita autoetnográfica em “Como (des)construir um macho?”
André Bizerra
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-14, dez. 2024
6
subjetividade, a emocionalidade e a influência do pesquisador na
pesquisa, em vez de se esconder dessas questões ou assumir que elas
não existem (Ellis; Adams; Bochner, 2011, p. 1-2).
Por essa abordagem inter, multi, trans e indisciplinar é possível produzir
politicamente outros modos de conceber conhecimento dentro da academia,
reconhecendo a complexidade da cultura local que o pesquisador está inserido.
Portanto, os textos produzidos por esse percurso metodológico são,
irrevogavelmente, pessoais.
Denzin (2016) buscou, através da performance, uma forma de reconhecê-la
como um método crítico de investigação e como um modo de compreensão que
mistura lugares de emoção, memória e desejo para, assim, produzir dados através
de atos performativos do pesquisador; interpretações performativas que são
poéticas, dramáticas, críticas e imaginativas; uma autoetnografia que ele chama
de performativa.
À vista dessa empreitada, é possível verificar que o conceito desse tipo de
ferramenta foi sendo ampliado pelo mesmo autor, em 2018, constituindo-se como
um manifesto para (re)pensarmos a autoetnografia da performance e a política
cultural performativa crítica.
“A autoetnografia é performance, mas também: performativa, transgressiva,
resistência, dialógica, ética, política, pessoal, corporificada, colaborativa,
imaginativa, artística e criativa” (Denzin, 2018a, p. 08). Por esse caminho da
autoetnografia da performance, segundo o autor, torna-se visível o eu do escritor,
por meio de sua presença no mundo.
No campo das artes, especificamente da Dança, é possível notar esse modo
de pensar a escrita, na relação pesquisador e obra artística, sendo desenvolvida
por algumas pesquisadoras da área. Fortin (2009) questiona as possíveis
contribuições da etnografia e da autoetnografia para a produção de pesquisa na
prática artística. Esse percurso metodológico, de acordo com a autora, é
caracterizado por uma escrita que parte da camada mais sensível de si, ressoando
entre a experiência pessoal e as dimensões culturais, empreendendo uma coleta
de informações (dados autoetnográficos) dos percursos artísticos dos
Um exercício de escrita autoetnográfica em “Como (des)construir um macho?”
André Bizerra
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-14, dez. 2024
7
pesquisadores e pesquisadoras em formação.
Aqui no Brasil, a articulação entre a linguagem artística da Dança e a
Autoetnografia é vista nos textos de Dantas (2016) e Coccaro (2021). Ambas as
autoras descrevem suas sensações corporais com a dança, sendo uma na
experiência como intérprete e a outra como apreciadora.
A promoção de uma reflexão sobre a contribuição e os limites da etnografia
e da autoetnografia, para pesquisa em dança, é realizada por Dantas (2016), ao
caracterizar e advogar com um modo de investigar que está ancorado,
radicalmente, no corpo. Nesse sentido, a experiência com a autoetnografia
mostrou que o exercício da escrita se torna um dos principais modos de produção
da informação, uma vez que o olhar do pesquisador se confunde com o olhar do
artista, e não separa o fazer artístico do fazer investigativo. No caso da autora, a
escrita foi efetivamente o que favoreceu um relativo distanciamento e uma certa
compreensão das obras e de seus processos.
De uma experiência como observadora participante, nos estudos
etnográficos, passo para uma experiência de participante observadora,
nos estudos autoetnográficos. Em outras palavras, as sensações,
percepções, sentimentos e pensamentos decorrentes da minha presença
como artista envolvida na criação das obras investigadas por mim mesma
constituíram os principais dados a serem produzidos (Dantas, 2016, p.
177).
A escrita que a autora enfatiza é um ponto que traz características
autobiográficas pautadas na experiência e vai ao encontro do que Coccaro (2021)
aborda - uma escrita sensória sob o ponto de vista da experiência. Em sua
pesquisa, o compartilhamento de três (d)escritas autoetnográficas redigidas a
partir da apreciação de dois espetáculos e um vídeo de dança, provocando, assim,
relatos a começar de suas reações somáticas, que considera:
Ao (d)escrever e registrar minhas impressões no suporte escrito, sob o
ponto de vista de espectadora e participante ativa, formulei
metacomentários sobre os espetáculos com ênfase nas reações
somáticas acionadas por eles. A autoetnografia permitiu a criação de
metacomentários na relação entre análise de espetáculo (outro) e
descrição sensória (eu) sobre as experiências de audiência com proposta
de feedback e diálogo com as bailarinas-criadoras. Nos textos
compartilhados (d)escrever é ao mesmo tempo alteridade, percepção de
si e encontro subjetivo (Coccaro, 2021, p. 20).
Um exercício de escrita autoetnográfica em “Como (des)construir um macho?”
André Bizerra
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-14, dez. 2024
8
Ambas as autoras apresentam maneiras de escrever a experiência,
dialogando com a ferramenta autoetnográfica, visto que não um manual a ser
seguido (o que não faria sentido) para narrar sobre si. À essas investigações que
envolvem escritas pessoais, nas quais transitam entre os campos social, artístico
e educacional, proponho-me realizar aqui um exercício de escrita que também
partiu das sensações corporais de quem dança a própria dança.
***
Algumas cenas do espetáculo
Cena 1 A plateia entra no teatro. Eu e os cinco artistas da cia. estamos
em cena, espalhados pelo palco e colocados de frente para os ternos que se
encontram no chão. Vamos descendo em aproximadamente dez minutos até eles
(sem nenhuma música), no objetivo de vestir sem tirá-los da posição em que se
encontram desde o início. uma exigência muscular extrema das coxas e pernas,
na “desverticalização” lenta do corpo. Os músculos contraídos parecem ainda
mais rígidos, e a região lombar tenta se sustentar no tempo dilatado, querendo
relaxar. Finalmente chego até o terno e, delicadamente, com toda a dificuldade
para não tirar o terno da posição, vou entrando dentro dele, colocando um braço
e depois o outro, e finalmente o abotoou. Uma pausa. A música
Thunderstruck
interpretada por
2Cellos
inicia enquanto vou começando um novo processo de
contração muscular, agora com o fechamento dos dedos das mãos, cerrando os
punhos e contraindo o corpo todo. As torções dos braços e pernas dentro daquela
roupa vão alcançando grandes e pequenas dimensões corporais, durante a
tentativa de me levantar e verticalizar. A música estimula, além de mais contração
muscular, a aceleração do movimento cada vez mais e, nos intermináveis dois
minutos e treze segundos de música instrumental perturbadora, as costas colidem
contra o chão; os espasmos, forçadamente, são produzidos para trazer mais
incitação e continuar ainda mais veloz. A música pausa. Uma ruptura repentina do
movimento. Meu corpo vai à lona; cai; estatela-se; entrega-se totalmente ao chão.
A frase do manifesto: “O machismo também me oprime e quero ser um
homem livre!”, relaciona-se com a cena, e algumas leituras, em forma de
questionamento, foram suscitadas no processo coreográfico: Por que é tão difícil
Um exercício de escrita autoetnográfica em “Como (des)construir um macho?”
André Bizerra
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-14, dez. 2024
9
sustentar essa verticalidade? Por que tenho que ser esse homem “forte”? Por que
a sociedade ainda perpetua esse modelo?
Figura 1 - Frame do registro do espetáculo, gravado no Teatro Municipal de Santo André
em 01 jul. 2019. Fonte: acervo pessoal
Cena 8 – “Posso manifestar carinho e dizer que amo meu amigo. Quero viver
em uma sociedade em que homens se amem sem que isso seja um tabu.”
Um forte abraço entre dois homens acontece. Eu sou um deles. Ficamos por
um tempo abraçados e, a partir desse contato, algumas sensações corporais
ocorrem, trazendo incômodos e deleites. O abraço que trazia afago vai se tornando
rígido e violento, explodindo num movimento de afastamento. Nos olhamos e,
lentamente, nos aproximamos e apertamos as mãos. Percebo a cumplicidade e
lembro o que é aceito, corporalmente, entre dois homens que não se conhecem,
num contexto social como o nosso. Desde o toque firme das mãos, o tônus
muscular relaxa e voltamos a nos abraçar. Porém, logo nós nos empurramos e nos
separamos novamente. O dueto percorre por esses encontros e desencontros que
não são coreografados, mas improvisados, até que ocorre um beijo no rosto,
acompanhado de algumas manifestações vindas da plateia (silêncio ou risos).
Brandura e luta parecem se estabelecer ao longo desse dueto que, junto da intensa
música
Writing Poems
de
Ludovico Einaudi,
retrata as (im)possibilidades de
manifestarmos carinho e amor por pessoas do mesmo gênero, sem conotação
sexual. Essa é a penúltima cena, e talvez a mais emblemática do espetáculo.
Um exercício de escrita autoetnográfica em “Como (des)construir um macho?”
André Bizerra
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-14, dez. 2024
10
Figura 2 - Ensaio do espetáculo na Escola Livre de Dança de Santo André (ELD).
Foto: Leonardo Pavini
***
Auto:
autopercepção corporal.
Etno:
explorar a percepção da experiência artística de acordo com a temática do
espetáculo.
Grafia:
descrever as sensações corporais durante a ação performativa.
Nas duas cenas descritas, a estesia (percepção dos sentidos) vai contando
sobre meus sentimentos somaestéticos durante o ato prático de dança a examinar
sistematicamente o próprio corpo. Esses sentimentos, de acordo com a disciplina
filosófica de Shusterman (2012) - Somaestética, trabalham a favor de uma
percepção aprimorada sobre os sentimentos do corpo, ou melhor, do soma (corpo
vivo e sensível).
Ao analisar o exercício descritivo dos meus sentimentos somaestéticos no
decorrer do espetáculo, lembro-me com Shusterman (2011) que corpo, mente e
cultura são profundamente codependentes. As linguagens, os valores, as
Um exercício de escrita autoetnográfica em “Como (des)construir um macho?”
André Bizerra
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-14, dez. 2024
11
instituições sociais e os meios artísticos são formatados pela cultura que intervém
em nossos pensamentos, ações e modos de se expressar esteticamente.
Nessa direção, é possível associar a proposta interdisciplinar da Somaestética
com a Autoetnografia da Performance, pois, segundo Spry (2009), para um
autoetnógrafo performativo, a postura crítica do corpo executor constitui uma
práxis de evidência e análise, oferecendo nosso corpo performático como dados
brutos de uma história que também é cultural e crítica, portanto “o autoetnógrafo
performático trabalha nesses espaços dialógicos onde corpos, eus e emoções
interagem” (Denzin, 2018a, p. 32).
Observar essa peça que performa masculinidades dentro da cisheteronorma,
é tentar problematizar o quanto todos e todas nós somos vítimas de uma cultura
predominantemente machista. Se eu me declarar homem, branco, cis, artista da
dança e casado com uma mulher, mesmo sem que me conheçam, ainda prevê,
de acordo com Goffman (1988), uma “identidade social” formada por categorias e
atributos que dizem respeito a gênero, etnia, profissão e, talvez, sexualidade. No
conjunto dessas categorias, algumas pessoas, como já fizeram, classificariam-me
também como machista, estigmatizando-me.
O termo estigma, para Goffman (1988), é frequentemente usado para
referenciar um atributo depreciativo em relação à pessoa. Algumas plateias no fim
do espetáculo se manifestaram: - como vocês, com todo o lugar de privilégio que
ocupam numa sociedade como a nossa, ainda querem propor uma peça de dança
que trata da opressão do machismo também aos homens?
Ao escutar esse questionamento, percebi o incômodo de algumas pessoas
com relação à temática do espetáculo, principalmente vindo de artistas homens.
Estigma? O processo criativo, que possibilitou espaços para tematizar as nossas
subjetividades e expressá-las, tanto nos debates ao longo do processo de criação,
como nas apresentações e nos nossos contextos sociais, não foi bem recebido
por algumas pessoas que assistiram à peça. Acredito que a função da arte seja
exatamente essa (o incômodo, a dúvida, o espanto), na esperança de confrontar
as plateias para que pudessem se tornar críticas ao sistema opressor machista
também aos homens, por isso, talvez a peça tenha cumprido o seu papel.
Um exercício de escrita autoetnográfica em “Como (des)construir um macho?”
André Bizerra
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-14, dez. 2024
12
Eu poderia continuar a conjecturar com o questionamento que o espetáculo
se propôs a explorar, associando a autoetnografia com aportes teóricos que
ampliariam a compreensão das masculinidades através da performance artística.
No entanto, detenho-me aqui ao exercício de revelar conhecimento artístico-
científico, por meio da escrita que se aproxima da autoetnografia.
Esse modo descritivo pode também ser uma forma de pesquisar a relação
entre as artes e a sociedade, para que “inspirem investigações transformadoras e
por investigações que possam fornecer autoridade moral para mover as pessoas
a lutar e resistir à opressão” (Denzin, 2018b, p. 106).
Antes de adotarmos a autoetnografia como uma ferramenta metodológica
para ser utilizada em pesquisas artísticas de/sobre/com dança, é preciso, como
nos alerta Velardi (2018), estudarmos os modos como os métodos foram sendo
construídos, para então identificarmos se como pensamos e agimos está
intrinsecamente relacionado a eles. Ou seja, antes de nos filiarmos a um
determinado método, é necessário que se faça o exercício reflexivo sobre como
se pensa, para então pensar sobre a escolha do caminho de pesquisa.
As (d)escrições feitas por Coccaro (2021), retratam esse exercício de
apresentar a forma como foi realizado o percurso metodológico. A análise; o termo
escolhido; os conceitos a que foram recorridos; a relevância da sequência
cronológica em que foram redigidos os textos; a inclusão das reações somáticas
na escrita, são informações importantes para que entendamos como se deu a
forma de pensar da autora, e a escolha da autoetnografia como ferramenta
metodológica.
Antes de realizar este exercício de escrita a que me propus, foi preciso, como
fez Coccaro (2021), compreender a autoetnografia como um caminho descritivo
sensorial e contextualizar essa aproximação. Pensar com essa ferramenta
metodológica é divergir, como aponta Fortin (2009), do ponto de vista de alguns
pesquisadores sobre a validade do que seriam dados de pesquisa. Trata-se,
portanto, do que pode ser revelado como conhecimento encarnado de quem
experienciou o dançar.
Um exercício de escrita autoetnográfica em “Como (des)construir um macho?”
André Bizerra
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-14, dez. 2024
13
Algumas considerações
Por esse exercício autoetnográfico, foi possível mapear algumas reflexões
sobre determinadas sensações, as quais ficaram aparentes a partir da descrição
de algumas cenas do espetáculo. Não se trata de afirmar que é pela
autoetnografia que se faz pesquisas descritivas sobre si, mas, concordando com
Dantas (2016), é um caminho para que se possa refletir sobre pesquisas que são
radicalmente ancoradas no corpo e na experiência de quem dança.
A aproximação com o método da autoetnografia performativa foi uma
escolha por possibilitar contar, através das minhas reações somaestéticas, sobre
o que ocorreu no ato prático de dançar, e dos corpos, afetos e masculinidades
padronizados por uma cultura, como a cisheteronorma. Trata-se de performar
pela escrita e apresentar o corpo como fonte epistemológica de investigação.
As sensações corporais, descritas nessas cenas, buscaram expressar as
experiências vividas e reflexões suscitadas durante a execução do espetáculo.
Aqui, a experiência do dançar provocou epifanias sobre o que esses registros
reverberam ainda no meu corpo, conscientizando-me sobre o sistema opressor
do machismo, no qual fui também aprisionado.
Referências
COCCARO, Luciane Moreau. (D)escrições Autoetnográficas: performance em
diálogo com abordagens de pesquisa antropológica.
Revista Brasileira de Estudos
da Presença
, Porto Alegre, v. 11, n. 2, p. 01-24, 2021.
DANTAS, Monica Fagundes. Ancoradas no corpo, ancoradas na experiência:
etnografia, autoetnografia e estudos em dança.
Urdimento
Revista de Estudos
em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 27, p. 168-183, 2016.
DENZIN, Norman Kent.
Performance Autoethnography
: Critical Pedagogy and the
Politics of Culture. 2. ed. New York:
Routledge, 2018a.
DENZIN, Norman Kent. Investigação Qualitativa Crítica.
Sociedade, Contabilidade e
Gestão
, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p.105-119, 2018b.
DENZIN, Norman Kent. Re-leyendo Performance, Praxis y Política.
Investigación
Cualitativa
, University of Illinois Urbana Champaign, v. 1, n. 1, 335 p. 2016.
Um exercício de escrita autoetnográfica em “Como (des)construir um macho?”
André Bizerra
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-14, dez. 2024
14
ELLIS, Carolyn; ADAMS, Tony. E.; BOCHNER, Arthur. P. Autoethnography: An
Overview.
Fórum: Qualitative Social Research
, Florida, v. 12, n. 1, p. 1-18, jan. 2011.
FORTIN, Sylvie. Contribuições possíveis da etnografia e da auto-etnografia para a
pesquisa na prática artística.
Revista Cena
, Porto Alegre, n. 7, p. 77-88, 2009.
GOFFMAN, Erving.
Estigma:
Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada.
4. ed. Tradução: Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: LTC, 1988.
SHUSTERMAN, Richard.
Consciência Corporal.
São Paulo: É Realizações, 2012.
SHUSTERMAN, Richard. Pensar Através do Corpo, Educar para as Humanidades:
Um Apelo para a Soma-Estética.
Philia&Filia
, Rio Grande do Sul, v. 02, n. 2, p. 5-33,
2011.
SPRY, Tami. Bodies of/as Evidence in Autoethnography.
International Review of
Qualitative Research
, University of California, v. 01, n. 4, p. 583–590, 2009.
VELARDI, Marilia. Questionamentos e propostas sobre corpos de emergência:
reflexões sobre investigação artística radicalmente qualitativa.
Revista Moringa
Artes do Espetáculo
, Paraíba, v. 9, n. 1, p. 43-54, 2018.
Recebido em: 13/09/2024
Aprovado em: 23/11/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br