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Histórias do mestre-dançarino-escritor Dominique
Dupuy: uma vida em estado de arte (e combate)
José Rafael Madureira
Para citar este artigo:
MADUREIRA, Rafael Madureira. Histórias do mestre
dançarino-escritor Dominique Dupuy: uma vida em estado
de arte (e combate).
Urdimento
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 4, n. 53, dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e0801
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José Rafael Madureira
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-12, dez. 2024
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Resenha da obra
DUPUY, Dominique. La Saggezza del Danzatore. Trad. Eugenia Casini Ropa e
curadoria de Cristina Negro. Milano e Udine: Mimesis Edizioni [Coleção: Eterotopie],
2014. 87 p. ISBN 9788857523132.
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Histórias do mestre-dançarino-escritor Dominique Dupuy: uma vida em estado de arte (e
combate)1
José Rafael Madureira2
Resumo
Dupuy (1930-2024), uma das figuras mais emblemáticas da dança contemporânea
francesa. A obra, publicada originalmente em 2011, é um ensaio poético no qual o autor
costura rememorações autobiográficas de uma longeva trajetória artística (mais de 70
anos) com profundas reflexões sobre a dança, sobre o devir do dançarino e sobre os
segredos da transmissão dessa linguagem ancestral e mágica. Para efetivar o nosso
trabalho, debruçamo-nos sobre a versão italiana dessa obra, intitulada
La Saggezza del
Danzatore
(2014) e magistralmente traduzida pela historiadora Eugenia Casini Ropa com
a cumplicidade do autor.
Palavras-chave
: Dominique Dupuy. Autobiografia. Dança. Filosofia. Pedagogia.
Stories from the dance master and writer Dominique Dupuy: a life in a state of art (and
combat)
Abstract
Review of the book
La Sagesse du Danseur
(The Wisdom of the Dancer), by Dominique
Dupuy (1930-2024), one of the most emblematic figures of French contemporary dance.
The work (originally published in 2011) is a poetic essay in which the author weaves
together autobiographical memories of a long-lived artistic career (over 70 years) with
profound reflections on dance, on the development of the dancer and on the secrets of
teaching this ancient and magical language. To carry out this work, we focused on the
Italian version of this work (
La Saggezza del Danzatore
, 2014), masterfully translated by
historian Eugenia Casini Ropa under the watchful eyes of the author.
Keywords:
Dominique Dupuy. Autobiography. Dance. Philosophy. Pedagogy.
Historias del maestro danzarín-escritor Dominique Dupuy: una vida en estado de arte (y
combate)
Resumen
Reseña del libro
La Sagesse du Danseur
(La Sabiduría del Danzarín), escrito por
Dominique Dupuy (1930-2024), una de las figuras más emblemáticas de la danza
contemporánea francesa. La obra, publicada originalmente en 2011, es un ensayo poético
en el que el autor entrelaza recuerdos autobiográficos de una longeva trayectoria
artística (más de 70 años) con profundas reflexiones sobre la danza, sobre el devenir del
danzarín y sobre los secretos de la enseñanza de este lenguaje ancestral y mágico. Para
realizar este trabajo nos centramos en la versión italiana de esta obra (
La Saggezza del
Danzatore
, 2014), magistralmente traducida por la historiadora Eugenia Casini Ropa bajo
la atenta mirada del autor.
Palabras clave
: Dominique Dupuy. Autobiografía. Danza. Filosofía. Pedagogía.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual da resenha realizada por Leticia Olivares. Mestrado em Artes
Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP). Graduação em Letras pela Universidade Mackenzie.
2 Doutorado e Mestrado em Educação, Linguagem e Arte pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Graduação em Educação Física pela UNICAMP. Licenciatura em Música pelo Centro Universitário do Sul de
Minas (UNIS). Professor Associado junto ao Departamento de Educação sica da Universidade Federal dos
Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). joserafaelmadureira@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/3840410194168195 https://orcid.org/0000-0002-8461-3132
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Dominique Dupuy nasceu no dia 31 de outubro de 1930 em Paris e faleceu
recentemente, em 1º de maio de 2024, aos 93 anos de idade (pouco tempo depois
do falecimento de Françoise Dupuy, sua companheira de vida e de dança). A notícia
de que ele havia nos deixado, pessoalmente divulgada pela dançarina Paola
Piccolo3, reacendeu uma vontade antiga de homenageá-lo em gratidão por todos
os ensinamentos generosamente compartilhados conosco e com discípulos do
mundo inteiro.
Dominique Dupuy não é uma personalidade muito familiar aos artistas e
acadêmicos brasileiros da área da dança, embora ele tenha vindo ao Brasil em
duas ocasiões (1995 e 2007) para ministrar conferências e ateliês de dança e
interpretar um de seus
solos integrais
(muitas sementes foram lançadas nesses
breves encontros...). Apenas em dois trabalhos publicados no Brasil (De Lima, 2023;
Madureira, 2023) encontramos vestígios mais efetivos da presença de Françoise e
Dominique e de sua importância para o devir da dança contemporânea francesa,
o que em alguma medida reverbera no debate sobre a dança contemporânea
brasileira.
Descrever a história de vida de Dominique, ainda que brevemente, não é uma
tarefa fácil. Foram 70 anos em estado de dança, uma somatória extraída do
intervalo estabelecido entre o primeiro espetáculo profissional protagonizado por
ele junto ao
Ballets des Arts
– companhia dirigida por Jean Weidt – e intitulado
La
Cellule
(1947), e sua última produção,
La minute de silence de Dominique Dupuy
(2017), uma performance filmada na grande sala do Teatro Nacional da Dança de
Chaillot.
O que podemos indicar, muito rapidamente, é que Dominique, ao lado de
Françoise, lançou-se em um mergulho visceral nas fontes da dança moderna-
contemporânea. Juntos, e praticamente sozinhos, Françoise e Dominique
enfrentaram, por várias décadas, as adversidades de uma sociedade (e um Estado)
indiferente à potência revolucionária da dança: “Fiéis ao espírito de [Jean] Weidt,
nós preservamos o sentido de uma
dança de combate
, uma dança-testemunho,
uma dança-paixão” (Dupuy, 1990, p. 126, grifo nosso). O principal entrave ao projeto
3 Paola Piccolo esteve muito próxima dos Dupuy durante várias décadas, até o final, atuando como assistente
principal de Françoise e intérprete de vários de seus solos.
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de instauração da dança moderna na França era o
establishment
das grandes
companhias parisienses de balé clássico, símbolo máximo de um regime opressor
triunfante.
Além da carreira como coreógrafos, intérpretes e pedagogos, Françoise e
Dominique atuaram no setor público junto ao Ministério da Cultura sob os
auspícios do governo socialista de François Mitterrand e produziram inúmeros
festivais, colóquios e encontros internacionais que reuniram artistas e intelectuais
de envergadura como, por exemplo: Anna Halprin, Michèle Febvre, Michel Bernard
e Laurence Louppe.
A capacidade criativa de Dominique é excepcional, assim como sua força
produtiva. Não bastassem todas as frentes de trabalho supracitadas às quais ele
se engajou de todo coração e de um modo ininterrupto, Dominique administrava
mais uma: a escrita. Inspirado pela literatura e pela poesia, às quais ele nutria uma
verdadeira devoção, Dominique escreveu durante toda a sua vida, desde criança.
A escrita conquistou uma forma mais efetiva com os primeiros manifestos, cartas
abertas e programas de espetáculos assinados por ele. Depois vieram os convites
para a publicação de artigos em revistas especializadas, editoriais, capítulos de
livros, prefácios e posfácios.
Pouco a pouco, a prática solitária de dançar e escrever, escrever e dançar,
todos os dias, tornou-se um componente indissociável de sua vida artística,
sempre
à l’œuvre
(como ele dizia), sempre
em processo
: “Antes eu me servia da
escrita; agora, me consagro a ela” (Dupuy, 2011, p. 16).
Em 2011, no frescor de seus 80 anos de idade, Dominique publicou
La Sagesse
du Danseur
(
A Sabedoria do Dançarino
), sua obra-prima e que é, justamente, o
foco desta resenha. Para concretizar esse modesto empreendimento, recorremos
à versão italiana da obra, intitulada
La Saggezza del Danzatore
(2014) e
magistralmente traduzida pela historiadora do espetáculo Eugenia Casini Ropa sob
o olhar atento de Dominique, que ficou muito satisfeito com o trabalho de sua
amiga e parceira na construção de uma dialética entre a memória e o
esquecimento. Foi ela, a propósito, com a gentileza e acolhimento de sempre, que
nos presenteou com uma cópia do livro, poucas semanas após o falecimento de
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Dominique.
A Sabedoria do Dançarino
reflete o estilo da escrita (e da personalidade) do
seu autor: textos curtos, objetivos, irônicos e provocativos, uma produção
embasada em uma rigorosa pesquisa de fontes historiográficas e filosóficas,
entremeada a muita poesia. Mesmo morando no centro de Paris, ao lado de
dezenas de bibliotecas públicas, Dominique não precisava sair de casa para
consultar essas bibliografias, tendo em vista o seu acervo pessoal, uma coleção
com mais de dois mil volumes.
A Sabedoria do Dançarino
não é um texto acadêmico; nenhuma referência
bibliográfica assalta o leitor durante o caminho (e nem ao final).
A Sabedoria do
Dançarino
é um texto literário, de caráter filosófico: o relato poético-autobiográfico
de um “viajante sem bagagem” que, ao longo do século XX até o início de 2024,
testemunhou muitas revoluções e tragédias, a começar pela Segunda Guerra
Mundial e o governo colaboracionista de Vichy, que corroborou a hegemonia das
grandes companhias de balé e legitimou o abuso sexual de meninas bailarinas
(vide o caso
ballets roses
).
Durante o instigante trajeto pelas suas memórias, Dominique convoca uma
legião de personalidades para estar ao seu lado: Françoise (evidentemente, sua
“cúmplice de sempre”), Jean Weidt (seu ídolo desde a infância), Clotilde Sakharoff
(dançarina “divina e inesquecível”), Élise e Roger-Louis (seus pais, grandes
apoiadores da carreira artística do filho caçula e politicamente engajados contra
todas as formas de opressão), Kazuo Ohno (“dançarino dos dançarinos”, que
dançou para ele na sua casa-estúdio em Yokohama), Jerome Andrews (que foi um
grande mestre para ele), Kitzi e Minette (seus
pets
; cão e gato, respectivamente),
Laurence Louppe (com quem sonhou realizar um programa de visitas guiadas com
turistas pelos silenciosos estúdios de dança de Paris), Fred Astaire e Gene Kelly
(portadores de um “prazer inefável”), Charles Chaplin (“dançarino como poucos”)
e os poetas Paul Valéry, Jacques Prévert, Paul Claudel, Philippe Jaccottet, André
Suarès e Rainer Maria Rilke, entre outros literatos, artistas e intelectuais.
A Sabedoria do Dançarino,
originalmente publicado em formato de bolso
(
pocket
), intercala rememorações da infância, da juventude, da maturidade e da
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velhice com profundas reflexões sobre o fazer poético do dançarino e as veredas
delicadas e incertas de sua linguagem. O livro foi organizado em sete capítulos: 1.
O quê? (
Cosa?
); 2. Jogo duplo (
Doppio gioco
); 3. A
dansée
(
La dansée
); 4. A
armadura, a pele (
L’armatura, la pelle
); 5. Dos pés e das mãos (
Dei piedi e delle
mani
); 6.
Vieillissage
(idem); 7. Viajante sem bagagem (
Viaggiatore senza bagaglio
).
A obra inicia-se com um bate-boca entre Dominique e um policial (discurso
direto) ocorrido em uma
blitz
durante o movimento de Maio de 1968. O referido
policial, ao tomar conhecimento do métier do suspeito e sem nenhum receio,
disse: “Que profissão ridícula!”; Dominique não se conteve: “Não mais ridícula do
que a sua” (Dupuy, 2014, p. 9). Resultado do conflito: um baculejo completo. A
tragicômica anedota serviu de mote para várias reflexões sobre o (não)lugar do
dançarino na sociedade, profissão desprestigiada, confundida com um
passatempo (ou perda de tempo).4
A argumentação em defesa do dançarino desemboca na formulação de um
elogio ao professor de dança, que não tem a função de “fabricar um bom
instrumento [...] ele existe para despertar
o espírito
daquele que se propõe a
dançar” (Dupuy, 2014, p. 14, grifo nosso). Dominique não se considerava um homem
religioso, embora tivesse simpatia pela simplicidade do xintoísmo. O termo
espírito
, recrutado nessa passagem e em várias outras, é apresentado como
contraponto à visão mecanicista e esportivizada de dança, uma realidade muito
presente desde a juventude do autor em Paris (inicialmente com as danças de
salão) e que ganhou ainda mais força em 2024 com o advento do
breaking
nos
Jogos Olímpicos, curiosamente sediado em sua cidade-natal. Ainda sobre essa
preocupação, recortamos três reflexões importantes:
Não existe dança se a dança não emana do espírito daquele que dança.
Todo o resto é apenas ginástica, gesticulação, figura. A dança é o ato de
criação daquele que se põe a dançar, que tomou essa decisão no seu
íntimo e que está prestes a enfrentar um risco inaudito. [...] Dançar é a
escolha ambiciosa e temerária daquele que decide se expressar sem
recorrer a palavras (Dupuy, 2014, p. 14).
O corpo que dança não é um corpo que pode mais, ao qual ensinamos a
poder mais, como o corpo do acrobata, do atleta, do competidor, do
campeão... O corpo que dança é um corpo que pode realizar de menos,
4 No Brasil, a dança ganhou espaço político com o lançamento da
Frente Parlamentar em Defesa dos
Profissionais da Dança
, presidida pelo deputado Carlos Zarattini (Câmara dos Deputados, 2023).
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ou que pode realizar outras coisas. Falar do corpo como se faz hoje em
dia com muita frequência quando se deseja falar de dança é substituir a
poesia do movimento dançado pela prosa, que existe apenas para lhe
garantir certa notoriedade (Dupuy, 2014, p. 31-32).
Muita facilidade no manejo do próprio corpo, muita habilidade e
desenvoltura que conduzem a comportamentos garbosos, pode ser tão
nefasto quanto o contrário. Na dança contemporânea, a virtude do
dançarino não é o virtuosismo técnico, mas o refinamento, a exatidão, o
sentido dado às coisas que são feitas (Dupuy, 2014, p. 17).
Em
A Sabedoria do Dançarino
, Dominique rememora alguns episódios de
suas férias escolares no campo acompanhadas de Jean Weidt e toda a sua
família –, ocasião em que as lições de dança, sob orientação do
dançarino
vermelho
, ocorriam todos os dias. Dançar ao ar livre (com pouca ou nenhuma
roupa) é uma tradição advinda dos precursores do
Ausdruckstanz
(tais como
Laban e Mary Wigman) e pelas gerações seguintes (Weidt e Kreutzberg, por
exemplo), uma prática vinculada ao projeto austro-alemão de renovação da vida
(o
Lebensreform
) por meio das práticas corporais (
Körperkultur
ou
Bewegungskultur
).
Françoise e Dominique retomavam essa tradição expressionista durante os
estágios de verão realizados no
Mas de la Danse
5
,
afinal: “Dançar ao ar livre talvez
seja a aventura de dança mais profunda que se possa conhecer” (Dupuy, 2014, p.
19).
Dominique sempre empreendeu uma busca incessante por novas formas e
léxicos que pudessem dar conta de uma perspectiva muito peculiar da reflexão
em dança que, para ele, era imprescindível: o ponto de vista do dançarino. Nesse
sentido, ele recorreu à criação de vários neologismos; dois destes se tornaram
títulos de capítulos da obra em análise:
dansée
e
vieillissage
.
Dansée
é um neologismo recorrente, discutido em vários outros textos e
entrevistas como conceito-chave de um pensamento em dança que não é
inequívoco.
Dansée
ou
dançada
(na tradução literal com a respectiva declinação
de gênero) “pertence àquele grupo de palavras que evocam uma ação; não um
5 Centro de estudos e pesquisas em dança contemporânea situado no vilarejo de Fontvieille (região da
Provence, na França) e coordenado por Françoise e Dominique entre 1978 e 1986, e 1997 e 2007.
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resultado, mas um impulso, uma trajetória [...] Todos os gestos do dançarino!”
(Dupuy, 2014, p. 34).
Dansée
seria, inicialmente, uma tentativa de aproximação de
certos vocábulos inexistentes no léxico da dança, mas comumente utilizados em
outras artes da performance:
musicalidade
(referente à “essência misteriosa” do
fazer musical) e
teatralidade
(referente à “essência misteriosa” do fazer teatral).
O verbo dançar, para Dominique, simplifica uma ação que é complexa e
requer um engajamento completo do espírito, como vimos anteriormente. Com
dansée
, a distinção entre um ato artístico e a repetição de movimentos
estereotipados (ou espontâneos) fica mais evidente, além de suscitar certo
incômodo no interlocutor, o que pode ser interessante: “Será que
dansée
é a
dramaturgia ou a musicalidade da dança que atingirá o outro a partir de sua
presença? Será um dos lados mais singulares da dança, expressão do seu caráter
efêmero e da sua finitude?” (Dupuy, 2014, p. 39).
Dansée
não é tampouco um trabalho de improvisação, ao contrário: “Na
dansée
, o dançarino restitui um movimento coreografado [...] produto de uma
obra em processo [
à l’œuvre
]. Não é uma produção do instante, embora o instante
tenha um papel determinante nesse processo” (Dupuy, 2014, p. 39-40); “O fio das
dansées
que enriquece essa memória [corpórea] é um daqueles momentos
singulares no qual ela poderia ocorrer, distante das representações cotidianas”
(Dupuy, 2014, p. 40).
Em relação ao termo
Vieillissage
, como nos explica a tradutora, trata-se da
junção do verbo
envelhecer
(
vieillir
) com o substantivo
sabedoria
(
sagesse
), o que
nos remete, imediatamente, à antiguidade clássica, à Cícero e ao seu pensamento
sobre arte de envelhecer: “Sem dúvida alguma, a irreflexão é própria da idade em
flor, e a sabedoria, da maturidade” (Cícero, 2006, p. 20).
Dominique aprendeu com Jerome Andrews que é possível dançar depois dos
40 anos de idade, um caminho proibido para a maior parte dos dançarinos
profissionais (especialmente das grandes companhias de balé clássico).
Dominique apostou nessa premissa e dançou até a idade avançada, como
podemos verificar em sua interpretação, aos 84 anos, ao lado de Tsirihaka Harrivel,
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da peça
Ato sem Palavras
(Samuel Beckett)6. Essa ousadia, um ato de resistência
política, ilumina uma questão sociocultural complexa o lugar do idoso na
sociedade que se desdobra em questões de educação estética: “O público não
tem jamais o direito de apreciar um dançarino em idade avançada, além de ser
privado do acesso a uma parte importante e desconhecida da dança” (Dupuy, 2014,
p. 69); “A imagem da juventude colada à figura do dançarino é tão forte, tão
impregnada, que até mesmo a ideia de um dançarino velho torna-se inimaginável,
inconcebível” (Dupuy, 2014, p. 69).
A Sabedoria do Dançarino
traz, ainda, várias digressões filosóficas sobre a
dança e sua matéria poética: o corpo em movimento; a
armadura
que reveste toda
a extensão do corpo (a pele); a sofisticação do caminhar, um gesto binário-
pendular combinado com o tempo ternário da valsa dos pés (calcanhar-
metatarso-dedos); as energias complementares da dança, o feminino e o
masculino (o
Yin
e o
Yang
da tradição taoísta), muito presentes nas formas teatrais
japonesas (especialmente o Kabuki); a eloquência das mãos: “Todas as danças
étnicas oferecem grande relevo às mãos [...] Quanto às danças ocidentais, elas se
esqueceram das mãos, oferecendo-as muito pouco espaço em sua panóplia de
gestos” (Dupuy, 2014, p. 62).
Dominique finaliza a narrativa indagando a si mesmo como preservar a
“bagagem” do dançarino na medida em que “quase a totalidade da arte do
dançarino está destinada ao esquecimento” (Dupuy, 2014, p. 79). O registro
videográfico ou a notação coreográfica, para ele, são procedimentos interessantes,
mas não resolveriam o problema de uma linguagem artística edificada sobre o
instante: “Será que a ausência de traços poderia ser um dos marcos mais
autênticos da dança contemporânea? Assim, não há bagagem, não há viajante, há
apenas a viagem” (Dupuy, 2014, p. 87).
Virginie Collet, multiartista da cena, publicou um testemunho espontâneo
sobre
A Sabedoria do Dançarino
, dotado de grande discernimento, que não
podemos deixar de compartilhar: “Finalmente um livro sobre a dança que não fala
de performance ou virtuosismo, mas de felicidade, da riqueza de uma experiência.
6 Esse espetáculo pode ser integralmente apreciado no canal do Teatro de Chaillot, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=4GHGtPwr2mQ. Acesso em: 30 jul. 2024.
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Esse livro me autoriza a continuar dançando, a despeito dos meus 40 anos de
idade!” (Collet, 2013).
De fato,
A Sabedoria do Dançarino
é um livro sobre a experiência no sentido
filosófico benjaminiano (a
Erfahrung
) –, a experiência de uma vida dedicada à
dança e aos meios de produzi-la, reinventá-la e transmiti-la a quem estiver
disposto a assimilar um legado poético mágico e ancestral disputado por deuses
do Olimpo:
A dança é um instante de pânico que Dionísio disputa com Apolo. Se a
dança de Apolo é muito bela, estável, autoconfiante e aristocrática, a
dança de Dionísio é instável, irrequieta, rústica. É na sutil aliança
estabelecida entre os dois que o dançarino se revela e se expressa
(Dupuy, 2014, p. 49).
Para finalizar esta resenha, declaramos estar de acordo com a avaliação de
Dominique: Eugenia Casini Ropa realizou uma primorosa tradução de
A Sabedoria
do Dançarino
, transportando cuidadosamente cada inflexão do dançarino-escritor
do francês para o italiano. A versão em italiano, de certa maneira, está mais
próxima da língua portuguesa, o que desperta a expectativa de termos acesso a
uma versão brasileira dessa obra-prima (do italiano para o português).
Tratando-se de um texto literário, não podemos nem sonhar em arriscar uma
aventura de tradução, seria muita imprudência, mas lançamos o convite à Adriana
Aikawa, doutora em estudos da tradução (UFSC) e tradutora de vários textos de
Eugenia Casini Ropa publicados em livros e revistas editados no Brasil, inclusive
na
Urdimento
(Ropa, 2009). Seria uma bela homenagem em memória a Dominique
Dupuy e um presente para quem se dedica ao ensino e à pesquisa em dança no
Brasil, não seria?
Referências
CÂMARA DOS DEPUTADOS.
Lançamento da Frente Parlamentar em Defesa dos
Profissionais da Dança
. YouTube, 5 dez. 2023. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Lm9HA8PDrVU. Acesso em: 16 jul. 2024.
CÍCERO.
Saber envelhecer
. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM Editores, 2006.
Histórias do mestre-dançarino-escritor Dominique Dupuy: uma vida em estado de arte (e combate)
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COLLET, Virginie.
La richesse de l'expérience
. Virgine Collet (blog). 10 out. 2013.
Disponível em: https://virginiecollet.blogspot.com/. Acesso em: 7 ago. 2024.
DE LIMA, Rosa Ana Fernandes.
Tradução da obra “De la création chorégraphique”,
de Michel Bernard
: contextos, tensionamentos e relações a partir do olhar de uma
artista-docente. 2023. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do
Ceará, Fortaleza, 2023. Disponível em:
https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/74077. Acesso em: 7 jul. 2024.
DUPUY, Dominique. Jean Weidt.
In
: ROBINSON. J.
L’Aventure de la Danse Moderne
en France (1920-1970)
. Paris: Éditions Bouge, 1990, p. 121-126.
DUPUY, Dominique.
Danzare oltre
:
scritti per la danza. Trad. Eliana Amadio, Eugenia
Casini Ropa, Cristina Negro e Martine Susana. Macerata: Ephemeria Editrice, 2011.
DUPUY, Dominique.
La Saggezza del Danzatore
. Trad. Eugenia Casini Ropa. Milano
e Udino: Mimesis Edizioni, 2014.
MADUREIRA, José Rafael. Françoise Dupuy (1925-2022): a dança como afirmação
da vida.
Conceição/Conception
, Campinas, v. 12, p. 1-12, 2023. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/conce/article/view/8671354. Acesso em: 13 ago. 2024.
ROPA, Eugenia Casini. O solo de dança no século XX: entre proposta ideológica e
estratégia de sobrevivência. Trad. Adriana Aikawa.
Urdimento
- Revista de Estudos
em Artes Cênica
s
, Florianópolis, v. 1, n. 12, p. 61-71, 2009. Disponível em:
https://revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/1414573101122009061. Acesso em: 2 ago. 2024.
Recebido em: 19/08/2024
Aprovado em: 01/09/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br