1
Qual corpo chega antes?
Luciana Eastwood Romagnolli
Para citar este artigo:
ROMAGNOLLI, Luciana Eastwood. Qual corpo chega antes?
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 1, n. 54, abr. 2025.
DOI: 10.5965/1414573101542025e115
Este artigo passou pelo Plagiarism Detection Software | iThenticate
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Qual corpo chega antes?
Luciana Eastwood Romagnolli
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-12, abr. 2025
2
Qual corpo chega antes1?
Luciana Eastwood Romagnolli2
Resumo
O artigo coloca em contracena fragmentos de três peças brasileiras estreadas na
última década por artistas que se servem do debate sobre gênero para se indagar
sobre os efeitos dos discursos em seus corpos: Manifesto Transpofágico, de Renata
Carvalho; E.L.A, de Jéssica Teixeira; e Vaga Carne, de Grace Passô. Diante das
distintas operações pelas quais um ser falante se arranja com seu corpo, modos de
aprisionamento e seus restos, propõem-se torções que questionam crítica e
poeticamente esses enlaces, com base nas proposições psicanalíticas sobre o corpo
falante decorrentes do último ensino de Jacques Lacan.
Palavras-chave: Corpo. Discurso. Linguagem. Psicanálise. Teatro.
Which body comes first?
Abstract
This article juxtaposes fragments from three Brazilian plays premiered in the last
decade by artists who engage with debates on gender identities to explore the
effects of discourses on their bodies: Manifesto Transpofágico by Renata Carvalho,
E.L.A. by Jéssica Teixeira, and Vaga Carne by Grace Passô. Given the various
operations through which a speaking being relates with its body, modes of
entrapment, and its remnants, the article proposes twists that critically and
poetically question these entanglements, based on psychoanalytic propositions
about the speaking body derived from Jacques Lacan's later teachings.
Keywords: Body. Discourse. Language. Psychoanalysis. Theatre.
¿Qué cuerpo llega primero?
Resumen
El artículo contrapone fragmentos de tres obras teatrales brasileñas, estrenadas en
la última década, por artistas que se sirven del debate sobre las identidades de
género para indagar sobre los efectos de los discursos en sus cuerpos: Manifesto
Transpofágico, de Renata Carvalho; E.L.A., de Jéssica Teixeira; y Vaga Carne, de Grace
Passô. Ante distintas operaciones por las cuales un ser hablante se relaciona con su
cuerpo, modos de aprisionamiento y sus restos, se proponen torsiones que
cuestionan crítica y poéticamente los enlaces, basadas en las proposiciones
psicoanalíticas sobre el cuerpo hablante derivadas de las últimas enseñanzas de
Jacques Lacan.
Palabras clave: Cuerpo. Discurso. Lenguaje. Psicoanálisis. Teatro.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada pela própria autora.
2 Pesquisadora de Pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP), com bolsa de Pós-doutorado Júnior do
CNPq. Doutorado em Artes Cênicas pela USP. Mestrado em artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Especialização em Literatura Dramática e Teatro pela Universidade Federal Tecnológica do Paraná
(UFTPR). Especialização em Psicologia Clínica e Psicanálise pela PUC-SP. Graduação em Comunicação Social
pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). lucianaromagnolli@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/8558305709972640 https://orcid.org/0000-0002-4324-5505
Qual corpo chega antes?
Luciana Eastwood Romagnolli
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-12, abr. 2025
3
Qual corpo chega antes?
Cena I. Dois canhões de luz dirigem-se ao público, iluminando a plateia desde
a perspectiva do palco ainda em breu. Apagam-se. Gradualmente, acende-se o
contorno de um corpo humano sobre o palco e ouvimos uma voz [de Renata
Carvalho] enunciar: “Este é meu corpo. [...] O meu corpo sempre chega antes [...]
Ele é mais forte, fala por mim. O meu corpo veio antes de mim, sem eu pedir”
(Carvalho, 201?). Não se distinguem traços do rosto, portanto, não é possível ainda
reconhecer mais do que uma forma humana, impredicada.
Cena II. Um foco de luz redondo brilha ao fundo do palco vazio. Ouvimos
uma voz [de Jéssica Teixeira] pedir: “Desliga as luzes, por favor. Obrigada. No breu:
é melhor assim. Sem contato, sem contorno. Apenas pela imagem da minha voz
rouca e do meu sotaque cearense. Eu me chamo Ela. Muitas vezes não tenho a
oportunidade de falar primeiro, ou até de falar, porque ele sempre chega antes de
mim. E, geralmente, ele chega gritando, ou rindo estranhamente, feito um
rinoceronte” (Teixeira, 2018). Aqui, não há sequer contorno, pois este já revelaria a
singularidade da forma do corpo que virá, suscitando predicações antecipadas.
Cena III. Após murmúrios pouco compreensíveis que ressoam entre palco e
plateia enquanto o público ainda se acomoda em seus assentos, algumas palavras
faladas distinguem-se, repetidas: “excesso, excesso”; depois frases: “vorazes
existem, não existem, existem”; até que algumas frases se articulem: “Vozes
existem, sim. Vorazes pelas matérias”. Então, a Voz3 [de Grace Passô] narra seu
ato: invadir matérias, coisa animada e inanimada. “Sou uma voz, apenas isso. [...]
vim aqui, proferir sons de vossas línguas limitadas. [...] Ontem entrei em você,
coisa” (Passô, 2016).
Até então em off, com textura eletrônica, a Voz agora incorpora-se em uma
presença que ainda não vemos sob a escuridão. “Nada é oco por aqui. [...] É tudo
escuro dentro de ti e de ti e de ti e de ti […] e tudo move, move, move,
freneticamente [...]”. Silencia. A silhueta de um corpo se desenha à contraluz.
Então, iluminam-se os olhos, recortados por uma faixa de luz. Dois glóbulos
3 Voz é como a autora Grace Passô nomeia a personagem da peça Vaga Carne, uma instância de enunciação
não humana, que se presentifica em cena pela voz da atriz.
Qual corpo chega antes?
Luciana Eastwood Romagnolli
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-12, abr. 2025
4
com as pálpebras bem abertas suportam um olhar que pode ser lido como de
espanto, ainda que nenhum significante conta do que se transmite aí. Algo de
um corpo não significantizado, na junção entre imagem e pulsão. “Se eu virasse o
corpo dessa mulher ao avesso, a pele dessa mulher, ela entenderia o escuro aqui
de dentro. [...] São imagens, são imagens que estão aqui dentro, mas parecem de
carne e osso” (Passô, 2016).
Cena-corpo
Coloco em contracena recortes de três peças brasileiras estreadas na última
década por artistas que se servem do debate sobre gênero, sobretudo, mas
também racialidade e capacitismo, para propor torções de sentidos que
questionem crítica e poeticamente os enlaces entre corpo e linguagem e os modos
de se fazer um corpo – e o que a isso resiste (ou, em termos lacanianos, ex-iste)
aos ditos. Manifesto Transpofágico, de Renata Carvalho; E.L.A, de Jéssica Teixeira;
e Vaga Carne, de Grace Passô, trazem distintas operações pelas quais um ser
falante se arranja com seu corpo, e o que resta delas.
Para tanto, diante da imprecisão conceitual dos usos do termo “corpo” nas
artes desde, ao menos, a body art, nos anos 1960, recorro à concepção do
psicanalista francês Jacques Lacan, em seu último ensino, de corpo falante
aquele que “fala em termos de pulsões” (Miller, 2016), à medida que “as pulsões
são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer” (Lacan, 2007, p. 18).
Empresto um símbolo que Lacan utiliza para escrever o matema da fantasia4
($<>a), a punção, com o qual o sujeito enquadra uma realidade. Tomemos a dupla
“<>” como suporte para pensar que, entre corpo e linguagem, ocorre junção e
disjunção. Um corpo do qual se pode se separar o bastante para que dele se fale,
mas não sem ele. E que suporta um resto indizível.
As artistas em questão fazem do corpo, (im)próprio, mais do que cena:
acontecimento. Não somente a cena escópica, dada a ver, do teatro como império
4 O matema é uma formalização de um conceito pela via matemática, não pela via do sentido. O matema da
fantasia ($<>a) é escrito como Sujeito barrado (castrado) em junção e disjunção com o objeto a (o objeto
primordial delirado que organiza o circuito pulsional do sujeito). Com esse matema, Lacan sintetiza sua
teoria da fantasia, o modo como o sujeito neurótico organiza sua realidade e sua relação com o outro.
Qual corpo chega antes?
Luciana Eastwood Romagnolli
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-12, abr. 2025
5
do olhar. Se as concebermos como acontecimentos poéticos em convívio, os
corpos de artistas e espectadores estão implicados nestas cenas como imagens,
sim, mas também como corpos vivos, pulsionais e, para Lacan, isso inclui
oralidade, analidade, o escópico (olhar) e o invocante (voz).
Em Vaga Carne, voz e olhar disjuntam-se do corpo de Grace Passô,
presentificam-se como signos das pulsões parciais, desse gozo do corpo que não
se totaliza na imagem nem se reduz à significação. O corpo surge como lugar de
tensão entre a linguagem e a carne. “Olhos são faróis. Ou são facas? Ou moluscos.
É um susto”, diz a Voz. Entre a (dis)forma e a lâmina da libido: o espanto. Gozo
que não se equaciona em significante e transborda a imagem, em sua opacidade.
O rosto, os mamilos e o entre-pernas de Renata Carvalho também
permanecem na escuridão, feito manchas, pontos obscuros onde o olhar do
espectador não encontra uma imagem especular na qual se depositar. Corpo
fragmentado, em que a luz recorta partes, desfazendo a unidade corporal
imaginária.
Tal unidade, suposta para um sujeito, não é senão efeito do estádio do
espelho5, quando a identificação à imagem especular, fora de si e diante da
inserção no simbólico por um Outro que diga “este é você”, concede uma ideia de
si organizadora das sensações corporais caóticas (Brousse, 2014). Não sem que
algo desse caos escape à operação especular, algum estranhamento, resto de
gozo inabsorvível. Daí o recurso à arte para dar a isso um novo lugar.
Em A Salvação pelos Dejetos, Jacques Alain-Miller comenta essa operação
que faz o resto da identificação com a imagem especular e da simbolização pela
linguagem passar de dejeto à dignidade, ao receber um lugar no Simbólico. “É a
essência da arte, ou antes, seu procedimento [...] de estetizar o dejeto, de idealizá-
lo, ou como dizemos em psicanálise, de sublimá-lo”. Miller prossegue: “Lembrem-
se da definição que Lacan dava da sublimação: [...] elevar o objeto à dignidade de
Coisa” (Miller, 2010, p.2).
Observe-se agora que o objeto de que se trata aqui é aquele pequeno a do
5 O estádio do espelho é construído por Lacan no primeiro tempo de sua obra e consiste na formação do eu
como resultado da identificação da criança a uma imagem externa a si (no espelho) sob o efeito de
nomeação simbólica pelo Outro (um cuidador que diga “este é você”).
Qual corpo chega antes?
Luciana Eastwood Romagnolli
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-12, abr. 2025
6
matema da fantasia, em junção e disjunção com o sujeito ($) que leva essa barra
por efeito da castração simbólica, ou seja, de sua entrada na linguagem, que o
sujeita ao Simbólico, diferenciando-o dos outros animais ao inaugurar o
(des)encontro entre linguagem e corpo, entre $ e a. Esse a pode ser um modo de
representar o resto, que é o resto de gozo6 dessa operação de choque da
linguagem em um corpo, que instaura o pensamento e a fala, com consequente
perda de unidade, pois a linguagem não recobre toda a experiência corporal. Daí o
resto de gozo não simbolizado e, por isso, não socializável, um dejeto com o qual
o corpo falante de se haver. “O gozo como tal, no entanto [...], não tem a
dignidade com que se recobrir. [...] Quando o gozo é elevado à dignidade de Coisa,
ou seja, quando ele não é rebaixado à indignidade do dejeto, ele é sublimado, ou
seja, socializado [...], integrado ao laço social, ao circuito das trocas” (Miller, 2010,
p.2).
Consideremos essa operação à vista do lugar no discurso do mestre de nossa
época, que os corpos encenados ocupam. Advertidos de que, se essas nomeações
que lhe são atribuídas capturam algo do gozo numa identidade, também o
aprisionam ao idêntico a si: mulher, negra, travesti, degenerada. Modos distintos
de significar um corpo como rejeito no discurso capitalista; por isso mesmo, é a
partir deles que se tem feito operações estéticas de subversão para dar-lhes lugar
digno na cena teatral contemporânea.
Com as ressonâncias da body art e da arte da performance desde os anos
1960-1970, o corpo atraiu as atenções como meio privilegiado de expressão e ação
artística, especialmente no trabalho de performers ditas mulheres, queer, não
brancas e demais significantes associados à subalternidade (lembremos da
pergunta de Spivak, 2010: “Pode o subalterno falar?”). Elas expressam implicações
de se ter um corpo e seus transbordamentos em performances feministas, “onde
a performer se constitui na sua própria materialidade de trabalho” e “o corpo é
abordado de forma ambivalente criador e criatura, representação e
a/presentação, organizado e desorganizado” (Montagner, 2019, p. 316).
6 O gozo é um dos conceitos mais importantes do último ensino de Lacan. Trata-se do que perturba o corpo,
para além da satisfação (ou, em termos freudianos, para além do princípio do prazer).
Qual corpo chega antes?
Luciana Eastwood Romagnolli
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-12, abr. 2025
7
Corpo-jaula?
Então, a Voz [de Grace] enuncia sua revolta contra o corpo-imagem: “Você
me quer como um coerente espelho barato, isso sim. Quer que eu te ajude a ser
a imagem que o outro quer ver. Mas não [...]. Eu só estou presa aqui” (Passô, 2016).
Essa dimensão de “jaula” do corpo, capturado entre o Imaginário e o Simbólico,
aparece também com Renata Carvalho, quando seu corpo é apreendido na cadeia
significante constituindo o sujeito como aquele que é representado por um
significante para outro significante. “Meu corpo é minha jaula, minha cela [...] As
pessoas que foram me gritando, gritando, gritando, gritando, gritando, gritando”.
Pisca, sobre o palco, um letreiro com a palavra TRAVESTI. “Fui resumida a partir
dele” (Carvalho, 2018).
De início, a recusa da imagem corpórea é signo de uma existência que não
cabe na imagem do eu, esta que se constituiu no espelho, portanto, fora do corpo
e “encobrindo” os seus orifícios pulsionais. Encena-se algo da dinâmica de
alienação e separação ao Outro, em que a imagem do eu advinda desse Outro
precede – e oblitera – algo que a ela escapa (e que Lacan escreve como pequeno
a), insinuando a cisão entre o corpo da imagem e o corpo-vivo, o corpo que se
goza.
De acordo com Miller, ao propor uma Biologia Lacaniana, a identificação do
ser ao corpo justifica-se somente em animais não afetados pela incidência da
linguagem, pois esta, pelo efeito significante, “divide seu ser e seu corpo, reduzindo
este último ao estatuto do ter”: o corpo que se tem e não se é (Miller, 2005, p. 50).
A imagem, ao incidir sobre a desorganização corporal, assegura alguma
consistência (mental) a esse corpo cindido pela linguagem, mas não sem que
dessa operação haja o resto não simbolizado, conforme vimos. No seminário 23,
O sinthoma, Lacan observa: o “corpo sai fora a todo instante” (Lacan, 2007, p. 64).
Nas três peças que abrem este artigo, ao encontrarmos esses restos,
constatamos que artistas da cena contemporânea empenham-se em elaborar
algo acerca do choque entre linguagem e corpo na constituição do falasser – este
Qual corpo chega antes?
Luciana Eastwood Romagnolli
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-12, abr. 2025
8
corpo falante, em que Lacan reúne sujeito (do significante) e substância gozante
(Miller, 2005, p. 52), entendendo que disso se faz corpo: substância gozante – um
corpo se goza (Miller, 2016). A partir disso, as artistas perguntam-se sobre seus
efeitos de aprisionamento.
Anterioridade
Tanto Renata Carvalho quanto Jéssica Teixeira enunciam: o corpo chega
antes. Que corpo é esse dito por elas? Uma primeira resposta seria a imagem
corporal. No entanto, vimos que essa imagem não está dada a priori e vem de fora.
Tampouco a unidade corporal está anteriormente garantida. sequer um corpo
antes de ser inserido em um discurso que possibilite nomeá-lo assim e enunciar
predicados acerca dele? Ocorre que um corpo é falado antes de nascer, é inserido
no discurso, no campo do Outro, por quem o gesta e aqueles que o esperam, e
ainda antes que possa compreender a língua materna no que ela porta de
significação, já sofre seus efeitos assemânticos (de gozo).
Podemos sustentar a questão, então, para aquém da dimensão escópica, em
termos de uma anterioridade lógica. Os estudos sobre autismo e psicoses infantis
vêm ensinando justamente sobre a constituição do corpo pela incidência de
lalíngua (a língua em sua dimensão material, isto é, de gozo, e assemântica, da
qual um significante se diferenciará e instaurará a significação), anterior às
questões do imaginário localizadas no estádio do espelho.
“É a linguagem que, ao se incorporar, nos concede um corpo” (Espinha, 2012),
ou seja, não se faz corpo antes da incidência da linguagem. Tratar-se-ia de um
tempo lógico anterior: o choque da linguagem no que antes era a desorganização
do enxame da lalíngua, os murmúrios ainda indiscerníveis, pois não submetidos às
leis estruturantes da linguagem. Tal choque deixa uma marca, um traço não
simbolizável, e produz em seu entorno, como o eco de uma percussão, a
ressonância de circuitos pulsionais, demarcando o corpo nas bordas do furo
onde a significação não opera.
Num segundo tempo, um do enxame vai se diferenciar dos outros em uma
operação de identificação, que exclui o que não é ele, fundando o sujeito. E, em
Qual corpo chega antes?
Luciana Eastwood Romagnolli
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-12, abr. 2025
9
relação a ele, vêm o segundo, terceiro, quarto, fazendo uma série de significantes
que possam, enfim, se encadear em um discurso. então um corpo pode se
dizer mulher, em oposição não somente a homem, mas a qualquer outro
significante que diga de sua posição de gozo. Embora fosse dito, por outros,
anteriormente.
Na estrutura autística, a operação do furo não se realiza, daí não haver corte
das bordas do corpo. Entretanto, mesmo para sujeitos marcados pelo furo do
choque de um significante, o gozo do corpo, que escapa aos contornos da
simbolização, gera embaraço. “Quem na vida não pensou em se separar [...] do
corpo?”, pergunta Jéssica em E.L.A. Ao falar sobre o espetáculo, a artista provoca:
“Será mesmo que tem pessoas que se acostumaram ao próprio corpo e que não
o estranham de maneira nenhuma?” (Teixeira, 2021).
Então, o corpo não chega antes de ter sido falado e de sofrer os efeitos do
impacto da língua. O que chega antes são os discursos sobre o corpo, seu lugar de
(des)valoração social, por vezes o de dejeto, a partir do qual essas atrizes elaboram
formas artísticas de passagem à dignidade da socialização, pleiteando outro lugar
no laço social que não o de rejeito.
Corpo-Outro
Então, cada uma das peças citadas coloca em jogo os significantes das
identificações das atrizes. Renata Carvalho aparece sob o letreiro “travesti”, e
embora se identifique a ele, reivindica um espaço de escuta que não a resuma a
isso. A Voz de Vaga Carne sonda o corpo, rejeita-o, estranha-o, para depois
nomear identidades: uma mulher negra, e encerra seu monólogo com uma
abertura à fala, que se interrompe antes da predicação, como um corte
assemântico entre o significante e o significado.
Jéssica Teixeira desvia de nomear-se. E.L.A é usado como significante de um
enigma, aludindo a uma doença degenerativa e à feminilidade, a ser outra de si.
Ainda que vejamos na estrutura corporal da atriz uma formação fora da norma
científica (e é à tradição eugenista do discurso capitalista sobre a ciência que ela
dirige boa parte de sua crítica), o título não designa a condição particular da atriz.
Qual corpo chega antes?
Luciana Eastwood Romagnolli
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-12, abr. 2025
10
Quando explica a abreviação, ela acrescenta: “Esclerose lateral amiotrófica, a
própria degeneração do sentido”.
Nomes da segregação em nossa cultura: a “mulher negra”, a “travesti”, a
“degenerada”. As artistas jogam com essas significações, que se fixam como
identidades, não apenas para demarcar um corpo para si, mas também para
apontar o que elas não recobrem, o que delas escapa. Tratam dos ecos pulsionais
que discursos segregadores produzem em seus corpos.
Com Cristiane Ribeiro, que se serve de um comentário de Helenice de Castro,
podemos pensar nos efeitos do discurso sobre o corpo na ordem dos
acontecimentos de corpo políticos: esses “afetos poderosos originados de
discursos políticos que marcariam o corpo do sujeito, ganhando assim valor de
trauma e instalando um modo de gozo não semântico” (Ribeiro, 2022, p. 140).
Ressonâncias do gozo segregado.
Então, cabe indagar o que, de fato, as aprisiona: a imagem, o significante, a
linguagem, o corpo que se goza? Na via inversa: o que poderia fazer desse
aprisionamento um arranjo mais suportável, sem uma rigidez na junção, mas
também sem que corpo e linguagem se disjuntem de vez? Para que algo da hiância
entre eles se preserve, de não se tomar corpo nem linguagem como
totalizantes e se fazer algo com os restos.
No esforço de re-enlaçar o que restou segregado e de expressão de algo
desse irrepresentável, num mais além e aquém da identidade, a cena
contemporânea tem apresentado modos de fazer corpo na atualidade. Não se
trata somente de uma denúncia da segregação social. Em alguns trabalhos, como
estes, a delicadeza reside no lugar dado à segregação que é de outra ordem, pois
se situa não somente no “fora” do laço social, mas na extimidade (o mais íntimo e
mais êxtimo, como a voz, que é esse objeto de difícil localização entre o dentro e
o fora) do desacordo entre linguagem e corpo.
Disso recolhemos modos de saber-fazer com o corpo falante em que
significante e corpo não se excluem, tampouco se confundem numa unicidade do
ser: a voz, mesmo, surge familiar e infamiliar, substância gozante e veículo do
discurso suportado no corpo. Ao colocar tais tensões em evidência, manejando
Qual corpo chega antes?
Luciana Eastwood Romagnolli
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-12, abr. 2025
11
imagens, pulsões e falas, o corpo imaginário, mas também o corpo simbólico e o
corpo real, tais artistas produzem seus atos poéticos diante do impossível, que
inauguram um dizer. Escrituras da relação que não se escreve também entre a
fala e o ser.
Referências
BROUSSE, Marie-Hélène. Corpos lacanianos: novidades contemporâneas sobre o
Estádio do espelho. Opção Lacaniana, ano 5, n.15, nov. 2014. Disponível em:
http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero15/texto2.html. Acesso em:
11 ago. 2022.
CARVALHO, Renata. Manifesto transpofágico. Gravação em vídeo, 2018.
ESPINHA, Sandra Maria. O que é que tem um corpo e não existe? Resposta O
grande Outro. In: Almanaque On-Line n.11. Instituto de Psicanálise e Saúde Mental
de Minas Gerais, Belo Horizonte, jul.-dez 2012. Disponível em:
http://almanaquepsicanalise.com.br/wp-content/uploads/2015/09/Incurs%C3%B5es-O-que-%C3%A9-que-
tem-um-corpo-e-n%C3%A3o-existe-Sandra-Espinha.pdf Acesso em: 10 jan. 2022.
LACAN, J. O Seminário Livro 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
MILLER, Jacques-Alain. O inconsciente e o corpo falante. Apresentação do tema
do X Congresso da AMP – Associação Mundial de Psicanálise. Rio de Janeiro, 2016.
Disponível em:
https://www.wapol.org/pt/articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdioma
Publicacion=9&intArticulo=2742&intIdiomaArticulo=9. Acesso em: 02 set. 2024.
MILLER, Jacques-Alain. Mulheres e semblantes II. Revista Opção Lacaniana, v. 1, n.
1, p. 1-25, 2010. Disponível em:
http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_1/mulheres_e_semblantes_i.pdf. Acesso em
10 jan. 2021.
MILLER, Jacques-Alain. Biologia lacaniana e acontecimento de corpo. In: Revista
Opção Lacaniana, n. 41, 2005.
MONTAGNER, Alessandra. Do corpo feminino em performance: exceder-se para
não asfixiar. Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas, v. 2, n. 35, p. 311-
325, 2019. Disponível em:
https://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/141457310235201
9311/10674. Acesso em: 13 ago. 2024.
PASSÔ, Grace. Vaga Carne. Gravação em vídeo, 2016.
Qual corpo chega antes?
Luciana Eastwood Romagnolli
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-12, abr. 2025
12
RIBEIRO, Cristiane. Tornar-se negro, devir sujeito. Belo Horizonte: Agência de
Iniciativas Cidadãs, 2022.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.
TEIXEIRA, Jéssica. E.L.A. Gravação em vídeo, 2018.
TEIXEIRA, Jéssica. “Todo mundo se olha no espelho e se sente estranho”: Jéssica
Teixeira lança livro sobre o corpo. [Entrevista concedida a] Diego Barbosa. Diário
do Nordeste, 21 jan. 2021. Disponível em:
https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/verso/todo-mundo-se-olha-no-espelho-e-se-
sente-estranho-jessica-teixeira-lanca-livro-sobre-o-corpo-1.3036455. Acesso em: 20 set.
2022.
Recebido em: 30/08/2024
Aprovado em: 23/11/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
PPGAC
Centro de Artes, Design e Moda CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br