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Corpo-invólucro na escrita e crítica contemporâneas
Alexandre Lindo
Para citar este artigo:
LINDO, Alexandre. Corpo-invólucro na escrita e crítica
contemporâneas. Urdimento Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 54, abr. 2025.
DOI: 10.5965/1414573101542025e114
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Corpo-invólucro na escrita e crítica contemporâneas1
Alexandre Lindo2
Resumo
Este artigo tem por objetivo discutir relações entre corpo e escrita na cena
contemporânea, acentuando a noção de invólucro corporal. O corpus de análise é
Meu Nome: Mamãe, de Aury Porto, direção de Janaina Leite e dramaturgia de Claudia
Barral. A análise parte da experiência memorialística de quem assistiu ao espetáculo
(enunciador deste artigo) na interlocução com aportes teóricos sobre arquivo e
documento no âmbito das artes cênicas e sua intersecção com os estudos
semióticos, mais precisamente, em seu diálogo com o livro Corpo e Sentido (2011)
de Jacques Fontanille. Nesse livro, o autor afirma que o corpo é o substrato da
semiose.
Palavras-chave: Corpo-invólucro. Documentos performativos. Escrita e
performance.
Envelope body in contemporary writing and criticism
Abstract
This article aims at discussing the relationship between body and writing on the
contemporary scene, emphasizing the notion of envelope body. The corpus of
analysis is Meu Nome: Mamãe, by Aury Porto, directed by Janaina Leite and
dramaturgy by Claudia Barral. The analysis is based on the memorial experience of
someone who attended the performance (the enunciator of this article) in
interlocution with theoretical contributions on archives and documents within the
scope of the performing arts and their intersection with semiotic studies, more
precisely in their dialog with Jacques Fontanille's book Corps et sens (2011). In this
book, the author states that the body is the substrate of semiosis.
Keywords: Envelope body. Performative documents. Writing and performance.
Cuerpo-envoltura en la escritura y crítica contemporáneas
Resumen
Este artículo tiene por objeto debatir la relación entre el cuerpo y la escritura en la
escena contemporánea, acentuando la noción de envoltura corporal. El corpus de
análisis de este artículo es la obra Meu Nome: Mamãe, de Aury Porto, dirigida por
Janaina Leite y dramaturgia de Claudia Barral. El análisis se basa en la experiencia
memorialística de alguien que asistió al espectáculo (el enunciador de este artículo)
en diálogo con aportes teóricos sobre archivos y documentos en el ámbito de las
artes escénicas y su intersección con los estudios semióticos, más concretamente
en su diálogo con el libro de Jacques Fontanille Cuerpo y sentido (2011), en el que
este autor afirma que el cuerpo es el sustrato de la semiosis.
Palabras clave: Cuerpo-envoltura. Documentos performativos. Escritura y
performance.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Cristina Moerbeck Casadei Pietraroia
Doutorado em Letras - Língua e Literatura Francesa pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em
Sciences du langage- Université Stendhal Grenoble 3, França (1990). Graduação Licenciatura e Bacharelado
em Francês pela USP. crispi@usp.br
2 Doutorando em Semiótica francesa contemporânea na Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em Artes
Cênicas pela USP. Graduação Licenciatura e Bacharelado em Letras Francês pela USP.
alexandrelindo@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0879914017452627 https://orcid.org/0000-0001-7257-6023
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Arquivo e documento: uma fenomenologia do tempo
Uma parte da tradição do teatro costumava, e ainda se tem essa prática,
trabalhar com um texto escrito de um autor(a) com o objetivo de fazer sua
montagem cênica. Para essa empreitada, a dramaturgia escrita era analisada,
estudada e dialogada com demais áreas: voz, movimentação do corpo, som,
música, luz, projeção de imagens, figurinos, objetos, cenografia, práticas cênicas
que sobrepostas criavam a encenação de um texto escrito: uma montagem
ficcional. Se por um lado, uma tradição teatral dava mais contorno a essas práticas
cênicas, não é o que se na contemporaneidade onde o descontorno limites
borrados — aponta uma “cena de fronteira” (Fernandes, 2011).
Na contemporaneidade, e com o advento dos estudos da performance, tem
ganhado força a memória do corpo, arquivos e documentos pessoais para a
constituição de trabalhos performativos com diferentes temáticas. São exemplos
de tais trabalhos: Manifesto Transpofágico (Renata Carvalho), A Doença do Outro
(Ronaldo Serruya), Stabat Mater (Janaina Leite), Meu Nome: Mamãe (Aury Porto)
entre outros. No campo da dança surgem investigações da Cia. Fragmento de
Dança (Vanessa Macedo) e também em pesquisas de dança e performance no
ABC Paulista como “Modos de Existência”, apresentado no Gala de Dança na
reinauguração do Teatro Paulo Machado de Carvalho em São Caetano do Sul.
Este artigo foca em Meu Nome: Mamãe, tanto na experiência memorialística
de quem assistiu ao espetáculo (enunciador deste artigo) quanto na interlocução
com aportes teóricos sobre arquivo e documento no âmbito das artes cênicas e
sua intersecção com os estudos semióticos, mais precisamente, em seu diálogo
com o livro Corpo e Sentido (2011) de Jacques Fontanille. Nesse livro, o autor diz
que o corpo é o substrato da semiose. O corpo é o mediador de toda práxis
enunciativa. Assim, tem relevância fulcral nos debates artísticos e com isso
converge com os estudos da performance para os quais o corpo é central. Em
Performance Studies: an introduction, Richard Schechner (2013, p.1) define:
Performances são ações. Como disciplina, os estudos da performance
levam as ações muito a sério de quatro maneiras. Primeiro, o
comportamento é o “objeto de estudo” dos estudos da performance.
Embora os estudiosos dos estudos da performance usem muito o
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“arquivo” - o que está nos livros, nas fotografias, no registro arqueológico,
nos vestígios históricos, etc. -, seu foco dedicado é o “repertório”, ou seja,
o que as pessoas fazem na atividade de fazê-lo3.
Para Schechner, a performance não está em nada, mas entre. Esse entre é o
processo que, uma vez desaparecido, deixa marcas no corpo como memória. A
memória pode ser (re)impressa em distintos materiais. Na passagem acima,
Schechner faz ponte com a noção de arquivo e repertório de Diana Taylor. A autora
denomina arquivo como documentos, textos literários, cartas, restos
arqueológicos, ossos, vídeos, disquetes e repertório como atos ao vivo (cf. Estudios
Avanzados de Performance, 2011, p. 13).
Segundo a proposição da autora, “arquivo como documentos” parece não ter
distinção. Textos literários, cartas, restos arqueológicos, ossos, vídeos, disquetes
podem ser considerados tanto arquivos como documentos. O que os distinguiria?
E repertório, para Taylor, é a própria prática em ato com tais arquivos.
Amelia Jones, nessa mesma obra do autor, deixa implícito o ato de
documentar atrelado ao tempo presente. “A reperformance também expõe a
centralidade do mercado em todas essas expressões; pode-se argumentar que o
impulso de ‘reperformar’ ou documentar o ato ao vivo resulta em grande parte da
pressão do mercado global de arte ligado às artes visuais” (Jones apud Schechner,
2013, p.168)4. Infere-se de “documentar o ato ao vivo” um agora, tempo presente,
implícito. O que já aponta alguma distinção.
Marcelo Soler em Teatro documentário: a pedagogia da não-ficção (2008)
inaugura no meio acadêmico brasileiro a discussão sobre o uso de documentos
em cena. Em sua tese O Campo do Teatro Documentário (2015), ele aprofunda
suas reflexões. O autor se preocupa em não fechar o campo de trabalho com
documentos, apontando a noção de campo documental com contornos fluidos
3 Performances are actions. As a discipline, performance studies takes actions very seriously in four ways.
First, behavior is the “object of study” of performance studies. Although performance studies scholars use
the “archive” extensively what’s in books, photographs, the archaeological record, historical remains, etc.
their dedicated focus is on the “repertory,” namely, what people do in the activity of their doing it. (Tradução
nossa)
4 The re-enactment also exposes the centrality of the marketplace in all of these expressions; one could argue
the impulse to “re-enact” or document the live act results largely from the pressure of the global art market
attached to the visual arts. (Tradução nossa)
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para a reflexão. Como coloca nas primeiras páginas de sua tese (Soler, 2015, p. 16),
Na língua portuguesa, a palavra campo remete a um vasto espaço sem
uma fronteira visivelmente delimitada. Ao entrarmos em campo,
caminhamos, localizamos, posicionamo-nos e quando atribuímos sentido
a aquele espaço, transformamo-lo em lugar (Giddens, 2002). Da mesma
forma a perspectiva de campo de conhecimento não se refere a uma
área com rígidos contornos e permeada de definições, mas a uma
possibilidade de lugar destinado à reflexão.
Para o autor, a palavra gênero tem muitas relações com literatura dramática.
O termo mais interessante que gênero para ele seria então campo, que é de difícil
delimitação. O pesquisador cita ainda Béatrice Picon-Vallin que fala de teatros
documentários, ou seja, o plural na expressão compreende muitos modos de
entender e fazer teatro com base em documentos.
Soler explica que documentário vem do francês documentaire que designa
filmes de viagens dos antropólogos (vontade de registrar algo), formato depois
incorporado pelo cinema. Em sua pesquisa, o teatro de Erwin Piscator aparece
como precursor do uso de documento em cena fortemente inclinado ao gesto
político. “Nas experimentações do encenador alemão, a imagem audiovisual foi
entendida como uma espécie de documento articulado à cena com intuito de
comprovar a veracidade histórica dos fatos narrados ou dramatizados pelos
atores” (Soler, 2015, p.38). Entretanto, na contemporaneidade o gesto histórico-
político não é uma característica definidora. Por isso, tantos tipos de teatros
documentários. “A opção pelo termo campo no lugar do termo gênero leva em
conta o projeto estético em torno da encenação como um todo, em oposição a
um olhar mais voltado à dramaturgia [texto escrito]” (Soler, 2015, p.45). E Soler
complementa sua reflexão:
No Dicionário de Teatro, de Patrice Pavis (Pavis, 1999) existe um verbete
que, além de conceituar o teatro documentário, pontua algumas de suas
características e o contextualiza dentro da história do teatro. O teórico
centra sua análise na dramaturgia associada a esse termo. Para ele há
dois aspectos principais que caracterizam o teatro documentário como
tal: o fato de partir de documentos e fontes, denominadas por ele como
autênticas, e a seleção e articulação dessas fontes dentro do texto em
torno de uma tese sociopolítica defendida pelo autor (Pavis,1999). (Soler,
2015, p.45).
Soler acrescenta que “não se excluem, na teorização de Pavis, textos que
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mesclam documentos e ficção” (Soler, 2008, p.39). Aponta que o verbo
documentar trata de reunir documentos para provar algo, mas isso não basta, pois
há a atividade de mães que reúnem vários documentos dos filhos como forma de
preservação da memória. Os primeiros documentários no cinema também faziam
isso com a ideia de preservar tradições e culturas em desaparecimento. O foco do
pesquisador é o ato de documentar em arte para quem documentário é um
discurso artístico, um projeto estético particular, distinto da ficção. Soler aponta
que com os irmãos Lumière ainda não havia um projeto estético fundado no
trabalho formal com a linguagem, os irmãos apenas colocavam a câmera para
gravar. Para ele, documentar assemelha-se ao próprio mecanismo da memória:
A memória, assim, não é o que passou, mas a reescrita e a consequente
significação dada ao passado. Conclui-se que a narrativa documental, em
meio a “lembranças e esquecimentos”, daquilo que se deseja explicitar,
segundo determinados interesses, reescreve o passado, construindo um
memorial possível daquilo que se documenta (Soler, 2015, p.58).
A notória expansão do campo documental como espaço para a construção
da memória de algo, de alguém, de algum lugar ou de uma época é evidente nas
produções cênicas contemporâneas, como aponta o pesquisador:
A encenação de Luís Antônio Gabriela (2011) além de exemplificar o
crescente interesse do público pela presença da memória pessoal em
cena, permite observar que a necessidade de organização simbólica do
passado está diretamente relacionada ao querer documentar. [...] Em
propostas nas quais a construção do passado como discurso tem por
base a memória pessoal de pelo menos um dos envolvidos, como é o
caso de Luís Antônio Gabriela, os criadores além de trabalharem a partir
de arquivos pessoais, tendem a ter a cena como espaço para a
organização simbólica da experiência vivida. [...] No caso de Baskerville, a
opção foi propor ao coletivo de atores que construísse a partir dos
documentos levantados (cartas, vídeos familiares, entrevistas gravadas,
fotos e o próprio relato do diretor) as cenas que dariam conta de
teatralizar parte da história de Luiz Antônio, especialmente no que se
refere a sua transformação em Gabriela (Soler, 2015, p.61-63-64, grifos
nossos).
Para o pesquisador a realidade é sempre uma construção. Documentar para
Piscator (1968) é reconstruir o passado de algo, um ponto de vista: uma ética.
Essa reconstrução pode ser a autobiografia, fatos históricos, a memória do outro
etc. O documento reconstrói o passado, registro de algo. Para o autor existem
alguns fundamentos sobre o uso do documento: 1) intencionalidade de construir
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um passado; 2) relação que se tem com esse documento, e.g., pode-se ter
documentos institucionalizados e não-institucionalizados. Em cena é possível
produzir documentos; documento, tempo, lembrança estão inter-relacionados,
outras possibilidades de registro e memória de algo são possíveis; 3) fruição: só é
válida se o espectador tem um pacto documental.
Em suma, documentário pode se tornar o documento de algo. Documentário
é um discurso estético que apresenta um ponto de vista sobre a realidade (não é
a realidade). Documento é o registro de determinado momento. Documentos
autobiográficos, ao passar por processos de construção artística, tornam-se
documentário. Para Marcelo Soler, que reitera Pico-Vallin, importa se o teatro é
interessante. O artista-pesquisador tem predileção por dispositivos de encontro
fora de lugares comuns para documentar.
Cumpre notar o campo lexical instituído por Soler como: documentário,
documentaristas, documentar, documentado (documento vivo em cena: a
pessoa), pacto documental, narrativas documentais, documentários cênicos,
encenações documentais, natureza documentária, campo documental, práticas
documentais, que contorna seu trabalho aproximando bastante o documentar
com o tempo presente. Como exemplo, apontamos Devotionalia, projeto por meio
do qual um ateliê de moldes de cera (ex-votos) e jogos com ações de caráter
artístico-pedagógico criam um dispositivo de encontro na busca de construção de
um conhecimento passível de ser documentado:
Ações parecidas com as citadas [Devotionalia] acabam por estar
presentes dentro de processos contemporâneos em teatro
documentário para que o documentar aconteça, sem necessariamente
passar pelas tradicionais entrevistas e pesquisas em arquivos. [...] Seja
um documentário cuja pesquisa esteja pautada em materiais de arquivo
ou aquele resultante de procedimentos in loco, com um caráter mais
antropológico, a metodologia de trabalho, que tangencia o uso ou não
desses instrumentos, é variável a cada processo, diferenciando-se de
acordo com o estilo do documentarista. Afirma-se com isso que não
existe uma metodologia específica em teatro documentário, mas um
modus operandi, uma maneira de agir meio recorrente, pautada,
sobretudo, nas necessidades advindas do ato de documentar (Soler, 2015,
p.83, grifo nosso).
Se o documentar se associa muito ao tempo presente, é o arquivo que amplia
a pesquisa. Soler corrobora tal afirmação quando a certa altura diz: “Motivada pela
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experiência, logo após a ação com cada grupo, a Cia. Teatro Documentário se
voltava para a pesquisa em arquivos, num movimento em que, do convívio, nasce
a necessidade de ampliação do conhecimento até ali construído pela troca” (Soler,
2015, p.146).
Janaina Leite em Autoescrituras performativas: do diário à cena, dissertação
de mestrado (2014), publicada como livro pela Perspectiva cita o trabalho de Soler.
Lá, a palavra arquivo concorre com documento e por vezes oscila. Na dissertação
fica implícito que o trabalho sobre arquivos gera documentos. Infere-se isso de
alguns enunciados no próprio sumário do trabalho da artista: “III. 3) O diário como
matéria bruta para criação ou o trabalho sobre arquivos” e “V. 1.b) O documentário
cênico: manipulação de arquivos como estratégia”. Por meio desses dois
enunciados, depreende-se que o arquivo passa ao estatuto de documento na
medida em que o investigamos, o questionamos e o manipulamos. A
operacionalização de arquivos em documento engendra uma estética que se
delineia a partir da temática desejada por artistas.
Janaina Leite (2014, p.34) prossegue dizendo que “Podemos ainda perceber
que estes arquivos demandam trabalho. Trabalho de leitura e de recomposição”.
O que remete à noção de arquivo, primeiramente definido como uma prática, por
Michel Foucault, em A Arqueologia do Saber, 2008 [1969]. No campo do teatro,
Leite cita Vivi Tellas - “Tellas diz que pessoas são arquivos de experiências e
saberes. São também ‘pequenos mundos em extinção’, já que todo arquivo traz o
fantasma da morte de algo que não existe mais ou em breve não existirá (Leite,
2014, p.34)”. Na sequência, a partir de Lejeune, comenta sobre o coreógrafo Denis
Plassard que decidiu mettre en danse um arquivo, ou seja, colocar um arquivo para
dançar como o diário de uma adolescente do séc. XIX.
Se antes o suporte de arquivos e documentos não era propriamente o corpo
de uma pessoa, pelo menos como inferido mais acima com Schechner e Taylor,
agora fica explícito o corpo de carne e osso. Tanto com a noção de “documentado”
(pessoa ao vivo em cena) quanto com “pessoas são arquivos vivos”. Esse corpo
ontológico endossado, através dos enunciados de Soler e Tellas, nos permite dizer
que há então dois tipos de corpo em interação. Um corpo de carne e osso que, ao
mesmo tempo em que é arquivo e consome arquivos, produz documentos que
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podem voltar a ser arquivos e, nesse ponto fulcral, ele se torna o operador das
práticas. Mas não fica claro por que ele é um arquivo. pode ser arquivo na
medida em que é um objeto significante e se falamos em significante precisamos
incluir no debate os processos de significação que são processos de práticas
semióticas (Fontanille, 2008).
Esse corpo de carne e osso quando escreve deixa marcas de uma formação
cultural que obteve, e.g., o uso de determinada língua. Uma língua sempre
acompanha um corpo. Quando pinta e/ou desenha deixa implícito um pensamento
sobre a noção de pintura ou desenho. Quando manipula um objeto levanta
questões socioculturais da época. Quando faz um gesto sem fala pode se inserir,
sempre por relação, na cadeia significante e histórica de uma série de outros
gestos, e.g., o gesto do balé difere do gesto da dança moderna, que por sua vez,
difere do gesto da dança contemporânea, muito mais afeita à uma dança de
pesquisa. É nesse sentido que o corpo pode ser um corpo-arquivo que retém
memória e que opera transformações quando outro arquivo ingressa em seu
campo de percepção engendrando novos documentos, corpos-documentos.
Um corpo-documento é uma memória corporal. E ela não é um assunto
apenas da memória motora, física e espacial ou assunto apenas da neurologia.
Como apontou Deborah Colker5, o corpo tem uma gama de memória “[...] mas pra
dançar é mais do que isso... memória corporal é uma conexão absurda... pra
dança... [é] o que que a gente pensando... o que a gente querendo...”. A
repetição cria memória corporal, significados, intensidades e ressignificações.
Tanto para a dança quanto para o teatro ou qualquer outra área artística ou não.
Então memória, como se sabe, é a capacidade de armazenar, recuperar
informações e editar. Memória não é um depósito. Ela é viva e plástica. Sua edição
memorialística se imprime em distintos suportes, sendo o corpo ontológico de
carne e osso um desses suportes com suas imagens psíquicas (mental). Mas as
imagens podem ser impressas em outros suportes como numa folha de papel,
num vídeo, em computadores e/ou celulares etc.
Essas imagens de diferentes suportes continuam sendo parte do corpo. São
5 Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/10575205/. Acesso: 14 jun. 2024. Tempo: 44” a 1’05”.
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marcas. Marcas da memória de interação dos corpos. E elas constituem, como
demonstrou Jacques Fontanille, um corpo-invólucro (2011). Assim, corpo-invólucro
está na base do que categorizamos como arquivos ou documentos. Categorização
essa bastante difundida nas artes cênicas no que concerne ao corpo, à escrita e à
performance na contemporaneidade. Como vimos, sutilezas referindo-se às
produções discursivas sobre arquivo.
Em O arquivo e a pesquisa educacional: aproximações, Julio Groppa Aquino,
interlocutor de Michel Foucault, Arlette Farge e Georges Didi-Huberman,
compreende o arquivo como uma (re)montagem, subsumindo duas noções:
arquivamento (ordenação de uma produção discursiva heteróclita e disforme) e
arquivização (imaginação analítica recriadora no confronto com as lacunas do
arquivo, uma agulha que vai costurando os pontos de contato). Esse processo de
remontagem traz um tom analítico e performativo engendrando novos
documentos. Numa passagem desse texto, Aquino (2019, p.220) afirma:
[...] a eleição e o processamento de documentos de uma época
relativamente distante de nós tornam-se imperiosos, pois apenas por
meio de certo afastamento do presente torna-se viável conjecturar as
sombras e os contornos das problematizações que a intensidade
luminosa desse mesmo presente se esforça para apagar (Grifo nosso).
Esse gesto documental de remontagem que se pelo “processamento de
documentos de uma época relativamente distante de nós” está atrelado a uma
questão fenomenológica do tempo entre passado e presente. Endereça-se ao
passado trabalhando no presente. Em Festa de Separação: um documentário
cênico, Leite (2014, p.81) aponta:
O uso do deo é o mais explorado, trazendo na tela dois tempos da
experiência: as imagens de arquivo do tempo em que ainda estavam
casados, que surge através de registros caseiros do cotidiano, de viagens,
etc.; e as imagens das festas de separação que já apresentam uma dupla
camada, já que, ainda que fossem festas reais promovidas por um ex-
casal real, faziam parte do processo criativo e portanto já estavam
direcionadas para a produção de materiais de um possível espetáculo
(Grifos nossos).
É significativo a fenomenologia do tempo com a fala da pesquisadora “arquivo
do tempo” (estavam) para “processo criativo” (apresentam). Na tese de doutorado,
Ensaios sobre o feminino e a abjeção na ob-scena contemporânea, Leite (2021,
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p.168) escreve:
No primeiro dia de um laboratório que teve o seu chamamento voltado
para homens, propus aos 36 participantes (34 rapazes e duas pessoas
não-binárias) que trouxessem uma imagem, objeto ou documento que se
relacionasse, segundo o entendimento e repertório de cada um, ao
enunciado do grupo de trabalho que desenvolveríamos: Feminino Abjeto
2 o vórtice do masculino. (Grifo nosso).
A artista-pesquisadora não usa a palavra arquivo, mas documento. Isso
corrobora o uso da categoria documento na medida em que o questionamento já
havia sido exposto na afirmação: “documento que se relacionasse segundo o
entendimento e repertório de cada um”. Esse objeto semiótico se aproxima do
presente pela relação com o pedido da pesquisadora. Um pouco mais adiante a
distinção entre arquivo (passado) e documento (presente) oscila quando Janaina
Leite (2021, p. 264, grifo nosso) deixa implícito o documento como arquivo, nesse
sentido se aproxima da definição de Taylor com o arquivo e o repertório:
Dentro dessa trajetória de pesquisa que se iniciou em 2008, sobre o
documentário e a autobiografia nas artes, o registro do meu parto era um
documento, como muitos outros que eu acumulei durante os processos,
mas que permanecia mudo enquanto eu ainda não era capaz de fazer a
pergunta que o fizesse falar (Leite, 2021, p.264).
O que se pode dizer é que a angústia e a dúvida fazem a exumação do arquivo,
tira-o do esquecimento e o presentifica pelo questionamento. Assim, o documento
se atualiza e se realiza. A interação com um documento do passado (o registro do
parto) é uma força que impele a artista a novas perguntas. Sobre teoria e dor, Leite
(2021, p.328) comenta:
O que eu posso dizer, em primeiro lugar, é que nesses já mais de dez
anos nos quais enveredei pela pesquisa sobre o documental e o
autobiográfico no teatro, eu nunca quis fazer uma peça sobre coisas que
se passaram na minha vida. O problema foi que, quando isso se deu, não
havia como não fazer. Conversas com meu pai e, depois, Stabat Mater
nascem, em primeiro lugar, da pressão das marcas, de sua violência, sua
urgência, a necessidade de criar um novo corpo para responder a essas
marcas marcas que me obrigaram a pensar, parafraseando Suely
Rolnik. (Grifos nossos).
Como previamente apontamos, imagens em diferentes suportes continuam
sendo parte do corpo. São marcas da memória de interação do corpo e são
definidas por Jacques Fontanille como corpo-invólucro. A partir de arquivos e/ou
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documentos pode-se afundar na sensibilidade do corpo semiotizado. A memória
corporal não é apenas uma memória motora, física e espacial, implica também
um desdobramento corporal com a noção de corpo-invólucro: um dos quatro
tipos de manifestação de figuras do corpo que compõem o corpo semiótico, a
saber, corpo-invólucro, corpo-ponto, corpo-carne e corpo interno.
Quando uma dessas figuras entra no campo de presença (Zilberberg, 2012)
de artistas, e.g., arquivos e/ou documentos, esse campo de presença que é
perceptivo processa novas significações. Como apontou Leite (2021, p.338), “o
processo tem uma característica documental”. Criação e pesquisa. Tentativa e
erro. Edição para a autora. Esse percurso baliza uma atividade semiótica da
memória do corpo: corpo semiótico. Nessa breve, contudo, considerável reflexão
teórica sobre arquivo e documento no campo dos discursos de pesquisas
artístico-acadêmicas, depreendemos que uma temporalização dessas duas
categorias importantes de serem consideradas no processo artístico.
Em se tratando de arquivos e documentos, observamos que o arquivo é da
ordem do passado. Ou ainda ele pode ser categorizado como um arquivo “do
presente”. Essa indexação temporal é produzida pelo discurso ao se trabalhar com
distintos materiais. O documento é da ordem do presente. Ou ainda ele pode ser
categorizado como um documento “do passado”. Essas indexações temporais
dizem respeito à inexorável questão fenomenológica do tempo. Entretanto, essa
fenomenologia se torna mais complexa porque, ao lidar com um arquivo ou
documento do passado, o atualizamos pela indagação e manipulação. Ainda, a
memória como arquivo que está em você te impele a promover um diálogo entre
passado e presente e nisso está o coeficiente mítico da coexistência de dois
tempos em concorrência. A memória potencializada pode vir à tona e suscitar
novos procedimentos. Pode-se atualizar um arquivo pesquisando seus traços
recorrentes limitados a um campo de pesquisa: reconstruir o quê? Verbos são
bons indicadores da temporalização. Processo (documento) não é processado
(arquivo), embora o arquivo possa ser um elemento pinçado para o presente
acentuando o gesto documental operado pelo corpo-actante. Nesse sentido, uma
semiótica do corpo traz uma contribuição relevante para as práticas cênico-
performativas contemporâneas.
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Corpo-actante: substrato das práticas performativas
Corpo e Sentido, publicado em francês em 2011 (Corps et Sens) é uma
versão revisada de um livro anterior, Soma et Sema. Figures du corps
(2004), cujo editor havia desaparecido três anos após a publicação. Essa
nova versão que está aqui apresentada em português, concentra-se
particularmente no argumento principal de uma teoria semiótica do
corpo. Coloca-se, inicialmente, como princípio fundador, que o sentido
é apreendido em suas transformações e transposições, quaisquer que
sejam elas: a junção e o ajustamento de uma expressão e de um
conteúdo, a enunciação que transpõe uma experiência em um mundo
significante, o processo que transforma estados e situações etc. Para
cada uma dessas transformações deve-se supor uma força que é
mobilizada por um actante, ao qual pode-se atribuir a operação
(Fontanille, 2016, p.9, prefácio da versão traduzida).
No discurso da maior parte das ciências humanas, o corpo é um tema
onipresente, segundo Fontanille. A história, a sociologia, a poética, a antropologia,
a filosofia, a comunicação fazem, das figuras do corpo, argumentos teóricos em
debates próprios. O corpo faz um retorno explícito, na semiótica discursiva, nos
anos 80 com as temáticas passionais, a estesia e a ancoragem da semiose na
experiência sensível.
Para o autor, a revisão da semiótica do corpo abre um domínio de novas
investigações que ele denomina semiótica da marca. A semiótica sempre manteve
relações ambíguas com a psicologia e a psicanálise, uma abordagem semiótica
centrada no corpo-actante vai colocar o corpo imperfeito em destaque. Nenhum
ser humano é perfeito, totalmente programado, quando se considera sua relação
com a psicanálise por meio dos afetos, dos acidentes narrativos, dos atos falhos
e dos acontecimentos como significantes.
O corpo então tem um duplo estatuto na produção de conjuntos
significantes: (1) o corpo é o substrato da semiose e (2) é uma figura semiótica do
próprio corpo que aparece em semióticas-objetos por meio do invólucro corporal.
O invólucro é manifestado na fenomenologia, na psicanálise etc. Fontanille dialoga
com muitos autores; mas as bases que dão sustentação ao seu pensamento, além
da semiótica discursiva e tensiva, são, a fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty,
a questão da identidade com Paul Riœur (Si e Ipse) e, fundamentalmente, o livro
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do psicanalista Didier Anzieu - Le Moi-Peau6 (O Eu-Pele) - para quem o Eu-Pele é
uma metáfora fundada no invólucro sensorial entre mãe e bebê inter-relacionando
conteúdo psíquico e significantes formais que Fontanille acentuará, em seu livro,
como Soi-Peau.
O Si-pele é um invólucro, pele dos arquivos, uma semiótica-objeto, que
contém figuras do corpo. A figuratividade impressa em um determinado suporte
funda o arquivo. Não há arquivo sem suporte, sem memória figurativa. Isso posto,
quem opera com arquivos, (re)montagens, assume a função do corpo como
substrato da semiose (corpo-actante). É nesse ponto que o encontro entre os
vivos e os mortos. Se considerarmos que os mortos habitam os arquivos como
marcas deixadas em uma superfície de inscrição e estes arquivos, marcas,
emanam forças, intensidades, formas de vida, eles podem ressurgir no presente
por meio de processos nos quais as marcas são indagadas, pesquisadas,
documentadas.
No referido livro Corpo e Sentido (2011)7, Jacques Fontanille semiotiza o corpo
ontológico de carne e osso que ajuda a pensar tanto processos de análise quanto
produções artísticas no campo das artes cênicas com outras áreas do saber. Para
o semioticista, o eu (Ego) que diz respeito à totalidade do corpo, chamado de um
corpo-actante, é divido, em um primeiro momento, entre um Eu (Moi) e um Si
(Soi).
O Moi é definido como Eu-carne, base sensório-motora que tem a ver com a
cinestesia do corpo, ou seja, a movimentação e a captação de todas as outras
sensibilidades por sua polissensorialidade que nada mais é que um campo. Essa
região tem a ver com as pressões e as intensidades que o corpo-carne sofre. Faz
ponte com o gozo e o sofrimento. É matéria e energia, corpo pulsional, do campo
somato-psíquico.
O Soi é o corpo próprio, subdividido ainda em Si-idem (repetições) e o Si-ipse
6 À la première finition de 1974, Didier Anzieu a ajouté en 1985 que le Moi-Peau sert à l’enfant à se représenter
lui-même comme Moi « contenants les contenus psychiques » à partir de l’expérience de la surface du corps.
Cette précision met l’accent sur cette différenciation entre contenants e contenus et indique la voie qu’il a
de plus en plus explorée, celle des contenants, des enveloppes et de leur mode de fonctionnements.
(Séchaud, 1995, p.2, préface à la deuxième édition).
7 O livro foi traduzido por Fernanda Massi e Adail Sobral, Londrina: Eduel, 2016.
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(projeto). Ele recebe os investimentos pulsionais do corpo-carne formando um
campo polissensorial compósito que é o invólucro corporal. Esse invólucro
corporal é uma linha de fronteira entre Moi e Soi (Eu/Si). É uma zona de conexão
sinestésica do corpo. Eu/Si trabalham de forma recíproca, um influencia o outro.
Eles formam, por meio dessa linha de fronteira que é o invólucro, o corpo-
invólucro. Esse corpo-invólucro guarda traços dos eventos externos (físicos) e
internos (psíquicos).
Do corpo-invólucro, pode-se deduzir ainda mais três figuras semióticas do
corpo, comentadas no tópico acima: corpo-ponto, corpo-carne, corpo-interno, que
constituem em seu conjunto a memória corporal enunciada entre (Eu) e (Si) como
memória figurativa do corpo que performa, atua. Essas figuras do corpo levam a
figuras de movimento, i.e., inscrições em suporte para corpo-invólucro, marcas
dêiticas de movimento-trajetória para o corpo-ponto, marcas sensório-motoras
como tremores, alterações rítmicas, clivagens perceptivas, gritos etc., puro sentir
para o corpo-carne e marcas de autorreflexão ainda não verbalizadas, uma vez
enunciadas, acarretam a superfície de inscrição, logo, o corpo-invólucro. Vejamos
essa ilustração esquemática:
Gráfico 1 Trata-se de uma síntese conceitual do livro Corpo e Sentido (2011). Ela traz uma
adaptação nossa enquanto esquema teórico do corpo semiotizado. O desenho que representa um
corpo humano (Ego), através das setas, indica a semiotização que o corpo ontológico está sofrendo:
(i) uma bipartição semiótica (Moi/Soi); (ii) em seguida, uma tripartição designando o eu-carne para
o eixo da intensidade e o Si (idem e ipse) para o eixo da extensidade. Na fronteira de encontro entre
esses dois eixos do campo tensivo, condensa-se o invólucro corporal que, por sua vez, resulta no
(iii) corpo-invólucro do qual se desdobram as outras figuras do corpo. Todas elas estão em contato.
Sendo elas mesmas verificáveis como propriedades sensíveis do texto entendido como arquivo ou
documento.
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Ainda considerando o próprio esquema acima apresentado, se pensarmos
num trabalho de práticas corporais onde o corpo de carne e osso é sempre
requisitado pelos diversos estudos da performance, semioticamente estamos
pensando no corpo-actante que sustenta todas as figuras do corpo, porém se
acentua o corpo-carne local onde o puro sentir, matéria e energia, pulsões levam,
pouco a pouco, a uma sensação e a uma autorreflexão de si orientada para o
corpo-interno base mínima para que surja um corpo-invólucro que se sedimenta
em um suporte recebendo a impressão formal da linguagem e o formal remetendo
à estrutura, portanto, à imanência.
É nessa parte que se o trabalho formal com a linguagem mais visível,
porque desde o princípio a linguagem está performando em nós. É justamente
nesse ponto que devemos considerar as transformações, (de)formações do
suporte que engendram uma semiótica-objeto. Ora, uma semiótica-objeto pode
ser, para fins de exemplo, uma folha destacada de um diário (arquivo). Assim, a
noção de auto/biografia (enunciação subjetiva) fica explícita nessa semiótica-
objeto que materializou uma experiência sensível. Imaginemos que essa folha,
manchada pelo tempo e datada do final dos anos 80, seja encontrada por um
pesquisador que resolveu reconstituir um corpo pedagógico que lá aparecia como
fragmento perdido no tempo. Ora, a assunção de tal empreitada coloca tal folha
no tempo presente enquanto gesto documental, embora a mesma seja um
arquivo. Logo, as noções de arquivo e documento são entidades temporais,
porque, para analisar tal arquivo, agora como fragmento de documento, trago-o
para o presente. Arquivos, semióticas-objetos, nos permitem perceber relações
com aquele esquema corporal, sua pele, linguagem.
De que tipo é a forma desse corpo-invólucro chamado arquivo? Se for da
ordem de texto-enunciado, ele sofre as coerções de gênero (diário, texto teatral,
jornal, fotografia, gravação de vídeo sobre um suporte?). Nas práticas semióticas
(2008) há: signos, textos, objetos, práticas, estratégias, formas de vida. Uma prática
analisada, documentada, sofre coerções do tempo, por isso os usos de arquivo ou
documento.
Será necessário agora considerar outras categorias e coerções de gênero,
bem como o discurso que se estrutura e, assim, retrocedendo pouco a pouco,
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chegaremos à forma: Corpo-invólucro. Se retrocedermos mais um pouco
chegaremos ao caráter compósito da polissensorialidade que é um campo. Ou
seja, esse campo deu origem ao invólucro corporal e nele pode-se afundar em
pontos como a noção de eixos de intensidade (sensibilidade: estados de alma) e
extensidade (inteligível: estados de coisas) marcados em tal arquivo pela
linguagem analisável em dois eixos: a) o Si-idem (remanências do corpo) que são
as repetições e b) o Si-ipse (saturação do corpo), as capacidades de suportar os
impactos da vida, e ainda assim manter um percurso, o que leva a um projeto de
identidade. Portanto esse corpo semiótico é útil para processos artísticos quando
se trata de diversos jogos e práticas corporais que fomentam processos de criação.
Pode-se estar acentuando pelo menos um daqueles quatros tipos de figura
corporal, pois todos os corpos estão em contato. Esse campo somato-psíquico
semiotizado refina o pensamento sobre qual eixo se está acentuando o trabalho
de criação artística, bem como qual eixo é mais mobilizado em outras produções
críticas como as críticas de teatro, dança ou performances.
Forma de vida crítica
[…] O objeto da crítica é muito diferente; não é o “mundo”, é um discurso,
o discurso de um outro: a crítica é discurso sobre um discurso; é uma
linguagem segunda, ou metalinguagem (como diriam os lógicos), que se
exerce sobre uma linguagem primeira (ou linguagem-objeto). Segue-se
daí que a crítica deve contar com dois tipos de relações: a relação da
linguagem crítica em relação com a linguagem do autor observado e a
relação desta linguagem-objeto com o mundo. É a fricção destas duas
linguagens que define a crítica e lhe talvez uma grande semelhança
com uma outra atividade mental, a lógica, que ela também é fundada
inteiramente sobre a distinção da linguagem-objeto e da metalinguagem
(Barthes, 1964, p.255)8.
Segundo Barthes, a crítica é um discurso sobre um discurso. Ora, a
linguagem-objeto Meu Nome: Mamãe é compatível com a fala do pensador e é
coerente com o corpo semiótico que acabamos de apresentar, justamente, por
8 […] L’objet de la critique est très différent ; ce n’est pas « le monde », c’est un discours, le discours d’un autre
: la critique est discours sur un discours; c’est un langage second, ou méta-langage (comme diraient les
logiciens), qui s’exerce sur un langage premier (ou langage-objet). Il s’ensuit que l’activité critique doit
compter avec deux sortes de rapports : le rapport du langage critique au langage de l’auteur observé et le
rapport de ce langage-objet au monde. C’est le « frottement » de ces deux langages qui définit la critique et
lui donne peut-être une grande ressemblance avec une autre activité mentale, la logique, qui elle aussi est
fondée tout entière sur la distinction du langage-objet et du méta-langage. Cf. Qu’est-ce que la critique? [O
que é a crítica?] in Essais Critiques. [Ensaios críticos] (Tradução nossa).
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produzir uma semiótica-objeto.
Sendo a crítica uma fricção entre duas semióticas-objetos (metalinguagem),
parte do corpo crítico é feito da experiência sensível proveniente do espectador,
pois seu corpo está sempre implicado no processo. No caso, o corpo do
enunciador deste artigo que ao passar por tal experiência, assistir ao solo, constrói
uma semiótica-objeto configurada como um texto-enunciado, ao qual se somam
as outras semióticas-objetos do espetáculo, ou seja, arquivos publicizados da
obra. Esses fragmentos de arquivo, tornados agora fragmentos de documento,
abrem para o gesto documental da prática de leitura crítica da cena
contemporânea.
Figura 1 - Print extraído do suporte Instagram9 de mesmo nome do espetáculo. O Instagram
enquanto suporte in-forma um corpo-invólucro (arquivo) publicizado que, na prática de leitura,
torna-se um fragmento de documento analisável por se tratar de uma semiótica-objeto.
Conforme se pode ler nesse fragmento de documento enquanto semiótica-
objeto:
A peça Meu Nome: Mamãe atravessa emocionalmente com cronologia
própria uma jornada de vida do ator ao lado de sua mãe e de sua família.
Aury Porto evoca e invoca lembranças, histórias, canções, e construções
acerca da travessia de um filho diante do adoecimento da mãe. A doença
de Alzheimer, que acomete cada vez mais brasileiros, é narrada no
espetáculo em experiências que, por muito íntimas, se tornam universais
(Texto transcrito do suporte acima citado).
9 Disponível em: <https://www.instagram.com/meunomemamae/>. Acesso: 14 jun. 2024.
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Ao entrar no espaço do Ágora Teatro no dia 24 de maio de 2024, entra-se
num espaço intimista. Porto está de com uma camiseta azul. Todo o espaço
cênico que será praticado por ele está coberto de lençóis brancos. A sensação é
de que se está entrando numa casa, num porão, ou por que não, no próprio espaço
inconsciente, projetado cenicamente. Um sentimento de fantasmagoria surge pelo
aspecto composicional com os lençóis brancos que será por remanência
corroborado no decurso da cena prática.
Ao mesmo tempo em que o ator joga na porosidade entre consciente e
inconsciente por meio de passagens e transformações, de fronteiras fluidas e
borradas, o espectador vai adensando nas experiências fantasmáticas de Porto de
forma muito similar a um trecho da fala de Roland Barthes em sua Aula inaugural
(1977) no Collège de France:
Gostaria pois que a fala e a escuta que aqui se trançarão fossem
semelhantes às idas e vindas de uma criança que brinca em torno da
mãe, dela se afasta e depois volta, para trazer-lhe uma pedrinha, um
fiozinho de lã, desenhando assim ao redor de um centro calmo toda uma
área de jogo, no interior da qual a pedrinha ou a lã importam finalmente
menos do que o dom cheio de zelo que deles se faz. Quando a criança
age assim, não faz mais do que desenrolar as idas e vindas de um desejo,
que ela apresenta e representa sem fim. Creio sinceramente que, na
origem de um ensino como este, é preciso aceitar que se coloque sempre
um fantasma, o qual pode variar de ano a ano. Isso, eu o sinto, pode
parecer provocante: como ousar falar, no âmbito de uma instituição, por
mais livre que seja, de um ensino fantasmático? (Barthes, 1977, p.42,
tradução de Perrone-Moisés).
Como apontou o texto do Blog Medium (2024, online, s/p) “[...] [o] espetáculo
transita entre a memória do portador da Doença de Alzheimer e o surrealismo na
qual as imagens e situações se expressam diretamente do inconsciente.”. Cumpre
ressaltar que imagens e situações não se expressam diretamente do inconsciente.
Qualquer imagem oriunda desse espaço passa por uma barreira de filtragem,
segundo o próprio discurso psicanalítico.
Desse modo, o nível de tratamento que as imagens sofrem em ato na cena
prática está num nível mais brando de controle da prótese ego, tornando-se mais
desmanchadas durante o sono. Mas o ator não está em sono no espaço cênico,
pode-se postular que ele o re-presenta, e que nesse ato, irrupções que não
chegam a ser figuras, mas força, elã de irrupção, faz ponto de contato com o real
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na medida em que pode desmanchar programações cênicas.
Esse corpo de sono/sonho em trânsito (programações cênicas) é uma forma
cênica (montagem). Forma quer dizer planos de imanência, ou seja, níveis de
pertinência do plano da expressão. A forma cênica é uma estrutura, isto é, rede
interna de relações entre termos interdependentes. O estilo estratégico como
estrutura fantasmática, em que lembranças, angústias e suavidades são os
operadores de práticas geradoras de ressignificações para o indivíduo, coloca no
eixo o ator práxico (Aury Porto) como sujeito no mundo a desenvolver uma cena
prática Meu Nome: Mamãe, em parceria com demais artistas e outros profissionais,
como rede interna de relações interdependentes. A esse respeito, a dramaturga
Claudia Barral comenta no Blog Medium:
Ações, esboços de diálogos, depoimentos e intervenções foram sendo
paulatinamente lapidados e reorganizados em um exercício delicado de
tessitura de fios de memória e de experiência. A dramaturgia persegue,
na verdade, reconstituir, em um mosaico, os laços que unem mãe e filho.
São cenas da vida cotidiana que, tocadas pela condição do Alzheimer, se
reestruturam não para o apagamento, mas para o aflorar de uma
transformação. (Blog Medium, 2024, online, s/p).
Ao pensar sobre “ensino fantasmático” como colocado mais acima por
Barthes, pode-se verificar os fios das ações de reconhecimento de variados
actantes: a memória do portador da doença de Alzheimer, a convivência de Porto
nesse ambiente, o surrealismo, o mosaico que, como atores constituintes do
espetáculo, insta o inconsciente que pode dilacerar o tempo presente. Tanto para
o ator quanto para alguém que esteja nesse mesmo espaço sensível sofrendo a
cena prática no sentido de pâtir, em francês, que remete ao páthos do mundo
significante oriundo da manipulação linguageira da cena teatral.
Isso não significa que irrupções não possam surgir no campo de presença
que é um campo de percepção tanto do ator/performer quanto do espectador,
como foi o caso de uma garota que ao lado deste enunciador, que ora escreve
este artigo, chorava silenciosamente. Seu corpo interno, íntimo, fora atingido pela
semiótica-objeto espetáculo. Aqui se tem um claro exemplo de como uma figura
do corpo pode atingir todas as outras figuras como aquelas descritas mais acima
no esquema teórico.
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O corpo-carne local da matéria e energia pulsional é ativada pelas imagens
do espetáculo. O corpo-carne que chora sobe em intensidade, é o punctum, que
abala, cliva o sujeito (a garota em questão) como apontou Barthes em A Câmara
Clara. O punctum é o ponto de contato com o real (cf. Barthes; Leite apud Lindo,
2022, p.32 e p.48), em termos semióticos, trata-se do sobrevir, o acontecimento.
Um olhar de cuidado, também analítico, revela o corpo como objeto-significante.
A espectadora disse depois que tinha problemas de relação com a mãe. A figura
mãe, do ponto de vista da recepção, foi um gatilho emocional. Firmam-se os
corpos em contato. Contato esse que é a lógica de um mosaico como uma rede
interna do corpo cênico coextensivo aos distintos corpos-invólucros do
espetáculo. Como, e.g., Porto em relação a: Porto-Porto, Porto-Filho. Porto-Mãe.
Em Porto-Mãe é significativo o gesto em que, ao entrar dentro de um mosqueteiro
branco (cf. a figura 1), a luz que incide sobre o material e chega até o corpo do ator
como luz translúcida borra parcialmente seu corpo, sugerindo o conjunto
significante, um invólucro-útero para que no trabalho de parto de Porto paire a
mãe. A figura mãe vem à luz e logo se desmancha no ar.
São esses estados de transição de um ponto a outro próprios de trabalhos
performativos que vão delineando a atmosfera fantasmática do espaço
inconsciente. A direção de som enquanto cama sonora10 é fundamental nesse
trabalho, imprimindo habilmente, por meio da repetição gradual do eco, um
desaparecendo que insta o ambiente longínquo do inconsciente. Cama ligante que
vai perpassando toda a cena prática com os jogos. Dentre eles, a contiguidade com
a luz que vai diminuindo e instalando um estado de sombra ou sono/sonho em
contrapartida com os momentos de maior claridade nos quais acontecem os
diálogos mais diretos com o público.
O jogo da atuação envolve então, por meio de vários níveis de expressão, a
performatividade com transições sutis e delicadas por meio desses actantes
girando em torno da função dúbia de Porto que é ator (Porto), máscara de filho
(Porto-Filho) e, por vezes, máscara de sua própria mãe (Porto-Mãe). Porto seguro
de sua mãe. Paralelamente, o ator práxico desenvolve práticas de resistência,
jamais definitivas. Corrobora para isso a fala de Claudia Barral “não para o
10 Cf. Cama sonora em: <https://www.instagram.com/p/C6grFspOuLF/>. Acesso em: 24 maio 2024.
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apagamento, mas para o aflorar de uma transformação” bem como a fala do
próprio ator:
A disposição e bom humor, pouco frequente entre famílias que têm
portadores do Mal de Alzheimer, onde na maioria dos casos vemos
tristeza, medo e vergonha dos familiares e tendência ao isolamento social
do paciente, já era um importante passo para a realização da montagem.
Então, fui apresentado a Janaina Leite, que possui um extenso trabalho
com a perspectiva autobiográfica (Blog Medium, 2024, online, s/p).
Sustenta Janaina Leite:
A forma como o Aury e sua família lidam com a doença, abre uma outra
dimensão, que me interessa como diretora, além da relação do filho com
a mãe, tema que me vem tocando um tempo. A saída lúdica
encontrada por eles para essa convivência é o retrato do próprio teatro
no encontro com a vida. (Blog Medium, 2024, online, s/p).
Um teatro no encontro com a vida atenua a ideia de construção de
personagem. Neste trabalho, ele existe como máscara e logo se desmancha no ar.
Isso é uma característica da cena contemporânea e do campo performativo. Trata-
se de transitar nas tensões de um estado a outro, aberto a acontecimentos. Como
o acontecimento da captura da fotografia abaixo:
Figura 2 Remanências do corpo cênico pós-performance. Foto: Alexandre Lindo.
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Essa fotografia pós-espetáculo continua vibrando a subsistência de partículas
de si (Si-idem) como remanência do corpo cênico. Resto de material reiterado que
revela muito sobre o processo de encenação. O livro Alice’s Adventures in
Wonderland Through the Looking-Glass (Lewis Carrol) direciona para o reino da
autorreflexividade “Through the Looking-Glass”. O livro não é apenas um diálogo
com o surrealismo, é também um tratado sobre a linguagem. perguntas de
Alice que são de ordem linguística, sobre nome, tempo etc. A linguagem esculpe
um modo de ser e sentir.
Corrobora-se assim o corpo cênico ao subsistir e repetir conteúdos coerentes
nos dando o horizonte do que foi e é a encenação performativa. Tal horizonte é
fruto das relações práticas reiteradas em diferentes níveis de expressão: 1) a
atuação, como foi observada, da ordem da fronteira (Porto, Porto-Filho, Porto-
Mãe), da transição e das tensões do jogo na porosidade entre consciente e
inconsciente; 2) a corporeidade, como visto, um sentimento de fantasmagoria e/ou
fantasmática pela cenografia como espaço praticado do jogo com a cor branca
dos lençóis; 3) a iluminação, como apresentada aqui, o corpo sob o mosqueteiro,
borra-se, sustentando a imagem do des-contorno, figura discursiva amplamente
usada no campo da psicanálise, aqui, em contato com os outros elementos
listados até o momento; 4) surrealismo, que, associado ao próprio inconsciente
como o jogo de imagens oníricas, é tecido pelo andamento da luz, da imagem
acústica e não-acústica e por todos os fragmentos de memória entretecidos e
reelaborados que apontamos no jogo. Tudo isso, como remanência do corpo
cênico (Si-idem), desvela uma ética que, como se sabe, é uma estética. Como
sentencia a diretora Janaina Leite:
[Meu Nome: Mamãe] é a possibilidade de tirar o véu do tabu e pensar
outras maneiras de lidar com a forma especial de presença ainda possível
dessas pessoas que amamos. Não mais um passado arquivista, mas uma
memória em ato, que se atualiza pelo vínculo e através da ludicidade da
linguagem (Blog Medium, 2024, online, s/p).
Considerações finais
Como apontou o enunciado da publicação “Corpos que escrevem” no qual
este artigo se insere, o escrever que perpassa e se faz pelo corpo, no corpo e com
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o corpo” implica sempre um corpo-actante. E este, por sua vez, está sempre em
rede de interdependência (cf. esquema teórico). Pode-se, portanto, acessar
variados tipos de figuras de manifestação do corpo semiotizado, que está em
permanente contato com seu ambiente, seja esse qual for, como um ambiente
teatral.
Assim, todos os arquivos e/ou documentos, ressaltadas suas especificidades
discutidas neste artigo, a saber, a transição de um estatuto arquivístico para um
documental, coloca em pauta suas temporalizações. Ou seja, a passagem de um
passado para um presente, muito frequentemente coexistindo por irrupções de
tempos que se atualizam, reconfigurando a memória em devir de forma ética.
Logo, a manipulação com arquivos e/ou documentos implica um trabalho com a
linguagem que partiu do corpo ontológico (corpo-actante) que sustenta todas as
outras figuras. Portanto, isso traz à baila questões semióticas que refinam o olhar
do artista tanto em seu processo de experimentação para produção de
espetáculos como para uma forma de vida crítica que se no trabalho relacional
com documentos teóricos ou não.
Meu Nome: Mamãe se atrela a “uma teoria para as artes mais à mãe do que
ao pai”, conceito apontado por Janaina Leite em sua tese. O abjeto (Mãe) é visto
como território interior, enquanto o objeto (Pai) como um território exterior (a
ordem, o falo, os edifícios da masculinidade), desde que se entenda a figura Pai
como lei simbólica, perfeita e acabada, e a figura Mãe afeita ao surrealismo
compatível com o corpo imperfeito que se operacionaliza na zona de fronteira, por
devires e irrupções, vinculando-se neste artigo, pela análise, à estrutura
fantasmática do reino da Mãe. Estrutura essa erigida à base de corpos-invólucros
porque o corpo involucra, envelopa os conteúdos por meio de formas linguageiras
inscritas em determinados suportes que depois podem ser recategorizados
temporalmente como arquivos e/ou documentos. Seu uso pode fundar uma forma
de vida crítica ao reunir esses corpos-invólucros (forma) de diferentes níveis de
expressão: figuras, textos-enunciados, objetos, práticas, estratégias culminando na
experiência comportamental da crítica entre o eu e o outro.
O corpo-invólucro, dito arquivo ou documento, envelope dos conteúdos
sentidos do campo polissensorial do corpo, pode ser reutilizado numa prática de
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leitura crítica sobre a cena contemporânea. Como é o caso aqui da encenação de
Meu Nome: Mamãe, uma leitura que pode ser múltipla, mas sempre dialogando
com as estruturas formais em rede dos corpos-invólucros.
Nesta apreciação crítica, além de uma busca pelo diálogo com a obra
(semiótica-objeto), o próprio ato de tecê-la, documenta e instaura um documento
performativo que propicia leituras que seguem um curso de interdependência
referente aos elementos significantes do ambiente da obra em questão. Esse
documento performa ainda uma institucionalização, por meio deste artigo,
agregando valor crítico, educacional e teórico para o letramento do corpo,
semiótico e performativo, como tecido conjuntivo das diversas práticas sociais,
dentre elas, as práticas de escrita da cena contemporânea que se fazem pelo
corpo e tornam-se corpo.
Referências
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ANZIEU, Didier. Le Moi-Peau. Préface à la deuxième édition par Évelyne Séchaud
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AQUINO, Julio G. O arquivo e a pesquisa educacional: aproximações. In BUTTURI
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Recebido em: 20/08/2024
Aprovado em: 23/11/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
PPGAC
Centro de Artes, Design e Moda CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br