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O artivismo feminista das mulheres artistas do
Yuyachkani: uma conversa com Ana Correa
Entrevista com Ana Correa
Concedida a Stela Fischer e Lúcia Helena Martins
Para citar esta entrevista:
CORREA, Ana. O artivismo feminista das mulheres
artistas do Yuyachkani: uma conversa com Ana Correa.
[Entrevista concedida a] Stela Fischer e Lúcia Helena
Martins.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 52, set. 2024.
DOI: 10.5965/1414573103522024e0501
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O artivismo feminista das mulheres artistas do Yuyachkani: uma conversa com Ana Correa
Entrevista com Ana Correa - Concedida a Stela Fischer e Lúcia Helena Martins
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-18, set. 2024
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O artivismo feminista das mulheres artistas do Yuyachkani: uma conversa com Ana Correa
Entrevista com Ana Correa1
Concedida a Stela Fischer2 e Lúcia Helena Martins3
Resumo
Mulheres artistas do Grupo Cultural Yuyachkani do Peru têm se interessado pelas práticas cênicas
desenvolvidas no artivismo feminista. Entrevistamos a atriz Ana Correa que nos contou sobre as ações
de intervenção social em diferentes comunidades e coletivos de mulheres no Peru, de práticas
artístico-pedagógicas de resgate de memória, de luta pelos direitos das mulheres e meninas que
reivindicam por justiça contra às violências hegemônicas e patriarcais.
Palavras-chave
: Ana Correa. Ativismo feminista. Yuyachkani.
The feminist artivism of women artists at Yuyachkani: a conversation with Ana Correa
Abstract
Women artists from the Yuyachkani Cultural Group of Peru have been interested in the scenic practices
developed in feminist artivism. We interviewed actress Ana Correa who told us about social intervention
actions in different communities and collectives of women in Peru, about artistic-pedagogical practices
to rescue memory, about the fight for the rights of women and girls who demand justice against
hegemonic violence and patriarchal.
Keywords:
Ana Correa. Feminist artivism. Yuyachkani.
El artivismo feminista de las mujeres artistas en Yuyachkani: una conversación con Ana Correa
Resumen
Mujeres artistas del Grupo Cultural Yuyachkani de Pese han interesado por las prácticas escénicas
desarrolladas en el artivismo feminista. Entrevistamos a la actriz Ana Correa quien nos habló de
acciones de intervención social en diferentes comunidades y colectivos de mujeres del Perú, de
prácticas artístico-pedagógicas para rescatar la memoria, de la lucha por los derechos de las mujeres
y niñas que exigen justicia contra la violencia hegemónica y patriarcal.
Palabras clave
: Ana Correa. Ativismo feminista. Yuyachkani.
1 Mestre em Antropologia Visual/Pontifícia Universidade Católica do Peru. Recebeu a medalha “Palavra de
Mulher 2013”, e o prêmio “Personalidade Meritória da Cultura Peruana”, pelo Ministério da Cultura do Peru,
em 2012. Entre seus trabalhos solo, destaca-se
Rosa Cuchillo
(2001), com direção de Miguel Rubio,
apresentado em várias cidades e festivais pelo mundo. Também dirigiu jovens atores do Centro de
Experimentação Cénica CEXES -Yuyachkani. Desde 2000 organiza oficinas de cura
Hampiq Warmi
(mulheres
curandeiras), dirigidas às mulheres vítimas de violência familiar e sexual e organiza intervenções artísticas
feministas em espaços públicos. É integrante do Projeto Magdalena e organiza
os Encuentros de Mujeres
Creadoras y Performeras
com as atrizes do Yuyachkani. Organizadora do
Warmikuna Raymi
, encontro
Teatro-Mulher-Cura, em Cusco, assunto que abordaremos nesta entrevista. Atriz, diretora e integrante do
Grupo Cultural Yuyachkani desde 1978.
2 Pós-doutorado em Artes da Cena pela Universidade Estadual de Campinas. Doutora em Artes Cênicas na
Universidade de São Paulo. Mestrado em Artes da Cena na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Graduação em Artes Cênicas Interpretação na Faculdade de Artes do Paraná (FAP). Profa. no Curso de
Bacharelado em Artes Cênicas da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR). Colaboradora no Programa
de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto. Editora-chefe da revista
O
Mosaico
(UNESPAR FAP). fischer.stela@outlook.com
http://lattes.cnpq.br/2582613400358249 https://orcid.org/0000-0002-6140-7563
3 Doutorado em Teatro pela Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC). Mestrado em Teoria
Literária/Dramaturgia pela UNIANDRADE. Especialização em Literatura Dramática e Teatro pela Universidade
Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Especialização em Literatura Brasileira e História Nacional pela
UFTPR. Licenciatura em Educação Artística Habilitação em Artes Cênicas pela Faculdade de Artes do
paraná (FAP). Profa. do curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR).
Performer, artivista professora-artista, pesquisadora e diretora teatral. lucia.martins@unespar.edu.br
http://lattes.cnpq.br/9863662519118764 https://orcid.org/0000-0003-2985-3018
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Desmontar e carnavalizar
O artivismo entrelaça arte e política e possui várias táticas de ação, desde
denúncias em manifestações e atos, marchas, intervenções urbanas,
performances artísticas, lambes, ações tecnopolíticas em espaços virtuais,
hashtags
etc., até a criação de modos de fazeres artísticos democráticos e
horizontalizados, com a intenção de provocar reflexões e subversões no
status
quo.
O artivismo realiza denúncia política, mas, também, instaura resgate das
histórias invisibilizadas, espaços de curas simbólicas e autocuidado, combinando
linguagem artística, consciência política, trocas de afetos, reflexão e emancipação
(Martins, 2022). Neste contexto, alguns trabalhos que o peruano Grupo Cultural
Yuyachkani4 vem desenvolvendo nos últimos anos dialogam com as estratégias
poéticas e políticas dos artivismos, pois realizam atividades artísticas, pedagógicas,
de expressão e intervenção social que fortalecem e acolhem as pautas dos
movimentos sociais, que:
[...] ultrapassa a palavra e a literalidade como únicas possibilidades de
enunciado, propondo novos desenhos para as retinas da memória. A
teatralidade emoldura o relato e garante o tratamento não cotidiano, ao
se oferecer como via potente nas ações comunitárias cujos participantes
podem arranjar a vida em gestos simbólicos e submeter seus relatos a
operações poéticas. Nestes espaços pedagógicos, o grupo convida os
próprios afetados pelos massacres coloniais a lançarem sua voz, a
colocarem o corpo em jogo, a elaborar simbolicamente processos de luto
e de emudecimento (Marko, 2023, p. 206).
Admiramos e acompanhamos o trabalho do Yuyachkani há tempos. Tivemos
alguns encontros com o grupo - Lúcia no 11
Laboratorio Abierto - Encontro
Pedagogico com Yuyachkani
(Peru, 2019) e membro participante dos grupos de Tai
Chi Chuan, ministrado por Ana Correa durante a pandemia (2020 2021) e Círculo
de Energia de arte e autocuidado (2022); e Stela nos “encuentros” promovidos pelo
Hemispheric Institute of Performance and Politics5 (São Paulo, 2013; Montreal, 2014;
4 O coletivo teatral criado em 1971, tem importante atuação em toda América Latina. O grupo tem se dedicado
à prática da criação coletiva, da corporificação da memória política, particularmente em relação às questões
sobre etnicidade, violência social no Peru. É formado por Augusto Casafranca, Amiel Cayo, Ana Correa,
Débora Correa, Rebecca Ralli, Teresa Ralli e Julián Vargas, Miguel Rubio e o colaborador Fidel Melquíades. O
Yuyachkani ganhou o Prêmio Nacional de Direitos Humanos do Peru, em 2000, entre outros. Mais
informações, disponível em: https://yuyachkani.org/. Acesso em: jul. 2024.
5 “A cada dois anos, o Instituto Hemisférico organiza um Encuentro parte conferência acadêmica, parte
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Chile, 2016) e com as mulheres artistas do Yuyachkani nos encontros do Magdalena
Project6 em diferentes países da Abya Yala (Brasil, 2012; México, 2013; Chile, 2016;
Buenos Aires, 2018).
Considerando as diversas ações artivistas realizadas por Yuyachkani nos seus
mais de 50 anos de atuação, temos um especial interesse, pelo trabalho
desenvolvido por Ana Correa com diferentes coletivos de mulheres no Peru, de
práticas artístico-pedagógicas de resgate de memória, de luta pelos direitos das
mulheres e reivindicação por justiça contra às violências hegemônicas e
patriarcais. Até mesmo porque este é um dos pilares de nossas pesquisas e
práticas artístico-ativistas que utilizam a “teatralidad y la performatividad para
abordar escenarios sociales y para hacer visibles los dispositivos
representacionales comprometidos por el poder, pero también apropriados por la
sociedad civil para desmontarlo y carnavalizarlo” (Diéguez, 2023, p. 136).
Assim surgiu a ideia dessa entrevista. Realizamos de forma
online
, no dia 05
de junho de 2024, com a duração de mais de 2h de conversa com Ana Correa.
Atriz, diretora, artivista feminista e de direitos humanos, membro do Grupo
Cultural Yuyachkani desde 1978. Mestre em Antropologia Visual (PUC/Peru),
professora de atuação, formação vocal e corporal, teatro e sociedade. Foi
nomeada Personalidade Meritória da Cultura, título concedido pelo Ministério da
Cultura do Peru, em 2012. É integrante do Magdalena Project, a partir do qual
promove no Peru o
Encuentro de Mujeres Creadoras y Performeras
. Nesta
entrevista, Ana Correa, na sua generosidade sem tamanho, nos contou sobre suas
principais ações artivistas históricas que resultaram no que hoje se tornaram as
intervenções de cunho feministas com intervenções em diferentes atos, marchas
e ações políticas, em especial no contexto sociopolítico do seu país, tanto na
capital como em cidades, vilas e comunidades andinas.
festival de performance em um local diferente nas Américas. Promovendo a experimentação, o diálogo e
a colaboração, cada Encuentro reúne aproximadamente quinhentos acadêmicos, artistas, ativistas e
estudantes que participam de um programa de dez dias de palestras, grupos de trabalho, performances,
instalações, discussões em estilo mesa redonda, exposições de artes visuais, mostras de vídeo e oficinas
práticas de performance.” Disponível em: http://archive.hemisphericinstitute.org/hemi/pt/encontro. Acesso:
jul. 2024.
6 Criado em 1986, pelas atrizes Jill Greenhalgh (Cardiff Theatre Laboratory) e Julia Varley (Odin Teatret), o
Magdalena Project tornou-se uma rede internacional de mulheres de teatro que vem sendo disseminada
por suas participantes em diferentes países.
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Entrevista com Ana Correa - Concedida a Stela Fischer e Lúcia Helena Martins
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Ana Correa nos concedeu um relato de memórias com significados artísticos
e políticos, carregado pela experiência de quem empreende uma luta constante
para a manutenção da cultura e cosmovisão andinas, dos oprimidos, dos artistas
e, principalmente, das mulheres. Uma fala xamânica que nos encantou nas
camadas mais sutis do que é ser uma artista-ativista política que busca “descobriu
o poder de sua arte como um lugar de cura” (Fischer, 2023, p. 253). O pacto de
uma mulher-artista na sua maturidade que se compromete a usar o seu tempo e
arte para a luta contra o patriarcado colonial.
A seguir, editamos os trechos principais de sua fala, aqui nesta entrevista
colocados em primeira pessoa para tornar essa conversa mais próxima, algo que
é dito “entre amigas”, ou melhor, “entre hermanas”.
Figura 1 Ana Correa, em
Rosa Cutillo
, em San Cristóbal e las Casas, Chiapas,
México, 2013 Foto: Stela Fischer
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A conversa
Stela - Querida Ana, gostaríamos de conversar sobre as ações de ativismo
feminista com comunidades de mulheres no Peru, realizadas paralela e
concomitantemente ao trabalho do Yuyachkani. Como surgem?
Ana Correa
- Vou falar sobre o meu trabalho de ativismo e artivista. O
Yuyachkani acolhe e abraça, mas não é um trabalho específico e exclusivo do
grupo. As quatro atrizes do Yuyachkani7 começaram a trabalhar juntas na oferta
de oficinas sobre teatro e mulheres na época do Conflito Armado no Peru8, com
oficinas que inicialmente chamamos de
Talleres de Autoestima9
e, na
continuidade, decidimos chamar de “oficinas de fortalecimento”. Até aqui,
estávamos trabalhando as quatro atrizes juntas. Depois, apenas eu comecei no
trabalho de artivismo com o grupo que se chama CEXES - Centro de
Experimentación Escénicas10, em 1992. Aqui o objetivo era trabalhar com atores e
atrizes jovens em diálogo com a realidade social no nosso país. O Yuyachkani nos
concedia o espaço para trabalharmos. E eu trabalhava junto com Miguel
Melquiades - também membro do grupo - que ajudou a definir o trabalho dessas
ações cênicas. Não chamávamos de artivismos nem ativismos, e sim de ações
cênicas, como uma escritura no espaço aberto ou de rua que se nutre das
diferentes artes cênicas, dança, performance para estabelecer diferentes níveis de
dramaturgia, espetáculo, atuação. As ações cênicas não estão no centro e sim às
margens, nos limites dos gêneros teatrais. A partir dessa definição, começamos a
7 São: Ana Correa, Débora Correa, Tereza Ralli e Rebeca Ralli.
8 O chamado Conflito Armado Interno é o período da história peruana que começou em 1980, com a
declaração de guerra ao Estado do movimento terrorista Sendero Luminoso. Caracterizou-se por uma
reação militar dos governos, violenta estatal que teve contornos de terrorismo de Estado, especialmente
após a captura do líder senderista Abimael Guzmán, em 1992, durante o governo Fujimori. Culminou em
2000 com a fuga deste presidente ao Japão, de onde era cidadão, e a sua renúncia via fax. Calcula-se em
torno de 23 mil vítimas entre pessoas mortas e desaparecidas. Mais informações disponíveis em:
https://www.cverdad.org.pe/ifinal/. Acesso em: ago. 2024.
9 “Entre tantos projetos desse tipo estão o
Teatro Mujer
e
Talleres de Autoestima
, encabeçados pelas atrizes
de Yuyachkani, que envolveram mulheres em experimentos cênicos na contramão das imposições
patriarcais”. (Marko, 2023, p. 207)
10 Em 1992, o grupo Cultural Yuyachkani criou um espaço artístico independente para experimentação teatral
e encontro interdisciplinar de diferentes artes, chamado Centro de Experimentación Escénicas (CEXES), no
qual atrizes e atores criadores poderiam abrir linhas de investigação temáticas a partir do interesse de jovens
em diálogo com a realidade nacional e criar novos projetos. Desde o início de suas atividades, o CEXES ocupa
espaços abertos, urbanos, ruas com intervenções artísticas e ativistas.
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trabalhar no CEXES buscando fazer parte de campanhas dirigidas aos setores
populares, em especial em diálogo com espectadores jovens e mulheres. Para
tanto, desenvolvemos uma estética que incorpora a simultaneidade das ações, a
música executada ao vivo, o uso de objetos cênicos, indumentária e atuação para
espaços abertos.
O primeiro trabalho de rua de ativismo que dirigi foi
Olvidarte Nunca
, de 1994,
junto com a Asociación Pro-Derechos Humanos (APRODEH). Essa primeira
intervenção que fizemos na Plaza de San Marco Capac e Plaza San Martín (Lima,
Peru), denunciava o sequestro e o assassinato de nove estudantes universitários
da Cantuta11, em 1992, na época do Conflito Armado. Assim, a ideia do ativismo
nasceu como uma forma de combinar arte e questões políticas, para denunciar as
violações dos direitos humanos, a impunidade e a luta pela justiça. Tomamos às
ruas - que estavam proibidas - numa época de ditadura militar de Fujimori12. A
partir dessa primeira ação, formamos uma equipe de jovens para dar continuidade
a outros trabalhos, como
Halcón de Oro Q´oriwaman
(1995) que denunciava o
abuso das forças armadas.
O início dos trabalhos com o tema “mulher”, acontece quando dirigi
Andamios, violencia sexual, derechos civiles y ciudadanos
(1995)
,
em colaboração
com a organização feminista DEMUS - Defensa de la Mujer. Juntas levamos uma
campanha de prevenção e erradicação da violência contra as mulheres e meninas
para diversas escolas e universidades de Lima e região, entre os anos de 1995 e
2000. Esta ação foi apresentada para cerca de 50 mil estudantes e, também,
disponibilizamos um canal por telefone para denúncias de violências domésticas
e sexuais. Até este momento, eu chamo esse trabalho de ações cênicas e não de
11 Conta-nos Ana Correa que o massacre de La Cantuta, como chamavam Universidade Nacional de Educação
Enrique Guzmán y Valle (conhecida como La Cantuta devido ao nome da área onde se encontra) onde
estudavam as vítimas, ocorreu em Lima, em 18 de julho de 1992, quando um professor universitário e nove
estudantes foram sequestrados e desaparecidos pelo grupo paramilitar Colina, integrado por agentes do
Serviço de Inteligência do Exército (SIE) e liderado pelo Major Santiago Martín Rivas. O objetivo da operação
era prender os suspeitos de terem participado do ataque de Tarata, explosão de um carro durante a
campanha de Alberto Fujimori pelo grupo Sendero Luminoso.
12 Alberto Ken’ya Fujimori (1938) foi presidente do Peru entre 1990 e 2000. Seu governo foi ditatorial, autoritário
e violento. Em 1992, realizou um autogolpe que levou ao fechamento do Congresso peruano, e foi sucedido
por inúmeras violações dos direitos humanos perpetradas por agentes do Estado na luta anti-Senderista,
seguidos por escândalos de corrupção que marcaram o fim do seu governo. Foi julgado e condenado a 25
anos de prisão por diversos crimes contra os direitos humanos. Fujimori deixou a prisão de segurança
máxima de Barbadillo, nos arredores de Lima, em 2023. Disponível em:
https://sites.usp.br/portalatinoamericano/espanol-fujimori-alberto. Acesso em: jul. 2024.
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artivismo, ações com um conceito de narração, como uma maneira de trabalhar
o corpo a partir do tema mulher, para espaços públicos ou não-convencionais.
Em 2004, junto com o Centro de la Mujer Peruana Flora Tristan e a
Coordenadora Nacional de Derechos Humanos, dirigi outro trabalho com os jovens
do CEXES a ação cênica
No es No
, criada para a campanha Nacional de Prevenção
da Violência Familiar. No mesmo ano, dirigi outra ação,
Nunca más contra Ninguna
Mujer
, no ensejo do Dia Internacional das Mulheres, no qual denunciamos o corpo
da mulher como um campo de batalha durante o Conflito Armado do Peru.
E seguimos fazendo outras tantas ações durante marchas e atos pelos
direitos humanos e das mulheres, junto às organizações e coletivos feministas.
Aqui eu ainda estava ligada à ideia de teatralidade das ações, com uma
dramaturgia narrativa. Eu fui aprendendo que para a rua eu precisava de um corpo
coletivo, mas ainda eram obras teatrais. A partir de campanhas com organizações
feministas, encontrei uma maneira de poder me expressar e estreitar a luta pelas
pautas das mulheres, mas ainda muito próximo ao que seria um teatro para
espaços públicos.
Isso ocorreu até quando Debora (Correa) e eu criamos a ação
Kay Puncu
(2007)13 também em parceria com a organização feminista DEMUS - Defensa de la
Mujer, sobre as mulheres que foram estupradas pelos militares durante os anos
do Conflito Armado peruano (1980-2000) nas comunidades de Manta e Vilca14
(região sul do Peru). A maioria das mulheres não falava e nem denunciava as
violações. Chamamos este trabalho de
acción documentada
e aqui entramos na
performance. Reunimos depoimentos de mulheres sobre os estupros, as
violências e mortes cometidas pelos militares durante os 14 anos em que
estiveram nessa comunidade. E apresentamos em frente ao Palácio de Justiça
(Lima) durante as sessões de julgamento desses militares.
Na continuidade, em 2015, começamos a trabalhar com
Talleres de Sanación
Hampiq Warmi
(mulheres curandeiras), ou seja, oficinas de cura dirigidas a
13 Mais informações sobre esta ação, no artigo: C. F. Diaz Astre. Pensando Kay Punku desde su agencia.
Revista
Rascunhos
- Caminhos da Pesquisa em Artes Cênicas, [S. l.], v. 8, n. 1, p. 195209, 2021. Disponível em:
https://seer.ufu.br/index.php/rascunhos/article/view/58085/31544. Acesso em: jul. 2024.
14 Sobre o caso, disponível em: https://www.bbc.com/mundo/articles/c133dk426eno. Acesso em: jul. 2024.
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mulheres vítimas de violência familiar e sexual. Somamos a outras artistas ativistas
de Cusco e criamos o
Warmikuna Raymi
, encontro de
Teatro-Mujer-Sanación.15
A
oficina está destinada a nos fortalecermos e, também, para olhar para esse lado
de consolo e acolhimento às mulheres. E nos reconhecermos como divinas e
humanas. Divinas, como faziam as culturas ancestrais, pela relação cíclica com o
cosmos. Somos cíclicas por gerarmos filhos num ciclo exatamente de 9 meses. A
cada 28 dias menstruamos. E todos o cosmos é cíclico, toda a natureza é circular
e cíclica. Se somos circulares, podemos interromper o ciclo de dor. Essa ação
também é um cíclico, de corpos juntos, nos movendo e fazendo o mesmo
movimento.
Figuras 2 -
Warmikunapaq
,
Todas Somos María Parado Jayo
(2024), no Encuentro
Latinoamericano de Mujeres Creadoras16
15
Warmikuna Raymi
é um encontro de mulheres das Artes Cênicas criado em 2012 na cidade de Cusco, Peru,
para promover um espaço de convivência e troca de conhecimentos e experiências de desigualdade e
violência contra as mulheres. Buscam a transmissão da sabedoria feminina, dando continuidade e
fortalecendo os círculos ancestrais e contemporâneos onde as mulheres compartilham espiritualidade,
feminilidade, energia e sonhos. Buscam, também, tornar visíveis criações e reflexões do mundo das
mulheres, por meio de seus projetos performáticos, bem como de espaços pedagógicos de artistas e
criadores da América Latina. A equipe fundadora e gestora é formada por Ana Correa, Tania Castro, Marisol
Zumaeta, Cucha del Águila e Débora Correa. Disponível em: warmikunarayami.wordpress.com. Acesso em:
jul. 2024.
16 Fonte da Figura 2 e 3 - Pierre Raimbault. Disponível em:
https://www.facebook.com/profile.php?id=100009900998932&mibextid=ZbWKwL. Acesso em: jul. 2024
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Figuras 3 -
Warmikunapaq
,
Todas Somos María Parado Jayo
(2024), no Encuentro
Latinoamericano de Mujeres Creadoras
Outro exemplo foi
La Caravana de las flores asesinadas
(2017), uma das ações
de
Warnikuna Raymi
que trouxemos para Lima, na qual as performers ocupavam
a cidade e levavam bordados em seus panos que lhe cobriam a boca os nomes
das mulheres assassinadas ou que tiveram suas vidas destruídas pela violência
militar de Manta y Vilca. Fizemos essa ação por dois anos.
Figura 4 - Ana Correa e
Warmikuna Raymi
, em
Caravana de las flores asesinadas.
Dia
internacional de eliminação da violência contra as mulheres, Lima/Peru, 201717
17 Fonte: https://warmikunaraymi.wordpress.com/acciones/. Acesso em jul. 2024
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11
Kay Puncu
e
Warmikuna Raimi
abrem esse momento de artivismo feministas
nas ruas, que durante o período da Covid-19 ganhou mais parceiras, táticas e
expressão e permanece crescendo até hoje. Com essas práticas artivistas nas ruas,
criamos novas estratégias de ação, a qual passamos a nos conectar e organizar
por WhatsApp, por exemplo. Depois, nos encontrávamos na rua, eu levava as saias
e mulheres de vários lugares iam chegando para aderir à ação. Desta forma, saímos
da sala teatral, dos encontros de mulheres de teatro para levar as ações cênicas
às ruas, em diálogo com as organizações feministas em grandes ações. E, assim,
passamos a fazer performance.
A
acción documentada
Kay Puncu
nos deu a possibilidade de abrir a
Warmikuna Raimi
que é realizado em Cusco, e é muito forte e importante porque
o ato de consolar as mulheres é importante para nós todas. A personalidade
Mikaela Bastilla18 foi indispensável, continuamos a aprender sobre ela e toda a sua
fortaleza. Ir à cidade de Cusco, no local onde a mataram para consolá-la, significa
consolar e dar visibilidade e nomear às mulheres de sua linhagem que morreram
de maneira tão cruel. Escrevíamos seus nomes em nossos corpos. Continuamos
a fazer esta ação que é constantemente atualizada. Por exemplo, jovens meninas
passaram a escrever em seus braços e corpos o nome das mulheres mortas por
feminicídio durante a pandemia. Então, essa ação, que tinha uma perspectiva de
reivindicação das mulheres da história, de repente se atualiza e em nossos corpos
são escritos os nomes das mulheres recentemente morreram de feminicídio
durante a Covid-19.
Lúcia - Em relação a essa atualização das ações artivistas, você poderia
nos falar sobre o processo de criação de estratégias e táticas, o que as
mobiliza e como trabalham as ações considerando as novas mídias e redes
sociais?
Por exemplo, em 2020, criamos
Marea Roja
que nasceu do encontro de três
coletivos de mulheres,
Warmikuna Raymi
, Yuyachkani e coletivo
Collerared19 .
No
18 Líder revolucionária peruana da grande Revolta Inca de 1780-1783. Devido a história de machismo estrutural
e de invisibilização das mulheres, é mais conhecida por ter sido casada com Túpac Amarú II do que por suas
ações.
19 Colectiva de criadoras, produtoras e gestoras de arte e cultura feminista para a transformação social no Peru.
Mais informações, disponível em: https://www.collerared.com/ acesso: ago. 2024.
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12
dia 9 de novembro, houve um golpe de Estado pelo Congresso no qual nomeiam
o presidente Manuel Merino, ato amplamente rejeitado pela população em
protestos por todo o Peru.20 Nós do
Warmikuna Raimi
chamamos atrizes, bailarinas
e performers artivistas para que fossemos à Praça San Martin nos protestos. Eu
levei saias vermelhas e pedi para que vestissem blusas brancas - porque branco
e vermelho é a bandeira peruana. Fizemos uma grande ação e as fotos desse dia
viralizaram nas redes sociais. Em seguida, outras ativistas entraram em contato
querendo se unir a nós. No dia 14 do mesmo mês, nos juntamos e éramos 40
mulheres. E saímos às ruas. Enquanto estratégia para não sermos massacradas
pela polícia, realizamos as ações na concentração do ato. Lembro que nesse dia,
mataram dois jovens manifestantes. E após esses assassinatos, criamos um grupo
no WhatsApp, no qual participam em torno de 140 mulheres: feministas, mulheres
das batucadas, performers, atrizes, bailarinas de danças modernas e tradicionais.
Nossa estratégia de organização passou a funcionar da seguinte maneira: as
mulheres se inscrevem nesse grupo, e por segurança, passamos seus nomes para
outro grupo de WhatsApp. Preparamos a ação, combinamos com companheiras
advogadas para nos organizarmos em relação a segurança, definimos quem vai
registrar em fotos e vídeos, pois faz parte da estratégia transmitir ao vivo pelas
redes sociais e, assim, fazemos a ação. Sempre chegamos a um ponto perto do
local, nos preparamos, ensaiamos e vamos para o meio do povo.
Não somos um grupo que nos juntamos sempre, somos um grupo que se
reúne para determinada ação. Hoje uma comissão de 22 pessoas que
coordenam as ações. Nos autoconvocamos e nos autofinanciamos. Ou seja,
quando aparece uma ação para fazer, as 140 pessoas participantes do grupo
começam a ajudar com dinheiro, 1 ou 2 s
oles
para os taxis que levam as saias,
para pagar as musicistas que tocam nas ações. Além de música, temos uma
comissão da dramaturgia porque para cada ação se cria uma dramaturgia com um
tema. Somos uma coletiva e não temos uma sede. Tudo é descentralizado para
evitar repressão. Participamos em marchas e atos. Trabalhamos com um tempo
ritual, a ação tem rito, tem denúncia, tem celebração e dança.
20 Após o impeachment do presidente Martín Vizcarra que foi substituído por Manuel Merino, então presidente
do Congresso, anifestantes saíram às ruas denunciando o episódio como golpe à democracia. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-54946839. Acesso em: jul. 2024.
O artivismo feminista das mulheres artistas do Yuyachkani: uma conversa com Ana Correa
Entrevista com Ana Correa - Concedida a Stela Fischer e Lúcia Helena Martins
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-18, set. 2024
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Figura 5 - Marea Roja. Marcha Nacional contra la Destrucción de la Democracia. Lima:
frontis del Palacio de Justicia. 21 julho, 2024. Fonte: Ana Correia
A partir de 2020, iniciamos a fazer essas grandes ações nas ruas. E a ideia
não era fazer intervenções artísticas apenas em Lima, mas em outros lugares
periféricos com outras mulheres e coletivas. Por exemplo, agora no próximo dia 9
de dezembro de 2024, será comemorado 200 anos da Batalha de Ayacucho21, onde
se juntaram exércitos de 8 países da América Latina para terminar com a colônia
e com o colonialismo. Teve uma mulher, Manuela Sáenz, que foi uma ativista e
amante de Bolívar, e por ser sua amante, foi ignorada pela história do Peru.
Estamos organizando um encontro que se chama
Todas somos Manuela Sáenzs
.
Ganhamos o edital Iberescena22 e juntamos a coletiva de Ayacucho,
Warmikuna
Raimi
e Yuyachkani e nesse encontro vamos trazer uma atriz de cada um desses
países para representá-los. Vem uma atriz da Argentina, Chile, Bolívia, Equador,
Colômbia, Venezuela, Panamá e Peru. Será a primeira e única vez que se junta a
21 A Batalha de Ayacucho foi um violento enfrentamento armado durante as campanhas de independência
hispano-americanas e significou o fim definitivo dos vice-reinados na América espanhola. A batalha
aconteceu no Pampa de la Quinua, em Ayacucho, no Peru, em 9 de dezembro de 1824. Disponível em:
https://outraspalavras.net/outrasmidias/peru-relatos-do-massacre-de-ayacucho/. Acesso em: jul. 2024.
22 Fundo de ajuda e financiamento para as Artes Cênicas Iberoamericanas. Disponível em:
http://www.iberescena.org/. Acesso em: jul. 2024.
O artivismo feminista das mulheres artistas do Yuyachkani: uma conversa com Ana Correa
Entrevista com Ana Correa - Concedida a Stela Fischer e Lúcia Helena Martins
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-18, set. 2024
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América Latina. Nós, mulheres artistas e ativistas, neste evento vamos comemorar
e dar visibilidade à Manuela Sáenz, às mulheres afros e indígenas que lutaram na
batalha e que não foram reconhecidas, mas silenciadas. Vamos declarar a morte
ao patriarcado colonial. Vamos fazer uma reunião com 200 mulheres pelos 200
anos da Batalha de Ayacucho.
O movimento das mulheres é a única mobilização que tem se manifestado
contra as ditaduras que temos neste momento. Não acreditamos em partidos
políticos porque o machismo e o patriarcado estão expressos, também, nos
partidos que não põe à frente a luta pelos direitos das mulheres. Assim, nosso
movimento não deve ser partidário. O feminismo tem um objetivo e a nossa luta
é melhorar a humanidade, não é para ir contra os homens. Quem disse isso? Foi
em 1923, Maria Jesus Alvarado23 que disse que a luta das mulheres é uma luta pela
humanidade. Ela estava falando do triunfo do feminino não é o triunfo das
mulheres, mas da humanidade. A luta por recuperar a memória histórica das
mulheres que lutaram umas pelas outras. Porque um acordo tácito do patriarcado
é nos invisibilizar e nos matar. Mulheres aimaras e quéchuas estão em levante
após 200 anos.
Stela: Para entender, nestas ações feministas que vocês se reúnem com
outras coletivas, não somente de Lima, mas de outras cidades andinas do
Peru, existe um levante para as pautas das mulheres indígenas e/ou
quéchuas contra a violência de gênero nestas comunidades?
Eu não sou uma ativista apenas para mobilizar as mulheres indígenas, não.
Eu sou uma artista. A minha maneira de apoiar a luta das mulheres é sempre pela
arte. Sempre! Isso eu tenho absolutamente vivo. Te contei sobre a tomada de Lima
porque esse governo ordenou matanças - mais de 53 mortos nas regiões e não há
nenhum culpado e nenhuma investigação. Uma inspiração foi uma imagem, em
2023, uma pintura de uma
chola
campesina que ao invés de rosto, tinha uma
cabeça de pássaro. Sua cabeça era a de um pássaro. Então, quando nós vimos
23 María Jesús Alvarado Rivera nasceu em 27 de maio de 1878 em Chincha Alta, Peru. Foi educadora, jornalista,
escritora e ativista social. Ela é considerada a primeira mulher feminista do Peru. Ela era uma jovem
professora e socióloga autodidata quando iniciou a luta pela reivindicação dos direitos das mulheres
peruanas na segunda década deste século. A sua luta não foi apenas pelas mulheres, mas também atingiu
crianças, trabalhadores e povos indígenas. Disponível em: https://www.cndh.org.mx/noticia/fallece-maria-
jesus-alvarado-rivera-educadora-periodista-escritora-y-luchadora-social. Acesso em: jul. 2024.
O artivismo feminista das mulheres artistas do Yuyachkani: uma conversa com Ana Correa
Entrevista com Ana Correa - Concedida a Stela Fischer e Lúcia Helena Martins
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isso, ficamos impactadas. No Yuyachkani temos muitas máscaras de cabeça de
pássaros. Vestimos nossos figurinos de nossas peças andinas anteriores e saímos
para uma mobilização com cabeças de pássaros. E essa ação se repetiu. No ato
político seguinte, eu me vesti e saí com a cabeça de um beija-flor. Miguel [Rúbio]
foi a essa marcha e registrou com fotos. A polícia não sabia o que fazer com essa
intervenção. Eu estava dançando com uma cabeça de pássaro em frente a toda a
tropa da polícia e eles não sabiam o que fazer. Porque era belo e poético. Mas
como eu estava na mobilização, eles não sabiam se deveria ou não reprimir. E não
reprimiram.
A partir dessa ação, temos feito muitas
Mujeres Pájaros,
como nomeamos
essa intervenção. Temos feito “mulheres pássaros” segurando bandeiras, porque
uma das agressões às mulheres indígenas feita em Lima, é proibi-las de levar a
bandeira de Peru. E elas são parte desse país, elas são cidadãs. Houve um caso de
uma campesina que os policiais lhe arrancaram a bandeira que levava em mãos,
a arrastaram pelo chão e a prenderam apenas por levar a bandeira do Peru.
Figuras 6
Mujeres Pájaros
. Marcha por justicia y sancion a los responsables de los asesinatos en
las regiones andinas del Sur Oriente de Peru. Bloque de la Red Nacional de Trabajadores de las
Artes y las Culturas. Campo de Marte, Lima, 31 de janeiro de 2023 - Fonte: Miguel Rubio.
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Eu vou às marchas de forma artística, desde minha condição de atriz ativista
para dizer “estou com vocês”. Não vou apenas com cartazes e punho erguido, mas
penso poeticamente a minha ação. A maneira de fazer ativismo pelas mulheres
do Yuyachkani é apoiar a luta das mulheres e de outros coletivos sempre através
das artes. Essa é a ideia.
Lúcia: Então esse lugar é o do artivismo, a arte com o ativismo. Vejo que
todas as performances que você nos apresentou no seu relato possuem
várias formas de artivismos: realizam denúncia, criam modos de
organização de forma coletiva, compartilham a dor, buscam o autocuidado
e a cura. Considerando essas várias formas de fazer, quais os tipos de
artivismos você considera mais potente trabalhar hoje, na
contemporaneidade, enquanto mulher e com mulheres?
Eu tenho 70 anos. O tempo que tenho daqui para frente vou usar para a luta
contra o patriarcado colonial. Vou usar todas as minhas ferramentas, todas as
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minhas armas artísticas para me mobilizar no teatro, no espaço não convencional,
na rua, nas mobilizações e em todo lugar onde eu possa. E não somente em Lima,
mas também no interior do Peru. Eu tenho absoluta certeza do que vou fazer, todo
meu esforço vai para incentivar a coragem e fortalecimento das mulheres. Não
quero partir desse mundo sem deixar evidente a todas as mulheres que trabalham
comigo ou as que estão atuando nas ações que fazemos, que não vou usar meu
esforço às causas que não sejam essas. Existem várias formas de fazer artivismos
e vamos abrindo cada vez mais campos. Por exemplo, tem uma ativista peruana
pelos direitos das mulheres, mestre em Antropologia Visual, Karen Bernedo24, que
está fazendo instalações a partir de histórias das mulheres do Peru que viveram
no século passado. Ela tem feito ações com
carátulas
de mulheres a partir de
recortes de jornais e revistas, e as chama de “impostoras”, como: a primeira
aviadora, a mulher que lutou na guerra contra o Chile, a primeira jogadora de vôlei,
a primeira mulher que se formou na universidade, a primeira médica, a primeira
mulher que conseguiu se divorciar, cria esses cartazes e expõe. Porque nós
mulheres fomos invisibilizadas da história. Porque o patriarcado tem o acordo
tácito de nos invisibilizar. E essa artista com o seu trabalho da antropologia visual
visibiliza a história das mulheres.
Eu acredito que o caminho da arte, ou seja, do artivismo é indispensável
agora, é indispensável na rua porque as mulheres têm se mobilbizado. Outro
exemplo é a “Canción sin miedo”, de Vivi Quintana25, um hino indispensável contra
o patriarcado. Centenas de mulheres cantando e dançando. Por quê? Porque a rua
permite que estejamos juntas para fazer a mobilização. Eu acredito que estamos
atuando em diferentes níveis. É tão importante a mobilização e a transmissão
através das redes, porque a cada ação de uma mulher que chega a outra é uma
oportunidade de tomada de consciência de seu gênero e luta. E assim,
começamos a nos curar. O nosso gênero está doente porque o sistema patriarcal
24 Karen Paola Bernedo Morales é comunicadora peruana, antropóloga visual, ativista de direitos humanos,
pesquisadora e documentarista social radicada em Lima. É cofundadora do projeto coletivo de museografia
alternativa Museo Itinerante Arte por la Memoria. É professora da Faculdade de Artes Cênicas da
Universidade Científica do Sul e colunista do meio digital Sudaca.pe. Disponível em:
https://peru21.pe/cultura/necesario-museo-mujer-peruana-fotos-403020-noticia/. Acesso em: jul.2024.
25 Música utilizada em manifestações e protestos feministas no Peru e em toda a América Latina. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=VLLyzqkH6cs. Acesso em: jul. 2024.
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nos tem adoecido. Nos coletivos, ao nos “autoconvocarmos” e “autofinanciarmos”,
estamos exercitando novas maneiras de organização que não seja replicar o
formato patriarcal, machista, hierárquico que a colônia nos impôs, o patriarcado,
esse sistema que está instalado no planeta. Pra mim é importante o ativismo e o
artivismo para que cada vez mais mulheres se somem e passem a se expressar
nas ruas. Nesse trabalho que estamos fazendo, que nasceu do teatro, que sai do
teatro, que vai para a rua, retorna ao teatro de outras formas, pois se transforma.
Se você ver o espetáculo
Discurso de Promocción
(2017), por exemplo, o
Yuyachkani se alimentou da rua e da luta das mulheres. Porque estão nos
matando! Continuam nos matando!
(Ana termina em silêncio)
Referências
DIÉGUEZ, Ileana. Performatividades de la búsqueda: la imaginación rexistente
desde las mujeres que buscan a sus familiares desaparecidos. In: FERNANDES,
Sílvia; DA COSTA, José.
Políticas da cena contemporânea: comunidades e
contextos
. São Paulo: Hucitec, 2023.
MARKO, Ana Julia. Actores Testigos contra memórias insuficientes: poéticas do
testemunho no grupo cultural Yuyachkani (Peru). In: FERNANDES, Sílvia; DA COSTA,
José
. Políticas da cena contemporânea: comunidades e contextos
. São Paulo:
Hucitec, 2023.
MARTINS, Lúcia Helena.
O artivismo da proximidade:
implicações pedagógicas em
práticas de performances artivistas. 2022. Tese (Doutorado em Teatro) -
Universidade do Estado de Santa, , Florianópolis, 2022.. Disponível em:
https://sistemabu.udesc.br/pergamumweb/vinculos/00009b/00009b9c.pdf Acesso em: dez. 2023.
FISCHER, Stela.
Mulheres, performances e ativismos feministas na cena latino-
americana
. São Paulo: Hucitec, 2023.
Recebido em: 04/08/2024
Aprovado em: 16/08/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br