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Mi frontera vai nos atravessar vivência
intercultural e criação dramatúrgica
Júnia Cristina Pereira
Marcos Machado Chaves
Karla Neves
Rossandra Cabreira
Para citar este artigo:
PEREIRA, Júnia Cristina; CHAVES, Marcos Machado;
NEVES, Karla; CABREIRA, Rossandra. Mi frontera vai nos
atravessar – vivência intercultural e criação dramatúrgica.
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 1, n. 54, abr. 2025.
DOI: 10.5965/1414573101542025e117
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Júnia Cristina Pereira | Marcos Machado Chaves | Karla Neves | Rossandra Cabreira
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-27, abr. 2025
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Mi frontera vai nos atravessar vivência intercultural e criação dramatúrgica1
Júnia Cristina Pereira 2
Marcos Machado Chaves3
Karla Neves4
Rossandra Cabreira5
Resumo
Nesse artigo, será apresentado e discutido o processo de adaptação dramatúrgica que deu origem ao espetáculo
Era uma vez en la fronteira selvagem. Será descrita parte do processo de criação cênica, composto de vivências
interculturais, bem como de que forma o roteiro dramatúrgico adaptado incorporou essas vivências, transformadas
em texto, inclusive, por meio de exercícios de escrita individual e coletiva, que trouxeram as contribuições dos(as)
artistas da cena e de suas experiências com as línguas portuguesa, espanhola e indígena (kaiowá). Além disso, será
discutida também a metodologia de criação compartilhada na qual as propostas dramatúrgicas, cênicas e musicais
influenciaram-se mutuamente.
Palavras-chave: Interculturalidade. Criação dramatúrgica. Diversidade linguística. Processo de criação
compartilhada.
My border will cross us - intercultural experience and theatrical creation
Abstract
This work presents and discusses the dramaturgical adaptation process that gave rise to the play Era uma vez en
la fronteira selvagem. The article describes will be described part of the theatrical creation process, shaped by
intercultural experiences, and how the adapted theatrical script has incorporated these experiences, transformed
into text, including through independent and collaborative writing exercises, which brought to the play contributions
from theater artists and their experiences with Portuguese, Spanish and Indigenous languages (Kaiowá). Also
explored, the shared creation method will be explored, in which dramaturgical, scenic, and musical proposals have
influenced one another.
Keywords: Interculturality. Dramaturgical creation. Linguistic diversity. Shared creation process.
Mi frontera nos cruzará – vivencia intercultural y creación dramatúrgica
Resumen
En este artículo se presentará y discutirá el proceso de adaptación dramatúrgica que dio origen al espectáculo Era
uma vez en la fronteira selvagem. Se describirá parte del proceso de creación escénica, compuesto por vivencias
interculturales, y cómo el guion dramatúrgico adaptado incorporó esas vivencias, transformadas en texto, incluso,
mediante ejercicios de escritura individual y colectiva, que aportaron las contribuciones de los/las artistas de la
escena y sus experiencias con las lenguas portuguesa, española e indígena (kaiowá). Además, se discutirá también
la metodología de creación compartida en la cual las propuestas dramatúrgicas, escénicas y musicales se
influenciaron mutuamente.
Palabras clave: Interculturalidad. Creación dramatúrgica. Diversidad lingüística. Proceso de creación compartida.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Vitória Oliveira Lima. Bacharelado em Letras (português e
linguística).
2 Pós-doutorado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade Federal
da Bahia (UFBA). Mestrado em Artes pela UFMG. Graduação Licenciatura em Artes Cênicas e Bacharelado em Interpretação Teatral
pela UFMG. Professora Adjunta atuando no curso de Artes Cênicas da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
juniapereira@ufgd.edu.br
http://lattes.cnpq.br/0984467638051072 https://orcid.org/0000-0002-0007-3889
3 Pós-doutorado em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília (UnB). Doutorado em Teatro pela Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC). Mestrado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduação em Música pela
Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Professor Associado da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
marcoschaves@ufgd.edu.br
http://lattes.cnpq.br/3979750863757284 https://orcid.org/0000-0003-1202-4977
4 Mestrado em Letras pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Especialização em Interdisciplinaridade em Artes e
Ensino das Artes Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR). Graduação em Teatro pela UNESPAR. Fundadora e pesquisadora
do Coletivo CLanDesTino, integrante do Orendive Teatro Intercultural. Diretora teatral, atriz, performer e professora.
karlanevesartes@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0199295778203552 https://orcid.org/0009-0005-0737-6988
5 Doutoranda em Letras pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Mestrado em Educação e Territorialidade pela
UFGD. Graduação - Licenciatura Intercultural Indígena Teko Arandu pela Faculdade Intercultural Indígena pela UFGD. Professora
de kaiowá, atriz, dramaturga e realizadora audiovisual. rossandracabreiradasilva@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/5122825817590706 https://orcid.org/0000-0003-0870-1728
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Introdução
O Grupo Orendive6 Teatro Intercultural surgiu em Dourados, Mato Grosso do
Sul, em 2017, a partir da criação do espetáculo/performance Jaity Muro7. Esse
trabalho nasceu do desejo de uma criação artística intercultural e partiu das
experiências pessoais com a cidade de Dourados de duas artistas uma indígena,
da etnia kaiowá; e a outra não indígena – as quais trouxeram para a construção da
dramaturgia discursos advindos de diferentes vivências com o espaço urbano
douradense e com o espaço da Reserva Indígena de Dourados8. Nesse primeiro
trabalho do grupo, o processo de criação se iniciou com conversas, vivências e
exercícios de escrita envolvendo as artistas. Parte desses registros se
transformaram em texto dramatúrgico:
Rossandra Não sei se vocês prestaram atenção, mas a gente fica
muito calada. Quando a gente tá entre nós indígenas, a gente fala muito.
Muito mesmo, entre indígenas. Mas na cidade, tem medo de errar as
palavras, medo de não entender nada que vocês estão falando. É difícil
para nós fazer falar. Primeiro tem que ter confiança, pra depois falar. E
tem outra coisa, que a gente pensa na nossa língua. A gente pensa na
nossa língua, e para falar com vocês tem que fazer uma tradução, e
não fica a mesma coisa (Cabreira; Neves; Pereira, 2022, p. 43).
O trecho acima, que é parte da dramaturgia de Jaity Muro, foi construído a
partir do relato de Rossandra Cabreira, trazido durante vivências do processo de
criação. No processo de convívio intercultural que resultou no
espetáculo/performance, ainda que a diversidade linguística não fosse o tema
central do trabalho, as questões presentes no texto acima, relacionadas à
6 Palavra que na língua kaiowá significa “nós juntos”.
7 Jaity é uma palavra que na língua kaiowá significa “derrubar” ou “derrubemos”, assim, “Jaity Muro”, título de
um espetáculo teatral realizado em Dourados/MS desde 2017, pode ser traduzido por “derrubar o muro” ou
“derrubemos o muro”. Entre 2017 e 2023, o espetáculo realizou doze apresentações e/ou temporadas em
Mato Grosso do Sul, nas cidades de Dourados, Campo Grande, Ponta Porã e Bonito. O registro audiovisual
do espetáculo, realizado em 2018, pode ser acessado pelo link:
https://vimeo.com/manage/videos/270182157. A dramaturgia foi publicada pela Editora Javali em 2022.
8 Criada em 1917, sem respeitar o modo de vida tradicional e os territórios tradicionais dos povos originários, a
Reserva Indígena de Dourados representou um projeto estatal de confinamento dos povos indígenas da
região e a consequente liberação de território para a colonização. Atualmente, a Reserva encontra-se com
superlotação, quase que totalmente desmatada e cercada pela cidade, e com vários problemas de
infraestrutura, tais como falta de saneamento básico, dificuldade de acesso à água potável e a políticas
públicas como, por exemplo, as de cultura, saúde e transporte.
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dificuldade de falar em uma segunda língua e à imposição colonial do português
como língua oficial, permearam as conversas entre as artistas e compuseram a
dramaturgia como parte do que se configurou no espetáculo como “uma barreira,
um muro. Muros estão em toda parte... podem ser concretos, simbólicos,
agressivos, sutis, imateriais, concretos…” (Cabreira; Neves; Pereira, 2022, p. 29).
Assim, o trabalho buscou tematizar as fronteiras entre pessoas indígenas e não
indígenas em Dourados. Outra experiência com o preconceito linguístico foi
mencionada no roteiro de Jaity Muro:
Júnia [...] Então eu disse assim: “Professora, eu não entendi direito como
é pra mim fazer...” A professora não deixou eu terminar a frase. Ela disse:
“Pra mim fazer não! Você não é índia! Pra eu fazer! Mim não faz nada!
Você está na Universidade!” Todos me olharam, eu fiquei vermelha de
vergonha e até esqueci o que ia perguntar... (Cabreira; Neves; Pereira,
2022, p. 42-43).
O relato acima, também parte da dramaturgia, surgiu a partir da memória de
Júnia Pereira. Enquanto Rossandra, indígena, vive a dificuldade de ter que se
expressar em uma segunda língua, em seu próprio país; Júnia, não indígena,
mesmo tendo o português como idioma materno, traz memórias do uso de uma
variação linguística desprestigiada. As vivências não são equivalentes, mas
guardam relação na medida em que as variações linguísticas do português
brasileiro estão associadas, muitas vezes, à imposição do português como língua
oficial e às transformações resultantes do uso da língua por diferentes grupos
étnicos e sociais.
Em Dourados, uma diversidade linguística muito grande. Além de muitas
variações do português, a presença muito forte do espanhol e da língua kaiowá.
O espanhol se faz presente pela proximidade com o Paraguai, pois Dourados está
situada a cerca de 120 km da cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero, que tem
como idiomas oficiais o espanhol e o guarani. Além disso, entre 2018 e 2024,
Dourados recebeu cerca de quatro mil migrantes e refugiados venezuelanos, tendo
sido um dos maiores destinos de venezuelanos no Brasil nos últimos anos.
Em relação à língua kaiowá, além da proximidade com o guarani paraguaio
devido à fronteira com Pedro Juan Caballero, temos a Reserva Indígena de
Dourados, que conta com cerca de dezessete mil pessoas, entre guaranis, kaiowás
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e terenas, na qual predominam os idiomas guarani e kaiowá. Na verdade, a cidade
de Dourados foi construída em terras indígenas, e hoje a cidade está avançando
cada vez mais sobre os limites da Reserva. Os muros já fazem parte da paisagem,
muros que são construídos em volta da cidade, com medo de que os indígenas
retomem a terra que lhes pertence. Esses muros, que inspiraram nosso trabalho
Jaity Muro, também nos inspiram a falar sobre fronteira, pois os muros são as
fronteiras do tekoha9 indígena.
Toda a diversidade linguística da população de Dourados, em lugar de ser
valorizada pela sociedade local, muitas vezes é alvo de preconceito, e as pessoas
falantes de espanhol, guarani e kaiowá acabam encontrando inúmeras barreiras
no acesso a políticas públicas e a direitos básicos. A escola, que deveria promover
o respeito e a valorização da diversidade, acaba reproduzindo o preconceito
linguístico. De acordo com Marcos Bagno, existe o que se pode chamar de círculo
vicioso do preconceito linguístico (Bagno,1999), formado a partir da união da
gramática tradicional com os métodos tradicionais de ensino e os livros didáticos,
além dos comandos paragramaticais, que seriam os manuais de redação, o
jornalismo e a mídia como um todo.
Bagno centra sua análise no preconceito às variações linguísticas da língua
portuguesa e aos seus falantes, cujas culturas são desprezadas no ambiente
escolar e social. Mas, se isso acontece com as variações, mesmo quando os(as)
falantes tem o português como língua materna, em grau maior ainda temos o
preconceito com aqueles e aquelas, indígenas e migrantes, cujas línguas maternas
não são o português e que, além de não terem a sua cultura e os seus
conhecimentos valorizados nas escolas brasileiras, são obrigados(as) a se
expressarem no ambiente escolar e social apenas em uma segunda língua, à qual
precisam aprender “à força”, pois a escola muitas vezes não considera as
necessidades desse público.
No caso das escolas indígenas, apesar da Constituição de 1988 assegurar o
direito à educação na língua materna, isso não está totalmente efetivado, pois
temos um histórico de desvalorização das línguas indígenas nas comunidades,
9 Em língua kaiowá: lugar onde se vive, território tradicional.
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que, antes da implantação da educação escolar indígena, eram proibidas de falar
o idioma materno na escola. Atualmente, na Reserva Indígena de Dourados,
existem sete escolas municipais e uma escola estadual de Educação Básica, e em
todas a disciplina de língua materna e cultura indígena, além da disciplina de
Q.I.B. Questão Indígena Brasileira. muitos(as) estudantes falantes da língua
materna, e a escola busca valorizar isso, dando prioridade para que apresentem
seus trabalhos em guarani e/ou kaiowá. Entretanto, é preciso considerar o
preconceito com a língua e a cultura indígena que vigora no meio social como um
todo, impactando diretamente nas práticas educacionais e sociais vivenciadas
pelos(as) estudantes.
Pensando em intervir nessa realidade social, e dando continuidade à pesquisa
em interculturalidade e criação artística iniciada com Jaity Muro, o grupo Orendive
Teatro Intercultural realizou, em 2023, a montagem do segundo espetáculo do
grupo: Era uma vez en la fronteira selvagem10, dessa vez voltado ao público
infantojuvenil e partindo de uma obra literária homônima, do escritor Douglas
Diegues11. Tal obra foi escolhida como ponto de partida para a criação por ser
escrita em portunhol selvagem, espécie de interlíngua formada pela mistura do
português brasileiro com o espanhol paraguaio e variações do guarani, além da
influência de outras línguas. O portunhol selvagem, sem forma e norma gramatical
fixas, é a língua na qual Diegues constrói sua literatura e que nos interessou pelo
seu caráter lúdico e provocativo, mas também por refletir, com originalidade e
inventividade, a diversidade cultural da fronteira sul-mato-grossense. Nas palavras
10 Ficha do espetáculo: Direção: Karla Neves | Elenco: Guilherme Godoy, Jadi Ribeiro, Maria Serafim, Odulio
Gonçalves e Rossandra Cabreira | LIBRAS: Laryssa Durigon | Texto Original: Douglas Diegues | Adaptação
dramatúrgica: Júnia Pereira | Preparação Corporal: Denise Ortiz | Trilha Sonora Original, Preparação Vocal e
Musical: Marcos Machado Chaves | Cenografia: Gil Esper e Raique Moura | Figurino: DesordemLab (Áurea Eu)
| Maquiagem: Karla Neves | Iluminação: Gil Esper, Natali Portela e Rodrigo Bento | Registro audiovisual: Ricardo
Zanella | Fotografia: Raique Moura | Produção: Júnia Pereira. O trabalho teve o patrocínio do Fundo de
Investimentos Culturais do Estado de Mato Grosso do Sul, estreou em Ponta Porã em setembro de 2023 e
também apresentou em Dourados, Corum e Campo Grande. Um registro audiovisual do espetáculo
(outubro/2023) pode ser acessado pelo link: https://youtu.be/nEvEAKIPjEE.
11 Douglas Diegues (1965), filho de pai brasileiro e mãe paraguaia, passou boa parte de sua vida em Ponta
Porã/MS, na fronteira com a cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero. Um dos principais escritores e
divulgadores do “portunhol selvagem”, é autor de diversos livros de poesia, tais como: Gusto Andar
Desnudo por Estas Selvas (Travessa dos Editores; Curitiba, PR, 2003); Uma Flor na Solapa da Miséria (Eloisa
Cartonera, Buenos Aires, 2005); El Astronauta Paraguayo, (Yiyi Jambo, Asunción, 2007); La Camaleoa, (Yiyi
Jambo, Asunción, 2008); DD Erotikon & Salbaje, (Felicita Cartonera, Asunción, 2009); Sonetokuera en aleman,
portuniol salvaje y guarani (Mburukujarami kartonera, Luquelandia, Paraguay, 2009). Era uma vez en la
fronteira selvagem é o seu primeiro e único livro para crianças.
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do autor:
El portunhol salvaje es la língua falada en la frontera du Brasil com el
Paraguai por la gente simples que increíblemente sobrevive de teimosia,
brisa, amor al imposible, mandioca, vento y carne de vaca. [...] Es la lengua
de mia mãe y de la mãe de mis amigos de infancia. Es la lengua de mis
abuelos (Diegues, 2016, p. 10).
Nosso objetivo, ao propor a adaptação de uma obra escrita em portunhol
selvagem para a linguagem teatral e sua divulgação ao público infantojuvenil, foi
contribuir para que crianças e jovens sul-mato-grossenses se sentissem
representados ao ver o seu falar em cena, ressignificando positivamente estigmas
relacionados à diversidade linguística, presentes no ambiente social e escolar.
Para realizar a adaptação dramatúrgica, optamos por partir da diversidade
linguística e cultural presente no próprio grupo, de forma a construir uma
dramaturgia que não somente transpusesse a obra literária para a cena, mas que
expressasse as vivências do grupo de artistas, em sua diversidade étnica/racial,
linguística e cultural, por meio de um processo de criação cênica compartilhada,
no qual todo o grupo participou e contribuiu, junto a direção, a dramaturgia e a
todos(as) os(as) outros(as) profissionais.
Processo de encenação, construção musical e adaptação dramatúrgica
de oficinas, atividades e (con)vivências à dramaturgia
Em nosso processo de criação, mesmo partindo de um texto existente, a
singularidade, as referências culturais e o lugar de fala de cada artista foram
elementos considerados na criação do espetáculo, pois nos interessou justamente
essa diversidade cultural e linguística do grupo de artistas. Apesar de ser o segundo
trabalho do grupo, tivemos nesse projeto uma equipe muito maior, então era a
primeira vez que iríamos trabalhar todos(as) juntos(as). Um grupo diverso, com
diferentes bagagens e vivências culturais, sendo duas artistas: Rossandra Cabreira
e Jadi Ribeiro, indígenas fluentes na língua kaiowá e um artista: Odúlio Gonçalves,
fluente em espanhol e em guarani paraguaio.
Desde a concepção do projeto de montagem do espetáculo, a diretora Karla
Neves propôs, em seu plano de encenação, incorporar todos os elementos de
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construção do espetáculo nos encontros e ensaios, como a construção da
dramaturgia, preparação corporal, preparação vocal, leituras, discussões sobre
elementos da obra literária, experimentações, jogos dramáticos, jogos teatrais,
improvisações, levantamento de ideias, memórias, imagens, referências,
possibilidades para cenário, figurino, iluminação, sonoplastia e maquiagem. Assim,
desde a origem, a encenação foi pensada de forma integrada a todas as etapas
criativas, e em diálogo com todos(as) os(as) outros(as) profissionais, inclusive na
construção de dramaturgia.
A encenação, por meio desses elementos de pesquisa e criação escolhidos,
e, em diálogo com os(as) outros(as) profissionais envolvidos(as), possibilitou
construir diversas narrativas: a narrativa corporal, narrativa sonora e narrativas
sensoriais, durante o processo. Como alerta Boal, para as possibilidades da
diversidade estética:
Paralelamente, temos que repudiar a ideia de que com palavras se
pensa, pois que pensamos também com sons e imagens, ainda que de
forma subliminal, inconsciente, profunda! temos que repudiar a ideia de
que existe uma estética, soberana, a qual estamos submetidos tal
atitude seria nossa rendição ao Pensamento Único, à ditadura da palavra
que como sabemos, é ambígua (Boal, 2009, p.16).
A mistura das línguas: português, espanhol, guarani kaiowá, o portunhol
selvagem, os animais e a fronteira apresentados na obra literária foram os pontos
de interesse em comum entre o grupo na construção dessas narrativas. A imagem,
o som e a palavra, propostos na metodologia do Teatro do Oprimido e
incorporados pela direção, permearam os ensaios, por meio de exercícios, jogos e
experimentações, possibilitando que a dramaturga Júnia Pereira obtivesse, em seu
processo criativo com o grupo, contato com materiais de dramaturgia da cena:
partituras corporais, sonorizações sem palavra, experimentações rítmicas e
musicais que se tornaram elementos para a construção do roteiro dramatúrgico.
A direção trouxe propostas específicas advindas de sua pesquisa e do seu
plano de encenação, tais como: pensar a encenação com público em todos os
lugares, em formato de arena; possibilitar que a atuação tenha uma interação
direta com o público, mas uma interação que não exponha o público ao
constrangimento; a narração em cena. Tais propostas estruturaram
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experimentações realizadas com o elenco, como, por exemplo, improvisações que
utilizaram a narração ou exercícios de contação de história. Assim, o elenco foi
experimentando estar em cena como personagem, artista e narrador, além de
interagir com o público. Essa concepção de atuação e de relação com a plateia
partiu da direção e alimentou a dramaturgia, que, depois, a partir da primeira
proposta de roteiro, alimentou a direção. Essa troca aconteceu durante todo o
processo.
Em relação ao processo de criação musical, o compositor e preparador
musical Marcos Machado Chaves tomou as experiências sonoras do coletivo de
artistas como ponto de partida. Sabemos que algumas pessoas compositoras
defendem, de forma classista e/ou preconceituosa, que “a música para ser
agradável precisa ter notas musicais, se não tiver dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó,
automaticamente [não é música]”12 (Canal GNT, 2019). Desse pensamento,
afastamo-nos com liberdade para potencializar criações que valorizam o som em
vez do tom, em diálogo com Makis Solomos (2015) em suas pontuações a respeito
da emergência do som na contemporaneidade: trata-se “de redefinir a música e
de pensá-la, mais como som organizado [...] do que como combinatória de notas”
(Solomos, 2015, p. 55). Assim, poeticamente, podemos dizer que, embora, muito
tempero nas vivências interculturais, nesse processo de criação, não desejamos
apenas vivenciar as notas musicais temperadas13 ao menos não temperadas em
formatações coloniais, ou seja, não enquadradas em alturas específicas e tomadas
como referências ou padrões fundamentais a serem reproduzidos.
O processo de criação musical mergulhou, sobretudo, nos trânsitos diversos
do elenco conectados aos variados conhecimentos musicais formais, não formais
e informais do grupo, em contato próximo com a diretora, que também participava
dos exercícios que visavam descobrir materiais sonoros, e com a dramaturga, que
propôs momentos cênicos na dramaturgia para explorarmos canções, bem como
sugeriu letras em portunhol selvagem valorizando as pessoalidades do coletivo
para trabalharmos, editarmos, acrescermos jogos e novas possibilidades a partir
12 Pontuação elaborada por um compositor branco formado em música clássica que afirma que “O funk torna
as pessoas mais imbecis” (2019), retirada de vídeo em colaboração do Canal GNT com o Quebrando o Tabu
na série “Mude minha ideia”.
13 Na música, o Sistema Temperado de afinação divide uma oitava em doze semitons.
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das vivências da preparação musical e vocal da montagem cênica. A presença de
duas atrizes kaiowá e de um ator brasiguaio otimizou nossos desenvolvimentos
das letras multilíngues das canções.
De acordo com Pereira (2018), existe uma relação entre os processos de
criação dramatúrgica compartilhada e a democratização da cena teatral, uma vez
que houve, a partir do surgimento de metodologias de criação coletiva e
colaborativa, uma mudança no status da dramaturgia:
meu lugar como dramaturga não é o lugar histórico do dramaturgo cujo
texto precede, origina ou mesmo justifica o projeto de montagem, mas,
ao contrário, foi somente graças à desconstrução dessas prerrogativas de
autor e da democratização da autoria no contexto do teatro de grupo que
minha escrita se fez possível. [...] o lugar do autor na dramaturgia clássica
é sobretudo um lugar masculino e eurocêntrico, não somente por ser
historicamente ocupado por homens, mas em especial pela suposição de
um discurso “universal”, ao passo que meu lugar como autora foi possível
a partir do momento em que atrizes puderam participar da autoria de
espetáculos (Pereira, 2018, p. 135).
Assim, a criação dramatúrgica compartilhada não diz respeito apenas a uma
metodologia de criação artística, mas também a princípios éticos de organização
do trabalho em grupo, tais como a dissolução das hierarquias, a horizontalidade
das relações criativas, a interdisciplinaridade e a valorização das diversas
individualidades e subjetividades.
Tais premissas estiveram presentes desde o primeiro encontro do grupo, no
qual fizemos uma roda de conversa motivada pela pergunta: qual é sua fronteira
ou qual sua experiência com fronteiras? Já nesse primeiro encontro, cada pessoa
elaborou diferentes percepções relacionadas à ideia de fronteira, como sensação
de não pertencimento ou não reconhecimento, dificuldade na interação social e
dificuldade de acesso a direitos, políticas e espaços. Iniciamos ali a construção do
nosso imaginário sobre fronteira, que iria se aprofundar nos meses seguintes.
Os encontros seguiram, com o cronograma de ensaios divididos em duas
fases, sendo a primeira fase destinada à pesquisa e à experimentação cênica,
musical e dramatúrgica, e, a segunda fase, destinada ao aprofundamento e
desenvolvimento do material criado, incluindo uma primeira proposta de roteiro
dramatúrgico. Na primeira fase, realizada entre janeiro e março de 2023, iniciamos
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a preparação corporal, vocal e musical do elenco, jogos de integração,
experimentações e improvisações. Diretora, preparadora corporal, preparador
vocal e musical e dramaturga revezaram-se na condução das atividades, que se
influenciaram mutuamente.
O trabalho vocal e musical partiu das trajetórias pessoais do elenco,
acrescentou instrumentos musicais variados de acordo com o desejo musical do
coletivo, experimentou percussões diversas e harmonias que partiam de
vocalidades. Duas atrizes trouxeram suas vivências com instrumentos de cordas;
também foram explorados jogos tonais pois a emergência do som não implica
a negação do sistema tonal, mas a não centralização e/ou hierarquia das notas
musicais que pode existir em nossa sociedade, em contato com teorias musicais
de tradição europeia. Nesse sentido, reivindicamos a liberdade criativa de deixar a
afinação vocal “padrão” em segundo plano, reforçando a poética do cantar com o
corpo todo em um grande jogo cênico-musical.
A direção do espetáculo foi fundamental no processo de criação
compartilhada, pois, por fazer parte de todos os processos, era possível a ela
acompanhar o surgimento do material cênico como um todo e propor jogos e
exercícios que pudessem contribuir para a construção de narrativas que
agregassem ao material dramatúrgico. Por exemplo, por estar presente junto a
todos(as) os(as) profissionais, a direção podia utilizar elementos da preparação
corporal para criar partituras corporais, com ou sem texto, acerca de como os
animais se movimentam em grupo, e levar esses elementos para a construção de
cena, como aconteceu na criação com o elenco fazendo experimentos com cenas
de “matilha”. Tais criações, propostas pela direção a partir do trabalho de
preparação corporal de Denise Ortiz, alimentaram a criação dramatúrgica e estão
presentes no roteiro, na concepção e na estruturação das cenas.
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Figura 1 - Registro da “matilha”, na cena 04. Foto: Raique Moura.
Arquivo do grupo Orendive Teatro Intercultural.
Nesta figura, é possível visualizar um momento de uma cena criada, entre
outros estímulos, a partir de um exercício de “matilha” trazido pela direção com
base no trabalho da preparação corporal. O compartilhamento da criação entre
os(as) diferentes profissionais proporcionou que o roteiro dramatúrgico
incorporasse tais propostas, como vemos no trecho abaixo:
Odúlio/Cachorro: Yo voy contar una história de espelho que aconteció na
fronteira selvagem. Nessa história eu sou um jagua, el catchorrito Fubá
que encontra o espejo de um parque abandonado.
Rossandra/Narradora: El catchorro Fubá era só mais um jagua piru de la
fronteira. Jaguapiru é um cachorro magro.
Todes/Matilha: AUUUU
Maria/Narradora: Ele uivava para a lua, porque não tem lua tão bonita
como a lua da fronteira
Todes/Matilha: AUUUU
Odúlio/Cachorro: Yo uivava também para avisar aos míos colegas aonde
tem restos de comida en la calle: EJUUU14
Todes/Matilha: AUUUU (Pereira, 2023).
Em alguns momentos, a dramaturga conduziu atividades específicas,
14 Em língua kaiowá: vem/venha.
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destinadas a favorecer e estimular a contribuição das diferentes subjetividades no
roteiro dramatúrgico. Inspirados em ateliês de dramaturgia (Nicolete, 2013 e Souza,
2017), buscamos trazer para o grupo de artistas práticas de escrita em grupo,
integradas aos jogos propostos pela direção e pela preparação corporal e vocal.
Como disparadores para a escrita, em um primeiro momento, em lugar de partir
da obra original a ser adaptada, a dramaturga trouxe para o grupo algumas
canções15, as quais traziam referências culturais da América Latina e do Mato
Grosso do Sul. O contato com as músicas se deu, primeiramente, a partir do
movimento corporal: foi pedido ao grupo que se movimentasse com uma dança
pessoal livre a partir dos estímulos musicais, e depois é que foi dada maior
atenção à letra e ao contexto das obras. Em seguida, cada participante escolheu
a música de que mais gostou e, a partir dessas escolhas, foram propostas duas
atividades: 1) prática de desenho: foi solicitado que desenhassem o espaço e as
pessoas referentes àquela canção; 2) prática de escrita: cada participante escreveu
a história das pessoas e personagens desenhados por outro(a) participante.
Essas primeiras atividades resultaram nas seguintes imagens: fronteira entre
aldeia indígena e fazenda agropecuária; estrada que some no horizonte, sendo
contemplada por crianças que vivem na beira da estrada; fronteira entre Brasil e
Paraguai; águas de um rio vindas da boca de uma mulher; pessoa sozinha
sonhando com música. nas histórias escritas, foram esboçados os seguintes
personagens: criança indígena Pio, neta de rezadora; duas crianças indígenas:
Kunhataí e Key; senhor Tortuga; Borbulha, uma bolha de ar do virtuoso rio Paraná;
e o Grande Sonhador que se sentia pequeno. De todo esse material produzido,
alguns elementos permaneceram no processo e foram se desenvolvendo, dando
origem, por exemplo, à personagem Haie, uma criança indígena, que se tornou
personagem do espetáculo e que não consta da obra original que foi adaptada.
Desses desenhos, também permaneceu a imagem de uma longa estrada, um tape
puku16, que acabou se tornando o cenário inicial do espetáculo e que também não
consta da obra original. Peteí tape: uma estrada” é uma frase que abre a primeira
15 As canções utilizadas foram: Canción con Todos (Mercedes Sosa), Clandestino (Manu Chao), Koanguagua
(Bro Mcs) e Cunhataiporã (Tetê Spíndola).
16 Na língua kaiowá, tape puku significa caminho comprido.
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fala do espetáculo e que foi retirada desse primeiro exercício de escrita.
Para além dessas contribuições específicas na dramaturgia final do
espetáculo, esse exercício foi muito importante para estimular a criatividade do
grupo e abrir espaço para a expressão e o compartilhamento das diferentes
sensibilidades, de forma a iniciar a construção de um imaginário coletivo e
estabelecer os princípios da criação compartilhada como base para a criação
dramatúrgica.
Concomitantemente, junto a outros(as) profissionais, o grupo seguia
pesquisando sobre suas fronteiras geográficas, físicas e sensíveis. A partir de uma
proposta da diretora, cada pessoa do elenco trouxe um objeto ao qual atribuía um
valor afetivo; então, o grupo conversou sobre a história de cada objeto, trazendo à
tona muitas memórias. Os objetos não foram para a cena, mas possibilitaram
acessar os sentimentos do grupo, e, a partir da relação com o objeto, foram
construídas partituras corporais de movimentos e ritmo, gestos que abrangem
esses sentimentos e sua relação com a fronteira sensível pessoal. A fronteira foi
uma forma de expressar o sentimento que cada um sentia, naquele momento, de
viver a personagem e de atravessar a barreira de preconceito, de luta e de dor. A
fronteira transpassou a nossa alma, nosso ser e viver.
O trabalho musical seguiu com exercícios rítmicos propostos para as cenas
e para a criação sonora/musical, explorando “o pulsar da música, a métrica e a
marcação, sendo esta uma forte característica dos cantos kaiowá e guarani,
geralmente sonorizados pelos bastões de ritmo de taquara e pelas maracas”
(Chaves; Chamorro, 2019, p. 118). Dessa forma, incorporamos o taquarusu17 e a
maraka18 em nossas músicas e, em liberdade criativa presente nas influências
musicais de nossa fronteira geográfica, somamos ukuleles, violão, acordeom,
metalofone, chocalhos, queixada, organizando um repertório musical da peça
teatral, ou trilha sonora teatral, inédito, conectado à dramaturgia e que valoriza
reverberações que perpassam o desejo sonoro do coletivo de artistas em poéticas
musicais.
17 “Feito de uma haste do bambú giganteum que produz um som abafado de tambor” (Chamorro, 2015, p. 142).
18 “Pequena cabaça encabada em uma varinha curta com sementes duras no interior” (Chamorro, 2015, p. 142).
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A interação com a cultura indígena não perpassou a utilização de
instrumentos tradicionais da música kaiowá, mas também trouxe elementos da
cosmopercepção kaiowá, como o personagem ka’i jara19, uma divindade que foi
incluída na dramaturgia. Na cena final, também foi feita menção ao sol e à lua: “La
luna, a lua, jacy é redonda… El soleil, o sol, es amarillo como la pakowá20” (Pereira,
2023, p. 20) sendo o mito do sol e da lua um mito fundante da cultura tradicional
kaiowá. Tais elementos surgiram de forma espontânea, trazidos pelas artistas
kaiowá que fazem parte do grupo. As personagens Sy21 e Haie, indígenas, também
surgiram dessa troca intercultural com as artistas. Sy é contadora de histórias,
uma prática da cultura kaiowá e também da atriz que a interpreta.
Também foram propostos exercícios a partir da obra a ser adaptada. O texto
original, de Douglas Diegues, traz sete histórias independentes22, todas
protagonizadas por animais. O principal objetivo e desafio da adaptação
dramatúrgica era encontrar uma ligação entre as diferentes histórias, o que, desde
o início, intuímos que seria dado pelo contexto de narração das histórias.
Precisávamos, então, criar um contexto narrativo para, a partir dele, compartilhar
as histórias com o público. Desejamos que essa contextualização fosse
determinada pelo lugar de fala do grupo e que refletisse as vivências do processo
criativo.
Assim, ao ler as histórias da obra original com os(as) artistas, nunca
procuramos nos aprofundar no contexto original de produção, nas motivações do
autor, ou no que, supostamente, o autor “queria dizer”. Ao contrário, inspirados no
procedimento de apreciação do ateliê de dramaturgia (Nicolete, 2013), no qual a
leitura sensorial de obras de artes visuais é um disparador para a escrita,
orientamos, na leitura coletiva que fizemos de cada história, que cada pessoa
registrasse suas impressões e percepções sensoriais, tais como imagens, cheiros,
cores, texturas, etc., provocadas pela leitura da história; além de que registrassem
19 Na língua kaiowá: dono-protetor(jara) dos macacos(ka’i), espécie de divindade. Na cosmopercepção kaiowá,
todas as coisas que existem têm seu dono-protetor.
20 Na língua kaiowá: banana.
21 Na língua kaiowá: mãe.
22 As histórias são intituladas: El Sapo de All Star; La Casa de Los Espejos; Los Macacos Voladores; Cine
Guaraní; Macacos Paraguayos; La Danza del Tamanduá; e La Forma de La Banana.
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memórias, imagens e informações que vieram à mente durante a leitura.
Então, era feito o compartilhamento dos registros, gerando um banco de
informações coletivo acerca de cada história, advindo da apreciação individual.
Posteriormente, cada pessoa foi convidada a apresentar ao grupo uma cena,
partindo desse imaginário coletivo levantado. Tudo isso foi material para produção
da proposta de adaptação, e diversos trechos de falas produzidas pelo elenco
nessas cenas foram aproveitados na redação da dramaturgia, ainda que com
modificações.
Antes de proceder à redação da primeira proposta dramatúrgica, pedimos ao
elenco que nos escrevesse uma lista de três desejos, sendo: 1) o que eu gostaria
de fazer em cada história; 2) o que eu gostaria de fazer em cena; 3) o que eu
gostaria que outra pessoa do elenco fizesse. Essa lista também foi considerada na
elaboração da adaptação dramatúrgica. Para a atriz Maria Serafim, receber a
proposta de roteiro com elementos advindos das escritas, vivências e desejos do
grupo foi algo que surpreendeu positivamente:
foi muito gostoso ver que [o roteiro dramatúrgico] foi criado através das
nossas vibes, assim, sabe, baseado na maior parte das nossas vivências
também e baseado também no livro, claro, só que a gente trouxe muito
da gente pro roteiro e isso é muito gostoso, tem a nossa verdade, tem a
nossa vivência, e isso [...] me aqueceu o coração porque foi algo novo pra
mim [...] você incluiu muito da gente no roteiro e a nossa infância, você
trouxe isso de volta pra gente, é um negócio muito louco, desde o começo
do trabalho até aqui, eu vejo que eu me identifico muito com algumas
coisas, e me vejo ali naquele roteiro [...] desde criança eu sempre quis ser
Power Ranger e, mesmo não tendo no livro isso veio pro roteiro e é uma
realização de sonho (Serafim, 2023).
É interessante destacar que, em todo o processo, fomos construindo a nossa
ideia de fronteira, que começou a existir antes das palavras do roteiro
dramatúrgico, em elementos como imagens, sons da fronteira, a fronteira sensível,
etc. As palavras que atravessam essas fronteiras apareceram na construção de
elementos de composição cênica de forma progressiva, e as palavras registradas
no roteiro dramatúrgico são apenas uma parte registrável do que constitui a cena,
não a parte principal ou única. Trazemos aqui uma reflexão de Boal sobre a
necessidade de uma estética que atravesse as múltiplas narrativas.
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Arte não é adorno, palavra não é absoluta, som não é ruído, e as imagens
falam, convencem e dominam. A estes três poderes Palavra, Som e
Imagem não podemos renunciar, sob pena de renunciarmos à nossa
condição humana (Boal, 2009, p. 22).
Para compor com o material cênico levantado, lançamos mão de
procedimentos de escrita criativa focados em produzir contribuições específicas
do elenco para a dramaturgia, como o exercício de escrita coletiva “Daqui da
fronteira eu vejo”, que consistiu em pedir para uma pessoa do grupo dar
seguimento à frase inicial “Daqui da fronteira eu vejo”; passando o texto em
seguida para outra pessoa do grupo; que por sua vez dá sequência à contribuição
da pessoa anterior; e assim por adiante. O resultado desse exercício encontra-se
na figura a seguir:
Figura 2 Exercício de escrita coletiva “Daqui da fronteira eu vejo”
Arquivo do grupo Orendive Teatro Intercultural
Parte do material produzido nesse exercício foi incorporado na dramaturgia,
com modificações. Além disso, fizemos uma produção de escrita individual, a qual
foi em grande parte incorporada na dramaturgia e que trouxe para a cena um
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caráter performativo (Araujo, 2008). Isso pois estabeleceu um momento cênico no
qual se interrompe a narração e representação das histórias para que as(os)
artistas, performando a si mesmas(os), compartilhem com o público depoimentos
pessoais. O exercício dramatúrgico consistiu em uma produção individual que
desse seguimento à frase “A minha fronteira é”, o que deu origem a um trecho que
desvelou ideias de fronteiras. Quando esse trecho da dramaturgia foi
sistematizado e proposto pela dramaturga, a cena roteirizada existia como
repertório de imagens e ações, de forma que o roteiro se integrou à criação cênica
que existia e da qual ele próprio roteiro nasceu. Além disso, a chegada do roteiro
não significou o término da criação, pois novos elementos foram surgindo nos
ensaios e foram sendo incorporados, como a música “Mi frontera”, escrita em
português, espanhol e guarani kaiowá, para aquele momento sensível da cena.
Música 03 Mi frontera
Mi frontera
Onde está?
El caminho?
El lugar?
Xe koty
Nhandereko rasa
Mi frontera
Vai nos atravessar
(Pereira, 2023).
A dramaturgia da cena não é composta apenas de palavras, pois existem
coisas que não podem ser faladas e nem explicadas, mas podem ser sentidas em
um gesto, em uma fala, em um olhar. Assim, a construção dramatúrgica dessa
cena é bastante significativa e representativa do processo de criação
compartilhada, pois surgiu de uma pesquisa e vivência coletiva e de um exercício
de escrita individual proposto ao grupo pela dramaturga. Além disso, a cena
tinha forma cênica a partir de partituras e desenhos de cena elaborados pelo
elenco junto à direção e à preparação corporal, e foi aprimorada a partir de uma
criação musical proposta pelo compositor/preparador vocal e musical.
Nas figuras a seguir, podemos visualizar algumas composições corporais no
espaço características dessa cena, que trouxeram para o espetáculo um tempo
dilatado e contemplativo, em contraste com o dinamismo e o ritmo rápido que
domina a maior parte do espetáculo:
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Figura 3 Atriz toca e canta a canção Mi frontera, em cena do espetáculo.
Foto: Raique Moura. Arquivo do grupo Orendive Teatro Intercultural.
Figura 4 Em ritmo lento, atriz e ator cruzam o espaço em partitura com taquaras.
Foto: Raique Moura. Arquivo do grupo Orendive Teatro Intercultural.
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Figura 5 - Em ritmo lento, atores cruzam o espaço, em cena do espetáculo.
Foto: Raique Moura. Arquivo do grupo Orendive Teatro Intercultural.
Em relação à inserção de depoimentos individuais na dramaturgia,
destacamos a seguir a avaliação de duas pessoas do elenco. Para Odúlio
Gonçalves, tal inserção foi motivo de orgulho pela afirmação da sua identidade
fronteiriça em cena:
pra mim é mais um motivo de falando aquilo de uma forma que pra
mim é muito orgulhoso, sabe, eu muito orgulhoso de falando aquilo.
Porque acho que simboliza muito daquilo que eu já vivenciei, daquilo que
eu trago, e daquilo que realmente é lá (...) falar sobre os meus ancestrais,
falar sobre a minha força, falar sobre de onde eu vim, e falar sobre minha
terra também que eu acho que é uma coisa muito importante (Gonçalves,
2023).
a atriz Jadi Ribeiro, além do aspecto de afirmação de sua identidade,
destacou justamente o caráter performativo da cena, o fato de não estar
representando naquele momento, mas poder compartilhar com o público a partir
de sua presença política em cena:
a parte mais legal, assim, do texto, são as partes que eu posso reforçar
que eu sou indígena, tipo, que eu aqui, e isso é muito massa porque
quando eu falo isso é uma coisa de certeza, é eu que tô falando, tipo, é a
Jadi mesmo brigando, sabe? Sendo, politicamente (Ribeiro, 2023).
Importante ressaltar que esses exercícios de produção escrita mais
direcionados foram realizados em um período de culminância de um processo de
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amadurecimento das reflexões sobre fronteiras, de maneira que pudessem captar
o imaginário coletivo resultante de todo o processo criativo que estava sendo
conduzido. Além disso, havíamos construído em nossos encontros até aquele
momento um ambiente seguro para a expressão das individualidades, a partir da
integração do grupo e da construção de um coletivo de trabalho permeado pela
confiança. A seguir, falaremos um pouco mais sobre esse processo de convivência
coletiva.
(Con)vivências interculturais e interdisciplinares
Durante o processo de criação dramatúrgica compartilhada, existem
procedimentos de criação que são intencionais e programados; e existe algo que
se passa no grupo que não é possível prever ou controlar o seu curso, mas que se
torna fundamental para a criação: trata-se da convivência e do relacionamento
entre as pessoas. Esses dois constroem laços e criam intimidade, formando, na
melhor das hipóteses, um coletivo de trabalho, no qual as pessoas se sentem
seguras e acolhidas para se expressarem e cooperarem na construção da obra
teatral.
Assim, valorizamos muito os momentos de ócio juntos(as), os intervalos entre
as atividades na sala de ensaio, as conversas livres, o compartilhar de um café ou
um chá, de um pedaço de bolo ou de pão. Tudo isso é fundamental para que
possamos ser o que somos: um grupo de teatro. Nesse processo de convivência,
de forma espontânea, foram surgindo trocas em torno do idioma kaiowá. Por parte
dos(as) artistas não indígenas, havia muita curiosidade em conhecer mais palavras
na língua kaiowá; e havia curiosidade entre as artistas kaiowá e o artista fronteiriço
em conhecer mais das diferenças e semelhanças entre o guarani paraguaio e o
guarani kaiowá. Entre um gole de café e outro, começaram a surgir perguntas
envolvendo palavras obscenas, e as respostas chegavam sempre com sussurros
seguidos de gargalhadas. Aos poucos, o grupo se cumprimentava com as
expressões cherevi e nderevi23, entre outras surgidas nessas trocas interculturais
informais. A nossa ideia de fronteira foi sendo construída pela nossa convivência.
23 Em língua kaiowá: meu cu e seu cu.
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A partir da observação dessas interações, a dramaturga propôs um exercício
chamado “feira de palavras”, que foi feito algumas vezes durante o período de
ensaios. Em um primeiro momento, o grupo se dividia entre vendedores(as) e
compradores(as) de uma feira, e os(as) vendedores(as) tinham que oferecer
algumas palavras à venda, palavras que tivessem um valor especial ou uma
particularidade em relação à sua origem e história. os(as) compradores(as)
poderiam conhecer todas as palavras, mas poderiam comprar três. Durante a
dinâmica, todas as pessoas exerciam os papéis de vendedores(as) e de
compradores(as). Posteriormente, as palavras compradas deveriam ser usadas em
jogos coletivos ou para contar uma história ao grupo.
A partir dessas atividades, fomos sentindo a necessidade de nos aprofundar
um pouco mais na língua kaiowá. Assim, a artista Rossandra Cabreira, que também
é professora de kaiowá, ofertou-nos algumas aulas de um curso básico, nas quais
pudemos ampliar um pouco mais o nosso repertório. Na figura a seguir, temos o
registro de um material produzido durante essas aulas, na qual aprendemos as
partes do corpo:
Figura 6 Partes do corpo em kaiowá registro de estudo coletivo.
Arquivo do Grupo Orendive Teatro Intercultural.
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O grupo aprendeu a falar um pouco o kaiowá; a aula de kaiowá foi muito boa
para todos(as). As partes do corpo foram as palavras que mais ficaram gravadas.
A partir de todas essas trocas linguísticas e interculturais, fomentadas pelas aulas
de guarani e pelas feiras de palavras, produzimos uma adaptação dramatúrgica
que trouxe uma presença muito maior da língua kaiowá do que o que a obra
original propunha com o guarani. No desejo de se comunicar e de aprender
palavras do universo linguístico do outro, o grupo foi construindo o seu próprio
portunhol selvagem, distinto do presente na obra original. O portunhol selvagem
se revelou sobretudo nas músicas, cujas letras foram construídas a partir de
exercícios de escrita desdobrados da feira de palavras e das aulas de guarani. Para
o ator Guilherme Godoy, a construção da dramaturgia esteve relacionada à
construção de um falar comum, a partir da mistura das línguas:
E eu acho que, assim, no processo da peça, o que mais tá agregando pra
mim mesmo não é nem aprender espanhol ou aprender guarani mas
conseguir realmente fazer esse portunhol selvagem entendível, entender
o que está se dizendo a partir dessa mistura das línguas. Não
necessariamente a gente sabe todos os significados de todas as palavras
ou tudo certinho a tradução, mas dentro do contexto todo faz sentido,
você consegue entender o que acontecendo, o que sendo dito, e
isso vem muito com a dramaturgia (Godoy, 2023).
A partir de todas essas vivências, ocorridas entre janeiro e março de 2023, e
após uma pausa devido à licença maternidade da dramaturga, foi elaborada uma
proposta de roteiro dramatúrgico e entregue ao grupo no mês de junho, quando o
grupo retornou aos ensaios. A partir dessa proposta, direção e elenco deram
seguimento às experimentações cênicas, com toda a equipe do espetáculo, e o
texto continuou em processo de revisão até agosto de 2023, quando, então,
finalizamos a versão “final”. Em verdade, o texto de uma peça é sempre vivo e
nunca termina, mas formalmente estabelecemos essa data, sabendo que as
modificações continuam e continuarão ocorrendo ao longo das temporadas.
Considerações finais
A vivência intercultural é uma premissa do grupo, que foi criado justamente
para integrar pessoas indígenas e não indígenas na criação cênica, no contexto de
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Dourados, Mato Grosso do Sul. Nos dois espetáculos em repertório, existe uma
mesma música e que deu nome ao grupo. A letra da música diz “Eju javy’a
orendive”24 e sintetiza o espírito de troca e de convivência que o grupo deseja
cultivar. Historicamente, o teatro foi utilizado como instrumento de colonização e
catequização dos povos indígenas. Entretanto, hoje, artistas indígenas utilizam o
teatro para mostrar sua cultura, sua luta e sua resistência. Em nosso grupo,
buscamos construir uma metodologia decolonial, ao propor uma relação
intercultural horizontal e sem hierarquias, no âmbito da convivência e da criação
artística.
Em Era uma vez en la fronteira selvagem, voltamo-nos para a diversidade
linguística como foco de nossa pesquisa artística, considerando nossa implicação
como sujeitos(as) dessa pesquisa, trabalhando sobre nós mesmos e entre nós, em
nossas relações. Assim, não nos interessava diretamente a diversidade linguística
de nossa região em geral ou aquela proposta pelo autor em sua obra, mas sim
acessar essas complexidades a partir do que somos e do que construímos
coletivamente. Nessa perspectiva, a relação com a língua e a cultura kaiowá foi
um diferencial de nosso trabalho, e as inspirações na música e na
cosmopercepção kaiowá bem como os estudos da língua foram elementos que
surgiram da nossa convivência com as artistas kaiowá, no interior do grupo.
No processo de convivência, fomos criando, a partir do lugar de fala de cada
artista, e de nossas vivências coletivas, um imaginário sobre fronteira, a partir do
qual fomos estruturando a adaptação dramatúrgica, em diálogo com as
proposições da direção, da música e de todos(as) os(as) outros(as) profissionais
envolvidos. Assim, as concepções da direção sobre espacialidade e atuação, além
da não centralidade da palavra na produção de sentido e as concepções da criação
musical de recusa à limitação do sistema tonal e do paradigma da afinação em
prol da valorização da subjetividade e da singularidade foram elementos que
estruturaram a proposição dramatúrgica, que também se alimentou, sobretudo,
da participação do elenco, seja em exercícios de leitura comentada, exercícios de
desenho e escrita e jogos cênicos estruturados, seja no fluir da convivência diária
24 Em língua kaiowá: Vem ser feliz com a gente.
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que trouxe brincadeiras e inspirou outros jogos, além das aulas de kaiowá.
A partir de todo esse processo de criação compartilhada, fomos construindo
a nossa adaptação dramatúrgica, encontrando um lugar de fala coletivo a partir
do qual traríamos à cena o texto de Douglas Diegues, modificado por nossas
inserções de textos, músicas e personagens. Nosso mergulho e nosso
envolvimento na ideia de fronteira foram tão grandes que chegamos a criar uma
cena específica para compartilhar os nossos depoimentos pessoais acerca do que
despertou em nós o processo criativo.
De acordo com o Dicionário do Teatro Brasileiro:
durante os ensaios a adaptação sofre cortes, acréscimos, modificações
enfim, que nascem das intervenções dos atores e principalmente do
encenador [...] o que caracteriza a adaptação é a extrema liberdade que
tem o adaptador em relação ao texto original (Guinsburg; Faria; Lima,
2006, p. 17).
Utilizamos essa liberdade para expressar a joparaguasu25, que é como os
autores se entendem como grupo, para atravessar nossas fronteiras pessoais e as
fronteiras entre encenação, dramaturgia, criação musical, atuação e outras áreas
da criação teatral. Recriamos as histórias, misturamos nossas narrativas,
transformamos memórias em estética e em construção de afetos, oferecendo ao
público possibilidades diversas de sensações.
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Cabreira; Prefácio de Graciela Chamorro. Belo Horizonte: Editora Javali, 2022.
25 Em língua kaiowá: grande mistura.
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Mi frontera vai nos atravessar vivência intercultural e criação dramatúrgica
Júnia Cristina Pereira | Marcos Machado Chaves | Karla Neves | Rossandra Cabreira
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Recebido em: 09/09/2024
Aprovado em: 23/11/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
PPGAC
Centro de Artes, Design e ModaCEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br