1
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na
criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares
Suzane Weber da Silva
Para citar este artigo:
TAVARES, Luciano Correa; SILVA, Suzane Weber.
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na
criação de possibilidades de existência.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1,
n. 54, abr. 2025.
DOI: 10.5965/1414573101542025e204
Este artigo passou pelo
Plagiarism Detection Software
| iThenticate
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares | Suzane Weber da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
2
Vivências de FlowJack1: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de
existência2
Luciano Correa Tavares3
Suzane Weber da Silva4
Resumo
Este artigo tem como objetivo mostrar as estratégias de vida e de profissão do bailarino, do
coreógrafo e, acima de tudo, do artista de Hip Hop FlowJack. O texto indica que a prática
do artista analisado representa modos de provar um projeto artístico cultural negro rumo à
descolonização. Além disso, o artigo expõe aspectos da metodologia Uantpi de ensino de
dança e da oficina Fluxo Mandinga. O artigo é resultado parcial de pesquisa de doutorado e
se utiliza da escrevivência como meio para evidenciar epistemes pretas no campo do saber
científico.
Palavras-chave
: Dança. FlowJack. Escrevivência. Mandinga. Negritude.
FlowJack Experiences: Proposals from a Black Artist in Creating Possibilities of Existence
Abstract
This article aims to show the life and professional strategies of the dancer, choreographer
and above all, Hip Hop artist FlowJack. The text indicates that the practice of the analyzed
artist represents ways of evidencing a black cultural artistic project towards decolonization.
Furthermore, the article exposes aspects of the Uantpi dance teaching methodology and
the Fluxo Mandinga workshop. This proposal, the result of doctoral research, employ
writing as a methodology to highlight black epistemes in the field of scientific knowledge
and presented Africanities as a way of life of black people imbued with a sense of
humanity.
Keywords:
Dance. FlowJack.
Escrevivência
.
Mandinga
. Blackness.
Experiencias de FlowJack: propuestas de un artista negro para crear posibilidades de
existencia
Resumen
Este artículo tiene el objetivo enseñar estrategias de vida y de profesión del bailarín,
coreógrafo y sobre todo, del artista de Hip Hop FlowJack. El texto anuncia que la práctica
del artista investigado representa poner a prueba un proyecto artístico cultural negro
rumbo a la descolonización. Además, expone la metodología Uantpi de enseñanza de danza
y el taller Fluxo Mandinga. Este texto, producto de investigación de doctorado, ha utilizado
la escrevivência como metodología para colocar en evidencia epistemes negras en el
campo del saber científico.
Palabras clave
: Danza. FlowJack. Escrevivência. Mandinga. Negritude.
1 Este artigo resulta em 48% de partes de tese de doutorado de Luciano Correa Tavares denominada: “Escritas
amefricanizadas de si na dança: masculinidades negras”, defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em
2024.
2 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Gabriela Seger de Camargo. Bacharelado -
habilitação: Tradutor em Português/Inglês pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Tradutora e revisora
técnica.
3 Doutorado e Mestrado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduação em
Biblioteconomia pela UFRGS. lucianocorreatavares@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/9127242678571317 https://orcid.org/0000-0002-2808-7342
4 Pós-doutorado pela Coventry University, CU, Inglaterra. Doutorado em Études et pratiques des arts pela Universidu
Québec à Montréal, UQAM, Canadá. Mestrado em Ciências do Movimento Humano pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Bacharel em Artes Cênicas Interpretação pela UFRGS. Profa. titular - atuando na graduação e
na pós-graduação em Artes Cênicas da UFRGS ssuzaneweber@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/9969525838261265 https://orcid.org/0000-0001-7401-8690
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares | Suzane Weber da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
3
Introdução
Este artigo tem o propósito de evidenciar as estratégias de vida de um
artista da dança negro que propõe um projeto artístico cultural negro rumo à
descolonização das formas de conduzir criações de danças, de criar produções
artísticas e de propor metodologias de ensino, assim como os modos de recriar
novas tecnologias e de passar o conhecimento afrocentrado para as gerações
atuais e futuras. Com isso, seus saberes se disseminam para outras pessoas, que
incluem tanto os participantes de suas aulas regulares, bem como os
participantes de suas oficinas de dança e
workshops
, além de seus colegas de
profissão, como coreógrafos, bailarinos e, mesmo, o próprio público. Neste artigo,
depoimentos de FlowJack5 figuram como parte dos resultados de uma pesquisa
fruto de doutoramento6.
As estruturas do “sistema mundo europeu/euro-norte-americano
moderno/capitalista colonial/patriarcal” (Grosfoguel, 2008, p. 115), instituem
normas hegemônicas que afetam a forma de outros saberes artísticos serem
visibilizados, assumindo perspectivas universalistas vinculadas a estruturas de
poder. No campo da dança, isso aparece, por exemplo, como um esquema
tramado para não aparecimento de corpos não benquistos (como corpos
negros). Com o intuito de desfazer esse tipo de estrutura do sistema colonial no
campo da dança, no qual também se institui normas e padrões a serem
seguidos, a desobediência a tal tipo de lógica ganha envergadura a partir da
valorização desses corpos negros na cena artística. Para isso, utilizam-se
referenciais decoloniais. Mas, antes, vamos analisar as estruturas que tornaram
possíveis os estudos decoloniais7.
Um desdobramento do sistema colonial é a colonialidade, que envolve as
relações de poder emergentes no contexto da colonização europeia, as quais
5 Jackson Conceição (FlowJack ou Flow) concedeu entrevistas narrativas (Muylaert et al., 2014) em
diferentes momentos e por diferentes meios. A primeira entrevista aconteceu via plataforma
Zoom
em 10
de dezembro de 2020, a segunda 15 de janeiro de 2021, a terceira por meio de mensagens do
WhatsApp
em 16 de março 2024.
6 Tese intitulada:
Escritas amefricanizadas de si na dança: masculinidades negras
de Luciano Correa Tavares
(2024).
7 Ver também Ballestrin, 2013.
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares | Suzane Weber da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
4
têm mantido as associações entre dominação e subordinação, colonizador e
colonizado, a despeito da emancipação das colônias (Silva Junior, 2021). Assim,
apesar de a colonização haver terminado enquanto prática de dominação,
ainda somos reféns dela no âmbito do pensamento. A fim de subverter os
sistemas intelectuais e subjetivos de opressão, as discussões sobre
descolonização foram iniciadas no final dos anos de 1990 com um grupo de
intelectuais8 na Duke University e na Universidade da Carolina do Norte. Os
debates relacionavam-se a questões das raízes epistêmicas do pensamento das
Ciências Sociais na América Latina a fim de olhar criticamente ao conhecimento
eurocentrado (Mignolo, 2010; Ballestrin, 2013). Em meados dos anos 1970,
concebia-se que o conhecimento era uma ferramenta de colonização e que, para
que houvesse uma descolonização, era preciso descolonizar o saber e o ser, ou
seja, atuando-se no campo da subjetividade. (Mignolo, 2010). O autor prossegue
seu pensamento, “se o conhecimento é um instrumento imperial de colonização,
uma das tarefas urgentes que temos pela frente é descolonizar o conhecimento”
(Mignolo, 2010, p. 11). Dentro desse contexto, propor outras possibilidades de
conhecimento em dança torna-se uma forma de descolonizar o saber artístico,
área que está inserida na mesma estrutura hegemônica proposta pelo
colonialismo e, que fica evidenciado pela disseminação de técnicas
eurocentradas, como o balé clássico. Para falar da classe artística negra, temos
que colocar em foco sua existência cotidiana.
As maneiras de vida de uma pessoa negra na sociedade brasileira requerem
que se adote uma série de táticas para sobreviver e, no campo da dança, não é
diferente. Uma delas é assumir diferentes papéis no mercado cultural, como é o
caso de Flow. Ele se denomina das seguintes formas, além de bailarino: artista
plástico, ilustrador, artesão, escritor de rua, customizador e designer9. Para
justificar tal proeza e ampliar a discussão verificamos alguns dados na
plataforma da Fundação Nacional de Artes (FUNARTE). Nela tivemos acesso ao
cadastro de artistas, porém algumas informações estão com acesso restrito,
8 Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Catherine Walsh, Boaventura Souza Santos, Nelson Moldado-Torres, Walter
Mignolo entre outros. (Mignolo, 2010, p. 10).
9 Ver https://www.instagram.com/flowjack.atelier/
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares | Suzane Weber da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
5
muito provavelmente pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)10. As
informações que se encontram nesse banco de dados são da classe artística,
subdividas em: “Nome”, “Nome Artístico”, “Atuação”, “Telefone”, “Email”, “Cidade,
“Estado” e “Ação” (ícone para visualizar o cadastro completo). Tendo em vista a
elasticidade das funções no mercado cultural, as funções que o artista se
nomina não estão contempladas dentro da listagem de cadastro individual. Além
disso, o site é organizado por categorias, que podem ser filtradas por estado.
Analisamos a categoria bailarino.
Na categoria individual bailarino, que é um dos eixos fundamentais de
análise desta investigação, os registros encontrados são de 2.531 artistas e, a
princípio, supunha-se que seriam todos artistas da
dança
. No entanto, as
funções se alternam entre diretora; coreógrafa e bailarina; presidente; diretora,
pesquisadora e professora; bailarino e ator; coreógrafa e diretora; ator, bailarino e
diretor; criador-intérprete. Logo, detecta-se uma falta de uniformidade nos
registros, o que impossibilita uma pesquisa mais precisa. Adicionalmente, o filtro
por marcadores sociais como raça se tornaria impossível diante dos dados, que
se mostram dispersos (Tavares, 2024).
Seguindo essa lógica, conforme a publicação do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA) sobre o
Mercado de Trabalho da Cultura:
considerações sobre a Meta 1111 do Plano Nacional de Cultura
(2021), de
autoria de Frederico da Silva e Paula Ziviani, tal mercado de trabalho
apresenta fragilidades e se caracteriza pela flexibilidade,
multifuncionalidade, autonomia, criatividade e intermitência. Prevalecem
inúmeras incertezas acerca dos modos de viver de arte. Outro ponto
que cabe destacar é a informalidade do setor, especificamente da
dança (Tavares, 2024, p. 39).
A formação em ambientes informais de dança contribui para um cenário de
intermitência, muito presente na história da classe artística brasileira, e
especialmente, na cena da classe da dança em Porto Alegre/RS. Dentro desse
cenário de informalidade da classe artística, volta-se a analisar a intersecção
com a identidade negra.
10 LGPD 13.709/2018. Esta Lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais,
por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os
direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa
natural (Brasil, 2018).
11 Pretende-se com essa meta reduzir a informalidade do trabalho artístico.
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares | Suzane Weber da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
6
Trazer para o foco as experiências de vida de uma pessoa negra, nesse
contexto, é criar outro lugar no campo das epistemologias dominantes e, é
também criar um lugar de referência que surge a partir do corpo e depois ganha
significados do campo do sensível. É um artifício de descolonizar o saber, pois
desloca-se os lugares de destaque, uma vez que raras são as vezes que vemos
pessoas negras assumindo papéis de referência na esfera cultural em termos de
gerência e poder nas artes cênicas. Os modos como o corpo grafa a escrita
partem de uma história comum, isto é, ao mesmo tempo que é um processo
individual, é coletivo. Ou seja, é essa a construção coletiva da identidade negra, a
negritude a “todos os grupos humanos que o olhar do mundo ocidental ‘branco’
reuniu sob o nome negros” (Munanga, 2020, p. 19). Para o autor, a negritude não
está relacionada somente ao tom da pele negra e, sim, constitui-se por pessoas
que foram vítimas das mais cruéis tentativas de desumanização e suas culturas,
sistematicamente, destruídas e negadas de existir.
No caso do artista colaborador deste artigo, o fato de assumir diferentes
papéis na dança favorece para que se mantenha no mercado da dança de modo
ativo. As seguintes seções serão apresentadas de modo a abordar como a arte
de dançar proporciona estratégias de produção de novas possibilidades de
existência e de sociabilidade, principalmente, quando o tema se refere a um
homem negro que dança.
FlowJack: breves considerações sobre arte e metodologias de
ensino da dança negra
Jackson Conceição, mais conhecido como Flow, nascido em 1980, é gaúcho,
bailarino, coreógrafo e professor de
Hip Hop
. Flow (Figura 1) é bailarino da Ânima
Cia. de Dança e foi bailarino da Companhia Municipal de Dança de Porto Alegre.
Teve um amplo papel no trabalho socioeducativo12 voltado para crianças em
situação de risco em instituições que promovem esse tipo de ação social como
12 Entre as instituições que trabalhou, destacam-se as seguintes: Fundação de Assistência Social e Cidadania
(Porto Alegre), Associação Comunitária de Oficineiros (Porto Alegre), Associação dos Moradores das Vilas
Augusta, Paraíso e Meneghine (Porto Alegre/Viamão - 1999/2000). Além desses locais, atuou em cidades no
interior do estado do Rio Grande do Sul como Pelotas e Bagé. Cabe destacar que participou do Ponto de
Cultura Chibarro Mix Cultural e do projeto de extensão Chibarro mix cultural: memória e rede solidária da
Universidade Federal de Pelotas (UFPel) nos anos de 2006, 2007, 2008 e 2009.
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares | Suzane Weber da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
7
professor e oficineiro de Hip Hop.
Figura 1 Flowjack,
Indigente Invisível
(2018) - Foto: Luciana Canello
A linha mestra do artista está no desenvolvimento de um trabalho de aula
que se encontra em construção intitulado
Fluxo Mandinga
que evolui e se molda
com o tempo ou, em outras palavras, está permanentemente em processo. Essa
lide é a experiência do seu corpo preto com mais de 30 anos de trajetória em
dança que exprime a “percepção do movimento corporal a partir dos princípios
da capoeira, samba, religião umbanda,
Hip-Hop Freestyle,
Uantpi13,
Breaking
e
Dança Contemporânea” (Conceição, 2023, p. 1). A prática de Flow explora as
formas de como o corpo se movimenta “respira e se comunica através de ritmo
e tempos musicais e que se adapta e evolui ao longo dos anos” (Conceição, 2023,
p. 1).
A metodologia desse trabalho reelabora, dentro da linguagem corporal, o
13 É um método de curso intensivo desenvolvido pelo bailarino brasileiro Vovô Uantpi, no qual se trabalha
uma específica aproximação entre o lado pessoal e o artístico do bailarino. Vovô Uantpi desenvolveu seu
próprio estilo, chamado Uantpi, o qual inclui elementos de danças brasileiras, resultando em uma vertente
de Danças Urbanas. Atualmente ministra
workshops
e oficinas em todo Brasil e exterior. É idealizador e
organizador do festival de dança
The Urban
Game e do Projeto Método Uantpi. Ver
https://metodouantpi.wixsite.com/uantpi
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares | Suzane Weber da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
8
termo mandinga
,
que
é um método de curso intensivo, onde se desenvolve uma
específica aproximação entre o lado pessoal e o artístico do bailarino.
Relacionando-o à Capoeira e, consequentemente, ao capoeirista, e este à malícia,
a metodologia apresenta traços típicos desse jogo afro-performativo.
De acordo com Dias (2009), mandinga se relaciona diretamente com o jogo
que tem como objetivo burlar o adversário por meio da astúcia. O autor
prossegue dizendo que no universo da capoeira, o vocábulo igualmente diz
respeito a poderes mágicos conferidos “a alguns capoeiras, que em geral trazem
pendurados no pescoço patuás ou talismãs [...] que em certos contextos
significava feitiçaria.” (Dias, 2009, p. 52). Pode-se dizer, conforme Santos (2008),
que o termo mandinga tem sua raiz no período do Império Português em que os
africanos escravizados portavam “amuletos em formato de bolsinha contendo
ingredientes que protegiam contra doenças e armas” (Santos, 2008, p. 8). Desse
modo, as bolsas de mandinga, pela “má” interpretação dos “inquisidores do
Santo Ofício” relacionaram tal prática à feitiçaria. No entanto, dentro delas havia
“fragmentos de versetos do Alcorão, escritos em caracteres árabes, num pedaço
de papel, pequenas taboas, ou objetos que eles guardavam como
gris
-
gris
(Ramos, 2003, p. 83 apud Santos, 2008, p. 12).
A autora traz algumas perspectivas de estudos de pesquisadores que ligam
o uso desses amuletos por negros em África a uma religiosidade rústica; no
Brasil Colônia, a uma religiosidade colonial em processo de sincretismo
religioso. Ou seja, para manterem seus hábitos e sua cultura, os negros foram
introduzindo às suas práticas religiosas elementos do cristianismo para
continuarem com seus cultos. Nesse sentido, mas sem perder a acepção
original, a palavra mandiga foi ganhando contornos robustos como nos elucida
Muniz (2021, p. 273):
Mandinga, para mim, é uma teoria. É um conceito negro-epistemológico.
A mandinga tem a ver com estilo, ginga, com as feitiçarias do corpo
quando se pensa, por exemplo, o jogo da capoeira. Cordeiro (2019)
discorre sobre ato de fala mandinguero. Para mim, mandinga é a própria
linguagem corporificada nas reexistências da população negra. A
engenhosidade como usamos a linguagem de forma estratégica (Muniz,
2009) para sobreviver enquanto população constantemente aniquilada.
Saber quando você um golpe ou desvia; saber também o momento
de ficar firme e rebater o golpe.
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares | Suzane Weber da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
9
A confluência de sentidos que a autora discorre está em concordância com
o que Flow pensa sobre sua oficina
Fluxo Mandinga.
Para ele, toda a concepção
desse curso está ligada à capoeira, à ancestralidade, ao movimento do corpo, à
luta cotidiana de ser preto todos os dias. Nisso, a prática proporciona uma
“forma macia, leve e silenciosa de caminhar e de levantar mesmo levando
rasteira, perdoa aquele que nos tem ofendido e não se deixar cair em tentação. A
alegria na simplicidade” (Conceição, 2024, n/p.).
Parafraseando a intelectual Lélia Gonzalez (Rios; Ratts, 2018), não se nasce
negro, torna-se14:
Exatamente, porque ao meu ver, ela [Alice Walker] resgata o
pensamento de outra mulher, extraordinária, Simone de Beauvoir,
quando esta afirma que a gente não nasce mulher, mas se torna
(costumo retomar essa linha de pensamento no sentido da questão
racial: a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha, etc., mas se
tornar negra é uma conquista). Se a gente não nasce mulher, é porque a
gente nasce fêmea, de acordo com a tradição ideológica supracitada:
afinal, essa tradição tem muito a ver como os valores ocidentais,
conforme nos revela um grande pensador e cientista negro Cheikh Anta
Diop (Gonzalez, 2020, p. 234).
Nesse sentido, Costa (1990, p. 2) diz que: “Ser negro é ser violentado de
forma constante, contínua e cruel, sem pausa ou sem repouso, por uma dupla
injunção: o de encarar o corpo e os ideais de Ego do sujeito branco e a de
recusar, negar, anular a presença do corpo negro”. Pode-se dizer que, durante
24h por dia, os/as sujeitos/as negros/as enfrentam esse embate. As situações
acontecem de maneira tão perversa que fazem o negro odiar sua própria cor da
pele, seu cabelo, seu nariz… e passar a desejar os atributos do branco. Quanto a
esse fato, para Fanon (2008, p. 34), todo povo que se tornou colônia passa pelo
processo de inferioridade em função do “sepultamento de sua originalidade
cultural”. Ou seja, a classe dominante utiliza seu poder para estabelecer a norma
do que deve ser considerado aceitável para os olhos do Ocidente15. Em outras
palavras, pode-se chamar também como “[...]
ideologia de cor
[que] é, na
14 Referência a Lélia Gonzalez a partir de intervenção realizada em Valença, Rio de Janeiro, de 2 a 4 de
dezembro de 1988 no I Encontro Nacional de Mulheres Negras (Gonzalez, 2020).
15 Ocidente se refere à civilização europeia, formatada por um governo burguês que, por sua vez, foi
responsável pelos processos de colonização (Césaire, 2020), mas também se refere ao imperialismo
estadunidense.
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares | Suzane Weber da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
10
verdade, a superfície de uma ideologia mais daninha, a
ideologia de corpo
. […]
Uma visão panorâmica, rapidamente, mostra-nos que o sujeito negro, ao repudiar
a cor, repudia radicalmente o corpo” (Costa, 1990, p. 5, grifos do autor). Tais
acontecimentos estão relacionados às questões de racismo e preconceito,
muitas vezes consigo mesmo.
Porém, Flow (Conceição, 2020. Entrevista a Luciano Tavares) comenta:
Mudou muita coisa, mas ainda tem, ainda... que conforme o tempo
vai passando e a gente vai amadurecendo, né. Então a gente acaba
apontando. A gente não deixa passar. Eu muito mais ainda. Eu não
estou deixando passar nada. Qualquer situação que eu vejo, eu falo
na lata, na hora. Tem muitas pessoas que ficam muito incomodadas
comigo, mas a gente precisa falar. deu, né? Anos 80, 90, 2000.
Estamos 2021, né? Então, não mais. Mas eu acredito que as coisas
estão evoluindo, mas ainda está muito lento, ainda tem muita coisa
ainda pra melhorar. Principalmente nessa questão de
representatividade. Acredito que tem uma geração nova também e
muita coisa está mudando. As pessoas o estão ficando mais caladas,
né. Mas ainda, a representatividade preta na cultura aqui no Rio Grande
do Sul, ainda falta muita coisa.
Ainda que ocorra ações para estabelecer limites quanto a tratamentos
desiguais no cotidiano, a violência simbólica opera de modo a apagar as
subjetividades dos indivíduos e focar a dominação e valores dominantes sobre o
povo excluído. Desse modo, é possível perceber a ausência de pessoas negras
em companhias profissionais de dança clássica e mesmo contemporânea, ou
associadas à figura da clássica bailarina. O que tem a ver com o que Anille
Lemos (2023, p. 44) elucida sobre a existência de “um conjunto de ideias,
imaginários e argumentos para fundamentar as desigualdades raciais.” Assim, o
apagamento opera no campo da dança. adentrando na metologia de ensino
de Flow, em suas oficinas a metodologia é organizada tendo como base,
também, a palavra
fluxo
(Flow, em inglês, como no nome do artista) no sentido
de junção, união a qual trata da qualidade do movimento no espaço de modo
contínuo, fluente, escoante. Assim, tal expressão desdobra-se em cinco
orientações espaciais: ascendente, descendente, horizontal, transversal e
circular. Consequentemente, a prática leva ao jogo corporal que atua na
percepção dessas camadas, fazendo com que se interliguem. Isto é, os
procedimentos da oficina Fluxo Mandinga atuam no imaginário sensorial
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares | Suzane Weber da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
11
cognitivo corporal, uma vez que, para lidar com a esfera da ginga, é preciso estar
com a atenção aguçada, como na capoeira. Isso se aplica aos movimentos do
corpo que recebem as informações das sinapses, fazendo com que a produção
de sentidos aja no campo da multiplicidade. Enquanto o fluxo age sobre as
qualidades rítmicas de movimento do corpo, a mandiga age na percepção de
sentidos simbólicos com o intuito de unir corpo, mente, malícia, misticismo,
religiosidade. No que se refere à preparação corporal, o processo de ativação das
partes do corpo, no início do aquecimento, transita pela lubrificação das
articulações e fortalecimento da musculatura. De modo lúdico, é possível atribuir
a energia gerada com o acúmulo desses elementos a poderes mágicos. Assim,
sua metodologia de ensino em dança reúne saberes e formas de fazer
interligados com a cultura negra. No entanto, além de atuar como artista da
dança, sua multiplicidade de papéis o coloca como atuante na indústria criativa.
Flow foi convidado para participar do Mercado de Indústrias Culturais
Argentinas MICA16 (2023) para ministrar um curso intensivo denominado
Método Uantpi Dança
e
Tecendo em Tinta Preta Artes Plásticas
o qual
enfatiza um treinamento específico de dança em que se desenvolve o pessoal e
o artístico de cada bailarino/a/e. No que diz respeito ao segundo título da oficina
é um projeto que envolve economia criativa, sustentabilidade e geração de renda.
O Método Uantpi:
É uma metodologia da vivência afetiva e cultural que facilita o
aprendizado e o diálogo entre as idades, entre artistas e público, entre
grupos étnico-raciais interagindo com saberes ancestrais e as
metodologias formais para a elaboração do conhecimento. Essa
abordagem de aprendizado é um projeto de vida que tem como foco o
fortalecimento da identidade e a celebração da vida. Os conceitos que
estão sendo construídos na Metodologia Uantpi se inspiram no
desenvolvimento pessoal e no autoconhecimento em cima da vivência e
experiências de cada indivíduo. A metodologia Uantpi consiste em trazer
aos dançarinos, de qualquer modalidade ou estilo, um conceito de
aprendizagem voltado ao desenvolvimento não somente corporal, mas
sim uma união do ser como um todo, coração, corpo, mente, alma e
espírito, através de um ritual de dança. É a partir dos movimentos que
corpo, alma, mente, espírito e coração são conectados em uma
unidade. Todos os exercícios realizados colaboram para o ser em sua
totalidade. Acredita-se que através dos movimentos geram sensações e
experiências que irão conectar todas as partes do ser em uma unidade
(MICA, 2023, [
online
]).
16 Ver https://mica.gob.ar/usuario/22030
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares | Suzane Weber da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
12
O
Projeto Tecendo em Tinta Preta
(Figura 2):
tem seu viés focado na capacitação e formação criativa e sustentável,
utilizando distintas técnicas de customização de artigos do vestuário
têxtil, revitalizando latas de
spray
e transformando-as em utensílios de
decoração. O interessante é que o projeto é destinado para todos os
públicos e idades, para não artistas, artistas amadores até profissionais
experientes (Tavares, 2024, p. 64).
Desse modo, FlowJack se mostra como um artista múltiplo que circula
entre Dança, Artes Visuais, Moda Sustentável o que o torna mais evidentemente
um empreendedor cultural.
Além de produzir sua arte de dançar e criar
metodologias, vende sua “mão de obra artística” para diversos locais e seus
produtos são voltados para a cultura negra.
Figura 2 Customização e design. Fonte: FlowJack (2023)
São trabalhos que fomentam a economia preta, tornando-o também um
empreendedor dentro da indústria criativa. Conforme Machado e Fischer (2017, p.
135) a “indústria criativa é vista hoje como uma área de produção onde os
campos do negócio e da cultura se encontram e, por isso, tanto a lógica da
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares | Suzane Weber da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
13
prática artística quanto da econômica estão presentes”. No Edital da FUNARTE17
(2023) para setores da Indústria Criativa, FlowJack foi selecionado na primeira
colocação da região Sul com o projeto
Tecendo em Tinta Preta/Método Uantpi
para o evento Mercado das Indústrias Criativas Brasil18 (MICBR2023) em Belém do
Pará no mesmo ano. Isso mostra seus múltiplos papéis de atuação no ramo do
empreendedorismo artístico em nível nacional e internacional.
Escrevivências de um homem negro dançante
O fato de que o artista analisado é um homem negro destaca a necessidade
de se reconhecer as relações das vivências de homens negros no Brasil, que é
uma situação que é sentida por um dos autores19 deste artigo. Suas experiências,
percepções, enfrentamentos estão no campo da realidade e da subjetividade de
cada um e, de certa forma, o atravessam, pois, como homem negro que é,
entende o que se sente na pele em determinadas situações. A fala é feita desde
esse lugar, perpassado por experiências reais e subjetivas, similares a seus
irmãos, de travessias raciais, de classe e de masculinidades negras alternativas.
A percepção da cor da sua pele, além de ser uma marca que as pessoas
negras portam pela racialização de suas figuras, confirma que essa definição se
pelo olhar do outro, pela diferenciação. A experiência da vivência da cor da
pele, de ser pessoa negra, é recorrente para todas as pessoas que diferem dos
valores da branquitude. “Talvez possamos concluir que uma boa maneira de se
compreender melhor a branquitude e o processo de branqueamento é entender
a projeção do branco sobre o negro, nascida do medo, cercada de silêncio, fiel
guardião dos privilégios” (Bento, 2002, p. 14). Ou seja, basta ser negro que uma
série de interdições imposta pelo Estado e, especialmente, pela polícia, tornam a
pessoa alvo de perseguições, quando não vítimas de assassinatos. Isso se
17 Além desta premiação FlowJack recebeu diversas premiações na categoria solo em festivais de dança
nacionais, como Meeting Indaiatuba São Paulo/SP (2007); Flowkings Balneário Camboriú/SC (2009);
Batalha Urbana Rio de Janeiro/RJ (2009), entre outros.
18 O Ministério da Cultura (MinC) e a Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) realizam, de 8 a 12 de
novembro de 2023, em Belém (PA), a 3ª Edição do Mercado das Indústrias Criativas do Brasil (MICBR 2023).
O maior mercado público de indústria criativa do país contará com uma série de atividades para 15 setores
criativos, seis a mais que a última edição. https://www.gov.br/cultura/pt-br/assuntos/noticias/minc-
realiza-o-micbr-em-belem-pa-saiba-o-que-e-o-evento
19 O primeiro autor do texto trata-se de um homem negro e segunda autora uma mulher branca.
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares | Suzane Weber da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
14
relaciona às condições de vida dessas pessoas “[...] tais condições, para além da
pobreza, da cor da pele, da experiência de ser homem ou mulher ou viver outra
condição de gênero fora do que a heteronormatividade espera” (Evaristo, 2020a,
p. 31), determinam seus modos de vida. Tal diferença, em determinados
contextos, estabelece padrões estéticos aceitáveis como no campo da dança.
Por exemplo, houve um período que o padrão estético no campo das
importantes companhias de dança20 era o que definia o futuro profissional de um
bailarino ou bailarina. Ainda hoje, em algumas companhias de balé clássico, por
exemplo, esse comportamento acontece, basta olhar o biotipo físico e a cor das
bailarinas e bailarinos do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. De modo geral, o
mesmo ocorre em companhias de grande produção na dança contemporânea.
Logo, a vivência do corpo negro na dança traz suas próprias características,
expectativas e embates. Para trazer esse aspecto, lançamos mão do referencial
de escrevivência de Conceição Evaristo.
Analogamente ao que Conceição Evaristo (2020b, p. 29) comenta sobre a
essência do termo Escrevivência “[...] não como grafia ou como som, mas, como
sentido gerador, como uma cadeia de sentidos na qual o termo se fundamenta e
inicia a sua dinâmica”, é possível simular, na dança, a criação, o dançar e o
performar como atos que se constituem em corpos negros, os quais contêm
histórias singulares em contraponto aos outros grupos sociais privilegiados em
termos étnicos. Quando uma história se fundamenta no corpo, isto é, na
experiência do corpo negro, inúmeras formas de gerar sentidos. Neste caso, o
de homens negros que estão na mira dos sistemas opressores, produzir arte
abre inúmeras possibilidades de criar significados. Dentro disso, é interessante
perceber que Evaristo iniciou suas histórias pelo relato de mulheres negras
escravizadas, o que evidencia a elasticidade da expressão. A autora comenta que,
dentre as várias funções forçadas que elas tinham, ser mãe de leite, cozinheira,
cuidadora dos filhos dos senhores da casa grande, também precisavam contar
histórias para estes dormirem. “E havia o momento em que esse corpo
escravizado, cerceado em suas vontades, em sua liberdade de calar, silenciar ou
gritar, devia estar em estado de obediência para cumprir mais uma tarefa, a de
20 Ver tese
Inserção e permanência de bailarinas negras brasileiras no campo profissional da dança como
representatividade negra e modo de resistência ao racismo
de Anielle Lemos (2023).
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares | Suzane Weber da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
15
contar histórias para adormecer os da casa-grande” (Evaristo, 2020b, p. 30).
Essas são histórias que envolvem a história e a vivência do corpo.
O corpo fala, diz, comunica-se mesmo em estado de obediência, as
histórias se grafam no corpo, nas memórias. A relação que a dança tem com
esses elementos é múltipla, pois os movimentos são uma forma de grafia no
espaço. No desafio gráfico de unir as palavras, não como uma simples união,
mas uma junção fundamentada, Conceição Evaristo (2020a, p. 1) segue sobre as
origens do termo Escrevivência:
Era um jogo que eu fazia entre a palavra “escrever” e “viver”, “se ver” e
culmina com a palavra “escrevivência”. Fica bem um termo histórico. Na
verdade, quando eu penso em escrevivência, penso também em um
histórico que está fundamentado na fala de mulheres negras
escravizadas que tinham de contar suas histórias para a casa grande. E
a escrevivência, não, a escrevivência é um caminho inverso, é um
caminho que borra essa imagem do passado, porque é um caminho
trilhado por uma autoria negra, de mulheres principalmente. Isso não
impede que outras pessoas também, de outras realidades, de outros
grupos sociais e de outros campos para além da literatura
experimentem a escrevivência. Mas ele é muito fundamentado nessa
autoria de mulheres negras, que são donas da escrita, borrando essa
imagem do passado, das africanas que tinham de contar a história para
ninar os da casa-grande.
A proposição de inspiração na escrevivência como metodologia é colocar
em evidência epistemes pretas no campo do saber científico, saberes do corpo,
experienciado e vivido pelo corpo negro dentro de um processo histórico
reformulado na atualidade. “Nossa escrevivência traz a experiência, a vivência de
nossa condição de pessoa brasileira de origem africana, uma nacionalidade
hifenizada, na qual me coloco e me pronuncio para afirmar a minha origem de
povos africanos [...]” (Evaristo, 2020b, p. 30).
Desde a questão da identidade, quando se fala em diáspora preta, tudo
que eu faço em termos de movimento, e até de criação, é tudo voltado
à cultura preta. Então, é muita influência de capoeira, de samba, da
religião Umbanda. Então, eu sou preto, e eu vou continuar mais cem por
cento preto na minha movimentação (Conceição - FlowJack, 2021,
entrevista a Luciano Tavares).
Ao analisar o universo histórico e corpóreo do ser negro no Brasil com
os estereótipos lançados sobre seus corpos, é possível identificar que
no início da colonização eram desprovidos de quaisquer direitos. Logo,
foram as pessoas que mais sofreram ao longo desse processo de
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares | Suzane Weber da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
16
construção do nosso país e, aos poucos, hoje, esses fatos estão sendo
evidenciados em suas narrativas (Tavares, 2024, p. 126).
Foram essas pessoas que protagonizaram aquela história, que, por
conseguinte, veio a se tornar escritura corporificada, de forma que a palavra
fosse grafada. A escrevivência, de autoria notadamente pela mulher negra, busca
um espaço que visa a “necessidade de apreensão do mundo, mas o mundo que
[a] escapole” (Evaristo, 2020b, p. 36). Por sua vez, propõe outras epistemes do
conhecimento, no sentido de reconhecimento, de afirmação, como um
importante instrumento de pesquisa em meio ao saber hegemônico branco.
Pensar que as experiências de vida de uma pessoa negra, nesse contexto,
tornam-se uma maneira de escreviver, é criar outro lugar frente ao campo das
epistemologias dominantes, é também criar um lugar de referência que surge a
partir do corpo preto e depois ganha contornos letrados. É um artifício de
descolonizar o saber. Os modos como o corpo grafa a escrita partem de uma
história comum, ao mesmo tempo que é individual, é coletivo. Assim, FlowJack
nos conta sobre suas referências:
Na questão da dança mesmo, da questão histórica, eu tive bons
exemplos, boas pessoas que me instruíram. Tanto é que a maioria das
pessoas da minha família, principalmente as mulheres mesmo, tem
uma representatividade muito grande. [...] Então, eu tenho referência na
família mesmo, de família, de berço, que foi uma transição muito
natural e muito rica. Na questão cultural mesmo, e principalmente na
questão de identidade, de ser negro (Conceição - FlowJack, 2021,
entrevista a Luciano Tavares).
Os modos de vida são formulados, historicamente, em espaços de
resistência, em aspectos do viver coletivamente, como em comunidades
periféricas, formadas por processos de exclusão, em comunidades terreiros, em
comunidades rodas de capoeira, em comunidades congadeiras, em comunidades
de samba, entre outras. Todas essas pessoas têm histórias comuns, modos de
enfrentamentos comuns, estados de presença no mundo compartilhados. Isto é,
as Marias, os Joãos, as … a história é a mesma, só muda de endereço.
É. O pessoal me conhece como FlowJack, né. Que foi o nome que eu
adotei, que eu ganhei esse apelido do Patrick Chen, que é um
americano que coreografou o Matrix dois e três, né. As cenas de
batalhas, ele que coreografou. Eu conheci ele no Festival Internacional
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares | Suzane Weber da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
17
de Hip Hop. Daí ele falava que eu tinha muito fluxo, muito flow quando
me movimentava. E ele falou meu nome, “ah, como é que é o teu nome,
é Jackson?”, e ele falou “FlowJack”. Porque tem um americano
chamado Flowmaster, que é um b-boy. Daí ele pegou e falou assim tu e
o Flowmaster são muito parecidos. A questão da identidade, do jeito, a
maneira como tu fala, como tu caminha, como tu respira, isso é da
tua dança. Tu é 100% autêntico no que tu faz”. Daí ele pegou e deu esse
apelido, FlowJack, daí eu uso até hoje (Conceição - FlowJack, 2021,
entrevista a Luciano Tavares).
Nesse sentido, a arte da dança, uma arte performática, está a oferecer outra
condição de estar no mundo para os sujeitos negros em questão, que têm certo
reconhecimento artístico e com isso desfrutam de sua humanidade no momento
que estão em estado de criação, bem como quando estão em cena. Essa
conquista tem a ver com a situação plena do ser humano, despreocupado em
associar sua figura como uma ameaça ao sistema branco hegemônico. Com isso,
é possível afirmar que “a nossa escrevivência não é para adormecer os da casa-
grande, e sim acordá-los de seus sonos injustos” (Evaristo, 2020b, p. 30).
Considerações finais
Os enfrentamentos ao racismo, ao preconceito com relação à
masculinidade negra são recorrentes, com algumas variações, qualquer que seja
o campo de atuação de homens negros. Constatando-se que as desigualdades
na vida de um homem negro que dança está na mesma trama. O melhor
antídoto para encará-los está expresso no enfrentamento às estruturas da
colonialidade. E nada mais propício que produzir arte para, assim, descolar dos
modos do ser e de representar que a hegemonia branca patriarcal nos deixou.
Acreditamos que
escreviver
é uma ferramenta que possibilita abraçar a
ancestralidade do passado, do presente e do futuro, configurada em formatos
múltiplos. A trajetória artística e social de FlowJack, o modo como alguns
bailarinos negros revelam questões advindas do preconceito e do racismo de
uma categoria social, compõem seus métodos de sobreviver. Apesar de
enfrentar barreiras sociais, ele se tornou reconhecido e uma referência no campo
da dança com premiações, destaques, convites à participação de eventos
internacionais. Nesse contexto, a dança pode favorecer a criação de um espaço
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares | Suzane Weber da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
18
de arte para as masculinidades negras.
Desse modo, é possível entender também que as maneiras de criar arte, ou
seja, a arte de dançar, unem-se às estratégias de resistência como um modo de
criar vida, uma vez que dançar é uma forma de criação de vida, a fim de fazer o
corpo dançante mover, vibrar e pulsar. Mesmo que se fale sobre os aspectos
abomináveis da escravização, do racismo e da desigualdade, no momento que o
artista performa sua dança, seja no palco tradicional, seja em lugares
alternativos, está mostrando sua capacidade de produzir encantamento, está
celebrando a vida, está afro-celebrando, que é um chamamento para a partilha
irradiante de seus fazeres artísticos, ocasionando encantamentos dos jeitos de
enfrentar e de existir no mundo.
Estratégias e táticas para que saibamos atuar nas árduas batalhas e
constantes da guerra pelo encantamento do mundo. Nas bandas daqui
a noção de encantamento vem sendo ao longo do tempo trabalhada
como uma gira política e poética que fala sobre outros modos de existir
e de praticar o saber. O encantado é aquele que obteve a experiência de
atravessar o tempo e se transmutar em diferentes expressões da
natureza. A encantaria, no Brasil, plasmada na virada dos tambores, das
matas e no transe de sua gente cruza inúmeros referenciais para
desenhar nas margens do Novo Mundo uma política de vida firmada em
princípios cósmicos e cosmopolitas (Simas; Rufino, 2020, p. 5-6).
Nesse sentido, dançar é um manifesto a favor de uma política de vida, ao
contrário à política de morte, que temos visto em nossa sociedade dirigida aos
homens pretos. O encantamento é, então, o ato de criar mundos, mas isso não
se no nada, dá-se dentro de um sistema cultural, a partir de uma conjuntura.
Aqui, o contexto escolhido para ponderar uma práxis de libertação é o africano e
afrodescendente (Machado, 2014). Nisso, é possível reiterar a capacidade que o
artista analisado deste artigo tem de sensibilizar os sentidos perceptivos, tanto
de quem o assiste dançar como para ele, que dança uma vez que seus
movimentos inebriam a consciência, suspendem, elevam, emocionam os
espectadores. De acordo com suas entrevistas, percebemos o quanto o
acolhimento social através da família, dos mais velhos, alicerçou sua confiança e
forças de negritude. Ademais, o ato de concentração para a dança o coloca na
condição de criar uma presença cênica, ou seja, o momento de entrar na cena,
quando o artista traz sua carga emotiva vibracional, a fim de transmitir o que o
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares | Suzane Weber da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
19
faz mover, que, por sua vez, pode estabelecer sentidos, um deles, neste caso em
específico, é narrar a si vendo-se em “histórias [que] não são totalmente minhas,
mas que quase me pertencem, se (con)fundem com as minhas” (Evaristo, 2023,
s/p).
Referências
ALMEIDA, Silvio.
Racismo estrutural
. São Paulo: Jandaira, 2020.
ASSUMPÇÃO, Jorge Euzébio.
O racismo e a sonegação da história
afrodescendente no Rio Grande do Sul
. São Leopoldo: Instituto Humanitas
Unisinos, 2014. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/531844-
oracismo-sulino-e-a-sonegacao-da-historia-afrodescendente-no-rio-grande-do-
sulentrevista-especial-com-jorge-euzebio-assumpcao#. Acesso em: 22 ago. 2022.
BENTO, Maria Aparecida.
Branqueamento e branquitude no Brasil
. Rio de Janeiro:
CEERT, 2002.
BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial.
Revista Brasileira de
Ciência Política
, Brasília, DF, n. 11, p. 89-117, maio/ago. 2013.
BRASIL. Lei nº 13.709, de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais
(LGPD).
Diário Oficial da União
, Brasília, 2018. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso
em: 30 out. 2023.
CANELLO, Luciana.
Flowjack:
indigente invisível. 2018. 1 fotografia.
CÉSAIRE, Aimé.
Discurso sobre o colonialismo
. Tradução: Cláudio Willer. São
Paulo: Veneta, 2020.
CONCEIÇÃO, Jackson (Flowjack).
Entrevista
concedida a Luciano. Porto Alegre,
2020.
CONCEIÇÃO, Jackson (Flowjack).
Entrevista
concedida a Luciano Tavares. Porto
Alegre, 2021.
CONCEIÇÃO, Jackson (Flowjack).
Entrevista
concedida a Luciano Tavares. Porto
Alegre, 2022.
CONCEIÇÃO, Jackson.
Fluxo mandinga
. [
S.I.: s.n
.]: 2023.
CONCEIÇÃO, Jackson (Flowjack).
Entrevista
concedida a Luciano Tavares. Porto
Alegre, 2024.
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares | Suzane Weber da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
20
COSTA, Jurandir Freire. Dar cor ao corpo: a violência do racismo. In: SOUZA,
Neusa Santos.
Tornar-se negro
: ou as vicissitudes da identidade do negro
brasileiro em ascensão social. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1990.
DIAS, Adriana Albert. A mandinga e a cultura malandra dos capoeiras (Salvador,
1910- 1925).
Revista de História,
[S.l.]
, n.1, v.2, 2009.
EVARISTO, Conceição.
A escrevivência serve também para as pessoas pensarem
.
Entrevistadoras: Tayrine Santana e Alecssandra Zappaparoli. São Paulo: Itaú
Social, 2020a. Disponível em:
https://www.itausocial.org.br/noticias/conceicaoevaristo-a-escrevivencia-serve-
tambem-para-as-
pessoaspensarem/#:~:text=CONCEI%C3%87%C3%83O%20EVARISTO%20%E2%80%93%20%E2%80%9CA%20e
screviv%C3%AAncia%20serve%20tamb%C3%A9m%20para %20as%20pessoas%20pensarem%E2%80%9D.
Acesso em: 5 maio 2021.
EVARISTO, Conceição. Escrevivência e subtextos. In: DUARTE, Constância Lima;
NUNES, Isabella Rosado (Org.).
Escrevivência
: a escrita de nós: reflexões sobre a
obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020b.
EVARISTO, Conceição.
Insubmissas lágrimas de mulheres
. 6. ed. Rio de Janeiro,
2023.
FANON, Frantz.
Pele negra máscaras brancas
. Salvador: EDUFBA, 2008.
FLOWJACK.
Costumização e design.
[
S.I.: s.n
.]: 2023.1 imagem.
GONZALEZ, Lélia.
Por um feminismo afro-latino-americano
: ensaios, intervenções
e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
GROSFOGUEL, Ramón.
Para descolonizar os estudos de economia política e os
estudos pós-coloniais
: transmodernidade, pensamento de fronteira e
colonialidade global.
Revista crítica de ciências sociais
, n. 80, p. 115-147, 2008.
LEMOS, Anielle Conceição.
Inserção e permanência de bailarinas negras
brasileiras no campo profissional da dança como representatividade negra e
modo de resistência ao racismo
. 2023. Tese (Doutorado em Artes Cênicas)
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2023.
MACHADO, Adilbênia Freire. Ancestralidade e encantamento como inspirações
formativas: filosofia africana e práxis de libertação.
Páginas de Filosofia,
v. 6, n. 2,
p. 51-64, 2014. Disponível em:
https://www.metodista.br/revistas/revistasmetodista/index.php/PF/
article/view/6300/5256. Acesso em: 18 ago. 2022.
MACHADO, M. C.; FISCHER, A. L.. Gestão de pessoas na indústria criativa: o caso
dos estúdios de animação brasileiros.
Cadernos EBAPE.BR
, v. 15, n. 1, p. 132–151,
jan. 2017.
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares | Suzane Weber da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
21
MIGNOLO, Walter.
Desobediencia epistémica
: retórica de la modernidade, lógica
de la colonialidade, gramática de la descolonización. Buenos Aires: Del Signo,
2010.
MICA. MERCADO DE INDUSTRIAS CULTURALES ARGENTINAS.
Método Uantpi
dança e tecendo em tinta preta artes plásticas. Disponível em:
https://mica.gob.ar/usuario/22030. Acesso em: 10 dez. 2023.
MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. 4 ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2020.
MUNIZ, Kassandra. Linguagem como mandinga: população negra e periférica
reinventando epistemologias. In: SOUZA, Ana Lucia Silva.
Cultura política nas
periferias
: estratégias de reexistência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2021.
MUYLAERT, Camila Junqueira et al. Narrative interviews: an important resource in
qualitative research.
Revista da Escola de Enfermagem da USP
, São Paulo, v. 48,
n. spe 2, p. 184-189, dez. 2014. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0080-
623420140000800027. Acesso em: 23 mai. 2022
RIOS, Flavia; RATTS, Alex.
A perspectiva interseccional de Lélia Gonzalez
. 2018.
Disponível em: https://estudosetnicosraciais.files.wordpress.com/
2018/04/264872160-a-perspectiva-interseccional-de-lelia-gonzalez.pdf. Acesso
em: 05 ago. 2021
SANTOS, Vanicléia Silva.
As bolsas de mandinga no espaço Atlântico
: século XVIII.
2008. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, 2008.
SILVA, Frederico A. B. da; ZIVIANI, Paula.
Mercado de trabalho da cultura
:
considerações sobre a meta 11 do plano nacional de cultura (PNC). Brasília: Rio de
Janeiro: Ipea, 2021.
SILVA JUNIOR, Paulo Melgaço da. Mercedes Baptista e Consuelo Rios: A presença
negra e a luta antirracista no Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. In:
COPENE - CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISADORES/AS NEGROS/AS -
ARTISTAS NEGRAS E PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO BRASILEIRO: ALGUMAS
REFLEXÕES POR UMA SOCIOLOGIA DAS AUSÊNCIAS, 11., 2021, Curitiba.
Anais [...].
Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2021. Organizadora: Sirlene Ribeiro
Alves.
SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz.
Encantamento
: sobre política de vida. Rio de
Janeiro: Mórula, 2020. 1 E-book.
SIQUEIRA, Maria de Lourdes. Ancestralidade e produção do conhecimento. In:
SIQUEIRA, Maria de Lourdes.
Siyayma
: uma visão africana do mundo. Edição da
autora, 2006. p. 29-35.
Vivências de FlowJack: propostas de um artista negro na criação de possibilidades de existência
Luciano Correa Tavares | Suzane Weber da Silva
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-22, abr. 2025
22
TAVARES, Luciano Correa. Escritas amefricanizadas de si na dança: masculinidades
negras. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) - Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, 2024. 260 p.
UANTPI, Vovo.
Método Uantpi
. Rosario, 2023. Disponível em:
https://metodouantpi.wixsite.com/uantpi. Acesso em: 10 fev. 2025.
Recebido em: 13/08/2024
Aprovado em: 19/01/2025
Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC
Programa de Pós-Graduação em Artes CênicasPPGAC
Centro de Artes, Design e ModaCEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br