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Os estados alterados de consciência
no processo de criação do ator angolano
Leônidas Oliveira Neto
Robson Carlos Haderchpek
Para citar este artigo:
OLIVEIRA NETO, Leônidas; HADERCHPEK, Robson Carlos. Os
estados alterados de consciência no processo de criação do
ator angolano.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 54, abr. 2025.
DOI: 10.5965/1414573101542025e205
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Os estados alterados de consciência no processo de criação do ator angolano
Leônidas Oliveira Neto | Robson Carlos Haderchpek
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-21, abr. 2025
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Os estados alterados de consciência no processo de criação do ator angolano1
Leônidas Oliveira Neto2
Robson Carlos Haderchpek3
Resumo
Este artigo apresenta reflexões sobre os estados alterados de consciência, tomando como referência
as pesquisas compartilhadas pelo
Grupo Arkhétypos
(Brasil) e pelo
Grupo Bimphadi
(Angola), no
Otyoto
Internacional do Bimphadi,
que aconteceu em Angola, em 2022. Nesse sentido, a discussão decorre de
uma primeira reflexão publicada em 2021 (Oliveira Neto; Haderchpek), com vistas a ampliar o referencial
de análise ao pesquisar grupos de outras nacionalidades. O estudo, de caráter empírico, estruturou-se
a partir da observação-participante, cujos resultados preliminares nos permitem concluir que as
práticas ritualísticas desenvolvidas pelos atores angolanos facilitam seu acesso aos estados alterados
de consciência.
Palavras-chave:
Estados alterados de consciência. Processo de criação. Ator angolano. Grupo
Bimphadi. Grupo Arkhétypos.
The altered states of consciousness in the creative process of the Angolan actor
Abstract
This paper seeks to reflect on altered states of consciousness, taking as a reference the research
shared by the Arkhétypos Group (Brazil) and the Bimphadi Group (Angola) at the Bimphadi International
Otyoto that took place in Angola in 2022. In this sense, the discussion stems from an initial reflection
published in 2021 (Oliveira Neto; Haderchpek) and seeks to broaden the analytical framework by
researching groups of other nationalities. The empirical research was structured based on participant
observation. The preliminary results allow us to conclude that the ritualistic practices developed by the
Angolan actors facilitate their access to altered states of consciousness.
Keywords:
Altered states of consciousness. Creation process. Angolan actor. Bimphadi Group.
Arkhétypos Group.
Los estados alterados de conciencia en el proceso creativo del actor angoleño
Resumen
El artículo busca reflexionar sobre los estados alterados de conciencia tomando como referencia la
investigación compartida por el Grupo Arkhétypos (Brasil) y el Grupo Bimphadi (Angola) en el Bimphadi
International Otyoto que tuvo lugar en Angola en 2022. En este sentido, la discusión surge de una
primera reflexión publicada en 2021 (Oliveira Neto; Haderchpek) y busca ampliar el marco de análisis
mediante grupos de investigación de otras nacionalidades. La investigación empírica se estructuró a
partir de la observación participante. Los resultados preliminares permiten concluir que las prácticas
rituales desarrolladas por los actores angoleños facilitan su acceso a estados alterados de conciencia.
Palabras clave
: Estados alterados de conciencia. Proceso de creación. Actor angoleño. Grupo Bimphadi.
Grupo Arkhétypos.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Renata Ribeiro de Moraes. Pós-doutorado em Literatura
Brasileira (Unesp). Doutorado em Literatura Brasileira (Unesp. Mestrado em Literatura Brasileira (UEL). Graduação em
Letras (Unesp).
2 Doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Mestrado em Educação Física
pela UFRN. Prof. Adjunto no curso de Licenciatura em Dança e do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas (UFRN).
leonidas.oliveira@ufrn.br http://lattes.cnpq.br/3746805844090905 https://orcid.org/0000-0002-8349-8056
3 Pós-Doutorado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pós-doutorado pela University of Music and Performing Arts
Vienna, MDW, Áustria. Doutorado e Mestrado em Artes da Cena pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Graduação em Artes Cênicas pela UNICAMP. Professor associado do Curso de Teatro da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Atua no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas e desenvolve Projetos de Extensão e Pesquisa
na UFRN. Professor colaborador no Programa de Pós-Graduação em Artes da UERJ. Professor colaborador no Doutorado
em Ciências da Educação do Instituto Superior de Ciências de Educação do Sumbe, Angola. rob_hader@yahoo.com.br
http://lattes.cnpq.br/4286695631161068 https://orcid.org/0000-0002-4905-6449
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Introdução
Uma primeira discussão acerca dos estados alterados de consciência no
Teatro Ritual4
foi instaurada no artigo
O Jogo Ritual e os Estados Alterados de
Consciência: os processos psicofísicos no trabalho de criação do ator
(Oliveira
Neto; Haderchpek, 2021), publicado pela
Revista Brasileira de Estudos da Presença
.
Na ocasião, trabalhamos com a teoria da
hipofrontalidade transitória
e refletimos
sobre os processos de criação do
Arkhétypos Grupo de Teatro5
da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN):
Essa teoria da hipofrontalidade transitória vem sendo utilizada para
justificar diversos estudos sobre os estados alterados de consciência em
atividades de trabalho e atividades esportivas, e o nosso intuito é fazer
essa aproximação com as atividades artísticas também, focando
especificamente no Teatro Ritual desenvolvido pelo Grupo Arkhétypos,
que é a base da nossa vivência. Cremos ser possível estabelecer essa
relação com outros tipos de teatro e outras atividades artísticas
interligadas às artes visuais, à dança e à sica, contudo, para o
momento limitamo-nos a falar da nossa experiência (p.18).
Como descrito no estudo anterior, passamos a investigar os estados
alterados de consciência em outros grupos e com nacionalidades distintas e a
partir dessa análise nos aproximamos do trabalho de criação desenvolvido pelo
Grupo Bimphadi
, da Angola. Esse corresponde a
um Núcleo de Pesquisa em Artes
da Cena criado em 2020 pelos primeiros Licenciados em Teatro do território
angolano, formados pelo Instituto Superior de Artes (ISART) da Angola. Os atores-
pesquisadores fundadores do Grupo sãoPaulino Tchiloia Bimba Lunono, Mbandu
Luvumbo Nsingui, Nelson Máquina e Manuel Francisco João da Costa. Na
atualidade, o
Bimphadi
opera com um grupo mais robusto, constituído por cerca
de dez atores e atrizes, em sua maioria, advindos do Curso de Licenciatura em
Teatro da Universidade de Luanda.
4 “O Teatro Ritual surge de uma ação mágico-simbólica, que é realizada pelo performer e que é
redimensionada no tempo e no espaço pela presença de um observador, que participa do ato ritualístico”
(Haderchpek, 2021, p.17).
5 O
Grupo Arkhétypos
é um grupo de pesquisa e extensão vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Natal, Brasil. Desde a sua criação, em 2010, trabalha numa perspectiva laboratorial e tem construído
seus espetáculos a partir de um mergulho no universo simbólico de cada performer, sempre associando a
prática artística à busca pelo autoconhecimento. Disponível em:
<https://arkhetyposgrupodet.wixsite.com/arkhetypos/o-grupo>. Acesso em: 19 set. 2023.
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No ano de 2021, os quatro atores fundadores do
Grupo
ingressaram no
Mestrado em Artes Cênicas, da UFRN, e passaram a organizar suas pesquisas sob
uma perspectiva acadêmica. Convém mencionar que os atores-pesquisadores do
Bimphadi
possuem uma relação extremamente próxima com o ritual e este é
outro aspecto bastante relevante para nortear nossas reflexões. Assim, Mbandu
Luvumbo Nsingui (2023) desenvolve um estudo a partir do ritual fúnebre Bakongo;
Nelson Máquina (2023) investiga o trabalho vocal do grupo sob a ótica de canções
rituais do
Ekwendje6
; Manuel Francisco João da Costa (2023) pensa o trabalho
corporal do grupo com base no reencontro com o
muntu
, termo de origem
Nyaneka
que expressa a conexão do ser consigo mesmo; e Paulino Tchiloia Bimba
Lunono (2023) explora a “corporeidade materna” fundamentado nos rituais vividos
por ele durante sua infância.
Tal como o
Grupo Arkhétypos
, o
Grupo Bimphadi
também trabalha com base
em princípios ritualísticos e isso nos permite fazer uma aproximação teórica
acerca das práticas desenvolvidas pelos dois grupos. Essa congruência começou
a ser esboçada pelo ator-pesquisador Paulino Tchiloia Bimba Lunono, em seu
artigo
Aproximações entre o Bimphadi e o Arkhétypos: Uma “pedagogia teatral sem
mão”,
publicado em 2022 pela
Revista Dados de África(s)
. Nesse, Lunono reflete
sobre os processos de criação dos dois grupos, tomando como referência principal
as experiências desenvolvidas no
Otyoto Internacional do Bimphadi: Encontro de
Sensibilidades
, realizado em Luanda (Angola), no período de 17 a 25 de outubro de
2022. Participaram do evento os atores do
Grupo Bimphadi
e os professores
pesquisadores do
Grupo Arkhétypos
, Karyne Dias Coutinho, Robson Carlos
Haderchpek e Leônidas de Oliveira Neto.
Ao longo do evento, que se constituiu numa residência artística, foram
realizadas palestras, mesas redondas, danças ritualísticas,
workshops
práticos e
trocas artísticas entre os pesquisadores do Brasil e de Angola. Segundo Lunono
(2022, p. 120), entendemos que:
Os resultados do encontro prático foram surpreendentes para nós do
Bimphadi, pois que fazia mais de um ano que não nos abríamos, muitas
canções que usamos como estímulo nunca tinham sido partilhadas com
6 Ritual de iniciação masculino da cultura
nyaneka
. Para mais informações consultar:
Dança-canção: As
canções ritualísticas nyaneka nas recriações do Bimphadi
(Máquina, 2023).
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um grupo superior a dez pessoas que é o número de membros do
Bimphadi. Fazer uma prática com dez pessoas é uma experiência
completamente diferente da presença de quinze ou vinte. Há uma
potência inegável que uma ação coletiva possui. Esses dias geraram uma
pergunta para mim: o que aquelas canções e ritmos tinham de tão
estimulante ao ponto de criarem um estado extático? Já
! participei em
muitos workshops e alguns com um número maior de participantes, mas
algo tão vibrante como o ocorrido nessas vivências nunca tinha
presenciado.
Dentre as práticas relatadas, destacamos o trabalho de criação dos atores
angolanos do
Bimphadi
e, a partir dele, propusemos uma nova discussão sobre os
estados alterados de consciência
e a teoria da
hipofrontalidade transitória
(Dietrich, 2006). Para tanto, traremos um recorte das experiências práticas que
tivemos neste contexto. Cabe salientar que, para além das leituras e tentativas de
experimentação com vistas à compreensão desta busca literal, este foi o primeiro
contato dos atores angolanos com as práticas laboratoriais do
Grupo Arkhétypos
.
O
jogo ritual
: um processo de dentro para fora
O
jogo ritual
(Haderchpek, 2018) é um procedimento de criação do
Grupo
Arkhétypos,
no qual os atores/bailarinos/performers adentram aos
estados
alterados de consciência
e passam a operar com uma lógica ficcional, criando
ações físicas e experimentando
figuras/personas
dentro da prática laboratorial
proposta. Em seu livro
Performance como Linguagem
, Renato Cohen chamava
nossa atenção para este tipo de processo:
Na performance geralmente se trabalha com persona e não personagens.
A persona diz respeito a algo mais universal, arquetípico (exemplo: o
velho, o jovem, o urso, o diabo, a morte etc.). A personagem é mais
referencial. Uma persona é uma galeria de personagens (por exemplo,
velho chamado x com característica y). (Cohen, 2002, p. 107).
A única ressalva é que Cohen (2002) defende que esta proposta se
geralmente de fora para dentro e nós acreditamos, tomando como premissa o
Teatro Ritual
, que ela se concretiza de dentro para fora. Imersos na prática
laboratorial do
Grupo Arkhétypos
, o processo inicia-se a partir da escolha de uma
temática e, em seguida, os atores/bailarinos/performers começam a explorar este
universo simbólico, criando ações e que se tornam recorrentes:
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Dentro do laboratório, essas ações eram repetidas inúmeras vezes e
decorriam de um estado alterado de consciência. Como num ritual a ação
conecta o participante a uma atmosfera onírica e o transporta para uma
dimensão liminar7 no tempo presente. O ator/performer/bailarino está na
sala de ensaio jogando, mas é como se estivesse em outro lugar, num
espaço mágico-ficcional que lhe permite ser quem ele/ela quiser ser: um
anjo, um demônio, um animal, um ancestral desconhecido, um herói, um
vilão, um guerreiro, uma guerreira, uma bruxa, uma mãe, um avô, ou uma
força da natureza (Oliveira Neto; Haderchpek, 2021, p. 16-17).
Apoiados em investigações psicofísicas, que se dão em decorrência dos
estados alterados de consciência, os atores/bailarinos/performers acordam mitos8
e dão vazão a uma prática de criação diretamente imbricada com as suas
mitologias pessoais
.
As práticas laboratoriais e os estados alterados de consciência
O encontro com os estados alterados de consciência faz parte das práticas
laboratoriais como forma heterodoxa da criação artística do
Grupo Arkhétypos
e
foram exploradas no
Otyoto Internacional do Bimphadi: Encontro de
Sensibilidades
, realizado em Luanda (Angola), no período de 17 a 25 de outubro de
2022. Buscamos, durante esse processo, uma transmutação do espaço-tempo
que desse liberdade ao ator para falar sobre suas dores, vivências e percepções
que fazem eclodir, de maneira inovadora, histórias e personagens que serão
trabalhados sob a perspectiva do
Teatro Ritual
(Haderchpek, 2018; 2021). Esse fazer
artístico utiliza como base a possibilidade de criação de histórias a partir das
vivências do próprio ator. No momento em que atingimos esse
estado alterado de
consciência
, conseguimos ter acesso às histórias vividas e não-vividas, que passam
a fazer parte deste universo simbólico que está em criação.
7 O termo
liminar
está ancorado no pensamento do antropólogo Victor Turner que discorre sobre a
liminaridade
nos processos rituais. Segundo Turner (2013, p. 98): “As entidades liminares não se situam aqui
nem lá; estão no meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e
cerimonial”. No processo
ritual ocorre uma dilatação do espaço-tempo, e quem adentra ao espaço-tempo
liminar
atua numa região “entre”, uma região que suspende a apreensão da realidade como ela é e transporta
o indivíduo para um espaço-tempo ritualístico, onde as regras sociais são suprimidas e o indivíduo age a
partir de uma nova ótica, sem julgamentos ou predefinições.
8 Segundo David Feinstein e Stanley Krippner: “Os mitos, no sentido que damos ao termo, não são lendas ou
falsidades, mas modelos através dos quais os seres humanos organizam e codificam suas percepções,
sentimentos, pensamentos e atitudes. Sua mitologia pessoal origina-se dos fundamentos do seu ser, sendo
também o reflexo da mitologia produzida pela cultura na qual você
! vive. Todos criamos mitos baseados em
fontes que se encontram dentro e fora de nós e nós vivemos segundo esses mitos”. (Feinstein, Krippner,
1992, p.16).
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Nesse sentido, as práticas laboratoriais que foram experimentadas baseiam-
se, primordialmente, na
poética dos elementos
(Haderchpek; Vargas, 2017), a qual
é inspirada no trabalho de Gaston Bachelard (2013), que utiliza deste universo
simbólico para resgatar um conhecimento ancestral fundamentado na capacidade
do imaginário de mergulhar nas experiências do inconsciente.
Além da
poética dos elementos
, concretizada por meio das vivências do
Arkhétypos
, fizeram parte deste encontro a
dramaturgia dos encontros
(Haderchpek, 2016; 2019; Coutinho; Haderchpek, 2019) e, especialmente, o
jogo
ritual
(Haderchpek, 2015; 2018; 2019; Almeida; Haderchpek, 2021). Esses três pilares,
trabalhados de modo concomitante, induzem aos estados alterados de
consciência que são a força motriz do processo de criação do
Grupo Arkhétypos
.
Contudo, para que possamos alcançar estes estados no
jogo ritual,
precisamos
quebrar algumas barreiras, como relatado por Oliveira Neto; Haderchpek (2021, p.
11):
Para participar deste jogo ritual proposto durante os processos de criação
dos espetáculos nós tínhamos primeiramente que nos desnudar de
quaisquer preconceitos, medos, receios e pré-julgamentos. E talvez uma
das nossas primeiras barreiras tenha sido a racionalização constante de
todos os movimentos e sentimentos percebidos. Questões como Estou
me movimentando como gostaria de ser observado?, Por que escolhi
movimentar essa parte do corpo?, perseguiam-nos constantemente,
como uma voz interior que pudesse nos julgar e ela era alimentada pelos
nossos receios e preconceitos, ou era dilacerada pelos nossos olhares
artísticos, a fim de que assim pudéssemos jogar.
Porém, diferentemente do relatado em momento anterior, um dos aspectos
que mais nos chamou a atenção durante o evento realizado em Angola, e em
especial no que se refere aos processos de criação desenvolvidos junto ao
Grupo
Bimphadi
, foi justamente a rapidez com que os atores angolanos adentravam aos
estados alterados de consciência
. Durante uma prática laboratorial em que
trabalhamos as
poéticas dos elementos
, os atores mergulharam, de modo
singular, no universo simbólico da água e diversas histórias eclodiram em um
curtíssimo espaço de tempo. Vejamos algumas imagens:
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Figura 1 - Atriz Helena da Silva André na prática laboratorial com o elemento água.
Otyoto Internacional do Bimphadi (2022). Foto: Leônidas de Oliveira Neto.
Figura 2 Prática do
Jogo Ritual
no Otyoto Internacional do Bimphadi (2022).
Foto: Leônidas de Oliveira Neto.
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Figura 3 Adentrando aos estados alterados de consciência no
Jogo Ritual
Otyoto Internacional do Bimphadi (2022).
Foto: Leônidas de Oliveira Neto.
Alguns atores, inclusive, precisaram ser estimulados a retornar à realidade,
pois a imersão foi além das expectativas e houve uma perda parcial da
consciência. O pesquisador Giuliano Campo (2015, p. 89), estudioso dos estados
alterados de consciência, classifica este tipo de transe da seguinte forma:
12. Transe de ritual ou possessão É um estado avançado, estável, que
envolve, em diversos planos, todos os participantes do ritual. O sujeito
possuído, aqui, perde a sua individualidade por certo período de tempo,
em um lugar estabelecido e organizado para a realização da experiência.
No teatro é aquela experiência grotowskiana do Ato Total e para além do
teatro, isto é, o modelo apresentado por “Action” com os membros do
Worcenter de Pontedera o âmbito da Arte como Veículo (Campo, 2015, p.
89).
Ao longo do evento, quando dançavam, cantavam e se envolviam
corporalmente em processos de criação, os atores e atrizes do
Bimphadi
entregavam-se de modo intenso ao momento presente, como num ato de
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celebração ritualística. A partir do fato relatado, começamos a elencar hipóteses
que nos ajudassem a compreender a facilidade deles com este tipo de processo
e assim germinaram duas perguntas fundamentais para a discussão deste
presente artigo: será que os atores angolanos possuem uma pré-disposição
natural para adentrar aos estados alterados de consciência? Ou será que suas
pesquisas com os rituais os ajudaram a encurtar o tempo de conexão necessário
para a vinculação com o
jogo ritual
?
Será que os atores angolanos possuem uma pré-disposição
natural para adentrar aos estados alterados de consciência?
Diferentemente da experiência que tivemos com os atores europeus9 que,
em sua maioria, demoravam para aprofundar-se nesse tipo de proposta, os atores
angolanos, de um modo geral, entravam quase que automaticamente em sintonia
com os estados alterados de consciência
.
É compreensível que a partir do
contexto cultural europeu haja um pouco mais de resistência a este tipo de
processo. É comum na Europa que os atores/bailarinos/performers aprendam a
atuarem de modo mais contido, trabalhando com a economia dos gestos e
operando sob uma lógica mais racional. Contudo, acreditamos que também um
dispositivo psíquico que engendra toda essa situação.
Dessa forma, é importante destacar o quanto os pensadores/artistas
europeus10 foram majoritários em desenvolver e influenciar o pensamento artístico
9 Desde 2012 o
Grupo Arkhétypos
tem uma parceria com a Universidade de Música e Artes Cênicas de Viena
e dirigiu-se diversas vezes a esse local para estabelecer trocas artísticas, desenvolver pesquisas,
workshops
,
palestras e apresentações de espetáculos. O Professor Robson Haderchpek realizou inúmeras pesquisas
acadêmicas em Viena, com verba do Programa Erasmus, cujos projetos foram: “Understanding without
words: music, voice, movement, performance in the field of nonverbal communication and artistic
improvisation” (2014-2017); “Ritual and Performance” (2018-2019); “The Decolonization of Knowledge in the
Performing Arts” (2020-2023).
Realizou também a sua pesquisa de s-Doutorado The Art of Encounter:
The Conference of the Birds in Vienna” (2014-2015) e ministrou disciplinas na Universidade de Música e Artes
Cênicas de Viena, trabalhando com atores de diversos países da Europa. Caso haja interesse, vários artigos
e livros foram publicados explicitando os resultados dessas pesquisas. (Haderchpek, 2016, 2017, 2021, 2024;
Hauser-Dellefant
et al
, 2029). Para mais informações consultar:
https://arkhetyposgrupodet.wixsite.com/arkhetypos/projetos-e-pesquisas Acesso em: 20 jan. 2025.
10 A formação dos atores angolanos fundamenta-se a partir de uma perspectiva eurocêntrica. Segundo Lunono
(2022, p. 114), “o tipo de ensino do ISART era/é baseado em teorias do pedagogo e diretor teatral russo
Constantin Stanislavski, mal lidas ou mesmo não lidas, diga-se, importadas de Cuba. Até hoje existe uma
espécie de proteção a Stanislavski.” Em seus estudos de mestrado, os pesquisadores do Bimphadi
aprofundam essa discussão e revelam também a influência de outros pesquisadores europeus como Jerzy
Grotowski e Eugênio Barba. (Lunono, 2023; Costa, 2023; Máquina, 2023; Nsingui, 2023).
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em Angola. Sobre isso Manuel Francisco João da Costa (2023), em sua pesquisa
de mestrado
A Busca do Muntu: Treinamento Corporal do Ator do Bimphadi
(2023),
demonstrou como o pensamento europeu11 estava enraizado no fazer artístico
africano até o início deste século, muitas vezes, ceifando outras perspectivas de
produção teatral.
Na contramão desse processo de colonização, surge o Bimphadi, propondo
novos parâmetros para o fazer artístico contemporâneo de Angola (Lunono;
Nsingui; Máquina; Costa, 2022). Por meio de outra lógica de produção teatral, o
Bimphadi apregoa uma reconexão do ser consigo mesmo, sobre a qual podemos
entender que:
Estando dentro do laboratório sente-se algo que algumas vezes
experienciei nos meus trabalhos individuais, que é me conectar e sentir
as sensações que me são aplicáveis, atingir um nível elevado de conexão
com as energias altas ou positivas. A forma como vozes trabalham as
individualidades partindo das canções internas ou de outros locais
acabam sempre nos conectando devido às questões das nossas
memórias e conexões que temos com os nossos vários eus interiores. É
uma forma que liberta e nos faz sentir nós mesmos e isto é o que de
melhor pode acontecer na vida de um ator. O indivíduo quando ele é, ele
mesmo, sem ser anulado a partir de padrões estabelecidos (colonização,
assassinato) de que para isto é preciso aquilo ou isto (Guelengue, 2022
apud Costa, 2023, p. 65-66)12.
Relatos como esse que vimos apontam uma limitação de desenvolvimento
do ator angolano que se submete a um fazer teatral guiado por uma perspectiva
eurocêntrica. E tal fato nos ajuda a pensar como o contato com o
Teatro Ritual
pode expandir a percepção desse ator angolano, permitindo que ele desenvolva
um novo olhar sobre a cena. A fim de evidenciar ainda mais essa hipótese,
voltemos a nossa atenção para um dos relatos de atores:
Quando eu estou dentro do laboratório sinto-me privilegiado; consigo
viajar e dar corporeidade àquilo que muitas vezes não conseguia dar de
forma direta com os treinamentos dos autores eurocêntricos sugeridos
11 De acordo com Costa (2023, p.13), “essa forma castradora de perpetuar a “visão de mundo” eurocêntrica já
foi pauta de discussão muito oportuna pela pesquisadora nigeriana Oyèrónke" # Oyěwùmí (2002). De maneira
muito profunda, ela traz à tona essa postura de uma ditadura em que a “visão eurocêntrica” operou para
desqualificar civilizações a partir de sua leitura intrínseca de mundo, nutrida pelos seus valores e que
subjugou as dinâmicas culturais dos países colonizados com base no corpo visto e classificado
biologicamente,
a priori
, e sociopoliticamente, a
posteriori
.”
12 Ernesto Guelengue é estudante do quarto ano do Curso de Licenciatura em Teatro do CEARTE, Universidade
de Luanda. Entrevista feita em: 28 dez. 2022.
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pelos programas de estudos que são feitos aqui em Angola ou que são
estudados aqui em Angola. (Zua, 2022 apud Costa, 2023, p. 66)13.
Para o ator Santos (2023):
Os nossos encontros me fazem viajar e me sentir melhor. Ou seja, a
metodologia do Bimphadi eu acho excelente porque ela nos conecta com
as nossas emoções corporais e dentro dos laboratórios ela me faz sentir
livre, espontânea, me sinto também muito leve e como africana, ela me
permite conectar comigo mesma, me permite explorar mais a minha
essência, o meu eu, sem pensar duas ou três vezes. (Santos, 2022 apud
Costa, 2023, p. 65)14.
Com esses depoimentos, percebemos o quanto a experiência com as práticas
laboratoriais15 do
Teatro Ritual
tem modificado sua forma de pensar/agir quando
dentro da cena. Fica claro também uma busca coletiva por essa liberdade do
pensar e do fazer artístico. Assim, essa perspectiva de libertação das amarras do
modo de fazer teatro são percebidos por meio dos estados alterados de
consciência. Ao passo em que a colonização pregressa negou a existência do ser
africano, o teatro ritual lhes a possibilidade de uma autoinvestigação como
forma de produzir matéria-prima artística mediante padrões não normativos.
Será que as vivências do Bimphadi com os rituais ajudaram a
encurtar o tempo de conexão necessário para uma congruência
com o
jogo ritual
?
Nelson Máquina, pesquisador e membro fundador do Bimphadi, em sua
dissertação de mestrado,
Dança-canção: As canções ritualísticas nyaneka nas
recriações do Bimphadi
(2023, p. 32), aponta que:
Este trabalho com os rituais de passagem tem nos impulsionado para
uma nova visão. Temos, ao longo do processo, adquirido uma grande
capacidade de resistência nos momentos de atuação e na relação com
os outros, pois esta é uma das características do ritual.
13 Faria Fernando Zua: Licenciado em Arte no antigo ISART, fez parte da turma inaugural dos primeiros
licenciados de Teatro no território angolano, no ano de 2019. Atualmente, é professor do CEARTE, da
Universidade de Luanda. Nossa entrevista com ele foi feita em 28 dez. 2022.
14 Leandra dos Santos: atriz e pesquisadora do Bimphadi desde 2020; começou a fazer teatro com o Bimphadi,
e foi a primeira atriz do grupo. Realizamos a entrevista com ela também em 28 dez. 2022.
15 O Bimphadi encontra-se semanalmente e desenvolve uma prática laboratorial de quatro horas de duração.
Isso ocorre desde 2020, ano de fundação do Grupo. Quando necessário, o Bimphadi realiza encontros extras
para se aprofundar em práticas específicas.
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Leônidas Oliveira Neto | Robson Carlos Haderchpek
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Ele afirma ainda que neste tipo de teatro “a dança-canção é a alma da cena,
ela funciona como trampolim na projecção do corpo do actor” (Máquina, 2023, p.
32). E continua:
É por intermédio do ritmo e das canções que os actores entram num
estado máximo do movimento, acessando os estados alterados de
consciência, conforme retratado no livro O Teatro Ritual e os Estados
Alterados de Consciência (2021) do Prof. Robson Haderchpek. Por meio
do ritmo e das canções os actores estabelecem diversas conexões
espirituais, transcendendo a dimensão do corpo físico. houve casos,
nos ensaios, em que a imersão foi tão grande que os actores tiveram que
ser chamados à consciência (Máquina, 2023, p. 32-33).
Casos como esse de perda parcial da consciência ocorrem com frequência
quando eles desenvolvem suas práticas de criação, guiadas por danças e canções
ritualísticas. Manuel da Costa, também pesquisador do Bimphadi, afirma algo
semelhante com relação ao trabalho deles com o ritual do
Nkembo
16:
Neste momento, os corpos cotidianos desaparecem e ganham novos
signos e novas ressignificações devido às trocas de Kadya17. Os velhos e
as crianças dançam o ritual e atingem os estados alterados de
consciência, o que lhes conecta aos seus dois planos, o visível (material)
e o invisível (o não material) (Costa, 2023, p. 47).
Notamos, por meio destes depoimentos, que a porta de acesso para os
estados alterados de consciência são as danças e canções ritualísticas. E como o
ritual é parte da cultura deles, e como eles vivenciaram essa experiência desde
crianças nas aldeias18, carregam consigo um saber que transcende a lógica racional
do mundo contemporâneo. O ritual ou a atmosfera gerada por ele pode ser a chave
da sua conexão com os estados alterados de consciência. Destarte, por meio dos
rituais, que se manifestam com regularidade e são cultuados19 a partir de uma
16 “O
Nkembo
é uma dança ritual da igreja Tocoísta de matriz africana, no qual vemos quase todos os
elementos que compõem o teatro. Nela, temos os elementos performativos que completam a arte de existir
que se manifesta além do tempo presente e temporal, entre os planos visíveis e invisíveis.” (Costa, 2023,
p.46).
17
Kadya,
termo de origem
Tchokwe
,
tem um significado próximo à Fogo ou Energia. (Costa, 2023, p. 46).
18 Três dos quatro integrantes fundadores do Bimphadi nasceram em aldeias e foram para os centros urbanos
em busca de oportunidades. Convém mencionar que houve entre os anos de 1975 e 2002 um intenso fluxo
migratório no país em função da guerra civil. Hoje quase 70% da população vive na zona urbana, mas o
movimento migratório ainda acontece principalmente por motivações econômicas.
19 Referimo-nos às práticas ritualísticas que fazem parte da vida em comunidade, como o ritual do
Ekwendje,
por exemplo, ou o ritual do fúnebre bakongo,
citados anteriormente. Para mais informações consultar:
As
Danças-Canções Nyaneka na Preparação Corpóreo-Vocal do Ator Angolano
(Máquina; Haderchpek, 2024).
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repetição frequente, os atores criam um canal de acesso ao inconsciente,
acionando uma rede neuronal que permite ao cérebro acessar com mais facilidade
esse estado de plenitude, decorrente da prática ritualística, como se observa nas
ações laboratoriais do
Grupo
Arkhétypos
.
Manuel da Costa refere-se à “plenitude do Muntu” como parte da
metodologia de criação do Bimphadi, logo, é o estado mais elevado de conexão do
performer com a cena. Para ele a “plenitude do Muntu”:
É um estado onde o corpo-memória-ficcional do performer está ativo e
presente no plano visível e invisível em uma comunhão com os dois
mundos e suas energias vitais. O performer aqui vai aparecer como
mediador entre estes dois planos, como um “adivinho” que partilha as
mensagens que foram ditas pelos ancestrais aos membros da
comunidade, membros que foram até ele buscar soluções ou
compreender os problemas que assolam a comunidade (Costa, 2023, p.
59).
Este performer “adivinho” defendido por Costa (2023) vai se aproximar da
ideia de “ator santo”, de Grotowski20 (2011), e esta conexão com o plano do invisível
tende a aproximar o transe do ritual do transe religioso. Essa não separação de
corpo-mente-espírito que permeia a cultura angolana gera um ambiente propício
para se atingir os estados alterados de consciência.
Como os atores angolanos partem da premissa de um corpo não cindido, o
ritual os alça à esfera do sagrado, permitindo essa conexão com a esfera do
religioso, no sentido de
religare
, numa relação entre os planos do visível e do
invisível. Assim sendo, vejamos o que apresenta o pesquisador Giuliano Campo
sobre o transe religioso:
Foi demonstrado por Goodman (1972) o aumento de substâncias
eufóricas no sangue (Beta endorfina) e a aceleração da atividade cerebral
(ondas Theta de 5-7 ciclos por segundo) nos rastreamentos dos
encefalogramas de sujeitos em estado de transe religioso. A produção de
ondas cerebrais Theta e Alpha tem a capacidade de usurpar as
faculdades críticas da mente e o impulso ao pensamento lógico, binário
e mudanças nos níveis de neurotransmissores e produzem a ativação do
sistema límbico ou a supressão do lobo parietal (Dox 57, 59: 2012).
(Campo, 2015, p. 77).
20 Vale lembrar que, as pesquisas com rituais, realizadas por Grotowski, surgiram a partir do encontro com a
cultura haitiana, através de Maud Robart.
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Partindo da perspectiva de que o ritual é o espaço de manifestação do
sagrado e que este opera sobre o transe religioso, consideramos que o estado de
transe alcançado nas práticas laboratoriais, nas danças e canções, também produz
a ativação do sistema límbico ou a supressão do lobo parietal. E como os atores
fazem isso desde crianças, trazem consigo uma pré-disposição ao transe,
necessitando apenas dos estímulos corretos para que a adesão ocorra.
Mbandu Luvumbo Nsingui, pesquisador do Bimphadi, afirma que os seus
corpos são construídos pelos rituais:
[...] quero reiterar a ideia de que o nosso corpo é também construído
pelos rituais dos quais participa desde que nasce, sejam eles tradicionais
ou sociais. Ao meu ver, não tem como falar do ritual sem mencionar
quem o pratica. E o mesmo possui o seu ser, corpo e mente, que se
constrói a cada ritual por que passa. O meu corpo é o meu maior meio
de conectividade com o meu ancestral (também artístico) e devo cuidar
da melhor forma possível (Nsingui, 2023, p. 50).
Se o nosso corpo é constituído pelos rituais dos quais participamos, o que
acontece conosco quando não nos envolvemos com eles? Será que a sociedade
ocidental, que se denomina civilizada, regrediu quando extirpou do seu modo de
viver as práticas ritualísticas? Será por isso que os europeus têm maior dificuldade
de conexão com atividades não racionais?
A ideia de civilidade retirou as práticas rituais do nosso viver e fez isso
demonizando a religiosidade africana. Assim, a busca incessante pelo controle da
mente e do que o outro pensa garantiria uma população submissa e catequizada.
No entanto, a força que emana dos saberes ancestrais e a potência dos processos
inconscientes é tão imensurável que se manifestam nos gestos, nas danças e nas
canções, que trazem consigo não apenas um significado simbólico, mas se
revelam como um ato de resistência. O discurso que versa sobre a “necessidade
de se ter o controle” é substituído por uma prática ritualística viva que fala por
intermédio daqueles que a executam:
No nosso contexto, existe um certo exagero por parte dos participantes
do ritual, e suas ações não são controladas, os movimentos e as
representações são expressas em função de cada um. O controlar destas
emoções pode de uma forma prender quem o pratica. Obviamente que
sabemos aqui que os participantes do ritual não são atores. Mas a relação
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16
que estou fazendo agora é para enfatizar que os participantes desse tipo
de ritual não prendem a sua expressão por meio de suas ações físicas, e
nesse sentido felizmente não estão a imitar os europeus, para quem
geralmente a livre expressão humana é considerada um atraso ou sem
ética, já que se entende, de modo geral, que é ético ou educado quem
consegue conter as suas emoções (Nsingui, 2023, p. 47-48).
O trabalho do Bimphadi provoca-nos a revisitar alguns cânones do teatro
europeu para os quais o gesto é contido e a emoção se traduz por meio de uma
ação controlada, desenhada e pré-determinada. Na proposta de Stanislavski, por
exemplo, aprendemos a partiturar as nossas ações, assim como a estudar as
circunstâncias dadas, os verbos de ação e a
gênesis
da personagem. Já no teatro
ritualístico do Bimphadi, o corpo expressa-se de forma livre, a ação é consequência
da imersão do sujeito na ação simbólica e um frescor em cada movimento que
nasce integrado ao ser, que não viveu a separação esquizofrênica do “penso, logo
existo”. No caso dos atores do Bimphadi, eles cantam, dançam, pensam e sentem
em uníssono. Segundo Nsingui (2023, p. 26), vislumbramos que:
As artes estão intrinsecamente ligadas, e quando atentamos para estes
casamentos notamos a presença humana. Quando dançamos está
presente o corpo, porque somos movidos pelo momento em que nos
encontramos. O nosso corpo é estimulado ao balanço rítmico. A nossa
mente viaja pelo som melódico e pelo cruzamento harmonioso de cada
membro do nosso corpo. Em função disto é que, consciente ou
inconscientemente, o nosso corpo dialoga consigo mesmo, para poder
proporcionar a situação em que se está a viver.
E ainda o estudioso complementa que:
Independentemente de uma concepção pré-definida de corpo, para os
povos africanos (angolanos em particular), é difícil construir uma
identidade quando as estruturas formalísticas eurocêntricas penetram de
forma obrigatória nos grupos étnicos (Nsingui, 2023, p. 34).
E foi nessa tentativa de encontrar um caminho próprio que o
Grupo Bimphadi
construiu a sua metodologia que hoje é partilhada com os estudantes do Curso
de Teatro do ISART, da Universidade de Luanda, instituição acadêmica na qual se
formaram. Vejamos o que um deles relata após ter o primeiro contato com a
metodologia do grupo:
[...] eu enquanto ator, quis sempre ter este encontro, mas não sabia como
alcançá-lo na prática, mas quando me foi feito o convite para fazer parte
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do Bimphadi - mesmo sem saber o que era de concreto - acreditei que
esta metodologia podia me facilitar a ter este reencontro que tanto
procurava, e principalmente, a partir do momento que soube quem eram
as pessoas que estavam envolvidos no projeto, fui sem receios e
ressentimentos. Finalmente pude testemunhar este encontro comigo
mesmo e com os meus ancestrais dentro do laboratório (Costa, 2021
apud Costa, 2023)21.
Outro estudante, Ernesto Guelengue,
também teve as experiências com as
práticas de criação promovidas pelo Bimphadi, sobre as quais partilhou:
Estando dentro do laboratório sente-se algo que algumas vezes
experienciei nos meus trabalhos individuais, que é me conectar e sentir
as sensações que me são aplicáveis, atingir um nível elevado de conexão
com as energias altas ou positivas. A forma como as vozes trabalham as
individualidades partindo das canções internas ou de outros locais
acabam sempre nos conectando devido às questões das nossas
memórias e conexões que temos com os nossos vários eus interiores. É
uma forma que liberta e nos faz sentir nós mesmos e isto é o que de
melhor pode acontecer na vida de um ator (Guelengue, 2022 apud Costa,
2023, p.66)22.
Pensar nos processos de criação do ator angolano é um desafio quando nos
deparamos com os modelos europeus sendo perpetuados dentro dos centros de
formação, contudo, a partir de um mergulho na cultura local e nos saberes
ancestrais é possível encontrar uma alternativa. É isso o que o trabalho do
Grupo
Bimphadi
vem demonstrando e foi o que pudemos constatar no
Otyoto
Internacional
, realizado em 2022.
Conclusão
Os estados alterados de consciência são observados em diversos rituais,
inclusive em Angola. A presença desses rituais no transcurso da vida dos atores
do
Grupo
Bimphadi
reverbera de maneira positiva em sua capacidade de abrir
janelas do inconsciente e se entregar para o
jogo ritual
(Haderchpek, 2015; 2018;
2019; Almeida; Haderchpek, 2020). Ademais, as práticas laboratoriais utilizadas por
21 Alieone Horacio da Costa: ator colaborador do Bimphadi e finalista do Curso de Teatro (Atuação) na
Faculdade de Arte da
Universidade de Luanda. Entrevista feita durante os primeiros encontros dele com o
Bimphadi, no ano de 2021. Depoimento realizado para a pesquisa de mestrado de Manuel Francisco João da
Costa (2023).
22 Idem à nota 7.
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eles também se conectam com os mesmos preceitos das práticas laboratoriais
desenvolvidas pelo
Grupo
Arkhétypos
, o que talvez potencialize ainda mais a
capacidade dos atores adentrarem aos estados alterados de consciência.
Contudo, contamos com a participação de atores sem qualquer contato
prévio com o
Bimphadi
ou com o
Grupo Arkhétypos
e que, mesmo assim,
conseguiram reportar, de maneira profunda, essa dilatação do espaço-tempo
presente no
Teatro Ritual
(Haderchpek, 2018; 2021), vivenciado durante o
Otyoto
Internacional do Bimphadi23
. Assim, é necessário apontarmos para a potência das
vivências pregressas que os atores do Bimphadi apresentaram em sua história de
vida e como isso pode facilitar a aderência e a permanência desses atores nos
estados alterados de consciência, provocados pelo
Teatro Ritual
ou pelas práticas
ritualísticas provenientes da cultura angolana. Como essa pesquisa se deu no
âmbito de um processo artístico pontual, almejamos futuramente realizar outros
estudos com diferentes povos e culturas para que essas hipóteses possam ser
aprofundadas.
A discussão, ora apresentada, também abre um precedente para discutirmos
o impacto do processo de colonização na África e nas Américas, especialmente,
no Brasil e em Angola. Dentro desta perspectiva convém ponderarmos sobre os
apagamentos históricos e os epistemicídios culturais impostos por meio de um
processo de aculturação violento e avassalador. É função das artes da cena refletir
sobre essa temática e ponderar sobre os “universalismos” presentes na matriz do
teatro europeu, que são propagados e reproduzidos de forma indiscriminada,
sobrepondo-se a contextos históricos, geográficos e culturais.
Referências
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Ritual: Deslocamento da realidade imanente para se alcançar a Hierofania.
Urdimento
– Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 38, p. 01-
25, 2020.
23 O evento ocorreu no período de 17 a 25 de outubro de 2022, na Faculdade de Artes de Luanda e contou
com a participação de alunos dos Cursos de Teatro e de Música, além de artistas da comunidade e pessoas
com interesse na área de Artes Cênicas, incluindo os familiares e amigos dos alunos. Com uma carga horária
total de 72h, além da oficina de
Teatro Ritual
, que teve a duração de 8h, dividida em dois dias.
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de Castro e Ricardo A. Rosenbusch. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
Recebido em: 15/08/2024
Aprovado em: 21/01/2025
Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC
Programa de Pós-Graduação em Artes CênicasPPGAC
Centro de Artes, Design e ModaCEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br